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Estratégias de reparo utilizadas na aquisição das obstruintes em dois municípios do Rio Grande do Sul

Resumos

OBJETIVO:

verificar as estratégias de reparo utilizadas na aquisição das obstruintes em dois municípios do Rio Grande do Sul com diferentes influências dialetais, descrevendo e comparando as variáveis intervenientes nesse processo.

MÉTODOS:

participaram do estudo 72 crianças, 36 do município de Santa Maria 36 de Agudo, com idades entre 1:0 e 4:0 (anos:meses). O corpus de Santa Maria ficou composto por 3.178 obstruintes analisadas e 3.847 em Agudo. As estratégias de reparo analisadas foram: dessonorização, omissão, posteriorização, anteriorização, plosivização de fricativas e outros. As variáveis extralinguísticas consideradas foram idade, sexo e tipo de input e as linguísticas foram pé métrico; número de sílabas; contexto silábico precedente e seguinte; posição na palavra; classe gramatical; sonoridade e classe da obstruinte. Utilizou-se para a análise estatística o pacote VARBRUL, com significância de 5%.

RESULTADOS:

houve prevalência da estratégia de omissão para Santa Maria e de posteriorização para Agudo. A dessonorização foi o recurso menos utilizado para os ambos os grupos. Ocorreram tanto semelhanças como diferenças na comparação entre as variáveis intervenientes.

CONCLUSÃO:

de acordo com os resultados, foi possível concluir que a variação dialetal não interferiu na escolha dos recursos empregados para os sujeitos residentes em Agudo, o que poderia ocorrer devido ao input recebido nesse município, com fonemas dessonorizados.

Criança; Fala; Desenvolvimento da Linguagem


PURPOSE:

to determine the repair strategies used in the acquisition of obstruents in two municipalities of the state of Rio Grande do Sul that receive different dialectal influences, by describing and comparing the intervening variables in this process.

METHODS:

72 children participated in the study, 36 from the municipality of Santa Maria and 36 from Agudo, aged between 1:0 and 4:0 (years: months). The corpora of Santa Maria and Agudo were composed by 3,178 and 3,847 analyzed obstruents, respectively. The analyzed repair strategies were desonorization, omission, posteriorization, anteriorization, plosivization of fricatives, and others. The extralinguistic variables were age, gender, type of input, metrical foot, number of syllables, preceding and following syllable context, position in the word, grammatical class, voicing and class of obstruent. Statistical analysis was performed using the software package VARBRUL, with a significance level of 5%.

RESULTS:

there was a prevalence of the omission strategy in Santa Maria and the posteriorization strategy in Agudo. Desonorization was the least frequently used resource in both groups. There were both similarities and differences when the intervening variables were compared.

CONCLUSION:

based on the results, it was concluded that dialectal variation did not interfere in the choice of resources employed by subjects from Agudo, which could occur due to input received in this municipality, i.e. desonorized phonemes.

Child; Speech; Language Development


Introdução

Na maioria das crianças, o desenvolvimento da linguagem oral se dá nos primeiros cinco anos de idade, em um processo gradativo, não linear e com variações individuais. No desenvolvimento da aquisição fonológica considerada típica, um dos primeiros segmentos a serem adquiridos são as consoantes plosivas, estando estabelecidas antes dos dois anos de idade. No Português Brasileiro (PB), essa classe é composta pelas consoantes labiais /p/ e /b/, coronais /t/ e /d/ e dorsais /k/ e /g/11. Matzenauer CLB. Bases para o entendimento da aquisição fonológica. In.: Lamprecht RR. Aquisição Fonológica do Português: Perfil de desenvolvimento e subsídios para terapia. Porto Alegre: Artmed; 2004. P. 33-58. , 22. Freitas GCM. Sobre a Aquisição das Plosivas e Nasais. In.: Lamprecht RR. Aquisição Fonológica do Português: Perfil de desenvolvimento e subsídios para terapia. Porto Alegre: Artmed; 2004. P. 73-82..

A seguir, os fonemas fricativos surgem na aquisição segmental. Essa classe de sons possui fonemas de aquisição inicial (/f/ e /v/) e fonemas de aquisição mais tardia (/s/, /z/, /(/ e /(/) sendo todas adquiridas até antes dos três anos de idade. No PB, os segmentos fricativos são os labiais /f/ e /v/, os coronais, [+ anterior] /s/ e /z/ e os coronais, [-anterior] /(/, /(/ 33. Oliveira CC. Sobre a aquisição das Fricativas. In.: Lamprecht RR. Aquisição Fonológica do Português: Perfil de desenvolvimento e subsídios para terapia. Porto Alegre: Artmed; 2004. P. 83-94..

Nesse percurso, as crianças utilizam estratégias de reparo, na tentativa de adequar a realização do sistema alvo adulto ao seu sistema fonológico. Isso acontece porque elas ainda não são capazes de organizar mentalmente todos os fonemas, como também produzir os fones corretamente, devido a limitações próprias do desenvolvimento, como por exemplo, o planejamento motor, o processamento auditivo, a memória fonológica, entre outros11. Matzenauer CLB. Bases para o entendimento da aquisição fonológica. In.: Lamprecht RR. Aquisição Fonológica do Português: Perfil de desenvolvimento e subsídios para terapia. Porto Alegre: Artmed; 2004. P. 33-58.. Esses recursos são esperados e considerados normais se utilizados por um determinado período até o fonema ser gradativamente adquirido na idade esperada44. Ramos-Pereira A, Henrich V, Ribas LP. Dados com epêntese em alvos com onset complexo na aquisição fonológica: argumentos a favor do desenvolvimento silábico. Rev Verba Volant. 2010;1(1):39-52..

Independentemente dos fonemas plosivos e fricativos serem considerados de aquisição precoce, eles também podem sofrer algumas estratégias de reparo. Para essas obstruintes, estudos destacam como processos mais utilizados a dessonorização e anteriorização de plosivas e omissão de segmento ou sílaba e plosivização de fricativas11. Matzenauer CLB. Bases para o entendimento da aquisição fonológica. In.: Lamprecht RR. Aquisição Fonológica do Português: Perfil de desenvolvimento e subsídios para terapia. Porto Alegre: Artmed; 2004. P. 33-58.

2. Freitas GCM. Sobre a Aquisição das Plosivas e Nasais. In.: Lamprecht RR. Aquisição Fonológica do Português: Perfil de desenvolvimento e subsídios para terapia. Porto Alegre: Artmed; 2004. P. 73-82.
- 33. Oliveira CC. Sobre a aquisição das Fricativas. In.: Lamprecht RR. Aquisição Fonológica do Português: Perfil de desenvolvimento e subsídios para terapia. Porto Alegre: Artmed; 2004. P. 83-94.. As estratégias de reparo podem ser distintas, de acordo com a classe de sons, idade do falante, como também a variante linguística que está sendo utilizada. Por isso, a variabilidade linguística torna-se importante no diagnóstico diferencial de casos de desenvolvimento fonológico típico e atípico55. Mezzomo CL, Luiz SW. Interference of the linguistic variant in the repair strategies used during the phonological acquisition process. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(3):239-47..

Essa variabilidade linguística pode ser vista, no Brasil, especificamente na região sul, onde é possível perceber nos falantes de língua portuguesa que apresentam interferências de dialetos alemães na oralidade, trocas de consoantes sonoras pelas surdas, como por exemplo, a palavra bola pronunciada como pola, e trocas do r-forte por r-fraco, como por exemplo, a palavra carrinhopronunciada como carinho 66. Nunes GG, Perske KE, Ferreira-Gonçalves GF. O bilinguismo português/alemão: a influência da oralidade na escrita. Rev Ideias [periódico na internet]. 2010 [acesso em 2013 Abril 15]; 25(1):[12 p]. Disponível em: http://w3.ufsm.br/revistaideias/ideias%2025.html
http://w3.ufsm.br/revistaideias/ideias%2...
.

Pesquisas relacionadas ao percurso da aquisição oral em populações com variantes dialetais distintas têm constatado a influência da variabilidade linguística no uso de estratégias de reparo no desenvolvimento linguístico55. Mezzomo CL, Luiz SW. Interference of the linguistic variant in the repair strategies used during the phonological acquisition process. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(3):239-47. , 77. Vargas DZ, Mezzomo CL . Estratégias de reparo e distintas variantes dialetais do /R/ em coda utilizadas em dois municípios do sul do Brasil. Dist Com. 2012;24:199-213.. Porém, esses estudos ainda são escassos.

Diante disso, optou-se, nesta pesquisa, em investigar a hipótese de que crianças monolíngues residentes no município de Agudo - RS estariam mais suscetíveis ao uso do processo de dessonorização na aquisição fonológica das obstruintes em relação às crianças monolíngues residentes no município de Santa Maria - RS. Pois acredita-se que na cidade de Agudo possa ocorrer alguma influência no input recebido, decorrente da imigração germânica nesse município, onde grande parte da população não só possui descendência alemã como também fala o dialeto dessa língua em diferentes situações do dia-a-dia, como por exemplo, em supermercados, igrejas, entre outros. O que não ocorreria em Santa Maria, cidade que não possui existência da influência de um dialeto predominante específico.

Pretende-se com este estudo, contribuir para o entendimento de que esses recursos (estratégias de reparo) possam ser vistos como tentativas de produção correta e não como erros, auxiliando o fonoaudiólogo na diferenciação entre o que é uma variação linguística e um caso de desvio fonológico. Dessa forma, o objetivo deste trabalho é verificar as estratégias de reparo utilizadas na aquisição das obstruintes em dois municípios do Rio Grande do Sul com diferentes influências dialetais, descrevendo e comparando as variáveis intervenientes nesse processo.

Métodos

A presente pesquisa, de caráter quantitativo, explicativo, do tipo experimental e transversal, utilizou dados que pertencem ao Banco de Dados formado por meio da execução de dois projetos de pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), ambos aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob os números 064/2004 e 05756612.6.0000.5346, respectivamente.

Neste estudo participaram 72 crianças, sendo 36 residentes no município de Santa Maria - RS (G1) e 36 residentes no município de Agudo - RS (G2), com desenvolvimento fonológico típico, com idades entre 1:0 e 4:0 (anos:meses), falantes monolíngues do Português Brasileiro. Os participantes foram selecionados com base em questionário de anamnese e triagem fonoaudiológica. Na anamnese, os pais ou responsáveis foram questionados brevemente, buscando-se obter informações sobre a gestação, parto, desenvolvimento linguístico e motor da criança, histórico clínico, comportamento atual, além de aspectos gerais sobre o histórico e a dinâmica familiar. Na triagem fonoaudiológica, as crianças foram avaliadas em relação aos seguintes aspectos: audição, sistema estomatognático, voz e linguagem. Esses procedimentos visaram descartar a presença de fatores que pudessem causar alterações fonológicas.

Além dos aspectos já citados, no município de Agudo foi aplicado um questionário aos pais ou responsáveis e professores, a fim de verificar o tipo de inputrecebido pelas crianças para garantir que as mesmas fossem falantes monolíngues do Português Brasileiro. Assim, foram selecionados, para ambos os grupos, os sujeitos que atenderam aos critérios de inclusão, a saber: estar em período de aquisição da linguagem, com desenvolvimento considerado típico (desenvolvimento linguístico esperado para sua faixa etária), não ter realizado ou estar realizando terapia fonoaudiológica, apresentar audição normal e não apresentar comprometimentos neurológicos emocional ou cognitivo evidentes relevantes à produção da fala. Ressalta-se ainda que a participação das crianças nas pesquisas foi permitida por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por parte dos pais ou responsáveis e consentimento oral das mesmas.

A coleta das amostras de fala dos municípios foi realizada por meio do instrumento Avaliação Fonológica da Criança (AFC) 88. Yavas M, Hernandorena CLM, Lamprecht RR . Fundamentos para a avaliação fonológica. In: Yavas M, Hernandorena CLM. Avaliação fonológica da criança: reeducação e terapia. Porto Alegre: Artes Médicas; 1991. P.8-36., o qual é constituído de cinco desenhos temáticos ("banheiro", "cozinha", "sala", "veículos" e "zoológico"), utilizando, além das figuras, objetos e brinquedos selecionados com base neste instrumento de avaliação. Essa ferramenta de avaliação possibilita a nomeação espontânea de todos os fones contrastivos do Português Brasileiro em todas as posições que ocorrem em relação à estrutura da sílaba e da palavra. Os dados de fala foram gravados e transcritos foneticamente, utilizando transcrição fonética restrita. As coletas foram revisadas e analisadas por pelo menos duas julgadoras, fonoaudiólogas experientes na área. Quando não houve consenso sobre as palavras transcritas, essas foram descartadas para maior confiabilidade dos dados.

Para a composição do corpus, foram levantadas todas as palavras que continham obstruintes (plosivas e fricativas) na posição de onsetinicial (início de sílaba início da palavra) e onset medial (início de sílaba dentro da palavra) e quando uma palavra apresentou mais de uma obstruinte, esta foi codificada mais de uma vez conforme a sua produção (Ex.: boneca). Dessa forma, o grupo do município de Santa Maria ficou composto por 3.178 obstruintes analisadas e 3.847 para o grupo do município de Agudo.

Para a análise da variável dependente de ambos os grupos, foi considerada a produção correta (Ex.: bolo - ['bolu]), omissão de sílaba ou do segmento (Ex.: bicho - ['bi0]), dessonorização (Ex.: dedo - ['detu], posteriorização (Ex.: urso - ['uʃu]), anteriorização (Ex.: janela - [za'nɛla]), plosivização de fricativas (Ex.: saia - ['taya]) e outros (metátese, por exemplo - Ex.: televisão - [tevili'zãw]). Neste estudo, somente serão considerados os dados referentes à produção incorreta (estratégias de reparo), conforme os objetivos expostos.

As variáveis independentes extralinguísticas consideradas foram: sexo, idade e tipo de input (rodada do grupo único). Cada grupo (Santa Maria e Agudo) foi constituído por 18 meninas e 18 meninos com idade entre 1:0 e 4:0, sendo um menino e uma menina por faixa etária, formando um total de 18 faixas divididas em intervalos de dois meses.

As variáveis independentes linguísticas analisadas foram: pé métrico(cabeça do pé (Ex.: gos(toso)), parte fraca do pé (Ex.: gos(toso)), fora do pé (Ex.: gos(toso)), extramétrico ((lâmpa)<da>), número de sílabas (monossílabas, dissílabas, trissílabas e polissílabas), contexto fonológico precedente(vazio (Ex.:0bola), vogal coronal (Ex.: peixe), vogal dorsal (Ex.: pato), vogal labial (Ex.: copo), consoante (coda)(Ex.: tartaruga)), contexto fonológico seguinte (vogal coronal (Ex.: peixe), vogal dorsal (Ex.: pato), vogal labial (Ex.: bola), posição na palavra (onsetinicial (Ex.: bola) e onset medial (Ex.: peixe)), classe gramatical (palavra de conteúdo (Ex.: boi) e funcional (Ex.: esse)), sonoridade (surda (Ex.: pato ) e sonora (Ex. bola)) e classe da obstruinte (plosivas (p,b,t,d,k,g) e fricativas (f,v,s,z,(, ()).

Os dados foram codificados em formulário do programa Microsoft Acess, um para cada município, que foi utilizado para rodar o programa estatístico VARBWIN99. Amaral L. Criando um formulário no Microsoft Access. Pelotas: UFPel, 1998. (pacote computacional VARBRUL1010. Cedergren HJ, Sankoff D. Variable rules: performance as a statistical reflection of competence. Language. 1974;50(2):333-55. em ambiente Windows), por meio do qual foi verificada a significância dos resultados. O programa faz a análise probabilística na forma binária. Isto significa que, por meio de cálculos estatísticos, atribui pesos relativos às variantes das variáveis independentes, com relação às duas variantes do fenômeno linguístico em questão, representadas pela variável dependente. Trabalha com uma margem de erro de 5%, indicando que qualquer fator com significância abaixo desse valor não é considerado estatisticamente expressivo. Assim, os pesos relativos abaixo de .50 são considerados desfavoráveis; de .50 a .59 são neutros; e iguais ou acima de .60 são considerados favorecedores.

Como citado anteriormente, para a análise da variável dependente de ambos os grupos, foram explorados apenas os dados referentes à produção incorreta (estratégias de reparo). Assim, foram realizadas rodadas específicas para cada uma das diferentes estratégias de reparo em cada grupo isoladamente (G1 e G2), e após, foram analisados os dados em grupo único (G1 + G2), a fim de avaliar o papel da variável tipo de input.

Resultados

A análise estatística da variável em estudo (variável dependente incorreta - estratégias de reparo) permitiu verificar o predomínio de seis estratégias de reparo, tanto para o grupo do município de Santa Maria - RS (G1), como para o grupo do município de Agudo - RS (G2).

A estratégia de reparo mais utilizada no município de Santa Maria foi a omissão da sílaba ou do segmento (Ex.: bicho - ['bi0]), com 46% de ocorrência. Em Agudo, houve o uso preferencial da posteriorização (Ex.: urso - ['u(u]), com 26% (Figura 1).

Nas demais estratégias de reparo, houve diferença na ordem crescente de ocorrência entre os grupos estudados. Em G1, observou-se a seguinte ordem: dessonorização (Ex.: dedo - ['detu]) e outros (metátese, por exemplo - Ex.: televisão - [tevili'zãw]) (10%), posteriorização (Ex.: mesa - ['meʒa]) e anteriorização (Ex.: janela - [za'nɛla]) (11%), e plosivização de fricativas (12%) (Ex.: saia - ['taya]). Já em G2 a ordem crescente foi: dessonorização (6%), plosivização de fricativas(12%), anteriorização (13%), omissão (sílaba ou segmento) (19%) e outros (24%). Assim, pode-se verificar que em G1 e G2 a menor porcentagem de ocorrência correspondeu à dessonorização.

Figura 1:
Comparação das porcentagens das estratégias de reparo utilizadas na produção das obstruintes em Santa Maria e Agudo

Verificou-se, em G1 e G2, que as variáveis selecionadas como favorecedoras na realização da omissão do segmento ou da sílaba foram: idade, pé métrico e número de sílabas. Para G1, ainda foi selecionado o sexo (masculino) e para G2 a sonoridade (surdas) (Tabela 1). Nos dois grupos houve maior ocorrência de omissão nas idades entre 1:0 e 2:3;29. Em relação à variável pé métrico, a probabilidade de omissão foi maior quando na posição fora do pé métrico, isto é, na sílaba pré-tônica (Ex.: bo(nito)). As palavras trissílabas e polissílabas foram as que mais sofreram esse processo.

Tabela 1:
Variáveis estatisticamente significantes na estratégia de reparo omissão em Santa Maria e Agudo

Na estratégia de posteriorização, somente a variável classe da obstruinte (fricativas) foi selecionada como estatisticamente significante em G1 e G2. No município de Agudo (G2) pode-se verificar que esse recurso também foi utilizado em palavras funcionais, dissílabas, precedidas por consoante (coda) e em crianças que pertenciam às faixas etárias iniciais e intermediárias (Tabela 2) (Ex.: urso - ['uʃu]).

Tabela 2:
Variáveis estatisticamente significantes na estratégia de reparo posteriorização em Santa Maria e Agudo

As variáveis selecionadas como favorecedoras na realização da dessonorização (estratégia menos utilizada), foram: idade, sexo e classe da obstruinte (Figura 2). No município de Santa Maria (G1), a faixa etária entre 1:0 - 1:1;29 e as idades intermediárias (2:4 - 2:9;29) favoreceram esse processo. No município de Agudo (G2), apenas a faixa de 1:10 - 1:11;29. Quanto ao sexo, essa variável foi selecionada apenas para o município de Santa Maria e os resultados indicaram que os meninos possuem uma maior probabilidade de produção da dessonorização. Da mesma forma, a variável classe da obstruinte foi selecionada somente para o município de Agudo (G2), onde as fricativas apresentam maior probabilidade de serem dessonorizadas (Ex.: vaca - ['faka]).

Figura 2:
Variáveis estatisticamente significantes na estratégia de reparo dessonorização em Santa Maria e Agudo

A Figura 3 mostra as variáveis selecionadas para a estratégia de anteriorização nos dois municípios estudados. No município de Santa Maria (G1) as variáveis foram: idade (1:10 - 1:11;29); contexto fonológico seguinte (vogal dorsal) e classe da obstruinte (fricativa). Já no município de Agudo (G2), as variáveis foram: posição na palavra (onset inicial) e sonoridade (surda), esta última, embora com peso relativo neutro (.58) favoreceu a ocorrência da anteriorização das obstruintes (Ex.: chave - ['save]).

Figura 3:
Variáveis estatisticamente significantes na estratégia de reparo anteriorização em Santa Maria e Agudo

A plosivização de fricativas foi o processo onde a idade foi a variável comum aos dois grupos, prevalecendo seu uso entre 1:4 e 2:7;29. O sexo (feminino) também foi importante estatisticamente em G1. Em G2, quando as obstruintes foram precedidas por contexto zero (Ex.: sapo - ['tapo]) e por vogal dorsal (Ex.: casa - ['kada), houve maior probabilidade de ocorrência dessa estratégia (Figura 4).

Figura 4:
Variáveis estatisticamente significantes na estratégia de reparo plosivização de fricativas em Santa Maria e Agudo

As demais estratégias usadas foram inseridas na categoria do recurso outros. No município de Agudo (G2) foram selecionadas as seguintes variáveis: idade (em faixas mais precoces), pé métrico (fora do pé métrico) (Ex.: ca(chorro)), posição na palavra (onset medial) (Ex.: cafezinho), classe gramatical (funcional) (Ex.: esse) e sonoridade (sonora) (Ex.: bola). No município de Santa Maria (G1) o programa estatístico não selecionou nenhuma variável como significante, porém, os resultados revelaram que a estratégia outros obteve maior frequência na idade de 1:8 - 1:9;29 e em palavras funcionais. As variáveis pé métrico, posição na palavra e sonoridade, apresentaram frequência igual a zero (Tabela 3).

Tabela 3:
Variáveis favorecedoras à estratégia outros na produção das obstruintes em Santa Maria e Agudo

Na rodada do grupo único (G1+G2), foi possível verificar quais foram as estratégias de reparo relevantes estatisticamente para a variável tipo de input, isto é, aquelas que são diferentemente usadas pelas crianças residentes nos dois municípios. Em Santa Maria (G1), os pesos relativos foram desfavorecedores para as estratégias de anteriorização, posteriorização e outros. Enquanto que, em Agudo (G2), tiveram pesos favorecedores (Tabela 4).

Tabela 4:
Estratégias de reparo relevantes do grupo único (Santa Maria + Agudo) em relação à variável Tipo de input

Discussão

Após análise e descrição dos resultados referentes às variáveis selecionadas como estatisticamente significantes pelo programa VARBRUL em relação às estratégias de reparo utilizadas nos dois grupos estudados, foi possível verificar que em ambos os municípios foram utilizadas as estratégias de posteriorização, omissão de segmento ou de sílaba, anteriorização, plosivização de fricativas, dessonorização e demais estratégias denominada como "outros". Nesses casos, a omissão e a posteriorização foram os recursos mais utilizados na aquisição das obstruintes em Santa Maria (G1) e em Agudo (G2), respectivamente.

Vale lembrar que, no percurso da aquisição fonológica dos fonemas plosivos e fricativos são utilizadas poucas estratégias de reparo. No entanto, o emprego desses recursos pode ser motivado por diversos fatores, como pode ser observado a seguir.

A rodada considerando a omissão de segmento ou da sílaba (quando a criança não produz o segmento ou a sílaba portadora do segmento), mostrou que, para os dois grupos, essa estratégia foi favorecida por palavras constituídas por três ou quatro sílabas, com posição fora do pé métrico (sílaba pré-tônica) e em idades iniciais. Em um trabalho que descreveu sobre a aquisição das fricativas /f/, /v/, /(/ e /(/ no PB por crianças com desenvolvimento típico e idades entre 1:0 e 3:8 anos, a autora observou que, geralmente, palavras com maior número de sílabas favorecem a produção correta das fricativas e as omissões acontecem até a idade de 2:41111. Oliveira CC . Perfil da aquisição das fricativas /f/, /v/, /(/ e /(/ do Português Brasileiro: um estudo quantitativo. Letras Hoje. 2003;38(2):97-110.. Corroborando parcialmente essas informações, na presente pesquisa observa-se que as omissões ocorreram até a idade de 2:3;29, como se vê na Tabela 1. No entanto, palavras com maior extensão favoreceram a estratégia de omissão.

No estudo supracitado, ainda foi possível analisar as omissões de sílabas e de segmentos. Nos casos de omissões de sílabas, os dados evidenciaram que as sílabas fora do pé do acento são sempre aquelas atingidas na aquisição das fricativas. Já no apagamento de fonema foram as sílabas pré-tônicas e tônicas as atingidas. Isso significa dizer que a criança não apaga a sílaba tônica, pois estaria mexendo na estrutura do pé métrico, porém pode apagar fonemas em sílaba tônica, pois esta é apenas uma mudança de estrutura silábica, não interferindo na ressibalificação e, consequentemente, no padrão acentual da língua1111. Oliveira CC . Perfil da aquisição das fricativas /f/, /v/, /(/ e /(/ do Português Brasileiro: um estudo quantitativo. Letras Hoje. 2003;38(2):97-110.. Conforme Toreti e Ribas1212. Toreti G, Ribas LP . Aquisição fonológica: descrição longitudinal dos dados de fala de uma criança com desenvolvimento típico. Letrônica. 2010;3(1):42-61., uma das estratégias utilizadas na aquisição das fricativas é a omissão de sílabas portadoras desses segmentos, com a não-realização mais frequente quando em pré-tônica. Portanto, confirma-se que o ambiente prosódico mostra-se favorecedor ao processo de omissão.

A variável sexo foi selecionada exclusivamente para o município de Santa Maria (G1), em que meninos omitiram mais os fonemas obstruintes. O sexo mostra-se como fator significativo para a probabilidade da presença do processo de omissão. Porém, ao que parece, no processo de aquisição fonológica, bem como, na ocorrência de transtornos dos sons da fala nas crianças brasileiras, não se identificam diferenças entre meninos e meninas. Tal particularidade não encontra, ainda, explicação plausível, necessitando de mais pesquisas em relação a esse aspecto1313. Silva MK, Ferrante C, Van Borsel J, Pereira MMB. Aquisição fonológica do Português Brasileiro em crianças do Rio de Janeiro. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(3):248-54..

No município de Agudo (G2) ainda foi verificado que obstruintes surdas são mais omitidas pelos sujeitos desse grupo, o que foi também observado em outro estudo em relação ao fonema fricativo surdo /s/, onde a estratégia de omissão desse segmento é preferida em relação à substituição1414. Savio CB. Aquisição das fricativas /s/ e /z/ do português brasileiro. Letras de Hoje. 2001;36(3):721-7.. Além disso, cabe ressaltar que a estratégia de omissão de segmento ou da sílaba foi a mais utilizada pelas crianças de Santa Maria (G1).

Na realização da estratégia de posteriorização (substituição de uma consoante labiodental, dental ou alveolar por uma palato-alveolar ou velar) em G1 e G2, somente os fonemas fricativos foram posteriorizados. Reforçando esse achado, foi encontrado durante estudo sobre a aquisição de fricativas, que a substituição envolvendo o traço [+anterior] para o [-anterior] também foi o utilizado no processo de aquisição dessa classe de consoantes1414. Savio CB. Aquisição das fricativas /s/ e /z/ do português brasileiro. Letras de Hoje. 2001;36(3):721-7.. Oliveira1111. Oliveira CC . Perfil da aquisição das fricativas /f/, /v/, /(/ e /(/ do Português Brasileiro: um estudo quantitativo. Letras Hoje. 2003;38(2):97-110. relata que pode haver uma instabilidade no traço [anterior] das fricativas, o que leva à substituição de emprego entre elas próprias.

Mais variáveis foram selecionadas na análise da posteriorização das obstruintes em Agudo (G2), a saber: palavras funcionais, dissílabas, precedidas por consoante (coda) e em crianças que pertenciam às faixas etárias iniciais e intermediárias. O uso da posteriorização em idades iniciais também foi percebido em uma descrição longitudinal dos dados de fala de uma criança com desenvolvimento típico, com idade inicial de 1:6 e final de 2:6, onde os fonemas plosivos foram posteriorizados1212. Toreti G, Ribas LP . Aquisição fonológica: descrição longitudinal dos dados de fala de uma criança com desenvolvimento típico. Letrônica. 2010;3(1):42-61.. Em relação ao número de sílabas, percebe-se que no início da aquisição fonológica, geralmente, há o uso preferencial de palavras com menor número de sílabas, monossílabas e dissílabas. Portanto, essas seriam também alvos de substituições.

Não foram encontradas investigações que relacionassem a estratégia de posteriorização com o contexto fonológico precedente formado por consoante (coda) e com a classe gramatical (palavras funcionais) apresentadas como estatisticamente significantes em G2. Pode-se então dizer que as crianças pequenas, quando não conseguem produzir um som com facilidade, usam a substituição como recurso facilitador1414. Savio CB. Aquisição das fricativas /s/ e /z/ do português brasileiro. Letras de Hoje. 2001;36(3):721-7., o que envolve o uso de uma ou várias variantes. Lembrando que essa foi a estratégia que apresentou maior aplicação em G2.

A idade parece influenciar o uso da estratégia de dessonorização (troca de um fonema sonoro por seu par surdo) nos dois municípios. No município de Santa Maria (G1) foram as idades mais intermediárias e no município de Agudo (G2) foi somente a faixa etária entre 1:10 - 1:11;29 que favoreceu o uso desse recurso. Conforme estudo, a substituição de fonemas sonoros por surdos pode ocorrer em crianças com desenvolvimento fonológico típico e em idades muito precoces, geralmente menores de três anos1515. Lamprecht RR . Aquisição da fonologia na faixa etária de 2:9 a 5:5. Letras de Hoje. 1993;28(2):107-17.. Esse dado confirma a análise dos resultados para os dois grupos, já que as idades dos sujeitos das variantes selecionadas estão compreendidas entre 1:10 a 2:9;29. No entanto, esperava-se que, em Agudo (G1), o uso desse recurso se estendesse até às últimas faixas etárias devido ao input recebido nesse grupo.

Ainda para a dessonorização, foram selecionadas duas variáveis distintas para os grupos estudados: o sexo em G1 e a classe da obstruinte em G2. Os meninos residentes em Santa Maria (G1) possuem uma maior probabilidade de dessonorizar as obstruintes. Esse fato fica comprovado por meio de estudo que indica existir diferenças significantes entre os sexos nas habilidades verbais, com as meninas falando mais cedo e com maior correção gramatical1616. Shaywitz BA, Shaywitz SE, Pugh KR, Constable RT, Skudlarski P, Fulbright RK. Sex differences in the functional organization of the brain for language. Nature. 1995;373(65):607-9. Comment in: Nature. 1995;373(6515):56-2.. Porém, embora haja investigações com dados semelhantes ao encontrado em Santa Maria (G1), deve-se continuar investigando a interferência dessa variável na aquisição da linguagem, pois os resultados encontrados até o momento na literatura são divergentes. Todavia, como citado anteriormente, o sexo feminino se revela com maior habilidade verbal, na maioria das vezes.

A classe das fricativas também foi apontada como fator relevante à dessonorização, sendo essa variável selecionada exclusivamente para Agudo (G2). Comparando esse resultado com outra investigação, percebe-se que, no processo de aquisição fonológica, as crianças tendem a eliminar esse processo antes nos fonemas plosivos e após nos fricativos1515. Lamprecht RR . Aquisição da fonologia na faixa etária de 2:9 a 5:5. Letras de Hoje. 1993;28(2):107-17.. Essa tendência foi também verificada em um estudo comparativo, o qual investigou o processo de dessonorização de obstruintes na fala de crianças com idades de aproximadamente cinco anos e com desenvolvimento fonológico normal e desviante, utilizando as análises perceptual e acústica, onde os resultados evidenciaram que, para o sujeito com desenvolvimento normal, houve uma porcentagem maior de ocorrência de dessonorização para as plosivas1717. Souza APR, Scott LC, Mezzomo CL, Dias RF, Giacchini V. Avaliações acústica e perceptiva de fala nos processos de dessonorização de obstruintes. Rev CEFAC. 2011;13(6):1127-32.. Então, o uso desse recurso em fricativas parece estar relacionado ao fato de que a idade inicial, selecionada também como fator relevante, esteja atuando como facilitador, já que quanto menor a idade, maior a ocorrência da dessonorização. Além disso, apesar de os fonemas sonoros serem adquiridos antes dos surdos, os sonoros apresentam mais quedas durante o processo de aquisição1111. Oliveira CC . Perfil da aquisição das fricativas /f/, /v/, /(/ e /(/ do Português Brasileiro: um estudo quantitativo. Letras Hoje. 2003;38(2):97-110. , 1515. Lamprecht RR . Aquisição da fonologia na faixa etária de 2:9 a 5:5. Letras de Hoje. 1993;28(2):107-17..

Em dados desviantes, a produção das fricativas /z/, /(/ e /(/ apresentaram em dois sujeitos, dos seis participantes, alteração relevante do traço [voz]. Após a terapia, esses sujeitos aumentaram os percentuais de produção correta das consoantes sonoras, porém distantes do padrão típico da língua. Com isso, as autoras inferiram que a estratégia de reparo de dessonorização pode acometer vários fonemas em diferentes classes e níveis de complexidade, trazendo prejuízos significativos à organização do sistema fonológico das crianças1818. Wiethan FM, Mota HB. Ambientes linguísticos para a produção das fricativas /z/, /(/ e /(/: variabilidades na aquisição fonológica de seis sujeitos. Rev CEFAC. 2013;15(1):179-87..

Em relação à estratégia de anteriorização (substituição de uma consoante palato-alveolar ou velar por uma labiodental, dental ou alveolar), percebeu-se que as crianças residentes nos dois municípios usam de forma distinta esse recurso. No município de Agudo (G2), as obstruintes em posição de onset inicial e surdas, foram as mais anteriorizadas. Já no município de Santa Maria (G1), as variantes favorecedoras à estratégia de anteriorização foi com a faixa etária de 1:10 - 1:11;29, com obstruintes seguidas por vogal dorsal, pertencentes à classe das fricativas. Esse último dado é confirmado em estudo que apontou como sendo essa uma das estratégias utilizadas na aquisição das fricativas1414. Savio CB. Aquisição das fricativas /s/ e /z/ do português brasileiro. Letras de Hoje. 2001;36(3):721-7..

As análises de dois estudos mostram dados semelhantes aos encontrados em G2 (posição na palavra e sonoridade), com maior ocorrência de anteriorização na posição de onset medial e absoluto, tanto em segmentos surdos quanto em sonoros1919. Lamprecht RR . Perfil da aquisição normal da fonologia do Português -descrição longitudinal de 12 crianças: 2:9 a 5:5. 1990. [Tese] Porto Alegre (RS): Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 1990. , 2020. Fronza CA. O nó laríngeo e o nó de C no processo de aquisição normal e com desvios do português brasileiro - a existência de uma tipologia. 1998. [Tese] Porto Alegre (RS): Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 1998.. A variante onset inicial como fator estatístico relevante, mostra a importância da posição do segmento dentro da palavra para o processo de anteriorização de obstruintes.

As fricativas seguidas por vogais coronais e labiais são favorecedoras à produção correta1111. Oliveira CC . Perfil da aquisição das fricativas /f/, /v/, /(/ e /(/ do Português Brasileiro: um estudo quantitativo. Letras Hoje. 2003;38(2):97-110.. Portanto, acredita-se que a vogal dorsal esteja sujeita ao uso de estratégias, neste caso, da anteriorização, comprovando o achado de Santa Maria (G1). Por fim, em relação à faixa etária (1:10 - 1:11;29), pode-se inferir que idades precoces favorecem o uso desse processo, pois a criança está na fase de adequação de sua linguagem.

Na substituição de consoante fricativa por plosiva, ou seja, na plosivização de fricativas, a idade foi a variável interveniente comum aos dois grupos, prevalecendo seu uso entre 1:4 e 2:7;29. Na comparação com estudos no Português Europeu e no Português Brasileiro, foi verificada a mesma tendência em relação à variável idade, demonstrando que a estratégia de substituição mais habitual em crianças com até três anos de idade, é o uso de plosivas no lugar de fricativas33. Oliveira CC. Sobre a aquisição das Fricativas. In.: Lamprecht RR. Aquisição Fonológica do Português: Perfil de desenvolvimento e subsídios para terapia. Porto Alegre: Artmed; 2004. P. 83-94. , 2121. Castro SL, Gomes I. Dificuldades de aprendizagem da língua materna. Lisboa, Universidade Aberta. 2000..

O fator extralinguístico sexo também foi importante estatisticamente para a ocorrência de plosivização em Santa Maria (G1). A interferência dessa variável para o uso de estratégias de reparo parece relevante, pois foi selecionada em três das seis estratégias de reparo utilizadas nos dois municípios. Contrariamente ao encontrado nos demais recursos, a variante feminino foi favorecedora à plosivização das obstruintes. Logo, como referido anteriormente, faz-se necessário mais investigações em relação a esse aspecto.

Em Agudo (G2), quando as obstruintes foram precedidas por vogal dorsal ou por contexto zero, estas foram mais plosivizadas. As fricativas apresentam as vogais coronais e labiais com maior probabilidade à produção correta1111. Oliveira CC . Perfil da aquisição das fricativas /f/, /v/, /(/ e /(/ do Português Brasileiro: um estudo quantitativo. Letras Hoje. 2003;38(2):97-110.. Portanto, as vogais dorsais antes dos segmentos fricativos estariam, talvez, sujeitas ao uso de estratégias de reparo como a plosivização, fato observado em G2. Outro trabalho também concorda, em parte, com o que foi encontrado nesta pesquisa, com o contexto zero desfavorecendo a produção correta das fricativas /s/ e /z/1414. Savio CB. Aquisição das fricativas /s/ e /z/ do português brasileiro. Letras de Hoje. 2001;36(3):721-7..

Na fala desviante, a plosivização é frequentemente observada, prejudicando consideravelmente a inteligibilidade da fala. Também se percebe que na relação entre o uso dessa estratégia e o grau do desvio fonológico, os graus mais acentuados tendem a empregar mais esse recurso2222. Costa VP, Backes FT, Pegoraro SP, Wiethan FM, Melo RM, Mota HB . Emprego da estratégia de reparo de plosivização: relação com a gravidade do desvio fonológico e fonemas acometidos. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(1):76-9..

Na estratégia denominada outros, foram inseridas as demais estratégias não descritas anteriormente, que ocorreram em um só grupo e de menor ocorrência, como por exemplo, a epêntese. Foram selecionadas algumas variáveis como favorecedoras, como idade (em faixas mais precoces), pé métrico (fora do pé métrico), posição na palavra (onset medial), classe gramatical (funcional) e sonoridade (sonora). Embora não tenha sido selecionada nenhuma variável no município de Santa Maria (G1), a estratégia outros obteve maior frequência na idade de 1:8 - 1:9;29 e em palavras funcionais. Percebe-se que essas variáveis foram selecionadas como relevantes em outros recursos utilizados pelas crianças dos dois grupos, demonstrando que os mesmos fatores podem favorecer o uso de outras estratégias, ou seja, não favorecem a produção correta das obstruintes.

No início da aquisição fonológica aparecem as estratégias de reparo, as quais são utilizadas pelas crianças na tentativa de reproduzir a fala complexa da comunidade em que vivem44. Ramos-Pereira A, Henrich V, Ribas LP. Dados com epêntese em alvos com onset complexo na aquisição fonológica: argumentos a favor do desenvolvimento silábico. Rev Verba Volant. 2010;1(1):39-52.. Essa afirmação concorda com os resultados desta pesquisa, na qual crianças mais novas utilizaram diversos recursos para facilitar o uso das obstruintes. Em dados desviantes houve semelhança com este estudo, onde para o fonema plosivo sonoro /g/ foi observado o uso de estratégias de reparo como a fricatização2323. Berticelli A, Mota HB . Ocorrência das estratégias de reparo para os fonemas plosivos, considerando o grau do desvio fonológico.Rev CEFAC. 2013 (ahead of print) e para o fonema fricativo sonoro /(/ a estratégia de africação2424. Wiethan FM, Mota HB . Emprego de estratégias de reparo para os fonemas fricativos no desvio fonológico. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(1):28-33.. Na aquisição das plosivas, uma pesquisa apontou o uso de dessonorização e anteriorização em onset medial2020. Fronza CA. O nó laríngeo e o nó de C no processo de aquisição normal e com desvios do português brasileiro - a existência de uma tipologia. 1998. [Tese] Porto Alegre (RS): Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 1998., concordando com o fato de que essa posição possa facilitar o uso de uma ou mais estratégias.

Retomando o estudo já referido na estratégia de omissão de sílaba ou de segmento, verifica-se que as sílabas possuidoras de fonemas fricativos e que se encontram fora do pé do acento sempre são atingidas pelo uso de processos1111. Oliveira CC . Perfil da aquisição das fricativas /f/, /v/, /(/ e /(/ do Português Brasileiro: um estudo quantitativo. Letras Hoje. 2003;38(2):97-110., aspecto encontrado no corpus deste trabalho também para a estratégia "outros". Em relação à variável classe gramatical, observou-se que outras estratégias foram utilizadas quando plosivas e fricativas faziam parte do grupo das palavras funcionais, como os artigos, as preposições, as conjunções, os pronomes e as interjeições. Araújo2525. Araújo K. Aspectos do desempenho gramatical de crianças pré-escolares em desenvolvimento normal de linguagem.2003. [Dissertação] São Paulo (SP): Universidade de São Paulo; 2003. destaca, em seu estudo, que os artigos, preposições e conjunções foram utilizados pelas crianças com idades entre 2:0 a 4:11, porém em menor número quando comparadas aos verbos, substantivos e pronomes. Desse modo, esses dados confirmam o que foi encontrado neste trabalho, com palavras funcionais sendo mais favoráveis para a ocorrência de estratégias de reparo, já que parecem ser produzidas mais tardiamente.

Na análise das estratégias utilizadas em ambos os municípios (rodada do grupo único) houve um resultado curioso, pois somente para o município de Agudo (G2) foram selecionadas estratégias de reparo relevantes estatisticamente, o que pode significar que os sujeitos residentes nessa localidade tenham que estar mais atentos e usar mais recursos no processo de aquisição das obstruintes já que possuem um input variável (ora as obstruintes são dessonorizadas, ora não). Na análise de processos fonológicos em crianças com desenvolvimento fonológico normal pesquisadas por Ferrante et al. 2626. Ferrante C, Van Borsel J, Pereira MMB . Análise dos processos fonológicos em crianças com desenvolvimento fonológico normal. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2009;14(1):36-40., foi observado que, na faixa etária dos três anos de idade o número de processos fonológicos utilizados foram um mínimo de dois e máximo de onze. Alguns processos como apócope, africação, desafricação e sonorização não foram encontrados nas crianças dessa faixa etária. Assim, supõe-se que a maior diversidade de estratégias de reparo utilizadas na localidade de Agudo (G2) sejam concebidas como indícios de um conhecimento fonológico mais elaborado.

Conclusão

Os resultados encontrados mostraram que ocorreram tanto semelhanças como diferenças em relação às variáveis intervenientes. Dentre as semelhanças, observa-se que a dessonorização foi o recurso menos adotado para os dois grupos. Assim, foi possível verificar que as crianças residentes em Agudo (G2) não são mais propensas à substituição de fonemas sonoros por surdos do que as crianças residentes em Santa Maria (G1), conforme hipotetizado.

A variação dialetal parece não se mostrar estatisticamente influente na escolha dos recursos empregados para as crianças residentes em Agudo (G2), porém esse fator deve ser considerado na análise dos quadros de desenvolvimento fonológico atípico, para que se possa diferenciar variações regionais de erros.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2014
  • Aceito
    04 Set 2014
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