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Editorial II

EDITORIAL II

Prática baseada em evidências para o tratamento dos distúrbios da voz

Tradicionalmente, as disfonias são caracterizadas como alterações de qualidade, frequência ou intensidade da voz em relação à idade, gênero ou expectativas culturais. Contribuições mais recentes ressaltam ser fundamental a inclusão das limitações relacionadas à comunicação, ou seja, dados referentes ao impacto do desvio vocal na interação humana. Assim, desvios em determinados parâmetros vocais passam a caracterizar um distúrbio de voz quando as demandas vocais requeridas pelo falante não são contempladas, seja na comunicação diária, na expressão das emoções ou no uso profissional da voz. Publicações científicas sobre os efeitos da terapia vocal para pacientes disfônicos surgiram a partir da década de 1940 1 e o crescimento na área foi lento, caracterizado por artigos com série de casos descritivos, opiniões e comentários de especialistas, até se chegar à década de 1980, chamada de "estágio instrumental", que disseminou o uso de análises perceptivo-auditivas, visuais e acústicas, modificando o panorama vigente até o momento. É provável que, pelo fato do tratamento das disfonias ter tido origem na área de "artes vocais", a configuração científica da especialidade tenha demorado a acontecer 2.

A Prática Baseada em Evidência - PBE é o "uso consciente, explicito e judicial das melhores evidências para a tomada de decisões sobre o cuidado individual do paciente, integrando a prática clínica à melhor evidência da pesquisa sistemática" 3. Como os outros profissionais da área de saúde, fonoaudiólogos têm sido freqüentemente solicitados a demonstrar que sua prática é baseada em evidências. O foco de ação da American Speech-Language and Hearing Association - ASHA na presente década refere-se exatamente à PBE para o tratamento dos distúrbios da comunicação humana e da deglutição. Uma grande quantidade de informações foi produzida e grande atenção tem sido dada ao tema. Um documento elaborado pelo grupo que está na coordenação de tal iniciativa ressalta que pesquisas robustas na área das ciências da comunicação humana e seus distúrbios são essenciais para promover práticas baseadas em evidências capazes de garantir qualidade no serviço clínico e na formação de fonoaudiólogos 4.

Em uma visão otimista, a PBE representa revolução na relação entre a teoria e a prática, democratiza a formação profissional, desenvolve a mente do clínico e do pesquisador, favorece a tomada de decisão com maior fundamentação, racionaliza as abordagens utilizadas, auxilia a estabelecer normas, melhora a qualidade do atendimento aos pacientes e fornece dados mais concretos sobre o prognóstico clínico. Contudo, este conceito de grande impacto na área da saúde e também da educação sofre algumas distorções em sua interpretação. Uma delas é o fato de ser acreditar que o único tipo de atendimento válido é aquele baseado em informações advindas de pesquisas e que se deve desconsiderar o que foi aprendido anteriormente e passar a basear as intervenções exclusivamente nas práticas apoiadas em evidências. Uma crítica adicional é o risco da "coisificação" do indivíduo, transformando-o em uma série de processos fisiológicos, alguns em mau funcionamento, que devem ser tratados não se levando em conta dados de personalidade, complexidade individual da dimensão sócio-cultural e demandas específicas de vida. Assim, em uma perspectiva pessimista, a PBE pode ser considerada uma arma contra a iniciativa e a criatividade individuais, atrasar a produção de novos conhecimentos, implicar a utilização de recursos financeiros vultosos, favorecer o corte da cobertura dos seguros-saúde às práticas sem evidências comprovadas e ameaçar a autoridade do clínico e do professor. Além disso, pode ser gerada uma profunda crise ética, pois certamente determinados contextos favoreceriam diferentes tipos de estudos, cujos resultados poderiam ser usados como propagandas para alguns tipos de tratamento.

Porém, acima de tudo, a PBE é de importância inquestionável, pois permite verificar a qualidade dos estudos desenvolvidos na área, criticar o conhecimento disponível, valorizar o que realmente está comprovado em pesquisas consistentes, reduzir os índices de erro e melhorar a qualidade das intervenções propostas, permitindo uma prestação de serviços de melhor qualidade, além do financiamento seletivo e estratégico de pesquisas. O papel do fonoaudiólogo em sua prática clínica é participar de atividades que mensurem os resultados de seus tratamentos e utilizar-se de dados concretos para guiar a tomada de decisão e determinar a efetividade dos serviços oferecidos, de acordo com os princípios da PBE 4. Esta perspectiva difere sutilmente da definição médica, pois reconhece que a base de conhecimento da Fonoaudiologia ainda não permite que os clínicos baseiem-se na literatura para identificar a melhor prática 5. Assim, a solução indicada para o cenário atual é a de que os clínicos tenham a atitude de medir constantemente a efetividade de suas intervenções, estando cientes dos dados de pesquisa já disponíveis. Se basearmos nossas ações exclusivamente em evidências de pesquisas, sem integrá-las a todas as informações que obtemos do paciente, de sua família, dos outros profissionais da saúde, assim como de dados relacionados às suas limitações decorrentes do distúrbio vocal, não estaremos fazendo uso apropriado da PBE. Os melhores resultados clínicos serão provavelmente obtidos com a interação entre a prática consciente e a teoria fundamental.

Na área de voz, a literatura da Fonoaudiologia já oferece dados importantes para auxiliar na seleção da melhor abordagem de tratamento, pelo menos em quadros específicos 2,6. Podemos considerar a situação atual como promissora, pois contamos com evidências de classe I para alguns métodos de tratamento, como os estudos feitos com o método LSVT® para indivíduos com disfonia orgânica por doença de Parkinson, um método de base fisiológica 2. Quanto às disfonias funcionais, há poucas evidências que justifiquem a utilização de abordagens de higiene vocal de modo isolado ou o uso de abordagens sintomáticas na reabilitação (como as técnicas de esforço, bocejo-suspiro, relaxamento, modificação de freqüência e intensidade e colocação de voz; exceção feita para as técnicas de monitoramento, biofeedback, que têm evidências moderadas). Isso acontece principalmente porque os experimentos realizados com essas técnicas têm sido feitos há muitas décadas, sem rigor científico ou análise da fundamentação teórica subjacente. Os estudos realizados com abordagens fisiológicas, no entanto, de modo semelhante ao observado com o método LSVT®, revelaram força científica para quatro métodos da reabilitação: Exercícios de Função Vocal, Terapia de Ressonância, Método de Acentuação e Massagem Laríngea.

Há uma série de características próprias da área dos distúrbios da voz que dificultam a realização de estudos sobre os efeitos da terapia, como o fato de que devem ser incluídos nas pesquisas indivíduos com todos os tipos de patologias vocais possíveis além da necessidade de se considerar a grande diversidade de terapias existente. Em uma revisão sistemática sobre os efeitos da terapia de voz, publicada no mês de setembro, o autor 6 afirma que a maior parte dos estudos não contempla nenhuma dessas duas situações e que o desenho misto geralmente empregado compromete ambas as opções. A partir da análise de estudos indexados nas bases científicas PUBMED 7 e EMBASE 8, até fevereiro de 2006, publicados em inglês, alemão, francês, espanhol e holandês, o revisor concluiu que, de modo geral, foram encontrados efeitos positivos, embora modestos e variáveis. Foram encontrados 310 artigos na PUBMED e 197 na EMBASE e incluídos apenas as pesquisas cujo tratamento fora ministrado por fonoaudiólogo; o grupo final analisado foi de 47 artigos, um número considerado pequeno. Embora não se possa tirar nenhuma conclusão da literatura por problemas metodológicos no desenho do experimento e análise dos dados, algumas tendências são claramente observadas: se há resultados positivos eles são geralmente modestos e os efeitos individuais são bastante variados. Terapias diretas, com técnicas que modificam certos aspectos do uso de voz para se obter uma produção vocal mais adequada e eficiente, parecem ser mais efetivas que as terapias indiretas, que têm como foco o controle dos aspectos de higiene de voz. Abordagens específicas, como terapia manual para redução da tensão laríngea e o método de acentuação, ofereceram melhores resultados do que estudos em que as técnicas de terapia de voz não foram claramente definidas. Estudos com populações específicas, como disfonia mutacional ou nódulos vocais, geralmente apresentaram resultados positivos e estatisticamente significantes. Tais tendências nos resultados sugerem que é recomendado restringir a população de pacientes e usar um programa de terapia bem definido, em estudos sob o efeito da reabilitação vocal. Um aspecto surpreendente foi a enorme variação de tempo de tratamento, com referência de resultados positivos tanto após uma sessão quanto após vários meses de tratamento. Na tentativa de responder se, em geral, a terapia de voz é efetiva, pôde-se concluir que não existe uma única resposta a este questionamento devido à diversidade relacionada ao diagnóstico, à personalidade do paciente, aos diferentes tipos de terapia de voz, assim como aos vários instrumentos de avaliação vocal que podem ser empregados.

Recentemente, um grupo de dedicados alunos da disciplina de Diagnóstico e Terapia dos Distúrbios da Voz, ministrada por mim no Curso de Pós-Graduação em Distúrbios da Comunicação Humana da UNIFESP-EPM, realizaram um levantamento das publicações brasileiras em terapia vocal, na última década. Foram levantados 125 trabalhos e analisados 77 deles, tendo sido excluídos os que representavam apenas relatos de casos individuais ou possuíam dados insuficientes. Observou-se um aumento no número de trabalhos a partir do ano 2000, com um pico de 20 publicações em 2005, sendo a maior parte registrada em anais de congressos, seguidas por monografias e alguns estudos indexados nas bases LILACS 9 e SCIELO 10. Os trabalhos apresentaram, em média, grupos com 20 sujeitos e apenas poucos (menos de 10%) contaram com dados de grupo-controle. Foram estudados tanto programas sistematizados de terapia de voz, como o efeito de técnicas vocais específicas. As formas de avaliação utilizadas foram variadas, com predomínio da análise perceptivo-auditiva da qualidade vocal, análise acústica, avaliação fonoaudiológica e otorrinolaringológica e, finalmente, protocolos de auto-avaliação do impacto das disfonia. Observa-se um aprimoramento metodológico nas publicações mais recentes e a associação de múltiplas análises para garantir uma avaliação mais abrangente dos resultados. Muitas das limitações são semelhantes as das publicações internacionais, como definição inconsistente das variáveis estudadas, formatação não casual dos grupos controle e estudo, tamanho inadequado da amostra, tratamento estatístico questionável, ausência de seguimentos ou reavaliações em tempos muito limitados, além de excesso ou perda de dados.

Considerando-se a falta de evidência definitiva e a natureza heterogênea dos distúrbios da voz, é necessário construir um conhecimento estável baseado no registro dos resultados obtidos pela aplicação das diversas intervenções, em sua análise crítica e no compartilhamento dessas experiências em eventos científicos. Apesar de todas as dificuldades para desenvolver experimentos sobre efeitos, eficácia e efetividade do tratamento vocal de pacientes disfônicos, não há outra escolha a não ser a de favorecer tais estudos e suas publicações, engajando a área de voz na PBE. Um comentário final de grande importância é que o fato de nem sempre serem encontradas evidências relevantes não indica que o tratamento administrado seja ruim, mas simplesmente que ainda não há comprovação de seus efeitos positivos. Contudo, se não produzirmos evidências de que nossa intervenção é efetiva e eficiente quanto aos resultados e custos envolvidos, no médio-prazo não haverá fundos para pesquisas e correremos o risco de sermos bloqueados pelos convênios de saúde. A sobrevivência da Fonoaudiologia no aspecto relacionado à intervenção depende da comprovação da eficácia da fonoterapia e não da insistência em se relatar experiências pessoais. Nesse sentido, as revistas científicas da área têm papel fundamental no incentivo ao desenvolvimento de projetos, na análise criteriosa e objetiva dos estudos encaminhados e no tratamento imparcial aos autores.

Mara Behlau

Fonoaudióloga graduada pela UNIFESP-EPM

Especialista em voz pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia

Diretora do Centro de Estudos da Voz - CEV e coordenadora do Curso

de Especialização em Voz da instituição - CECEV, São Paulo

Docente permanente do Curso de Pós-Graduação em Distúrbios da Comunicação Humana

da Universidade Federal de São Paulo, UNIFESP-EPM, São Paulo

Presidente do Departamento de Voz da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia - SBFa

Presidente da International Association of Logopedics and Phoniatrics - IALP

  • 1. Froeschels E. Hygiene of the voice. Arch Otolaryngol. 1943; 37:122-30.
  • 2. Thomas L, Stemple J. Voice therapy: does science support the art? Commun Disord Rev. 2007; 1:49-77.
  • 3. Sackett D, Rosenberg W, Muir Gray J, Haynes R, Richardson W. Evidence based medicine: what it is and what it isn't. Brit Med J. 1996; 312:71-2.
  • 4. ASHA. American Speech-Language and Hearing Association: scope of practice in speech-language pathology. Rockville; 2001. p.129-32.
  • 5. Dodd B. Evidence-based practice and speech language pathology: strenghts, weaknesses, opportunities and threats. Folia Phoniatr Log. 2007; 59:118-29.
  • 6. Speyer R. Effects of voice therapy: a systematic review. J Voice. 2008; 22(5):565-80.
  • 7. Base de dados Medline (PubMed); 2008.
  • 8. Base de dados Embase (Elsevier Science). Acesso em 25 out 2008.
  • 9. Base de dados Lilacs (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências de Saúde). Acesso em 25 out 2008.
  • 10. Base de dados Scielo (Scientific Eletronic Library Online); 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jan 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2008
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