Acessibilidade / Reportar erro

Interface entre a psicanálise e a fonoaudiologia: uma revisão da literatura

RESUMO

O objetivo deste estudo foi verificar na literatura brasileira e internacional produções científicas correlacionando a Fonoaudiologia e a Psicanálise. Foi realizada revisão de literatura utilizando as bases de dados BVS, Scielo, Scopus e PubMed. Foram utilizados os descritores “Fonoaudiologia”, “Psicanálise”, “Comunicação”, “Speech Therapy”, “Psychoanalysis” e “Communication” e identificados 65 artigos completos entre os anos de 1980 a 2015. A análise foi realizada por meio de um “Protocolo de Classificação de Artigos”. Foi possível verificar que o tipo de trabalho mais publicado é o Artigo Original. Observou-se que SCOPUS e BVS foram as bases de dados mais comuns. Há um predomínio de artigos no idioma português, seguido por inglês, francês e alemão. Várias especialidades da Fonoaudiologia apresentaram interface com a psicanálise, especialmente, Linguagem e Neuropsicologia. Os trabalhos foram publicados principalmente em periódicos da Psicologia, sendo encontrados também na área da Fonoaudiologia e da Interdisciplinar. Este trabalho de revisão evidenciou a interferência psicanalítica na clínica fonoaudiológica, verificando a necessidade de mais estudos relacionando ambas as áreas que possam contribuir para a atuação desses profissionais e, consequentemente, possibilitar uma melhora na qualidade de vida do sujeito psíquico.

Descritores:
Fonoaudiologia; Psicanálise; Comunicação

ABSTRACT

The aim of this study was to verify the Brazilian and international scientific productions by correlating Speech Language and Hearing Sciences and Psychoanalysis. A literature review was performed using the databases BVS, Scielo, Scopus and PubMed. The used descriptors were “Fonoaudiologia”, “Psicanálise”, “Comunicação”, “Speech Therapy”, “Psychoanalysis” and “Communication”, identifying 65 full articles between the years 1980 and 2015. The analysis was performed using a “Protocol for article classification”. It was verified that Original Articles are the most published type, SCOPUS and BVS being the most common databases. There is a predominance of articles in the Portuguese language, followed by English, French and German. Several specialties of Speech Language and Hearing Sciences presented interface with Psychoanalysis, especially Language and Neuropsychology. The studies were published mainly in Psychology journals, also found in the area of audiology and interdisciplinary area. This review showed the psychoanalytic interference in speech language and hearing clinic, highlighting the need for further studies correlating both areas that may contribute to the work of these professionals and, consequently, enable an improvement in the quality of life of psychic subjects.

Keywords:
Speech, Language and Hearing Sciences; Psychoanalysis; Communication

Introdução

Segundo a teoria psicanalítica o aparelho psíquico é estruturado em três instâncias denominadas Id, Superego e Ego. O Id é a mais primitiva, relacionada ao instinto, sendo conduzido pelo princípio do prazer para a busca da satisfação. O Superego é a instância mais aprimorada do psiquismo que, regido pelo princípio da realidade, segue as regras sociais e culturais, determinando quais pulsões deverão ser satisfeitas, adiadas ou não saciadas pelo Ego. O Ego é a consciência, o “eu” que faz a mediação entre o Id e o Superego, realizando a tomada de decisão. As pulsões do Id não realizadas pelo Ego são reprimidas (recalcadas) pelo superego e armazenadas no inconsciente, interferindo na vida das pessoas por meio de sonhos, atos falhos e sintomas11. Ferraz MGCF. Sujeito psíquico e sujeito linguístico: uma introdução aplicada à fonoaudiologia. Marília: Unesp-Marília-Publicações; 2001.,22. Freud S, Strachey J. The ego and the id. WW Norton & Company; 1962..

O inconsciente é sobretudo formado por conteúdos recalcados que não foram satisfeitos pela consciência. Esses conteúdos procuram voltar ao plano da consciência, mas somente será possível se eles passarem por um processo de transformação por meio da condensação ou deslocamento. A condensação é um conjunto de pulsões reprimidas que se organizam em cadeias associativas e escapam principalmente por meio dos sonhos. No deslocamento essa cadeia se desprende e passa para outra de menor intensidade, podendo ser observada especialmente nos sintomas psiconeuróticos, havendo transferência de um sintoma para outro33. Laplanche J, Pontalis JB. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes; 1991..

A interface entre a Fonoaudiologia e a Psicologia foi inicialmente observada no levantamento bibliográfico realizado entre os anos de 2004 a 2014 em periódicos eletrônicos da Fonoaudiologia. O estudo demonstrou estreita relação entre as duas áreas44. Nascimento EN, Santos FR, Ferreira DMO, Oliveira SA, Silva NN, Riato LA et al. Caracterização das publicações periódicas nacionais integrando fonoaudiologia e psicologia: estudo longitudinal. Distúb. Comun. 2016;28(3):568-80.. No entanto, a referida pesquisa não sinalizou quais escolas teóricas subsidiaram os estudos analisados, ou seja, se foram respaldados pela abordagem comportamental, inatista, construtivista, sócio-interacionista ou psicanalítica.

O discurso psicanalítico sobre o funcionamento humano tem contribuído no exercício da clínica fonoaudiológica, conforme demonstrou pesquisa realizada junto aos Cursos de Fonoaudiologia do país. Os questionamentos realizados com os docentes sobre essa teoria mostraram que a abordagem é utilizada nos processos de intervenção na linguagem, fluência, voz, motricidade orofacial e audição55. Mori JS, Machado FP, Cunha MC. Fonoaudiologia e Psicanálise: caracterização dessa interface na formação acadêmica de fonoaudiólogos e no discurso de docentes de cursos de Fonoaudiologia. Distúrb. Comun. 2012;24(2):239-47..

A Psicanálise tem como objeto de estudo o inconsciente e defende que conteúdos reprimidos e armazenados nessa “caixa preta” podem interferir na comunicação humana e originar sintomas psicopatológicos. Tratando-se do inconsciente, a teoria analítica pode contribuir com a compreensão das dimensões emocionais envolvidas da origem destes sinais66. Bondi L. Understanding feelings: Engaging with unconscious communication and embodied knowledge. Emotion, Space and Society. 2014;(10):44-54.. No entanto, pergunta-se: há literatura nacional e internacional trabalhos que relacionam a Psicanálise com a Fonoaudiologia? Quando essa literatura foi produzida? Em quais bases de dados foram disponibilizadas? Quais as especialidades da Fonoaudiologia que sofrem maior interferência do ponto de vista analítico?

Dessa forma, o objetivo desse estudo foi fazer uma revisão da literatura nacional e internacional correlacionando a Psicanálise com a Fonoaudiologia.

Métodos

Esse trabalho é caracterizado como exploratório de acordo com os objetivos que foram definidos, bem como bibliográfico considerando-se os procedimentos técnicos que foram utilizados na coleta de dados. O período de seguimento da pesquisa o definiu como longitudinal e a direcionalidade temporal o qualificou como retrospectivo77. Gil AC. Como elaborar projetos de pesquisa. 4 ed. São Paulo: Editora Atlas SA; 2002.,88. Hochman B, Nahas FX, Oliveira Filho RS, Ferreira LM. Desenhos de pesquisa. Acta Cir. Bras. 2005;20(2):2-9..

Foi realizada revisão sistemática da literatura fonoaudiológica correlacionando Fonoaudiologia/Comunicação e Psicanálise. O levantamento ocorreu em bases de dados nacionais “Biblioteca Virtual em Saúde (BVS)” e “Scientific Electronic Library (SCIELO)” e internacionais “Scopus” e “Pubmed”. Os descritores utilizados para a localização dos artigos na língua portuguesa foram “Fonoaudiologia”, “Psicanálise” e “Comunicação” e na língua inglesa foram “Speech Therapy”, “Psychoanalysis” e “Communication”. A busca foi realizada associando os descritores da seguinte forma: Fonoaudiologia X Psicanálise; Comunicação X Psicanálise; Speech Therapy X Psychoanalysis e Communication X Psychoanalysis. Foi encontrado inicialmente um total de 545 artigos nas bases nacionais e 4.167 nas internacionais.

Foram incluídos nesse estudo os artigos originais, de pesquisa, de revisão bibliográfica, de estudo de caso, os capítulos de livro e outros que estavam disponíveis na íntegra (completo) de forma gratuita. Na impossibilidade de acesso ao artigo de forma gratuita foi utilizada a rede privada Virtual Private Network (VPN) disponibilizada aos graduandos de Fonoaudiologia de uma Universidade Pública do Estado de São Paulo.

Foi realizada a primeira análise do artigo por meio da inspeção do título e do resumo. Aqueles que não estavam em concordância com a temática em questão foram eliminados, o que resultou em uma amostra final de 65 trabalhos.

Em seguida foi realizada a análise detalhada dos trabalhos utilizando-se um “Protocolo de Classificação de Artigos” adaptado do estudo de Nascimento et al. (2016)44. Nascimento EN, Santos FR, Ferreira DMO, Oliveira SA, Silva NN, Riato LA et al. Caracterização das publicações periódicas nacionais integrando fonoaudiologia e psicologia: estudo longitudinal. Distúb. Comun. 2016;28(3):568-80. e de Vasconcelos, Pessoa e Farias (2008)99. Vasconcelos SVD, Pessoa ACRG, Farias APDS. Periodicals' profile in speech-language and hearing pathology and neurosciences: study on types and headers of the language area articles, and their visibility. Rev. CEFAC. 2009;11(1):50-8., conforme pode ser visualizado na Figura 1.

Figura 1:
Protocolo de Classificação dos Trabalhos

A análise sistemática dos trabalhos identificados foi realizada por quatro duplas de pesquisadores que foram capacitados por meio de uma Disciplina Curricular de 60 horas/aula denominada “Constituição do Sujeito Psíquico e Linguístico”, além de reuniões periódicas com a docente responsável pela Disciplina. A primeira categorização foi realizada individualmente pelos juízes. Em seguida, cada dupla de juízes definiu as classificações de forma consensual. Não havendo consenso, um terceiro juiz foi acionado.

Para identificar a área de conhecimento dos trabalhos foi realizado o acesso aos periódicos e verificada a missão de cada Revista. Essa classificação foi realizada por pares de pesquisadores.

Diante de todas as informações identificadas na literatura, foi estruturado um esquema que permitiu sintetizar a constituição do sujeito psíquico e do sujeito linguístico, assim como a interface com os sintomas fonoaudiológicos.

Resultados

Foram encontrados 65 artigos correlacionando Fonoaudiologia/Comunicação e Psicanálise entre os anos de 1980 e 2015. Na Figura 2, constatou-se que houve uma progressão no número de artigos publicados entre os anos de 1980 e 2003, seguidos por uma queda no ano de 2001, 2004 e 2005, retornando a um aumento progressivo até o ano de 2008. Percebe-se um pico da produção em 2012 e, a partir de então, o número de publicação de artigos voltou a cair.

Figura 2:
Distribuição dos Trabalhos Publicados em Cada Ano

Em relação ao tipo de artigo publicado prevaleceu o Artigo Original. Em relação à base de dados observou-se que a SCOPUS e BVS foram as mais evidentes. A maior parte dos artigos foi publicada no idioma português.

Tabela 1:
Classificação dos trabalhos quanto ao tipo, base de dados e idioma

Na Tabela 2 aparecem as Especialidades da Fonoaudiologia que apresentam interface com a Psicanálise, predominando a Linguagem e Neuropsicologia, respectivamente.

Tabela 2:
Especialidades da Fonoaudiologia em interface com a Psicanálise

Em relação aos periódicos onde foram publicados os trabalhos, percebe-se que a área da Psicologia é majoritariamente a que mais publica artigos relacionando a Fonoaudiologia com a Psicanálise, seguida da Fonoaudiologia.

Figura 3:
Área do conhecimento onde os trabalhos foram publicados

A literatura nacional e internacional mostrou que a constituição do sujeito psíquico pode interferir na constituição do sujeito linguístico por meio da condensação e do deslocamento, conforme a Figura 4.

Figura 4:
Esquematização do sujeito psicolinguístico

O presente estudo demonstrou que há produções científicas nacionais e internacionais que correlacionam a Fonoaudiologia e a Psicanálise. Os resultados foram semelhantes ao estudo realizado por Nascimento et al. (2016)44. Nascimento EN, Santos FR, Ferreira DMO, Oliveira SA, Silva NN, Riato LA et al. Caracterização das publicações periódicas nacionais integrando fonoaudiologia e psicologia: estudo longitudinal. Distúb. Comun. 2016;28(3):568-80. no que tange ao ano de publicação, base de dados e especialidades fonoaudiológicas.

A análise das produções científicas permitiu observar que a linguagem continua sendo a especialidade fonoaudiológica mais acometida pelas psicopatologias. A linguagem é a primeira forma de manifestação da psiquê da criança1010. Ferreira FR. A produção de sentidos sobre a imagem do corpo. Interface- Comunic. Saúde. Educ. 2008;12(26):471-83. e revela a cultura, a tradição e os costumes ao longo da história constituída pela experiência humana1111. Zeddies TJ. More than just words: A hermeneutic view of language in psychoanalysis. Psychoanalytic Psy. 2002;19(1):3-23..

Ao analisar a linguagem sob a ótica psicanalítica é provável identificar capacidades intrapsíquicas e interpessoais1212. Vivona JM. Embracing figures of speech: The transformative potential of spoken language. Psychoanalytic Psy. 2003;20(1):52-66.. A psicanálise instaura um campo clínico que reconhece o sujeito do inconsciente constituído na e pela linguagem1313. Pollonio CF, Freire RMDC. O brincar na clínica fonoaudiológica. Distúrb. Comun. 2008;20(2):267-78.. No espaço terapêutico é possível interpretar a comunicação estabelecida entre terapeuta e paciente1414. Serralha CA. Estudo sobre os elementos de uma interpretação invasiva na abordagem psicanalítica winnicottiana. Psico USF. 2012;17(1):43-51. e investigar a importância da comunicação feita pelo outro1515. Foster M. Associação livre de ideias: via régia para o inconsciente-a especificidade do método. J. Psicanal. 2010;43(79):201-16..

A clínica fonoaudiológica é um espaço privilegiado que possibilita analisar e interpretar a linguagem como uma instância simbólica de aspectos subjetivos, ou seja, é um campo que permite identificar a interferência de conteúdos latentes do inconsciente na comunicação humana1616. Freire RMAC. About the object of the Speech-Language Clinics. Rev. CEFAC. 2012;14(2):308-12..

A Fonoaudiologia e a Psicanálise são atravessadas por questões comuns que evidenciam uma interface1717. Cutrim RC. A máscara e os sentidos da fala na linguagem do cotidiano: ressonâncias na psicanálise e na fonoaudiologia. Ide. 2007;30(45):45-51., mostrando que o inconsciente interfere na comunicação humana e pode ajudar a entender dimensões emocionais66. Bondi L. Understanding feelings: Engaging with unconscious communication and embodied knowledge. Emotion, Space and Society. 2014;(10):44-54.. Desta forma, deve-se ter uma compreensão refinada do aspecto emocional envolvido na troca comunicativa1818. Rizzuto A. Speech events, language development, and the clinical situation. In. J. Psychoanal. 2002;83(6):1325-43..

Os conteúdos inconscientes podem aparecer na comunicação em diferentes aspectos, seja no tom de voz, no ritmo, na prosódia e até mesmo na estrutura da fala1919. Mancia M. Dream actors in the theatre of memory: their role in the psychoanalytic process. In. J. Psychoanal. 2003;84(4):945-52.. O conhecimento acerca da Psicanálise permite modificar o relacionamento do sujeito com seus próprios processos psíquicos inconscientes2020. Rizzuto A. Psychoanalysis: the transformation of the subject by the spoken word. Psy Quarterly. 2003;72(2):287-323. e assim identificar a origem dos sintomas e identificar estratégias de intervenção.

A análise de conteúdos reprimidos no inconsciente pode muitas vezes redefinir o processo terapêutico2121. Sirois F. The role and importance of interpretation in the talking cure. The In. J. Psychoanal. 2012;93(6):1377-402., inclusive, o fonoaudiológico. Assim, deve-se avaliar as palavras, ouvindo-se além do conteúdo, analisando-se o som e o significado daquilo que foi falado2222. Connolly A. To speak in tongues: language, diversity and psychoanalysis. J Anal Psychol. 2002;47(3):359-82.. Por exemplo, a teoria psicanalítica lacaniana permite interligar o comportamento comunicativo e oferecer um conjunto de coordenadas simbólicas2323. Hook D. Nixon's "full-speech": Imaginary and symbolic registers of communication. J Theor Phil Psych. 2013;33(1):32-50. que podem estar escapando do inconsciente.

Na interface entre a Psicanálise e a Fonoaudiologia é possível processar as experiências e restaurar espaços imaginativos que transmitem conteúdos que não estão na consciência2424. Griffin FL. Clinical conversations between psychoanalysis and imaginative literature. Psychoanalytic Quarterly. 2005;74(2):443-63.. A análise do silêncio também é importante no trabalho terapêutico, pois permite o surgimento do espaço transicional por meio da comunicação não verbal2525. Costa CGD, Ribeiro DPDSA, Volpato AL, Abrão JLF. Reflexões psicanalíticas Winnicottianas sobre o sentido do silêncio no settin. Bol. Psicol. 2013;63(138):49-63.. A conversação e a análise parecem ser promissoras para a descoberta de propriedades de processos incoscientes2626. Buchholtz M, Spiekermann J, Kächele H. Rhythm and Blues-Amalie's 152nd session: From psychoanalysis to conversation and metaphor analysis-and back again. In. J. Psychoanal. 2015;96(3):877-910., favorecendo uma escuta linguística mais abrangente e qualificada2727. Sanches SB. Busca por representação: a psicanálise e o trabalho de construção. Psicol. Clín. 2014;26(1):165-79..

A literatura nacional e internacional que foi identificada nesse estudo apresentou alguns casos da Fonoaudiologia que apresentam interface com a teoria psicanalítica. A análise de um paciente psicótico mostrou que os registros de linguagem ajudaram na construção de um espaço mental2828. Lombardi R. Mental models and language registers in the psychoanalysis of psychosis: An overview of a thirteen-year analysis. In. J. Psychoanal. 2003;84(4):843-63.. Em outro paciente psicótico foram observadas interrupções na fala, discurso confuso e frases incompletas, associados ao quadro psicótico delirante de perseguição2929. Martins F, Costa ACD. Who are they?. Psic., Teor. Pesq. 2003;19(1):91-6..

Pesquisa com pacientes esquizofrênicos demonstrou que eles não distinguem a mente do mundo, instaurando-se delírios. As distinções comuns entre palavras, coisas, estados do corpo e ações estão ausentes, criando-se palavras e frases que não são simbólicas3030. Robbins M. The language of schizophrenia and the world of delusion. In. J. Psychoanal. 2002;83(2):383-405..

Na interação com um autista grave, de 20 anos, foram realizadas tentativas de comunicação verbal pelo terapeuta, mas o jovem estava resistente e com risos descontextualizados de fuga. Em uma das sessões o jovem expôs sobre a morte do pai e, a partir de então, passou a estabelecer vínculo com o terapeuta e a ter uma comunicação oral3131. Barros L, Danziato L. Intervenção tardia: reflexões sobre uma intervenção possível no autismo infantil. Reverso. 2010;32(60):43-7.. Nesse caso, a morte do pai poderia ser algo que esta latente, pressionando o ego do sujeito, contribuindo para a origem de alterações fonoaudiológicas.

A psicanálise também oferece oportunidades ricas para o tratamento precoce do Transtorno do Espectro do Autismo, especialmente aos que estão fora do contato edipiano3232. Busch de Ahumada LC, Ahumada JL. Contacting a 19 month-old mute autistic girl: A clinical narrative. In. J. Psychoanal. 2015;96(1):11-38.. Em estudo realizado com três crianças autistas, de 2 a 4 anos, observou-se frases soltas e descontextualizadas, fala ecolálica, jargões, estereotipias de mãos, comunicação gestual, fala ininteligível e palavras sem significado. Foram realizadas entrevistas com os pais/mães e as mesmas interpretadas a partir de uma análise psicanalítica. A intervenção permitiu mudanças de sentimento no casal e nos comportamentos dos pais em relação às crianças, tendo efeitos positivos em relação aos distúrbios de linguagem3333. Moro MP, Souza APRD. Interview with parents in autistic spectrum therapy. Rev. CEFAC. 2012;14(3):574-87..

Durante atendimento fonoaudiológico realizado com três irmãos foi identificado atraso no desenvolvimento da linguagem em uma das crianças. Em seguida o outro irmão passou a apresentar as mesmas características. O mesmo ocorreu com o terceiro, porém, com presença de trocas na fala e interposição de língua. Com a abordagem psicanalítica foi possível perceber que os pais faziam uma comparação entre os filhos de forma inconsciente, gerando uma competição e conflito entre eles, gerando alterações fonoaudiológicas3434. Rocha ACO, Baptista MG, Maia SM, Novaes BC. Atendendo irmãos na clínica fonoaudiológica-algumas reflexões. Distúrb. Comun. 2013;25(3):452-7..

Estudo realizado com dezoito familiares responsáveis por crianças com Desvio Fonológico, encaminhadas ao Centro de Estudo de Linguagem e Fala (CELF) do Serviço de Atendimento Fonoaudiológico (SAF) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), permitiu observar possíveis intervenções no tratamento fonoaudiológico. Foi possível verificar que conhecimento acerca da teoria psicanalítica aprimora o desempenho terapêutico3535. Pereira AS, Keske-Soares M. Patologia de linguagem e escuta fonoaudiológica permeada pela psicanálise. Psico. 2010;41(4):517-24..

O processo terapêutico fonoaudiológico quando amparado na teoria psicanalítica oferece subsídios para que o profissional realize intervenção até mesmo na produção escrita3636. Perrotta C, Maia SM. O manejo na terapia fonoaudiológica em um caso de linguagem escrita: o caminho percorrido por Eros para encontrar a princesa adormecida. Distúrb. Comun. 2007;19(3):389-401., assim como em outras áreas das diferentes especialidades da Fonoaudiologia como, por exemplo, a voz.

No que se refere aos distúrbios vocais uma revisão na biblioteca da Sociedade Brasileira de Psicanálise (SP) permitiu verificar que a disfonia pode ser uma representação de conteúdos inconscientes. Nesse caso, o fonoaudiólogo deve estar atento não somente à produção acústica, mas também aos significados da voz na história do paciente3737. Pinheiro MG, Cunha MC. Voz e psiquismo: diálogos entre fonoaudiologia e psicanálise. Distúrb. Comun. 2004;16(1):83-91.. Outro estudo realizado com 40 pacientes com alterações vocais ratificou que transtornos psicogênicos podem interferir na qualidade vocal3838. Reiter R, Rommel D, Brosch S. Long term outcome of psychogenic voice disorders. Auris Nasus Larynx. 2013;40(5):470-5. e, consequentemente, na comunicação.

Além disso, a Psicanálise também pode contribuir com a análise dos casos de audição e gagueira. Estudos realizados com adolescentes surdos, sob a luz da psicanálise, indicaram que conflitos emocionais familiares podem estar interferindo na qualidade auditiva dos mesmos3939. Bremm ES, Bisol CA. Sinalizando a adolescência: narrativas de adolescentes surdos. Psicol. Cienc. Prof. 2008;28(2):272-87.. Tratando-se da disfluência, um plano de tratamento de gagueira crônica realizado com 30 pacientes no Instituto de Psicanálise de Chicago demonstrou que o perfil da personalidade pode melhorar o desenvolvimento de planos de tratamento individualizados4040. Feinberg AY, Griffin BP, Levey M. Psychological aspects of chronic tonic and clonic stuttering: Suggested therapeutic approaches. Am. J.Orthopsychiatr. 2000;70(4):465-73..

A literatura demonstrou até aqui que as práticas terapêuticas fonoaudiológicas apresentam interface com a teoria psicanalítica e são predominantemente clínicas. No entanto, foi identificado um estudo de natureza psicossocial. Uma intervenção realizada em um Centro de Atenção Psicossocial demonstrou contribuições da Psicanálise ao campo da Saúde Mental. As formulações teóricas de Freud e de Lacan permitiram mudanças no ato de contar e de construir histórias, assim como na convivência e comunicação estabelecida entre os integrantes dos grupos4141. Zanotti SV, Oliveira AAS, Bastos JA, Silva WVN. Jornal do CAPS: Construção de histórias em Oficinas Terapêuticas. Psico. 2010;41(2):278-84..

Conclusão

O presente estudo identificou trabalhos que foram publicados em periódicos nacionais e internacionais e que integram a Psicanálise com a Fonoaudiologia. O idioma preeminente foi o português e o artigo original o tipo de trabalho prevalente. Percebeu-se que as manifestações fonoaudiológicas não se apresentam de forma isolada. Elas são influenciadas diretamente ou podem ser causadas por questões inerentes ao aspecto psíquico do indivíduo.

A Psicanálise contribui para a análise e intervenção dos casos de audição, gagueira, voz, escrita e, especialmente, linguagem. A linguagem é objeto de estudo tanto da Fonoaudiologia quanto da Psicanálise, no entanto, os periódicos da Psicologia são os que mais publicam trabalhos sobre Psicanálise e Fonoaudiologia/Comunicação.

Foi possível observar nesse estudo que os conhecimentos acerca da teoria psicanalítica oferecem subsídios para os fonoaudiólogos identificarem a origem dos sintomas e definirem as estratégias de intervenção mais adequadas para cada caso. Assim, é necessária uma interface entre essas duas áreas para haver uma melhor compreensão e intervenção nas alterações comunicativas.

References

  • 1
    Ferraz MGCF. Sujeito psíquico e sujeito linguístico: uma introdução aplicada à fonoaudiologia. Marília: Unesp-Marília-Publicações; 2001.
  • 2
    Freud S, Strachey J. The ego and the id. WW Norton & Company; 1962.
  • 3
    Laplanche J, Pontalis JB. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes; 1991.
  • 4
    Nascimento EN, Santos FR, Ferreira DMO, Oliveira SA, Silva NN, Riato LA et al. Caracterização das publicações periódicas nacionais integrando fonoaudiologia e psicologia: estudo longitudinal. Distúb. Comun. 2016;28(3):568-80.
  • 5
    Mori JS, Machado FP, Cunha MC. Fonoaudiologia e Psicanálise: caracterização dessa interface na formação acadêmica de fonoaudiólogos e no discurso de docentes de cursos de Fonoaudiologia. Distúrb. Comun. 2012;24(2):239-47.
  • 6
    Bondi L. Understanding feelings: Engaging with unconscious communication and embodied knowledge. Emotion, Space and Society. 2014;(10):44-54.
  • 7
    Gil AC. Como elaborar projetos de pesquisa. 4 ed. São Paulo: Editora Atlas SA; 2002.
  • 8
    Hochman B, Nahas FX, Oliveira Filho RS, Ferreira LM. Desenhos de pesquisa. Acta Cir. Bras. 2005;20(2):2-9.
  • 9
    Vasconcelos SVD, Pessoa ACRG, Farias APDS. Periodicals' profile in speech-language and hearing pathology and neurosciences: study on types and headers of the language area articles, and their visibility. Rev. CEFAC. 2009;11(1):50-8.
  • 10
    Ferreira FR. A produção de sentidos sobre a imagem do corpo. Interface- Comunic. Saúde. Educ. 2008;12(26):471-83.
  • 11
    Zeddies TJ. More than just words: A hermeneutic view of language in psychoanalysis. Psychoanalytic Psy. 2002;19(1):3-23.
  • 12
    Vivona JM. Embracing figures of speech: The transformative potential of spoken language. Psychoanalytic Psy. 2003;20(1):52-66.
  • 13
    Pollonio CF, Freire RMDC. O brincar na clínica fonoaudiológica. Distúrb. Comun. 2008;20(2):267-78.
  • 14
    Serralha CA. Estudo sobre os elementos de uma interpretação invasiva na abordagem psicanalítica winnicottiana. Psico USF. 2012;17(1):43-51.
  • 15
    Foster M. Associação livre de ideias: via régia para o inconsciente-a especificidade do método. J. Psicanal. 2010;43(79):201-16.
  • 16
    Freire RMAC. About the object of the Speech-Language Clinics. Rev. CEFAC. 2012;14(2):308-12.
  • 17
    Cutrim RC. A máscara e os sentidos da fala na linguagem do cotidiano: ressonâncias na psicanálise e na fonoaudiologia. Ide. 2007;30(45):45-51.
  • 18
    Rizzuto A. Speech events, language development, and the clinical situation. In. J. Psychoanal. 2002;83(6):1325-43.
  • 19
    Mancia M. Dream actors in the theatre of memory: their role in the psychoanalytic process. In. J. Psychoanal. 2003;84(4):945-52.
  • 20
    Rizzuto A. Psychoanalysis: the transformation of the subject by the spoken word. Psy Quarterly. 2003;72(2):287-323.
  • 21
    Sirois F. The role and importance of interpretation in the talking cure. The In. J. Psychoanal. 2012;93(6):1377-402.
  • 22
    Connolly A. To speak in tongues: language, diversity and psychoanalysis. J Anal Psychol. 2002;47(3):359-82.
  • 23
    Hook D. Nixon's "full-speech": Imaginary and symbolic registers of communication. J Theor Phil Psych. 2013;33(1):32-50.
  • 24
    Griffin FL. Clinical conversations between psychoanalysis and imaginative literature. Psychoanalytic Quarterly. 2005;74(2):443-63.
  • 25
    Costa CGD, Ribeiro DPDSA, Volpato AL, Abrão JLF. Reflexões psicanalíticas Winnicottianas sobre o sentido do silêncio no settin. Bol. Psicol. 2013;63(138):49-63.
  • 26
    Buchholtz M, Spiekermann J, Kächele H. Rhythm and Blues-Amalie's 152nd session: From psychoanalysis to conversation and metaphor analysis-and back again. In. J. Psychoanal. 2015;96(3):877-910.
  • 27
    Sanches SB. Busca por representação: a psicanálise e o trabalho de construção. Psicol. Clín. 2014;26(1):165-79.
  • 28
    Lombardi R. Mental models and language registers in the psychoanalysis of psychosis: An overview of a thirteen-year analysis. In. J. Psychoanal. 2003;84(4):843-63.
  • 29
    Martins F, Costa ACD. Who are they?. Psic., Teor. Pesq. 2003;19(1):91-6.
  • 30
    Robbins M. The language of schizophrenia and the world of delusion. In. J. Psychoanal. 2002;83(2):383-405.
  • 31
    Barros L, Danziato L. Intervenção tardia: reflexões sobre uma intervenção possível no autismo infantil. Reverso. 2010;32(60):43-7.
  • 32
    Busch de Ahumada LC, Ahumada JL. Contacting a 19 month-old mute autistic girl: A clinical narrative. In. J. Psychoanal. 2015;96(1):11-38.
  • 33
    Moro MP, Souza APRD. Interview with parents in autistic spectrum therapy. Rev. CEFAC. 2012;14(3):574-87.
  • 34
    Rocha ACO, Baptista MG, Maia SM, Novaes BC. Atendendo irmãos na clínica fonoaudiológica-algumas reflexões. Distúrb. Comun. 2013;25(3):452-7.
  • 35
    Pereira AS, Keske-Soares M. Patologia de linguagem e escuta fonoaudiológica permeada pela psicanálise. Psico. 2010;41(4):517-24.
  • 36
    Perrotta C, Maia SM. O manejo na terapia fonoaudiológica em um caso de linguagem escrita: o caminho percorrido por Eros para encontrar a princesa adormecida. Distúrb. Comun. 2007;19(3):389-401.
  • 37
    Pinheiro MG, Cunha MC. Voz e psiquismo: diálogos entre fonoaudiologia e psicanálise. Distúrb. Comun. 2004;16(1):83-91.
  • 38
    Reiter R, Rommel D, Brosch S. Long term outcome of psychogenic voice disorders. Auris Nasus Larynx. 2013;40(5):470-5.
  • 39
    Bremm ES, Bisol CA. Sinalizando a adolescência: narrativas de adolescentes surdos. Psicol. Cienc. Prof. 2008;28(2):272-87.
  • 40
    Feinberg AY, Griffin BP, Levey M. Psychological aspects of chronic tonic and clonic stuttering: Suggested therapeutic approaches. Am. J.Orthopsychiatr. 2000;70(4):465-73.
  • 41
    Zanotti SV, Oliveira AAS, Bastos JA, Silva WVN. Jornal do CAPS: Construção de histórias em Oficinas Terapêuticas. Psico. 2010;41(2):278-84.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2017

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2017
  • Aceito
    07 Jun 2017
ABRAMO Associação Brasileira de Motricidade Orofacial Rua Uruguaiana, 516, Cep 13026-001 Campinas SP Brasil, Tel.: +55 19 3254-0342 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistacefac@cefac.br