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O gesto na clínica fonoaudiológica: um estudo sob o olhar da análise discursiva materialista

RESUMO

Objetivo:

esta pesquisa procurou investigar o gesto na clínica fonoaudiológica e a ideologia dominante à luz da teoria-metodológica da análise discursiva materialista.

Métodos:

o procedimento para a coleta de dados foi uma entrevista semi-aberta com 12 fonoaudiólogas que atuam em diferentes campos clínicos em busca do fio discursivo que sustenta o discurso da Fonoaudiologia. A coleta de dados foi gravada em áudio e vídeo e dos dados discursivos transcritos, extraiu-se fragmentos que foram analisados sob a ótica apontada acima.

Resultados:

a análise discursiva indica que o fio condutor do discurso dos fonoaudiólogos é a ideologia positivista da ciência que fragmenta os sujeitos, os corpos, a linguagem e hierarquiza fala e gesto, sendo que este último se encontra subordinado ao primeiro. A materialidade da língua revela uma identificação inconsciente das terapeutas com o significante Fono-audio-logia, na medida em que o retorno à fala e a sua identidade profissional são trazidos à tona. O atendimento à surdos aparece amalgamado ao discurso sobre o gesto, em que este como forma de comunicação codificada na Língua Brasileira de Sinais- LIBRAS, representa uma ameaça ao estatuto da fala. Ainda sobre o significante fala, observou-se um deslizamento de sentidos daquele somente relacionado a articulação dos sons para aquilo que afeta o outro pela linguagem das mãos, dos gestos. Sob esta ótica, há também formações que contestam a ideologia dominante e abrem espaço para acolher o gesto na clínica, na avaliação e na terapêutica evidenciando que o gesto tem feito parte da práxis deste profissional, tanto por meio abordagens terapêuticas já conhecidas, bem como, na singularidade deste profissional evidenciando a importância e a necessidade do recrutamento do gesto na clínica fonoaudiológica.

Conclusão:

a crença ideológica dominante evidencia uma relação hierárquica e histórica entre fala e gesto que o exclui da clínica fonoaudiológica a medida em que representa uma ameaça ao estatuto da fala e a identidade deste profissional.

Descritores:
Gestos; Discurso; Fonoaudiologia; Prática

ABSTRACT

Objective:

this study aimed to investigate gestures in the speech-language pathology clinic and the dominant ideology in the light of the Materialist Discourse Analysis.

Methods:

twelve speech-language pathologists who work in different clinical fields were interviewed to investigate the main discursive thread supporting their discourse. These semi-open interviews were recorded and the discursive data were later transcribed. Fragments were extracted and analyzed from the above mentioned perspective.

Results:

the analysis shows that the conducting thread of the therapists’ discourse is the positivist ideology of Science, which fragments the subjects, body and language allocating speech and gesture in a hierarchy system where gesture is subordinated to the former. The language materiality shows an unconscious identification of the therapists with the signifier “Fono-Speech, Audio-Audio, Logia-Study” (Fonoaudiologia, or Speech-language Pathology in Portuguese), since the return of speech and their professional identity is brought up. From this perspective, there are formations that challenge the dominant ideology welcoming gesture as an important tool in the clinic, both in evaluation and treatment.

Conclusion:

the dominant ideological belief shows a hierarchical and historical association between speech and gesture that excludes gesture of the speech-language pathology clinic as it represents a threat to the speech status and the identity of this professional.

Keywords:
Gesture; Address; Speech, Language and Hearing Sciences; Practice

Introdução

A clínica fonoaudiológica é marcada pelo aparecimento de um sujeito que apresenta sintomas manifestados por deslizamentos, tropeços na fala, repetições, vocalizações, gestos e também silêncios. Segundo Freire11. Freire R. Se Silêncio, que Silêncio: em cena a clínica fonoaudiológica. Distúrb Comun. 2009;1(21):101-05., muitas destas manifestações também são observadas no desenvolvimento de linguagem, porém, o sujeito da clínica encaminha uma demanda em um sintoma enigmático que persiste e causa sofrimento.

Sabe-se que uma em cada duzentas pessoas é incapaz de comunicar-se por meio da fala devido a fatores neurológicos, físicos, emocionais e cognitivos22. Nunes LROP. Linguagem e Comunicação Alternativa: uma introdução. In: Nunes LROP (org). Favorecendo o Desenvolvimento da Comunicação em Crianças e Jovens com Necessidades Especiais Educacionais. Rio de Janeiro: Dunya; 2003. p.1-13.. No entanto, mesmo sabendo do valor que a fala representa, há linguagem, mesmo quando a fala encontra-se comprometida33. Chun RYS. Comunicação suplementar e/ou alternativa: abrangência e peculiaridades dos termos e conceitos em uso no Brasil. Pró-Fono R Atual Cient. 2009;1(21):69-74..

O gesto produzido na clínica fonoaudiológica na relação terapeuta-paciente, é visto neste trabalho como um processo sócio histórico, que afeta e é afetado pelos sentidos produzidos a partir da inter-relação dos sistemas semióticos que os sujeitos dispõem. Conceituar gesto é uma tarefa árdua, em vista das inúmeras classificações existentes, bem como, do uso amplo e extensivo deste significante que evidencia sentidos diferenciados, de acordo com os mais variados contextos e áreas daqueles que se dispõem a estudá-lo. Além do gesto manual que inclui o movimento dos dedos, mãos e braços, também é referido na literatura o gesto orofacial na produção articulatória dos fonemas e o gesto das mãos na produção gráfica44. Fedosse E, Santana AP. Gesto e Fala: ruptura ou continuidade? Distúrb Comun. 2002;2(13):243-55., no entanto, estes dois últimos não são o foco deste trabalho. O embasamento científico acerca da definição de gesto se assemelha aos estudos de McNeill55. McNeill D. Language and Gesture. UK: Cambridge University Press; 2000., um dos maiores estudiosos do tema.

Segundo McNeill66. McNeill D. Hand and mind: what gestures reveal about thought. USA: Chicago University Press; 1992. gestos não são apenas movimentos das mãos que giram no ar sem sentido algum. São símbolos que exibem significado à sua própria maneira de acordo com aquele que os produz. Podem representar, ora a mão de um personagem, ora o personagem todo, a superfície de uma mesa, uma bola ou um carro de corrida. Ressalta ainda que é por meio da conexão entre fala e gesto que se obtém significado e que mesmo sendo a linguagem do gesto baseada em imagens visuais e miméticas e a fala em uma estrutura gramatical e códigos de palavras, ambos os espaços formam um sistema único e integrado. Este propõe ainda uma classificação dos gestos de acordo com suas diferenças semióticas, propriedades linguísticas, convenção e relação com a fala, sendo os principais exemplificados a seguir:

  • Gesticulação: a pessoa ao dizer que pegou uma árvore, move a mão a frente e acima em forma de “c” como uma preparação para então “agarrar” sua árvore imaginária. Neste exemplo, fica claro o quanto gesto e fala podem ter informações semelhantes sobre a mesma cena, porém, cada um pode incluir algo que o outro deixa para trás.

  • Pantomima: a pessoa estaria girando um dedo em círculo logo após alguém perguntar “o que é um vórtice?”;

  • Emblemático: o gesto OK culturalmente conhecido para expressar aprovação feito com os dedos fechados e polegar acima estendido;

  • Os da língua de sinais, por exemplo, o sinal de árvore feito com antebraço estendido acima enquanto os 5 dedos flexionados giram para frente e para trás; o outro braço é estendido horizontalmente e abaixo do outro braço.

  • Os de apontar, conhecidos também como dêiticos, são geralmente produzidos com o dedo indicador estendido ou todos os dedos da mão estendidos, são utilizados muitas vezes para substituir a fala ao referenciar algo.

De fato, quando as pessoas falam, usam gestos a todo momento, seja para enfatizar palavras específicas, frases ou referenciar com o movimento das mãos tamanho, forma, direção, distância77. Iverson J, Goldin-Meadow S. Gestures paves the way for language development. Psychol Sci. 2005;16(05):367-71.. Além do mais, estes podem conter informações que não se encontram explícitas na fala, podendo substituir a palavra falada ou acontecer concomitantemente à mesma88. Kendon A. Gestures as illocutionary and discourse structure markers in southern Italian conversation. J Pragmat. 1995;23(3):247-79..

Verifica-se que o estudo do gesto é fundamental no entendimento da linguagem e da comunicação do homem e que assim como a linguagem oral, é um comportamento único do ser humano que na sua complexidade nos difere de outros animais. Os gestos desempenham um papel importante na comunicação, em vista de sua relativa transparência na relação forma e função. Ainda assim, segundo o autor, a maioria dos gestos são produzidos somente na presença do outro, em situações significativas de interação face a face envolvendo contato visual.

Sob uma outra ótica, Capone e McGregor99. Capone NC, Mcgregor KK. Gesture development: a review for clinical and research practices. J Speech Lang Hear Res. 2004;47(1):173-86. salientam que a sincronia gesto-fala-linguagem ocorre pelo fato destes sistemas serem integrados neurologicamente, sendo que a ativação de uma determinada região cerebral pode influenciar a outra e vice-versa. Esta correlação mão e boca é observada desde o nascimento, por exemplo, quando se pressiona a mão do bebê e este tende a abrir a boca ou, quando o bebê realiza movimentos rítmicos com as mãos e o número de suas vocalizações tende a aumentar. De acordo com as mesmas autoras, o estudo do gesto pode contribuir na compreensão do desenvolvimento de linguagem de crianças com ou sem patologia, visto que, gesto e linguagem se desenvolvem paralelamente e compartilham habilidades simbólicas similares contribuindo, assim, na avaliação, diagnóstico e na intervenção terapêutica.

As pesquisas científicas mais recentes continuam a dar a devida relevância ao tema. Yu e Smith1010. Yu C, Smith LB. Multiple sensory-motor pathways lead to coordinated visual attention. Cogn Sci. 2016;1(21):5-31. revelaram evidências de como adultos e crianças estão altamente atentos às ações das mãos. Para os autores, algumas pessoas acreditam que manter uma conversa ou resolver um problema em conjunto, seja algo muito simples e natural, no entanto, estas interações são marcadas por ajustes imperceptíveis que acontecem em frações de segundos, tais como, a direção do olhar e das mãos. No entanto, a direção do olhar pode ser espacialmente menos precisa do que o contato da mão com um objeto. Sendo assim, tanto bebês utilizam as mãos para selecionar objetos visuais, como os pais utilizam as ações manuais dos bebês para interpretar e dar significado.

Neste sentido, destaca-se Goldin-Meadow e Alibabi1111. Goldin-Meadow SG, Alibali MW. Gesture's role in speaking, learning, and creating language. Annual Rev Psychol. 2013;64(1):257-83. quando referem em suas pesquisas, que os gestos mesmo passando muitas vezes desapercebidos, estão na verdade ajudando a produzir fala.

Guedes1212. Guedes ZCF. A Linguagem por meio dos gestos. In: Kyrillos LV (ed). Expressividade: da Teoria à Prática. Revinter, Rio de Janeiro; 2005. p. 75-89. acrescenta ainda que o gesto é usado muitas vezes quando se requer processos cognitivos mais complexos, podendo também antecipar a expressão da palavra. E as pesquisas de Rauscher1313. Rauscher FH, Krauss RM, Chen Y. Gesture, speech, and lexical access: the role of lexical movements in speech production. Psychol Sci. 1996;7(4):226-31. demonstram que quando se proíbe a utilização de gestos, as pessoas se tornam mais disfluentes.

Os resultados das pesquisas de Cook e Goldin-Meadow1414. Cook SW, Goldin-Meadow S. The role of gesture in learning: do children use their hands to change their minds? Cogn Develop. 2006;7(2):211-32. revelam que as crianças se beneficiam muito mais de instruções quando estas incluem gestos e que os gestos usados concomitantemente à linguagem falada, facilitam o aprendizado. Neste sentido, destaca-se também Iverson e Goldin-Meadow77. Iverson J, Goldin-Meadow S. Gestures paves the way for language development. Psychol Sci. 2005;16(05):367-71. quando salientam que muitos significados que se prestam a representação visual-espacial podem ser mais fáceis de serem expressados pelo gesto do que pela fala. Estes se referem a duas categorias principais de gestos, os dêiticos e os convencionais. As crianças produzem 3 tipos de gestos dêiticos: mostrar, segurar um determinado objeto à vista do outro e apontar estendendo o dedo indicador ou estendendo a mão em direção a um referente. Os convencionais são aqueles que possuem forma e significados definidos culturalmente, como balançar a cabeça para dizer sim. Podem também ser gestos específicos estabelecidos na díade em um contexto particular como, por exemplo, ao passar a mão na cabeça em uma situação específica de interação para dizer “lindo”.

Ainda no contexto clínico, como no caso de pacientes afásicos, Fedosse1515. Fedosse E. Da relação linguagem e praxia: estudo neurolinguístico de um caso de afasia [dissertação]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem; 2000. considera que os gestos podem muitas vezes substituir ou acompanhar a expressão verbal. Além disso, podem também se manifestar de forma desorganizada como se houvesse também uma desorganização sintática do gesto; outras vezes pode ocorrer ainda do gesto não mais realizar-se. Para Code e Gaunt1616. Code C, Gaunt C. Treating severe speech and limb apraxia in a case of aphasia. Int J Lang Comm Dis. 1986;21(1):11-20., o gesto pode ser utilizado como uma alternativa à fala, aliviando a pressão naqueles que apresentam comprometimento nessa área, como nos casos de afasia e apraxia. Coudry1717. Coudry MIH. Língua, discurso e lógica da linguagem patológica. Cadernos da FFC. 1977;6(2):99-129. fala sobre a correlação existente entre o uso maior do gesto e a severidade da patologia de fala, servindo como um instrumento importante para que o paciente possa significar o que deseja.

Além do caráter simbólico e da importância dos gestos na comunicação, Capone e Mcgregor99. Capone NC, Mcgregor KK. Gesture development: a review for clinical and research practices. J Speech Lang Hear Res. 2004;47(1):173-86. destacam que os mesmos podem ser utilizados também como compensação ou transição para o desenvolvimento de fala. Além do mais, na clínica fonoaudiológica podem representar fontes valiosas de diagnóstico e prognóstico, na seleção de objetivos e, na intervenção de crianças com dificuldades de linguagem.

No contexto de atendimento a pessoas com Autismo, verifica-se que em vista da alta incidência no diagnóstico dentro do espectro, questionários de triagem vêm sendo utilizados por médicos e profissionais da saúde como um método para identificação precoce de crianças com autismo. O M-CHAT (Checklist for Autism in Toddlers) é um destes instrumentos que foi traduzido para o português1818. Losápio MF, Pondé MP. Tradução para o Português da Escala M-CHAT para Rastreamento Precoce de Autismo. Rev Psiquiat. 2008;30(3):221-9., sendo atualmente utilizado com relevância no Brasil. Salienta-se aqui que este checklist é composto por 13% de questões referentes aos gestos de apontar (dêiticos).

O trabalho similar proposto por Muratori1919. Muratori F. O Diagnóstico precoce no Autismo: guia prático para pediatras. Núcleo Interdisciplinar de Intervenção Precoce da Bahia, Salvador; 2014. na Itália, explora por meio de questionamentos para pediatras, as possibilidades de uma criança desenvolver um distúrbio autístico no seu primeiro ano de vida. Destes questionamentos, 23% tem referência ao gesto, indicando que este pode ser um importante aspecto a ser observado também na clínica fonoaudiológica, tanto na avaliação, como no diagnóstico precoce de crianças que apresentem risco para o espectro autista. Ainda de acordo com o autor supracitado, a intencionalidade compartilhada, atributo tipicamente humano é muito frágil nas crianças com autismo, sendo que o gesto de indicar ou apontar são a máxima expressão, seja da motivação declarativa, seja do intuito de compartilhar experiências. A ausência deste apontar protodeclarativo no segundo ano de vida é considerado um dos mais importantes sinais de autismo.

Além do gesto ser considerado uma das primeiras manifestações com intenção comunicativa que a criança apresenta e considerado também um importante método para avaliação, prognóstico e, intervenção, verifica-se que são poucas as pesquisas científicas brasileiras que tentam compreender o seu papel específico na clínica fonoaudiológica.

Deste modo, destaca-se também as possibilidades do uso do gesto como técnica complementar no atendimento fonoaudiológico, de onde deriva o objetivo principal desta pesquisa: investigar o gesto na clínica fonoaudiológica à luz da análise discursiva materialista. Contribuindo assim para a ampliação das possibilidades terapêuticas do fonoaudiólogo, bem como, para a reflexão de práticas que tem o gesto no centro da cena.

Breve Relato Histórico

De modo geral, nos últimos anos, o estudo do gesto tem evidenciado um afastamento significativo daquele da tradição Romana, no qual era visto apenas como um embelezador das performances retóricas dos oradores da época. As primeiras mudanças desta perspectiva se iniciaram com o advento da tecnologia, que possibilitou a gravação de vídeos e imagens em momentos de conversação e em outras modalidades de discurso55. McNeill D. Language and Gesture. UK: Cambridge University Press; 2000.. Ainda de acordo com o mesmo autor, a segunda mudança ocorreu por volta dos anos 70 e prevalece até hoje, no qual diz respeito a uma visão do gesto como parte integrada ao processo da linguagem e seu uso. Desde então, verifica-se que diversos campos de estudo, tem como foco abordagens e objetivos diferenciados como, por exemplo, a transição do gesto desde a sua forma de gesticulação até a mais codificada de sinal.

No caso da Fonoaudiologia, a utilização de gestos em sua forma mais codificada, como é o caso dos sinais da LIBRAS, tem uma importante marca histórica na sua prática clínica com os surdos. Em relação a língua de sinais, foi somente na década de 60 que esta começou a ser estudada e analisada, pois, até então, somente a língua oral passível de ser compreendida pela audição, possuía status linguístico2020. Barbosa MA, Oliveira MA, Siqueira KM, Damas KCA, Prado MA. Linguagem Brasileira de Sinais: um desafio para a assistência de enfermagem. Rev Enferm UERJ. 2003;7(3):247-51.. Historicamente durante muito tempo, houve uma polêmica discussão a respeito de qual modalidade de linguagem deveria ser utilizada na educação dos surdos, principalmente, se oralista ou visual. Em 1980, no II Congresso Internacional de Educação dos Surdos na Itália, oralistas votaram contra a utilização da língua de sinais nas escolas, sendo que tal perspectiva influenciou muitos países na época2121. Sheetz NA. Orientation to deafness (2 ed). Allyn and Bacon, Needham Heights, Massachusetts; 2001..

Foi somente a partir de 1990, que a abordagem bilíngue começou a ser discutida no Brasil2222. Guarinello AC, Massi G, Berberian AP, Tonocchi R, Lustosa SS. Speech language therapy bilingual clinic, a written language therapeutical proposal to deaf people: case report. CoDAS. 2015;27(5):498-504.. Tal abordagem rompeu com o modelo clínico fonoaudiológico que enfatizava somente o trabalho articulatório e auditivo, para um trabalho que privilegiasse também os recursos visuais e a dialética, convocando este profissional para que dentro de sua prática clínica compreendesse a singularidade constitutiva dos surdos.

Abordagens Terapêuticas

O uso de gestos, língua de sinais, expressões faciais, pranchas de alfabeto ou símbolos pictográficos e até o uso de sistemas mais sofisticados como comunicadores de voz gravada ou sintetizada e computadores, são considerados formas de Comunicação Alternativa e Ampliada2323. Pelosi MB. Proposta de implementação da comunicação alternativa e ampliada nos hospitais do município do Rio de Janeiro. Temas Desenvol. 2005;14(80-81):47-53.. Muitas pessoas com paralisia cerebral, deficiência mental, deficiência auditiva, autistas ou com deficiências múltiplas vão precisar de uma forma alternativa de comunicação, em vista de suas dificuldades de fala e ou escrita2424. Pelosi MBA. Comunicação alternativa escrita. In: Nunes LROP (ed). Favorecendo o desenvolvimento da comunicação em crianças e jovens com necessidades educacionais especiais. Dunya, Rio de Janeiro, RJ; 2003. p. 203-16..

Ao longo dos anos, observou-se o desenvolvimento de muitos programas com propósitos e raízes diferenciadas, mas para Scheetz2121. Sheetz NA. Orientation to deafness (2 ed). Allyn and Bacon, Needham Heights, Massachusetts; 2001., acredita-se que a maioria traz em sua base a intenção de tornar a linguagem falada acessível ao surdo. De acordo com o autor, é interessante notar que a língua de sinais é um sistema de língua completo, com sua própria estrutura sintática e vocabulário. É uma língua viso-gestual que pode se desenvolver naturalmente em comunidades surdas.

Deste modo, acredita-se que, aos poucos, muitas abordagens foram sendo utilizadas com pessoas que por algum motivo também apresentavam dificuldades de fala. Acredita-se que a vasta produção científica na área em outros países, bem como, a proximidade de diversos profissionais, cada vez mais envolvidos no atendimento e no processo de inclusão de pessoas com alguma deficiência, possa ter influenciado o desenvolvimento, tanto de práticas educacionais, quanto fonoaudiológicas que tem o gesto como ponte para a interação, para o desenvolvimento de fala e aprendizado destes sujeitos. Algumas estratégias que tem o gesto manual como abordagem terapêutica são: Cued Speech2525. Leybart J, Lasasso CJ. Cued speech for enhancing speech perception and first language development of children with cochlear implants. Trends Hear. 2010;2(14):96-112.; Cued Articulation2626. Passy J. A Handful of sounds: cued articulation in practice. Acer Press, Camberwell, Victoria; 2003.; Makaton2727. Sheeny K, Duffy H. Attitudes to Makaton in the Ages on integration and inclusion. Int J Spec Educ. 2009;24(02): 91-102.; Baby Signing2828. Seal B. About Baby Signing. The ASHA Leader [serial on the internet]. 2010 Nov. Available from: http://leader.pubs.asha.org/article.aspx?articleid=2291803
http://leader.pubs.asha.org/article.aspx...
; Prompting Gestual2929. Tabak J. Significant gestures: a history of American sign language. Westport, Praeger; 2006.; Tadoma3030. Asp CW. Verbotonal Speech Treatment. Plural Publishing, San Diego, CA; 2006.; SUVAG3131. Mattos PLCL. A entrevista não-estruturada como forma de conversação: razões e sugestões para sua análise. RAP. 2005;39(4):823-47.; e outros.

Portanto, o presente estudo pretende investigar o comparecimento do gesto na clínica fonoaudiológica por meio da análise do discurso do fonoaudiólogo.

Métodos

A presente pesquisa foi realizada com base nos princípios éticos que define as normas regulamentadoras e as diretrizes de pesquisas que envolvem seres humanos sob o número 67864217.0.0000.5482, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, (05014-901). Trata-se uma pesquisa aplicada de natureza exploratória, do tipo qualitativa.

Amostra

Participaram da pesquisa 12 fonoaudiólogos de formação acadêmica e especializações diversas que estavam de acordo com os termos de participação da presente pesquisa e que trabalham na terapêutica das principais áreas de atuação da Fonoaudiologia a que o gesto possa estar associado, a linguagem oral e escrita, voz e reabilitação auditiva. Visando obter o máximo de informações possíveis, foram excluídos da participação da pesquisa, profissionais que estão fora da área terapêutica, tais como, aqueles cuja prática se restringe a realização de exames de audição ou a docência.

Local

A coleta de dados foi realizada em local estabelecido por conveniência dos entrevistados, em datas e horários pré-estabelecidos. Todas as entrevistas foram conduzidas por apenas um pesquisador e foram realizadas de outubro de 2016 a abril de 2017.

Procedimento

As entrevistas foram gravadas em áudio e vídeo. Os dados foram coletados e transcritos para, então, poder acessar a materialidade que constitui o discurso dos sujeitos.

A entrevista tinha como objetivo que as terapeutas falassem livremente sobre o assunto. Para tal, a entrevistadora procurou iniciar a entrevista com questionamentos acerca do que as mesmas pensavam sobre gesto e como este aparecia em sua prática clínica. A entrevista de forma semi-estruturada visava, então, dar liberdade na exploração do assunto pelas terapeutas, deste modo, os questionamentos da entrevistadora variaram e procuravam se articular ao discurso das mesmas, conforme o direcionamento de Mattos3232. Orlandi EP. Análise de discurso: princípios e procedimentos (2 ed). Pontes, Campinas, São Paulo. 2000.. Ainda de acordo com o autor, algumas questões foram formuladas com vistas a obter melhor clareza e aprofundamento das informações, bem como, para direcionar a entrevista para o tema proposto quando necessário.

Análise Discursiva

Os dados foram analisados a partir do dispositivo conhecido por Análise de Discurso Materialista que se baseia no entremeio de três campos novos de saber, quais sejam, a linguística, a psicanálise e o materialismo histórico. A metodologia propõe uma análise dos gestos de interpretação, além daquela concentrada apenas no código linguístico, considerando a influência do sócio-histórico no processo de constituição e compreensão do discurso.

Não se trata nesta análise em procurar a exaustividade dos dados como a maioria das pesquisas propõe, o que Orlandi3333. Orlandi EP. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro; 1996. sugere é a verticalidade da análise, visto que, os discursos não são fechados, estão sempre em movimento pelo processo discursivo. O que define a forma do dispositivo analítico de acordo com a autora, é a pergunta do pesquisador, que opta pela mobilização de diferentes conceitos, além da natureza do material e da finalidade de sua análise. Esta análise prevê 3 etapas distintas que acontecem na passagem do texto ao discurso, quais sejam: da superfície linguística para o objeto discursivo e deste para o processo discursivo:1º Momento= Superfície Linguística (Texto); 2º Momento=Objeto Discursivo (Formação Discursiva); 3º Momento=Processo Discursivo (Formação Ideológica).

Sendo assim, no primeiro movimento de análise, toma-se o material linguístico como tal, ou seja, o corpus ou os textos que se pretende analisar. No segundo momento, atravessa-se a superfície deste material e as formações discursivas que dominam o texto já começam a ser percebidas. No terceiro momento, chamado processo discursivo, o analista procura observar a relação de seu objeto discursivo com as formações ideológicas3434. Pecheux M. Language, semantics and ideology. St. Martins Press, New York; 1982..

O objeto discursivo construído deve dar conta de explicar as impressões que o sujeito tem de seu próprio dizer. Essa ilusão de autonomia é conhecida por Pêcheux3535. Brandão HKN. Introdução à análise do discurso (2 ed). Editora da Unicamp, Campinas, São Paulo; 2004. como esquecimento número 2, isto é, o esquecimento do sujeito ao selecionar em seu processo de enunciação entre o dito e o não dito, mesmo que desconheça a interligação existente entre ambos; já o esquecimento número 1, é o que o autor chama de analogia de repressão inconsciente e que se explica pelo fato de o sujeito não estar acessível a uma formação discursiva que já o domina.

Na segunda etapa, torna-se essencial o trabalho nos limites dos movimentos de deslize dos eixos de significação entre a tensão da repetição e da diferença, da paráfrase e da polissemia3333. Orlandi EP. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro; 1996.. A paráfrase se torna um espaço de fechamento de fronteiras, onde os enunciados são retomados e reformulados, enquanto a polissemia é o oposto, o rompimento destas barreiras à medida que se instala a pluralidade de sentidos3636. Lagazzi S. O Desafio de dizer não. Pontes, Campinas, São Paulo; 1988..

De acordo com Orlandi3434. Pecheux M. Language, semantics and ideology. St. Martins Press, New York; 1982., para dizer todo sujeito recorre a um certo arquivo de memória que aparece negada como se o sentido já estivesse lá. Sendo assim, o funcionamento de um discurso e sua relação com o sujeito e ideologia podem ser compreendidos também pelos efeitos da memória histórica (interdiscurso) e da memória metálica (informatização de arquivos, o que se acumula) e que ao se estruturar pelo esquecimento, produz um efeito de controle e de ilusão de autoria.

Uma das mais importantes contribuições de Pêcheux, segundo Brandão3636. Lagazzi S. O Desafio de dizer não. Pontes, Campinas, São Paulo; 1988. e acrescento sua relevância também para a Fonoaudiologia, encontra-se no fato de permitir olhar os protagonistas do discurso, não mais como presença física de organismos humanos individuais e sim, enquanto representação de lugares determinados na estrutura de classes da nossa formação social. Deste modo, há que se considerar como procedimento de análise do processo discursivo, as marcas das imagens que os sujeitos fazem de si próprios e do outro frente às diferentes posições que ocupam em um determinado grupo social.

Esse lugar de representação social é o que se chama de relação de força. Já a antecipação, diz respeito a estratégia de colocar-se no lugar do outro com o objetivo de prever o seu dizer, possibilitando também o “controle” das respostas3333. Orlandi EP. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro; 1996.. A mesma autora relata que as palavras estão sempre acompanhadas de silêncios e pelo fato da sociedade de classes envolver relações de poder, há então, o julgamento do que é aceitável dizer e do que não é, ou do que pode e do que não pode ser dito, produzindo uma certa forma de censura. Tais sentidos ora produzidos, ora silenciados também devem ser levados em conta pelo analista durante sua análise.

Em suma, Lagazzi3737. Pereira LTK, Godoy DMA, Terçariol D. Estudo de caso como procedimento de pesquisa científica: reflexão a partir da clínica fonoaudiológica. Psicol Reflex Criti. 2009;22(3):422-9. esclarece que todo esse processo envolvendo a desintagmatização discursiva, a determinação histórica dos efeitos de sentidos, e sua relação com as diferentes formações ideológicas não é um processo estanque, visto que, estas formações também já são tocadas no primeiro momento de análise. No entanto, são estas formações ideológicas que se interligam por uma relação própria e complexa com as formações sociais, o chamado materialismo histórico.

Resultados

FONO do grego “phone” significa voz, som; AUDIO do latim ouvir; LOGIA radical grego significa estudo, ciência. A língua em seu autoritarismo vem ao encontro do objetivo inicial da presente pesquisa, qual seja, o questionamento do gesto na clínica fonoaudiológica que nos remeteu ao estatuto da fala por meio da análise de discurso do profissional fonoaudiólogo. A língua na etimologia do significante “fono” de Fono-Audio-Logia parece nos obrigar a identificarmo-nos como os estudiosos da articulação dos sons da fala. Ainda assim, especialmente no Brasil, este significante se encontra relacionado ao prefixo “audio”, evidenciando uma relação de implicação entre estes dois termos.

Mesmo sabendo que o significado etimológico das palavras não representa a totalidade de sentidos, tal efeito se apresentou neste caso relacionado aos resultados da presente pesquisa. A língua em seu autoritarismo, no caso a Fono-audio-logia, silencia outros sentidos, silencia a linguagem. Mesmo que a fragmentação seja base de todo estudo científico, há consequências quando este reducionismo não é posto em relação ao todo, revelando assim, o efeito da ideologia na ciência.

A articulação da Linguística, da Psicanálise e do Materialismo Histórico permitiu o aumento das lentes do olhar fonoaudiológico, onde o ajuste focal foi direcionado ao gesto enquanto efeito de sentidos nas relações entre terapeuta e paciente, bem como, nas abordagens terapêuticas da clínica fonoaudiológica.

Verificou-se um ponto de ancoragem no discurso fonoaudiológico sustentado por uma visão fragmentada dos sujeitos, assim como a incisão nas práticas da Medicina, ciência esta que serviu historicamente como alicerce na construção do saber e do fazer fonoaudiológicos. A crença ideológica de divisão de trabalho da sociedade, onde uma certa classe mais poderosa se submete à outra sob a forma de hierarquia e de dependência, também é evidenciada ao ter o gesto como objeto de discurso: “mas o nosso, a nossa forma maior da comunicação é a oralidade, então, o que a gente mais tem é a oralidade, é o privilégio da oralidade em detrimento das outras formas de comunicação(trecho da entrevista de S1); “Claro que, como profissional da linguagem oral...é claro que eu não permito só o gesto” (trecho da entrevista de S2); “porque se não você vai dizer:_Ah! Dá pra se comunicar só por gestos...” (trecho da entrevista de S3); “eu trabalho pra reabilitação oral” (trecho da entrevista de S4); “agora que você veio com essas perguntas que a gente vê...que a comunicação não é só fala” (trecho da entrevista de S5).

Tal ideologia expõe a tensão e as consequências dessa divisão hierárquica, onde a separação da sociedade, dos sujeitos e dos corpos se materializa também na separação da linguagem. O fio do discurso no presente trabalho parece ser constituído a partir da fala como ponto de retorno e sustentação do discurso. Há, então, um ponto de ancoragem no reducionismo da fala?

A AD, enquanto método e teoria, permitiu observar neste trabalho “como” os movimentos de sentidos são produzidos e “quais” sentidos são evidenciados. Para Orlandi3333. Orlandi EP. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro; 1996., a AD concebe o texto em sua discursividade semântica e o questiona a saber “como” este significa e não “o quê”. O discurso das terapeutas sob a forma de interrogação, revelou inicialmente um estranhamento e dúvida ao terem como objeto de reflexão o gesto: “Gesto? Como assim?...Nunca tinha pensado nisso?” (trecho da entrevista de S5); Acho que tem aí um certo sentido né? Não dá pra dizer que ele é oco né?” (trecho da entrevista de S3). As negativas também evidenciaram esse estranhamento: “eu não penso muito nisso quando eu tô na minha prática clínica...pena que não me vem muitos exemplos na cabeça” (trecho da entrevista de S6);Não sei, acho que ele aparece muito nessa conversa...Eu nunca pensei tanto nisso na verdade. Eu nunca pensei tanto no meu gesto em si” (trecho da entrevista de S7); “eu não deixo ele se comunicar comigo através de gestos(trecho da entrevista de S2).

O estranhamento e dúvida revelados pelas fonoaudiólogas expõem novamente a ideologia dominante, que pelo silenciamento apaga o gesto da clínica fonoaudiológica, excluindo este objeto de seu campo de saber. Segundo Orlandi3333. Orlandi EP. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro; 1996., para dizer, é preciso não-dizer e neste caso, o motivo de nunca se pensar em algo, no caso o gesto, fica subentendido e deve ser compreendido pelo contexto. Deste modo, verificou-se que o questionamento acerca do gesto esteve também colado aos significantes “surdo” e “LIBRAS”, remetendo de forma implícita à historicidade deste discurso. Assim temos: “eu não, eu não faço uso de LIBRAS (trecho da entrevista de S4); “Gesto ou sinal? (trecho da entrevista de S3); “talvez se eu trabalhasse com o deficiente auditivo, é, os gestos apareceriam” (trecho da entrevista de S2); “Veio (paciente surda), colocou, mas não quer que ninguém no mundo saiba” (trecho da entrevista de S5) e, outros.

A importância do entendimento da noção de esquecimento ideológico, evidencia em seu silenciamento a ilusão dos sujeitos como donos de seu dizer, quando na realidade, a língua e a história é que estão determinando os sentidos produzidos3333. Orlandi EP. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro; 1996.. Por sua história, a fonoaudiologia passou muito tempo focada apenas nos aspectos articulatórios de correção de fala, especialmente no trabalho com a comunidade surda. Recentemente é que se permitiu o questionamento de sua atuação, assumindo um fazer terapêutico contemplando também o uso de sinais e gestos, conforme relata Pereira3838. Aarão PC, Pereira FCB. Histórico da Fonoaudiologia: relato de alguns estados brasileiros. Rev Med. 2011;21(2):238-44..

No recorte “foi até meio que um jeito natural de eu começar a ter um jeito de trabalhar” (trecho da entrevista de S6), apresenta sentidos semelhantes ao discurso de outra terapeuta advindos em sua referência ao discurso dos professores: “eu acho que elas viam como natural, nada que merecesse uma atenção especial né? De repente era natural da criança, de repente não precisava ser interpretado, não precisava ser estimulado né?” (trecho da entrevista de S8). Partindo novamente da noção de historicidade, evidencia-se os efeitos do discurso pedagógico também como uma marca histórica do discurso fonoaudiológico. Este profissional se encontra ainda, em alguns momentos, arraigado às estruturas pedagógicas do qual originou o ser fonoaudiólogo, cujo foco era a higienização e a correção da fala na busca incessante por um ideal de normalidade. Este projeto de higiene e de sociedade classista foi transformado em medidas de controle e autoritarismo, onde o papel do fonoaudiólogo resumia-se à detecção de desvios da norma, determinando o patológico e o normal3939. Pecheux M. Análise automática do discurso. In: Gadet F, Hak T (eds). Por uma análise automática do discurso: uma introdução a obra de Michel Pecheux. UNICAMP, Campinas, SP; 1993. p. 319.. O profissional da linguagem, fala novamente de um lugar pedagógico, onde sua posição social, histórica e ideológica é determinada pela sua história, impedindo-o de ser considerado a origem absoluta de seu discurso3737. Pereira LTK, Godoy DMA, Terçariol D. Estudo de caso como procedimento de pesquisa científica: reflexão a partir da clínica fonoaudiológica. Psicol Reflex Criti. 2009;22(3):422-9..

Verificou-se dentro deste contexto que o narcisismo ideológico tenta impedir que este profissional entre em contato com o real da clínica quando a fala falta, acarretando em uma noção de dívida e cobrança no inconsciente das terapeutas e que na elaboração de seu discurso, retornam novamente ao estatuto hierárquico da fala, resistindo e falando sobre si mesmas pela voz dos outros: “porque a gente tem uma cultura assim:_ Ah, a criança tem que falar, ele tem preguiça de falar, vamos forçar a falar, né?...O fonoaudiólogo trabalha com a comunicação e não necessariamente a fala...eles querem a fala, o objetivo final é este e existe uma cobrança muito forte” (trecho da entrevista de S8); “e depois até da realização que é o que a gente tem como prognóstico, que é o que a fonoaudiologia, a família traz como demanda né..._Ah quando é que ele vai falar?” (trecho da entrevista de S9).

Voltando a pergunta inicial: “Ficamos ancorados na correção dos sons da fala?”. O presente trabalho evidencia que não, que este profissional também resiste pelo poder de dizer não, a hierarquia ideológica e histórica existente.

Verificou-se assim, um processo em transformação, onde propor a reflexão sobre gesto possibilitou também abrir espaço para que os próprios fonoaudiólogos ouçam a si mesmos e encontrem seu lugar de dizer, resistindo a ideologia e ampliando o seu campo de visão: “priorizamos nessa qualificação é...a...o resgate de eles verem a criança como um todo...com a minha experiência eu vi o quanto que nós temos que ver o indivíduo como um todo, né? Não só em pedaços, não só na nossa área, o quanto que envolve esse indivíduo de família, de mundo, de sociedade, de cultura, de regionalismo, de tudo” (trecho da entrevista de S10); “as interações sociais são determinantes pra gente poder estabelecer naquela cultura, naquele momento, o que é simbolicamente importante ou não né...até mesmo num contexto micro ou no contexto macro né” (trecho da entrevista de S9); “a gente precisa considerar essa comunicação e se a gente ficar exigindo só a fala ele acaba desmotivando” (trecho da entrevista de S8).

A expressão “falar com a mão” usada por muitas terapeutas: “eu sem mão, eu não falo” (trecho da entrevista de S11); “eu falo com a mão o tempo todo...até pra falar no telefone” (trecho da entrevista de S5); “acho que até tem a ver com a maioria das fonos, parece que a gente fala um pouco com as mãos né” (trecho da entrevista de S12) evidencia pelo fato da língua, a abertura de outros sentidos ao significante “fala”. Deste modo, não se trata de modificar o significante “Fonoaudiologia”, pois, neste caso, o “falar com a mão” constata o real, a multiplicidade de formas que os sujeitos dispõem para produzirem sentidos, conforme refere Orlandi3434. Pecheux M. Language, semantics and ideology. St. Martins Press, New York; 1982.. Além do mais, revela que o deslizamento de sentidos deste significante vem se afastando da noção de fonação e articulação dos sons, para aquilo que afeta o outro pelos seus efeitos de sentidos. Deste modo, observa-se a transformação que a AD nos revela, visto que, o que era então feito de forma inconsciente “eu não penso muito nisso quando eu tô na minha prática clínica” (trecho da entrevista de S6); “a gente acaba fazendo isso de forma inconsciente por causa da nossa formação(trecho da entrevista de S5) parece estar sendo questionado, deslocando crenças sedimentadas e promovendo efeitos de sentidos diferenciados.

A metodologia da Análise de Discurso revela também um discurso que questiona a ideologia e o autoritarismo da língua que define a identidade do ser Fono-audió-logo, possibilitando a ressignificação do mesmo e do objeto discursivo em questão: “não, nunca tinha pensado mesmo, né, agora que você veio com essas perguntas é que a gente vê o quanto que isso faz parte do contexto clínico nosso mesmo né, que a comunicação a gente sabe não é só a fala, é um todo” (trecho da entrevista de S5); “eu tô muito curiosa, obrigada por isso, porque acho que a gente, não é uma contribuição, acho que é um aprendizado, então eu vou sair daqui, eu já vou em casa começar a pesquisar e a entender e quero depois ler o seu trabalho. Aí por favor mande pra mim que eu quero estudar e saber né(trecho da entrevista de S9).

A transformação passa, então, para uma visão macro que questiona a fragmentação e visa reconstruir os pedaços dos sujeitos e também da Fonoaudiologia, possibilitando novos sentidos a este significante.

Discussão

O recrutamento do gesto como objeto de discurso do fonoaudiólogo aparece nesta pesquisa como a contestação de um furo narcísico da clínica fonoaudiológica. Um furo que resiste em ser olhado, mas que eventualmente retorna como um sintoma, abalando estruturas sedimentadas pela história, pela ideologia e pelo positivismo da ciência.

Ampliar o foco de visão para olhar o gesto, implicou em revelar o fio condutor do discurso do fonoaudiólogo na trama de sentidos construídos ao longo de sua história e que por uma questão ideológica e hierárquica, insiste a todo momento no retorno à fala para a elaboração de seu dizer. Isto não quer dizer que o contraditório não seja questionado. O presente estudo evidencia que há um processo em transformação no discurso acerca do gesto, possibilitando a reconstrução do que fora fragmentado e abrindo espaços para a mobilização de sentidos antes cristalizados, tais como, a própria noção de fala e consequentemente a identificação do ser fonoaudiólogo.

A utilização de abordagens terapêuticas descritas na literatura, tais como, o método SUVAG e o Prompting Gestual foram confirmadas como parte da práxis deste profissional. A utilização de gestos como manejo também fora revelada de forma singular a cada terapeuta nas áreas de fala, voz, escrita e reabilitação auditiva, o que implica em dizer que muitas das abordagens terapêuticas têm sido construídas no dia-a-dia como necessidade de ação deste profissional.

Fica evidente no presente trabalho que um juízo de valor é atribuído ao gesto, principalmente, para as terapeutas que trabalham com sujeitos em que a fala falta. Isto quer dizer que o gesto é utilizado como ferramenta importante para aqueles sujeitos que não apresentam a oralidade.

Além do mais, analisar o discurso pelo efeito de sentidos dos gestos e da teoria metodológica materialista, possibilitou também trazer à luz a ligação dos mesmos no curso das palavras, indicando que esta análise é sim possível. Assim, os elementos não verbais também fazem parte das condições de produção de um discurso, revelando que há a necessidade de uma teoria do gesto como ato simbólico da teoria do significante que contribuiria muito para a resolução de muitos problemas na área. Deste modo, além de contribuir para a clínica fonoaudiológica e para a reflexão acerca do objeto de ciência da Fonoaudiologia, este trabalho instiga e propõe à AD, ir além do que é posto somente por palavras no discurso, aceitando o risco de não o reduzir somente à língua, e sim à linguagem pelo curso de movimentos do que não é verbalizado4040. Courtine JJ. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. EdUFSar, São Carlos, SP; 2014..

Para finalizar, vale destacar que o gesto na clínica fonoaudiológica, apesar de pouco referido no contexto científico, evidencia a importância de por em alerta todos os sentidos do fonoaudiólogo, não somente a escuta das palavras, como também o olhar e todos os sentidos possíveis, a fim de se poder ler o outro em todas as sutilezas de seu ser. Além do mais, torna-se de extrema importância que o discurso e a análise deste valioso cursor de sentidos, seja melhor incluído nos saberes deste profissional.

Conclusão

Pesquisar o gesto na clínica fonoaudiológica sob o olhar da análise discursiva materialista possibilitou dar visibilidade a influência da história, da ideologia na ciência e das relações sociais na materialidade da língua do discurso do fonoaudiólogo. A presente pesquisa possibilitou abalar as estruturas do que se encontra sedimentado pela ameaça de crenças, trazendo à luz o gesto para possivelmente inclui-lo cada vez mais à clínica fonoaudiológica enquanto importante objeto de pesquisa, instrumento de avaliação, diagnóstico e prática terapêutica.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2020
  • Aceito
    01 Set 2020
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