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Contribuições da neuroimagem no estudo da voz cantada: revisão sistemática

RESUMO

Admite-se que o canto seja uma atividade de alta complexidade pois requer ativação e interconexão de áreas sensório-motoras. Esta pesquisa teve como objetivo apresentar as evidências originadas por estudos de neuroimagem sobre a atuação do sistema motor e sensitivo na produção do canto. Na construção da revisão sistemática, foram premissas o período de publicação entre 1990 e 2016, artigos publicados em periódicos indexados e constantes nas bases de dados PubMed, BIREME, Lilacs, Web of Science, Scopus ou EBSCO, referentes a estudos sobre características do canto humano analisadas por neuroimagem. Os nove artigos analisados, com emprego de magnetoencefalografia, imagem por ressonância magnética funcional, tomografia por emissão de pósitrons ou eletrocorticografia, possibilitaram comprovar existência de uma rede neuronal interligada entre a modalidade falada e cantada para identificação, modulação e correção de violações de pitch, que podem ser alteradas com o treinamento do cantor, bem como alteração da estrutura melódica e harmonização do canto, amusia, relação entre áreas cerebrais responsáveis pela fala, canto e persistência da musicalidade. Assim, o conhecimento das áreas cerebrais e das interconexões necessárias ao canto ainda é escasso e deve ser um tema de pesquisas no futuro, empregando métodos de neuroimagem.

Descritores:
Voz; Neuroimagem; Música

ABSTRACT

It is assumed that singing is a highly complex activity, which requires the activation and interconnection of sensorimotor areas. The aim of the current research was to present the evidence from neuroimaging studies in the performance of the motor and sensory system in the process of singing. Research articles on the characteristics of human singing analyzed by neuroimaging, which were published between 1990 and 2016, and indexed and listed in databases such as PubMed, BIREME, Lilacs, Web of Science, Scopus, and EBSCO were chosen for this systematic review. A total of 9 articles, employing magnetoencephalography, functional magnetic resonance imaging, positron emission tomography, and electrocorticography were chosen. These neuroimaging approaches enabled the identification of a neural network interconnecting the spoken and singing voice, to identify, modulate, and correct pitch. This network changed with the singer's training, variations in melodic structure and harmonized singing, amusia, and the relationship among the brain areas that are responsible for speech, singing, and the persistence of musicality. Since knowledge of the neural networks that control singing is still scarce, the use of neuroimaging methods to elucidate these pathways should be a focus of future research.

Keywords:
Voice; Neuroimaging; Music

Introdução

O canto é um comportamento vocal muito especializado presente em uma gama muito pequena de animais, dentre os quais estão o homem e as diversas espécies de pássaros. A produção da voz cantada é mediada por um sistema especializado cerebral, constituído por áreas cerebrais específicas e interconexões11. Brown S, Martinez MJ, Hodges DA, Fox PT, Parsons LM. The song system of the human brain. Cogn. Brain Res. 2004;20(3):363-75..

O aprendizado do canto diferencia os animais cantantes em dois grupos: uns que aprendem apenas por um período da vida e outros que o fazem durante toda a vida11. Brown S, Martinez MJ, Hodges DA, Fox PT, Parsons LM. The song system of the human brain. Cogn. Brain Res. 2004;20(3):363-75.. Da comparação entre esses dois grupos de animais cantantes, bem como entre eles e pássaros que não cantam, emergiu o conhecimento de que o aprendizado do canto é uma característica evolutiva, nova, que depende da constituição de novos centros de controle neural22. Zarate JM. The neural control of singing. Front. Hum. Neurosci. 2013;7:237..

Comparando o comportamento vocal de homens com o de seus semelhantes genéticos mais próximos (chimpanzés e babuínos), as dessemelhanças apontam que a capacidade de canto dos humanos não pode ter provindo de um aprendizado ancestral das espécies de homonídeos. A hipótese mais provável é que o sistema de canto humano seja uma especialização neural nova, análoga ao sistema dos pássaros11. Brown S, Martinez MJ, Hodges DA, Fox PT, Parsons LM. The song system of the human brain. Cogn. Brain Res. 2004;20(3):363-75.,22. Zarate JM. The neural control of singing. Front. Hum. Neurosci. 2013;7:237.. O sentido de especialização deriva, dentre outros fatores, de o homem poder exercer controle volicional da frequência vocal fundamental, especialmente no canto sem palavras como o arpejo, crucialmente dependente dos movimentos das pregas vocais33. Perry DW, Zatorre RJ, Petrides M, Alivisatos B, Meyer E, Evans AC. Localization of cerebral activity during simple singing. Neuroreport. 1999;10(18):3979-84..

São escassos os estudos que abordam os aspectos neurológicos da produção do canto, visto que pesquisadores habitualmente não investigam a capacidade musical de sujeitos não cantores para fins de comparação.

Nas últimas duas décadas, estudos de neuroimagem têm objetivado identificar a ativação de áreas sensório-motoras cerebrais durante o canto de uma nota repetida ou sustentada, a emissão de palavra cantada em diferentes ritmos, trechos de músicas populares ou de árias italianas, bem como canto harmônico, ou seja, a produção de dois ou mais sons simultaneamente. Os achados apontam para a compreensão do processamento de percepção e produção do canto, que pode ajudar no treinamento de cantores e profissionais da voz, bem como de sujeitos com distúrbio de voz falada ou cantada, já que as redes neurais são comuns às duas tarefas 22. Zarate JM. The neural control of singing. Front. Hum. Neurosci. 2013;7:237.,44. Zarate JM, Wood S, Zatorre RJ. Neural networks involved in voluntary and involuntary vocal pitch regulation in experienced singers. Neuropsychologia. 2010;48(2):607-18.. Esse contexto é socialmente relevante quando se considera a função do canto na coesão social, na motivação e na constituição de identidade de um grupo.

A fim de contribuir com esta área do conhecimento este estudo tem por objetivo apresentar as evidências originadas por estudos de neuroimagem sobre a ativação do sistema motor e sensitivo na produção do canto.

Métodos

Procedeu-se a uma revisão sistemática, separadamente, por pesquisadores treinados (GOA, HJS e PMMB), admitindo como critérios de inclusão serem artigos que contivessem um ou mais dos seguintes descritores: <neuroimagem>, <voz>, <treinamento vocal> e <cantores>, nos idiomas português, inglês, e espanhol, publicados no período de 1990 a 2016, em periódicos indexados e constantes em uma das bases de dados PubMed, BIREME, Lilacs, Web of Science, Scopus ou EBSCO.

No tocante aos critérios de exclusão, não foram incluídos nessa revisão trabalhos publicados em congressos, capítulos de livros, teses de mestrado e doutorado, além de artigos quem envolvam questões relativas apenas a voz falada.

Tendo sido identificados os artigos nas referidas base de dados procedeu-se a análise dos títulos dos 21 artigos localizados. Na fase de triagem, dois artigos foram excluídos: um devido aos sujeitos de pesquisa serem aves do tipo pombo44. Zarate JM, Wood S, Zatorre RJ. Neural networks involved in voluntary and involuntary vocal pitch regulation in experienced singers. Neuropsychologia. 2010;48(2):607-18. e outro artigo porque se referia à análise exclusiva de aspectos da voz falada55. Watson R, Latinus M, Charest I, Crabbe F, Belin P. People-selectivity, audiovisual integration and heteromodality in the superior temporal sulcus. Cortex. 2014;50(100):125-36.. A partir da leitura dos resumos, foram descartados: um artigo que apresentava abordagem exclusiva da voz falada66. Ozdemir E, Norton A, Schlaug G. Shared and distinct neural correlates of singing and speaking. Neuroimage. 2006;33(2):628-35.e um referente à ativação dopaminérgica do canto de pássaros77. Simonyan K, Horwitz B, Jarvis ED. Dopamine regulation of human speech and bird song: A critical review. Brain Lang. 2012;122(3):142-50.. Na fase final de leitura dos artigos na versão original e integral, os pesquisadores, de forma independente, excluíram ainda: um artigo específico para mapeamento auditivo-motor de controle de pitch88. Jones JA, Keough D. Auditory-motor mapping for pitch control in singers and nonsingers. Exp. Brain Res. 2008;190(3):279-87. ; outro com análise da atuação do córtex cerebral após estimulação transcraniana na leitura e na execução de tarefas musicais99. Lo YL, Zhang HH, Wang CC, Chin ZY, Fook-Chong S, Gabriel C et al. Correlation of near-infrared spectroscopy and transcranial magnetic stimulation of the motor cortex in overt reading and musical tasks. Motor Control. 2009;13(1):84-99.; um estudo com foco no emprego da terapia de entonação melódica para melhoria de casos graves de afasia não fluente1010. Schlaug G, Norton A, Marchina S, Zipse L, Wan CY. From singing to speaking: facilitating recovery from nonfluent aphasia. Future neurology. 2010;5(5):657-65. e dois outros por serem revisões sistemáticas1111. Preti MG, Bolton TA, Ville DV. The dynamic functional connectome: State-of-the-art and perspectives. Neuroimage. 2016. In press. Doi: 10.1016/j.neuroimage.2016.12.061
https://doi.org/10.1016/j.neuroimage.201...
,1212. Eippert F, Kong Y, Jenkinson M, Tracey I, Brooks JC. Denoising spinal cord fMRI data: Approaches to acquisition and analysis. Neuroimage. 2016. In press. Doi: 10.1016/j.neuroimage.2016.09.065.
https://doi.org/10.1016/j.neuroimage.201...
. Nas etapas de pesquisa, avaliação dos estudos e análise dos dados os pesquisadores estabeleceram o confronto das respectivas análises, compararam os resultados e, por consenso, dirimiram as discordâncias (Figura 1).

Figura 1:
Fluxograma da seleção de artigos para a revisão sistemática

Revisão da Literatura

Integram esta revisão 9 artigos, os quais foram agrupados segundo a contribuição da neuroimagem na análise dos temas centrais: alteração da estrutura melódica do canto, harmonização do canto, amusia, relação entre áreas cerebrais responsáveis pela fala e pelo canto e persistência da musicalidade.

Perry et al.33. Perry DW, Zatorre RJ, Petrides M, Alivisatos B, Meyer E, Evans AC. Localization of cerebral activity during simple singing. Neuroreport. 1999;10(18):3979-84. publicaram um dos primeiros estudos abordando a identificação de regiões cerebrais envolvidas no canto simples (de uma nota apenas ou com manutenção de pitch, entendido como a frequência fundamental da voz). Brown et al.11. Brown S, Martinez MJ, Hodges DA, Fox PT, Parsons LM. The song system of the human brain. Cogn. Brain Res. 2004;20(3):363-75. analisaram a alteração da estrutura melódica e a harmonização do canto. Ao estudo da amusia se dedicaram Terao et al.1313. Terao Y, Mizuno T, Shindoh M, Sakurai Y, Ugawa Y, Kobayashi S et al. Vocal amusia in a professional tango singer due to a right superior temporal cortex infarction. Neuropsychologia. 2006;44(3):479-88.. A relação entre as áreas cerebrais responsáveis pela fala e pelo canto foi tema dos estudos de Wilson et al.1414. Wilson SJ, Abbott DF, Lusher D, Gentle EC, Jackson GD. Finding your voice: A singing lesson from functional imaging. Hum. Brain Mapp. 2011;32(12):2115-30., de Zarate, Wood e Zatorre44. Zarate JM, Wood S, Zatorre RJ. Neural networks involved in voluntary and involuntary vocal pitch regulation in experienced singers. Neuropsychologia. 2010;48(2):607-18., de Rosslau et al.1515. Rosslau K, Herholz SC, Knief A, Ortmann M, Deuster D, Schmidt CM et al. Song perception by professional singers and actors: An MEG study. PLoS One. 2016;11(2):1-18., de Callan et al.1616. Callan DE, Tsytsarev V, Hanakawa T, Callan AM, Katsuhara M, Fukuyama H et al. Song and speech: Brain regions involved with perception and covert production. Neuroimage. 2006;31(3):1327-42., Roux et al.1717. Roux FE, Borsa S, Démonet JF. The mute who can sing: a cortical stimulation study on singing. J Neurosurg. 2009;110(2):282-8., e Jungblut et al.1818. Jungblut M, Huber W, Pustelniak M, Schnitker R. The impact of rhythm complexity on brain activation during simple singing: An event-related fMRI study. Restor. Neurol. Neurosci. 2012;30(1):39-53. que investigaram áreas cerebrais responsáveis pela produção e percepção de ritmo durante o canto (Figura 2).

Figura 2:
Características dos artigos incluídos na revisão sistemática

Os estudos de neuroimagem demonstram que o aprendizado e a produção do canto (song control system) dependem da ação de diversas áreas cerebrais, atuando em uma rede neural específica, para conferir o sentido da musicalidade, conceituada como a capacidade de geração de sentido através do fazer musical expressivo1414. Wilson SJ, Abbott DF, Lusher D, Gentle EC, Jackson GD. Finding your voice: A singing lesson from functional imaging. Hum. Brain Mapp. 2011;32(12):2115-30.. A produção do canto tem sido estudada pela alteração da sua estrutura melódica, pela harmonização, pela amusia e persistência do canto e da musicalidade em pacientes com afasia de Broca11. Brown S, Martinez MJ, Hodges DA, Fox PT, Parsons LM. The song system of the human brain. Cogn. Brain Res. 2004;20(3):363-75..

Um dos primeiros estudos empregando neuroimagem foi de Perry et al.33. Perry DW, Zatorre RJ, Petrides M, Alivisatos B, Meyer E, Evans AC. Localization of cerebral activity during simple singing. Neuroreport. 1999;10(18):3979-84., que empregaram tomografia de emissão de pósitrons (TEP/PET) para determinação do fluxo sanguíneo de 13 voluntários enquanto vocalizavam repetidamente um único pitch ou escutavam tons complexos de variação de frequência similar à do canto com o objetivo de comparar a ativação de áreas cerebrais durante as duas tarefas. Os autores tomaram por base do estudo os resultados de estimulações elétricas cerebrais diretas, caracterizadas pela produção de sons. Admitiram que tais emissões poderiam derivar do aumento do fluxo sanguíneo em regiões corticais como giros pré-centrais, área motora suplementar e córtex cingulado anterior.

A localização da área motora suplementar no canto repetido foi fundamentalmente idêntica à da fala no sulco cingulado e no cerebelo, porém com pico correspondente ao menor nível de controle motor vocal. Os autores identificaram também interações entre o córtex cingulado anterior e o auditivo, o que pode indicar que as áreas corticais auditivas podem exercer função de decodificação para oferecer feedback para vocalizações desejadas, tanto ignorando eventos acústicos como concentrando atenção no canto propriamente dito, o que se caracteriza como figura-fundo33. Perry DW, Zatorre RJ, Petrides M, Alivisatos B, Meyer E, Evans AC. Localization of cerebral activity during simple singing. Neuroreport. 1999;10(18):3979-84..

Esses achados desencadearam outros estudos, para detalhamento das áreas cerebrais envolvidas no canto. Assim, a harmonização do canto foi estudada por Brown et al.11. Brown S, Martinez MJ, Hodges DA, Fox PT, Parsons LM. The song system of the human brain. Cogn. Brain Res. 2004;20(3):363-75. que realizaram estudo transversal, observacional, de intervenção submetendo cinco cantores e cinco cantoras, todos amadores, à TEP/PET, As tarefas foram repetição de melodias, canto harmônico, vocalização de sequências isocrônicas monotônicas e repouso com os olhos fechados.

Os autores identificaram que a harmonização do canto, onde o indivíduo produz dois ou mais sons simultaneamente se assemelha ao canto monofônico, em que a melodia da voz é desprovida de qualquer acompanhamento como ocorre no canto gregoriano, porque ambos envolvem a criação de uma linha melódica única, dificultando a caracterização da área cerebral predominante em uma ou outra tarefa. No entanto puderam comprovar que houve maior bilateralidade nas áreas de alto nível elétrico (Área de Brodmann - BA 22 e 38) para a harmonização, comparada ao canto monofônico. Todavia essa bilateralidade não pode ser atribuída exclusivamente à harmonização do canto. Os autores explicaram seu achado admitindo como hipóteses haver uma especialização da área auditiva no hemisfério esquerdo para harmonia ou ainda se tratar de um efeito acústico consequente à presença de um número maior de notas e da textura musical da condição harmônica11. Brown S, Martinez MJ, Hodges DA, Fox PT, Parsons LM. The song system of the human brain. Cogn. Brain Res. 2004;20(3):363-75..

Estendendo seu estudo, Brown et al.11. Brown S, Martinez MJ, Hodges DA, Fox PT, Parsons LM. The song system of the human brain. Cogn. Brain Res. 2004;20(3):363-75. ainda comprovaram que o sistema de canto humano envolvido na imitação, na repetição e nos processos de adequação do pitch dependem de áreas cerebrais que podem ser hierarquicamente agrupadas em áreas vocais e auditivas primárias, secundárias e áreas cognitivas de alto nível. As primárias do córtex auditivo (BA 41) e do córtex motor na região da boca (BA 4) são elicitadas em todas as tarefas do estudo. No córtex auditivo, essas mesmas tarefas dependem das áreas BA 42 e BA 22, da área motora (BA 6), do opérculo frontal (BA 44/6) e da ínsula esquerda. A convergência dos resultados permitiu lançar a hipótese de que a parte superior do lobo temporal bilateralmente pode ainda se constituir em um terceiro nível auditivo especializado para processamento de melodias com pitch de alto nível.

Outro aspecto que vem sendo estudado por neuroimagem é a amusia, que consiste na dificuldade parcial ou total de perceber os sons melódicos ou rítmicos, devido à disfunção do processamento neuronal da música1414. Wilson SJ, Abbott DF, Lusher D, Gentle EC, Jackson GD. Finding your voice: A singing lesson from functional imaging. Hum. Brain Mapp. 2011;32(12):2115-30.. Terão et al.99. Lo YL, Zhang HH, Wang CC, Chin ZY, Fook-Chong S, Gabriel C et al. Correlation of near-infrared spectroscopy and transcranial magnetic stimulation of the motor cortex in overt reading and musical tasks. Motor Control. 2009;13(1):84-99. relataram um caso de amusia em uma cantora profissional de tango, após acidente vascular cerebral. À imagem por ressonância magnética, identificou lesão no córtex temporal superior do hemisfério direito e consideraram que deveria haver alterações na percepção e reconhecimento musical da paciente, envolvendo pitch, timbre e musicalidade, porém com processamento de tempo e ritmo preservados, porque o hemisfério esquerdo havia sido poupado. Ao identificarem também a presença de lesão na porção posterior direita da ínsula, os autores alertaram que os déficits na habilidade de canto da paciente estavam relacionados ao desempenho motor para vocalização mais do que ao feedback auditivo. Com isso confirmaram a possibilidade de a amusia decorrer do comprometimento do processamento do pitch envolvendo conexões específicas entre as áreas corticais motoras e auditivas, desestabilizando a transformação efetiva da maquinaria auditiva ou de memória em emissão vocal intencional1919. Cuervo L da C, Maffioletti L de A. Musicalidade e Amusia?: interfaces de um mesmo ser musical. In: Anais do XI Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais. Goiânia: Associação Brasileira de Cognição e Artes Musicais; 2015. p. 1-9..

Análogo ao estudo de Terao et al.1313. Terao Y, Mizuno T, Shindoh M, Sakurai Y, Ugawa Y, Kobayashi S et al. Vocal amusia in a professional tango singer due to a right superior temporal cortex infarction. Neuropsychologia. 2006;44(3):479-88., esteve a descrição de casos clínicos de cinco cantores amadores submetidos a cirurgia para retirada de tumor encefálico e a testes de fala e canto, na hipótese de que as áreas de fala e canto poderiam manter conexões comuns. Ao analisar os dados eletrocortigráficos gerados por estimulação cerebral durante a neurocirurgia de retirada dos tumores, os autores constataram que o canto sempre ficava comprometido quando da estimulação do giro pré-central, independente da dominância manual do paciente. A estimulação das áreas faciais, da língua e das pregas vocais alterou o canto, já que essa função requer bilateralidade para ser realizada. Todavia a estimulação do giro frontal médio e inferior direito só promoveram interferência no canto de um paciente. Os autores concluíram que as alterações distintas no canto e na fala indicaram, pioneiramente, que essas funções elicitam áreas cerebrais distintas, pelo menos em alguns estágios, possibilitando melhor compreensão dos casos de amusia em pacientes sem comprometimento de fala.

A hipótese da existência de áreas distintas para o processamento da fala e do canto, de tal forma que para este as áreas auditivas secundárias e terciárias seriam mais recrutadas quanto maior a complexidade do pitch, da musicalidade e do, num sistema crescente com o canto monofônico, a vocalização melódica e o canto harmônico, o que diferencia da voz falada11. Brown S, Martinez MJ, Hodges DA, Fox PT, Parsons LM. The song system of the human brain. Cogn. Brain Res. 2004;20(3):363-75. e que foram investigadas também por Wilson et al.1414. Wilson SJ, Abbott DF, Lusher D, Gentle EC, Jackson GD. Finding your voice: A singing lesson from functional imaging. Hum. Brain Mapp. 2011;32(12):2115-30., porém submetendo cantores líricos de alto desempenho à imagem por ressonância magnética funcional.

Wilson et al.1414. Wilson SJ, Abbott DF, Lusher D, Gentle EC, Jackson GD. Finding your voice: A singing lesson from functional imaging. Hum. Brain Mapp. 2011;32(12):2115-30. puderam identificar que cantores sem alto desempenho utilizavam mais as áreas de fala para o canto, já que há uma rede neural de interconexão entre essas áreas. Esse comportamento diferenciou cantores segundo a complexidade do desempenho, de tal forma que cantores de alto desempenho recrutam em menor intensidade a BA 6. Significa dizer que esse estudo demonstrou que os treinos de cantores profissionais não incluem apenas o desempenho vocal e o ajuste de pitch, mas modificam a solicitação de áreas cerebrais, tornando canto e fala cada vez mais independentes um do outro. Logo, em processos de treinamento direcionados ao desenvolvimento de habilidades vocais no canto, faz-se necessário o trabalho de atividades que explorem vários mecanismos neurais.

Analisando também regiões cerebrais envolvidas na percepção e na produção da fala e do canto esteve o estudo de Callan et al.1616. Callan DE, Tsytsarev V, Hanakawa T, Callan AM, Katsuhara M, Fukuyama H et al. Song and speech: Brain regions involved with perception and covert production. Neuroimage. 2006;31(3):1327-42., empregando imagem por ressonância magnética funcional. Partiram os autores da premissa que para o canto há necessidade de uso mais intenso do sistema auditivo-motor e da maquinaria de memória, portanto admitiram que essa atividade é mais complexa que a fala. O estudo incluiu 16 sujeitos (cinco do sexo feminino), com idade variando entre 19 e 47 anos, destros, sem experiência ou treinamento musical prévio. O estímulo consistiu na ausculta do canto de seis canções japonesas e concomitante apresentação da letra da música. Em seguida, cada participante devia ler e cantar a música apresentada em tela, com registro da imagem por ressonância magnética funcional. Dentre os achados mais importantes estiveram a constatação de haver coincidência de regiões cerebrais envolvidas na percepção e na produção do canto e da fala, denotando a existência de uma identidade essencial entre o canto lírico e a fala, o que sugeriu um sistema especular neuronal, capaz de ser ativado na escuta silenciosa da música e na produção do canto. Para os autores, o achado mais importante foi constatar maior atividade do planum temporale direito para o canto, comparado à fala, tanto para a percepção auditiva passiva, como para a produção da voz cantada, indicando que essa região cerebral responde pela transformação representativa entre os domínios auditivo e motor. Outro achado importante dessa pesquisa se referiu à lateralidade, empregando análise estatística de voxels ativos, o que conferiu maior fidedignidade à conclusão. Identificaram maior atividade no lobo temporal esquerdo na fala do que no canto, tanto na ausculta como na produção, ficando o lobo direito mais ativado no canto que na fala.

Zarate, Wood e Zatorre44. Zarate JM, Wood S, Zatorre RJ. Neural networks involved in voluntary and involuntary vocal pitch regulation in experienced singers. Neuropsychologia. 2010;48(2):607-18. prosseguem o estudo empregando imagem por ressonância magnética funcional em cantores líricos profissionais, no intuito de detalhar as áreas recrutadas para correção voluntária e involuntária do pitch por meio da integração vocal motora. Inicialmente os autores ressaltam a importância de considerar a constelação de estruturas neurais envolvidas no ajuste do pitch no canto. Essa rede complexa inclui rede motora/pré-motora cortical (incluindo córtex motor primário, área motora suplementar, córtex cingulado anterior), regiões subcorticais (como ganglia basal e tálamo), bem como estruturas do tronco, incluindo a substância cinzenta periaqueductal, a substância nigra, a formação reticular e o conjunto de motoneurônios. Toda essa rede de estruturas e suas interconexões são empregadas para as adequações de pitch, como se verifica na fala em ambientes ruidosos em que os interlocutores aumentam ou reduzem a intensidade para facilitar a comunicação, sem omitir a emoção na mensagem. Os autores44. Zarate JM, Wood S, Zatorre RJ. Neural networks involved in voluntary and involuntary vocal pitch regulation in experienced singers. Neuropsychologia. 2010;48(2):607-18. compararam 11 sujeitos saudáveis, com audição normal, não cantores, a 13 cantores profissionais, igualmente saudáveis e sem alterações auditivas, submetendo-os à audição de suas vocalizações com alteração de pitch, indicando-lhes as tarefas em que o pitch deveria ser corrigido e outras em que deveria ser mantido. Empregando imagem por ressonância magnética funcional, puderam comprovar que para as correções discretas de pitch, houve a ativação da porção anterior da zona rostral do cíngulo, todavia nas tarefas em que a correção do pitch devia ser ignorada a ativação deu-se no sulco temporal superior posterior. No entanto para os cantores líricos, essa adequação não esteve presente, sugerindo que grandes correções de pitch são coordenadas pelo mecanismo voluntário, ao passo que as correções menos acentuadas são involuntárias e tendem a ocorrer com interação entre as duas áreas cerebrais antecedendo o mecanismo voluntário de correção. Estes dados revelam o quanto o processo de modulação da frequência é sofisticado e que diversas apartes cérebro estão envolvidas nessa complexa atividade vocal.

Em decorrência dos artigos do grupo de pesquisa liderado por Zarate22. Zarate JM. The neural control of singing. Front. Hum. Neurosci. 2013;7:237.,44. Zarate JM, Wood S, Zatorre RJ. Neural networks involved in voluntary and involuntary vocal pitch regulation in experienced singers. Neuropsychologia. 2010;48(2):607-18., demonstrando a existência de uma organização de redes neurais para percepção de música e da fala, sugerindo a presença de uma modulação das habilidades musicais e de fala, emergiu uma linha de pesquisa tendo por sujeitos cantores e atores. O pressuposto para estudo desses grupos de profissionais é o uso da voz após intenso treinamento, porém com ênfase em diferentes contextos de processamento semântico, sintático e emocional. Assim é que Rosslau et al.1515. Rosslau K, Herholz SC, Knief A, Ortmann M, Deuster D, Schmidt CM et al. Song perception by professional singers and actors: An MEG study. PLoS One. 2016;11(2):1-18. objetivaram, pioneiramente, analisar as modificações neurais do processamento da fala e do canto, induzidas pelo treinamento. Para avaliar a atividade cerebral, empregaram magnetoencefalografia, devido a sua alta sensibilidade de avaliação de tempos e média a alta acurácia em determinar as fontes de atividade do cérebro durante as tarefas. Avaliaram 15 cantores com média de idade de 29,2 anos, sendo oito mulheres, e 15 atores, com média de idade de 32,4 anos, dos quais nove eram do sexo feminino, todos com tempo de atuação profissional maior que quatro anos e prática diária mínima de quatro horas.

Cada participante devia julgar a acurácia da congruência semântica e do pitch da última palavra de uma canção ou de um estímulo falado, pressionando um botão para indicar correção ou inadequação do estímulo, enquanto a magnetoencefalgorafia era registrada. Ao final do experimento, cada participante respondeu a uma entrevista semiestruturada para avaliação da fadiga para julgamento de palavras e de pitch. Os autores identificaram a existência de um sistema sintático global, regendo a aspecto melódico e prosódico, com dominância no hemisfério direito, se os fatores envolvem violação do pitch. Comparativamente, foi identificada dominância da área temporal direita na presença de alterações musicais que exigiam atenção concentrada para a análise de frequência. Embora esses achados fossem comuns a cantores e atores, exclusivamente para os cantores foi identificada atividade maior nas áreas parietal esquerda e temporal direita atribuídas a uma maquinaria mental mais intensa e uma cognição musical de alta ordem, as quais podem ser efeito do treinamento ou mesmo um pré-requisito para essa atividade profissional.

Não apenas as características de pitch e harmonização foram tema de pesquisas, mas também o ritmo, investigado por Jungblut et al.1818. Jungblut M, Huber W, Pustelniak M, Schnitker R. The impact of rhythm complexity on brain activation during simple singing: An event-related fMRI study. Restor. Neurol. Neurosci. 2012;30(1):39-53., em 30 sujeitos não músicos, saudáveis, submetidos a imagem por ressonância magnética funcional, enquanto repetiam ritmicamente vogais cantadas monotônicas. Os autores identificaram que as mesmas áreas envolvidas na fala foram ativadas na emissão rítmica de vogais (área motora suplementar bilateral, giro cingulado e córtex pré-motor no hemisfério esquerdo). No entanto comprovaram igualmente que a pars orbitalis bilateral e o giro cingulado esquerdo são responsáveis pela complexidade rítmica.

Alguns estudos também tem buscado investigar, funcionalmente, os aspectos e respectivas áreas cerebrais relacionados às emoções na voz para acessar intenções e sentimentos impressos na dinâmica da comunicação 2020. Brück C, Kreifelts B, Wildgruber D. Emotional voices in context: A neurobiological model of multimodal affective information processing. Phys. Life Rev. 2011;8(4):383-403.,2121. Frühholz S, Trost W, Grandjean D. The role of the medial temporal limbic system in processing emotions in voice and music. Prog. Neurobiol. 2014;123:1-17. que pode diferir da emoção eliciada pelo canto, porém esses temas ainda requerem muita pesquisa.

Conclusão

O canto é uma habilidade única humana, quando se trata de conferir ritmo variável, harmonização de vozes e controle de frequência fundamental. É considerado uma atividade cerebral complexa por combinar a emissão da fala com musicalidade; componentes linguísticos e componentes acústicos mesclados de várias maneiras.

A análise das áreas cerebrais envolvidas no canto é desafiadora porque há interconexão de áreas cerebrais e superposição no exercício das funções de fala e canto. Por esse motivo o emprego da neuroimagem foi de fundamental importância para possibilitar a identificação de áreas e lateralização hemisférica ativadas pelo canto. Embora nas últimas duas décadas muito se tenha avançado nesse conhecimento, ainda há uma grande lacuna no conhecimento que poderá ser exaurida na medida em que os métodos de neuroimagem são aperfeiçoados.

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  • Fonte de auxílio: MCTI/CNPQ/Universal 14/2014 - Faixa A

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2017

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2017
  • Aceito
    08 Jul 2017
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