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Treinamento auditivo acusticamente controlado em um indivíduo adulto após traumatismo cranioencefálico

RESUMO

A avaliação eletrofisiológica e comportamental do processamento auditivo tem sido uma importante ferramenta para o diagnóstico e monitoramento terapêutico de indivíduos pós traumatismo cranioencefálico. No presente relato de caso o paciente foi submetido à avaliação eletrofisiológica e comportamental do processamento auditivo pré e pós treinamento auditivo acusticamente controlado (TAAC) e seis meses após a intervenção. O TAAC foi organizado em oito sessões, enfocando o treinamento das habilidades auditivas de ordenação temporal, fechamento auditivo e figura-fundo. Na avaliação pós TAAC foi observada melhora quanto aos processos gnósicos de codificação, organização e não verbal. Em relação à avaliação eletrofisiológica houve melhora na morfologia e na latência das ondas do potencial evocado auditivo de tronco encefálico e na amplitude do componente potencial evocado auditivo de longa latência (P300). Na reavaliação após 6 meses do TACC foi verificada estabilidade e melhora da avaliação comportamental e eletrofisiológica. O treinamento auditivo acusticamente controlado mostrou-se eficaz ao desenvolver e refinar diferentes habilidades auditivas como demonstrado na avaliação eletrofisiológica e comportamental do processamento auditivo e os benefícios mostraram-se estáveis no longo prazo.

Descritores:
Audição; Plasticidade Neuronal; Reabilitação; Traumatismos Encefálicos

ABSTRACT

Electrophysiological and behavioral assessment of auditory processing has been an important tool for the diagnosis and therapeutic monitoring in individuals after traumatic brain injury. In this case report, the patient underwent electrophysiological and behavioral assessment of auditory processing pre and post acoustically controlled auditory training (ACAT) and six months after the intervention. The ACAT was organized in eight sessions, focusing on the training of auditory abilities of temporal ordering, auditory closure and figure-ground. Post evaluation ACAT showed better results considering the processes of encoding, organization, and non-verbal. Electrophysiological evaluation showed improved morphology and shorter latencies in auditory brainstem response and higher amplitude of long latency auditory evoked potential (P300). During the reassessment six months after of the ACAT, stability and improved behavioral and electrophysiological evaluation were observed. Acoustically controlled auditory training proved to be effective in developing and refining different auditory abilities as demonstrated in electrophysiological and behavioral assessments of the central auditory processing and the benefits were stable long term.

Keywords:
Hearing; Neuronal Plasticity; Rehabilitation; Brain Injuries

Introdução

O Traumatismo Cranioencefálico (TCE) é definido como qualquer agressão traumática que tenha como consequência, fratura de crânio, lesão do couro cabeludo, comprometimento funcional das meninges, encéfalo ou seus vasos. Essas lesões podem ser provocadas pelo impacto e pelo movimento de aceleração e desaceleração do cérebro dentro da caixa craniana 11. Braga FM, Ferraz FAP. Traumatismo crânio-encefálico. In: Prado FC, Ramos J, Valle JR, organizadores. Atualização terapêutica: manual prático de diagnóstico e tratamento. 17ª ed. São Paulo: Artes Médicas; 1995. p. 728-30..

As lesões por TCE podem resultar em déficits auditivos centrais por envolvimento de diferentes áreas, incluindo as áreas auditivas corticais e subcorticais22. Musiek FE, Chermak G. Testing and treating (C) APD in head injury patients. Hear J. 2008;61(6):36-8., sendo importante a realização dos potenciais evocados auditivos de curta e longa latência e a avaliação do processamento auditivo central33. Jeger S & Jeger J.Alterações auditivas. Um Manual para Avaliação Clínica. 1a. ed. (Trat. Auditory Disorders Little Brown and Company), Rio de Janeiro, Livraria Atheneu Editora, 1989.,44. Bergemalm PO, Lyxell B. Appearances are deceptive:Long-term cognitive and central auditory sequelae from closed head injury. IJA. 2005;44(1):39-49. Além disso, um programa de intervenção, visando a qualidade de vida destes pacientes, no ponto de vista da audição e linguagem mostra-se importante.

Nos três primeiros meses, sobretudo no primeiro mês, observa-se recuperação espontânea após lesão cerebral, mais especificamente após o TCE. Após esse período, o cérebro lesado pode se modificar e se readaptar por meio da plasticidade neuronal induzida por estimulação, sendo o tamanho, a localização e a gravidade da lesão fatores limitantes neste processo55. Lendrem W, Lincoln NB. Spontaneous recovery of language in patients with aphasia between 4 and 34 weeks after stroke. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 1985;48(8):743-8.,66. Nudo J. Neural bases of recovery after brain injury. J Commun Disord. 2011;44(5):515-20..

O treinamento auditivo acusticamente controlado (TAAC) consiste em um conjunto de estratégias utilizadas para habilitar ou reabilitar a percepção auditiva, a qual auxilia nos processamentos linguístico e fonêmico necessários para a compreensão da fala e maximiza os efeitos da plasticidade do sistema nervoso auditivo central 77. Musiek FE, Berge BE. How electrophysiologic tests of central auditory processing influence management. In Bess F, (editor). Children with hearing impairment. Nashville, Vanderbilt: Bill Wilkerson Center Press, 1998. p.145-62..

Os potencias evocados auditivos fornecem informações importantes para o diagnóstico e auxiliam no monitoramento terapêutico de indivíduos pós traumatismo cranioencefálico, revelando as mudanças na atividade neural relacionadas à experiência auditiva propiciada pelo TAAC. Devido à plasticidade, o sistema nervoso central é capaz de reorganizar-se em função de estimulações, e desta forma, os parâmetros de latência e amplitude podem modificar-se nos potenciais evocados auditivos, sendo assim uma medida objetiva da plasticidade neural.

Frente ao exposto, o objetivo do presente estudo foi verificar os efeitos de um programa de treinamento auditivo acusticamente controlado em um adulto após ter sofrido traumatismo cranioencefálico, num período até seis meses após a intervenção.

Apresentação do Caso

Esta pesquisa foi realizada nos ambulatórios da Universidade, após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (nº 0389/10) e o indivíduo assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes de sua participação no estudo.

Participou do estudo um indivíduo de 22 anos, destro, do sexo masculino, com limiares auditivos dentro dos padrões da normalidade, que havia sofrido traumatismo cranioencefálico grave (glasgow admissional = 6) sete meses antes de sua participação no estudo. O paciente ficou 99 dias internado, sendo 72 dias na UTI em coma induzido e apresentou exame de imagem que evidenciou lesão axional difusa e hematoma subdural à esquerda.

O paciente foi submetido a: anamnese; inspeção do meato acústico externo; audiometria tonal e vocal; imitânciometria; avaliação comportamental do processamento auditivo e potenciais evocados auditivos de curta (PEATE) e longa latência (P300) pré, imediatamente após e seis meses após treinamento auditivo acusticamente controlado (TAAC) realizado em cabina acústica.

Os potenciais evocados auditivos foram realizados no equipamento Traveler Express da marca Biologic Evoked Potencial e foram registrados em uma sala acusticamente tratada e protegida eletricamente. A captação foi iniciada pelo P300 e posteriormente foi realizado o PEATE, já que o P300 sofre influência do estado de alerta e atenção ao estímulo acústico, enquanto que o PEATE não sofre este tipo de influência.

Para a obtenção do P300, foram utilizados estímulos auditivos binaurais tipo tone burst com frequências de 1000 Hz para o estímulo frequente e 2000 Hz para o estímulo raro, com intensidade de 80dBNA para ambos. Foram apresentados 300 estímulos, 240 para o frequente e 60 para o raro, numa proporção de 80% para o frequente e 20% para o raro. A polaridade utilizada foi alternada, a velocidade de apresentação dos estímulos ocorreu em intervalos regulares de um por segundo e o filtro utilizado foi de 0,5 a 20 Hz. A janela de registro foi de 750 ms. A cada varredura, foram gravadas duas ondas, uma para o estímulo frequente e outra para o raro. Ao final, as ondas foram subtraídas para obtenção do P300.

No PEATE foram utilizados estímulos do tipo clique apresentados monoauralmente a 80dBNA, com polaridade rarefeita e velocidade de apresentação de 19,1 cliques/segundo. Foi utilizada a janela de registro de 0 a 10,24 milissegundos e os filtros passa baixo e passa alto foram de 3000Hz e 100Hz respectivamente. Para analisar a reprodutibilidade do traçado, um total de 2000 estímulos foram apresentados por duas vezes. Foram marcadas e registradas as latências absolutas das ondas I, III, e V e do intervalos interpicos I-III, III-V e I-V.

A avaliação comportamental do processamento auditivo foi composta pela avaliação simplificada do processamento auditivo realizada em campo livre (teste de localização sonora e testes de memória seqüencial verbal e não verbal) e por seis testes realizados em cabina acústica utilizando estímulos verbais e não verbais gravados em compact disc apresentados por meio de um audiômetro de dois canais, a saber: teste de fala com ruído branco (TFRB), teste dicótico de dissílabos alternados (SSW), teste de padrão de duração com tom puro (TPD), teste dicótico consoante-vogal - etapa de atenção livre (TDCV), teste de identificação de sentenças sintéticas com mensagem competitiva contra e ipsilateral (SSI-MCC/MCI) e teste de fusão auditiva randomizado (RGDT).

O programa de TAAC foi organizado em oito sessões, com duração de 45 minutos cada, realizadas duas vezes por semana, de acordo com a proposta de Ziliotto, Pereira (no prelo)88. Ziliotto ZN, Pereira LD. Estimulação auditiva em cabina acústica: relato de caso. In Pereira LD, Azevedo MF, Machado LP, Ziliotto KN. Processamento auditivo: terapia fonoaudiológica. Uma abordagem de reabilitação. São Paulo: Lovise 2007.. Neste programa, as sessões, bem como as atividades em cada sessão, foram organizadas em ordem crescente de complexidade de modo a desafiar o sistema auditivo. Para isso, a relação sinal ruído foi variada de positiva (mais favorável) para negativa (menos favorável).

O programa envolveu o treino das habilidades de ordenação temporal (padrão de frequência e duração de sons), de fechamento auditivo (utilizou-se um CD de listas de sentenças em português e o teste de fala com ruído com figuras) e figura-fundo para sons verbais (utilizou-se o teste PSI, teste Dicótico de Dígitos e teste DCV) e não verbais (Teste Dicótico Não-Verbal) em tarefas de escuta monótica e dicótica. O paciente foi solicitado a apontar frases, dígitos, repetir sons ou imitar os padrões sonoros apresentados.

As orelhas direita e esquerda foram treinadas separadamente. Dessa forma, em uma sessão de treinamento, cujo objetivo era treinar a orelha direita, os sons apresentados à esquerda deviam ser ignorados pelo paciente e vice-versa. Em relação ao nível de intensidade, a orelha sob treinamento teve sua intensidade fixada, enquanto a intensidade de apresentação na orelha contralateral foi aumentada progressivamente, provocando modificação na relação sinal-ruído, de positiva para negativa, ou seja, do mais fácil para o mais difícil. Vale lembrar que, na maioria das vezes, e sempre que possível, os testes utilizados no treinamento foram diferentes daqueles utilizados na avaliação e reavaliação, a fim de eliminar o efeito de aprendizagem.

Em cada sessão de treinamento, procurou-se manter um índice de acerto por volta de 70% para passar para próxima etapa, manter a motivação e evitar a frustração do paciente99. Musiek FE, Schochat E. Auditory training and central auditory processing disorders: a case study. Semin Hear. 1998;19(4):357-65..

Os resultados das avaliações audiológicas eletrofisiológicas e comportamental do processamento auditivo central foram classificados em normal e alterado. Os resultados foram considerados normais se estivessem dentro dos seguintes padrões:

I - PEATE: Foram marcadas e registradas as latências absolutas das ondas I, III, e V e interpicos I-III, III-V e I-V por orelha. Os critérios de normalidade utilizados para avaliação da integridade de via auditiva (latências absolutas e interpicos) foram os sugeridos pelo fabricante do equipamento. As alterações foram classificadas em: tronco encefálico baixo, tronco encefálico alto ou lesão difusa de tronco encefálico.

II - P300: Para a análise deste potencial, foi considerado o valor de latência da onda P300. Os valores de normalidade utilizados foram os propostos por McPherson (1996)1010. McPherson DL. Late potencials of the auditory system (evoked potencials). Singular Press. Cidade. 1996..

III - Processamento Auditivo Central: Os critérios de normalidade utilizados para avaliação comportamental do processamento auditivo foram os descritos por Pereira (2004)1111. Pereira LD. Avaliação do processamento auditivo central. In: Lopes-Filho O. (organizador). Tratado de Fonoaudiologia, 2ª edição, São Paulo: Tecmedd; 2004. p.111-30..

Resultados

Na anamense, o paciente referiu as seguintes queixas fonoaudiológicas: dificuldade para localizar os sons, agitação, fala lentificada, dificuldade de leitura e escrita, atenção e memória.

Quanto às avaliações comportamentais e eletrofisiológicas do processamento auditivo, os resultados serão apresentados nas tabelas a seguir. Serão divididas em três períodos, a saber: 1- Antes da realização do TAAC 2- Imediatamente após o TAAC; 3- Seis meses após o TAAC.

Na Tabela 1 serão apresentados os resultados dos testes comportamentais do processamento auditivo que puderam ser mensurados por porcentagem. Os demais testes bem como os processos gnósicos alterados nos três momentos da avaliação serão apresentados em tabelas separadas (Tabelas 2, 3 e 4). Já os resultados da avaliação eletrofisiológica serão apresentados na Tabela 5 e nas Figuras 1, 2 e 3.

Tabela 1:
Resultados dos testes da avaliação comportamental do processamento auditivo obtidos nas três avaliações.
Tabela 2:
Resultados dos testes Dicótico Consoante-Vogal e RGDT obtidos nas três avaliações
Tabela 3:
Dados da avaliação qualitativa do SSW nas três avaliações.

Tabela 4:
Processos gnósicos alterados nas três avaliações.

Tabela 5:
Resultados da avaliação eletrofisiológica do processamento auditivo obtidos nos três momentos.

Figura 1:
PEATE e P300 na Avaliação 1

Figura 2:
PEATE e P300 na avaliação 2

Figura 3:
PEATE e P300 na avaliação 3

Observa-se que imediatamente após o treinamento auditivo formal (Tempo 2), o paciente apresentou melhora na avaliação comportamental do processamento auditivo, apresentando alteração apenas no Teste Consoante-Vogal, apesar de ter apresentado melhora na vantagem da orelha direita neste teste comparando com a avaliação inicial (Avaliação 1), ou seja, o paciente apresentou melhora significativa na avaliação comportamental do processamento auditivo após TAAC (Tabelas 1, 2 e 3). Além disto, quanto ao processos gnósicos, na avaliação inicial (Avaliação 1) o indivíduo apresentava alteração em todos os processos gnósicos e imediatamente após o treinamento (Avaliação 2), permaneceu apenas com alteração do processo gnósico de decodificação, havendo uma significativa melhora (Tabela 4).

Quanto à avaliação eletrofisiológica, observou-se na Avaliação 2 melhora na morfologia das ondas, amplitude e latência do PEATE, que anteriormente apresentava uma alteração de tronco encefálico baixo à esquerda, e uma melhora da amplitude do componente P300, apesar de não apresentar uma melhora da latência desta onda (Tabela 5 e Figuras 1 e 2).

Observou-se que seis meses após o TAAC, o desempenho do indivíduo na avaliação comportamental e eletrofisiológica manteve-se inalterado ou melhor, como no Teste Padrão de Duração, na Avaliação Qualitativa do SSW, e na amplitude do componente P300 (Tabelas 1, 2, 3, 4 e 5 e Figura 3).

Discussão

É importante destacar que há escassez de estudos na literatura que abordem diretamente o tema deste caso, sobretudo em indivíduos com cérebros lesados, sendo necessária a correlação com outras populações.

Após o TAAC, foi possível observar uma melhora na avaliação comportamental do processamento auditivo, melhorando ou até mesmo adequando habilidades auditivas (Tabelas de 1 a 4) que comumente estão alteradas em indivíduos pós TCE, como mostrado em alguns estudos que realizaram avaliação do processamento auditivo nesta população1212. Murphy CFB, Fillippini R, Palma D, Zalcman TE, Lima JP, Schochat E. Auditory training and cognitive functioning in adult with traumatic brain injury. Clinics. 2011;66(4):713-5.

13. Turgeon C, Champoux F, Lepore F, Leclerc S, Ellemberg D. Auditory processing after sport-related concussions. Ear Hear. 2011;32(5):667-70.
-1414. Santos RBF, Marangoni AT, Andrade AN, Vieira MM, Ortiz KZ, Gil D. Avaliação comportamental do processamento auditivo em indivíduos pós traumatismo cranioencefálico: estudo piloto. Rev. CEFAC. 2013;15(5):1156-62..

Os dados encontrados no teste TDCV - Atenção Livre (Tabelas 2) demonstrou que o indivíduo apresentou maior número de acertos na orelha direita nos dois momentos pós TAAC, ou seja, apresentou vantagem da orelha direita que inicialmente ele não tinha, o que está frequentemente associado à dominância hemisférica esquerda para sons linguísticos em indivíduos destros1515. Bradshaw JL, Nettleton NC. Human cerebral asymmetry. New Jersey: Prentice Hal; 1983..

No teste RGDT (Tabela 2), o desempenho do indivíduo passou de alterado para normal após TAAC, mostrando adequação da habilidade auditiva de resolução temporal, que está relacionada com aspectos fonológicos e de discriminação auditiva1616. Keith RW. RGDT - Random gap detection test. St. Louis: Auditec; 2000..

Quanto à análise qualitativa do teste SSW (Tabela 3), observou-se que inicialmente (Avaliação 1) o paciente apresentava o efeito de ordem alto/baixo, que está relacionado com a dificuldade em memória auditiva. No segundo momento da avaliação, apresentou efeito de ordem baixo/alto, e na ultima avaliação (Avaliação 3), não apresentou nenhuma tendência de erros. Sendo assim, observou-se que o indivíduo apresentou melhora na análise qualitativa do SSW, e tal achado é relevante, já que se trata de um indivíduo que havia sofrido TCE. Sabe-se que indivíduos que sofrem TCE podem apresentar deficiências e incapacidades, temporárias ou permanentes, sejam visuais, motoras, linguísticas, cognitivas e/ou comportamentais. As mais frequentes são as alterações de memória, atenção e organização1717. Leathem J, Heath E, Woolley C. Relatives' perceptions of role change, social support and stress after traumatic brain injury. Brain Inj. 1996;10(1):27-38.. Dessa forma, ao observar esse dado, pode-se afirmar que o TAAC auxiliou o indivíduo a melhorar uma dificuldade comumente encontrada nessa população, o que pode beneficiar a qualidade de vida, uma vez que com melhor capacidade de memória é possível que as trocas comunicativas sejam mais eficientes.

Quantos aos processos gnósicos prejudicados (Tabela 4), observou-se uma melhora significativa após o TAAC, sendo que na avaliação inicial o individuo apresentava alteração em todos os processos gnosicos e após o treinamento auditivo, permaneceu apenas com alteração de decodificação. Conforme já comentado anteriormente, com esses dados, observou-se melhora em duas alterações cognitivas comumente encontradas em indivíduos pós TCE: organização e memória (codificação/perda gradual de memória), auxiliando a melhora da qualidade de vida deste paciente. Vale ressaltar que a alteração de decodificação encontrada pós TAAC, pode ter decorrido da limitação imposta pela lesão apresentada pelo paciente. Além disso, o objetivo do treinamento auditivo não é tornar os testes normais do ponto de vista quantitativo, e sim fazer com que os indivíduos estejam mais adaptados e capacitados para estabelecer trocas comunicativas mais eficientes em seu cotidiano.

Segundo um estudo1818. Merzenich MM, Jenkins WM, Johnston P, Schreiner C, Miller SL, Tallal P. Temporal processing deficits of language-learning impaired children ameliorated by training. Science. 1996;271(5245)77-81., um TAAC intenso e em ordem crescente de complexidade tende a maximizar a plasticidade cortical e, consequentemente, resulta em aprendizagem. Essa foi justamente a proposta do treinamento auditivo descrito neste indivíduo, e, sendo assim, esses resultados comportamentais demonstraram que o TAAC propiciou a plasticidade neuronal, refletindo em mudança comportamental. Diversos autores evidenciaram melhora das habilidades auditivas pós TAAC, a partir da alteração do substrato neural, reafirmando os dados desta pesquisa, sugerindo o TAAC como uma ferramenta para reabilitar as alterações auditivas centrais99. Musiek FE, Schochat E. Auditory training and central auditory processing disorders: a case study. Semin Hear. 1998;19(4):357-65.,1919. Zalcman TE, Schochat E. A eficácia do treinamento auditivo formal em indivíduos com transtorno de processamento auditivo. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2007;12(4):310-4.,2020. Gil D, Iorio MC. Formal auditory training in adult hearing aid users. Clinics. 2010;65(2)165-74..

Em relação à avaliação eletrofisiológica da audição (Tabela 5), o indivíduo apresentou, após o TAAC, melhora na morfologia das ondas, amplitude e latência do PEATE, que anteriormente apresentava uma alteração de tronco encefálico baixo à esquerda, e uma melhora da amplitude do componente P3. Após seis meses do TAAC (Avaliação 3), observou-se que a o PEATE manteve-se inalterado e observou-se um aumento da amplitude do componente P3, apesar de não ser observado melhora na latência desta onda após o treinamento auditivo. Esses achados demonstraram uma medida objetiva da plasticidade neuronal provocada pelo TAAC, pois segundo autores2121. Musiek FE, Berge BE. A neuroscience view of auditory training/stimulation and central auditory processing disorders. In Masters MG, Stecker NA, Katz J. Central auditory processing disorders - mostly management. Boston: Allyn and Bacon; 1998. p. 15-32. o treinamento auditivo é um conjunto de tarefas designadas para a ativação do sistema auditivo e dos sistemas associados, para que haja alterações benéficas no comportamento auditivo e sistema nervoso auditivo central. As mudanças observadas nos potenciais evocados auditivos após treinamento auditivo, sejam relacionadas a latência e/ou a amplitude, devem-se a excitação de um grande número de neurônios e maior sincronia neuronal2222. Cone-Wesson B, Wunderlich J. Auditory evoked potentials from the cortex: audiology applications. Current Opinion on Otolaryngology and Head and Neck Surgery. 2003; 11(5):372-7..

Embora diferentes autores2323. Musiek FE, Shinn J, Hare C. Plasticity, auditory training and auditory processing disorders. Seminars in Hearing. 2002;23(4):264-75.,2424. Tremblay KL, Kraus N. Auditory training induces asymmetrical changes in cortical neural activity. J Speech Lang Hear Res. 2002;45(3):564-72. recomendem a utilização dos potenciais evocados auditivos para monitorar as mudanças neurofisiológicas provocadas pelo treinamento auditivo, o tipo de potencial mais utilizado com esta finalidade é o potencial evocado auditivo de longa latência, uma vez que a plasticidade neuronal é diferente ao longo da via auditiva, sendo maior nas regiões corticais2525. Hayes EA, Warrier CM, Nicol TG, Zecker SG, Kraus N. Neural plasticity following auditory training with learning problems. Clin Neurophysiol. 2003;114(4):673-84.,2626. Russo NM, Nicol TG, Zecker SG, Ilayes EA, Kraus N. Auditory training improves neural timing in the human brainstem. Behav Brain Res. 2005;156(1):95-103.. Desta forma, existem poucos estudos que tenham utilizado o PEATE para monitorar as modificações após treinamento auditivo, sendo que dois estudos que utilizaram o PEATE com estímulo de fala não relataram mudanças significantes após treinamento2525. Hayes EA, Warrier CM, Nicol TG, Zecker SG, Kraus N. Neural plasticity following auditory training with learning problems. Clin Neurophysiol. 2003;114(4):673-84.,2626. Russo NM, Nicol TG, Zecker SG, Ilayes EA, Kraus N. Auditory training improves neural timing in the human brainstem. Behav Brain Res. 2005;156(1):95-103., enquanto que o único estudo realizado com estímulo clique2727. Vieira HS, Reis ACMB. Avaliação da efetividade do treinamento auditivo em grupo com crianças com alteração de processamento auditivo. Trabalho de conclusão de curso -FMRP/USP. 2009. apresentou melhora no PEATE após o treinamento auditivo em crianças com distúrbio do processamento auditivo. No entanto, frente aos achados do presente estudo, o PEATE mostrou-se um método eficaz para mensurar a plasticidade neuronal provocada pela estimulação, devendo ser incluído nos estudos de monitoramento após intervenção.

Estudos anteriores realizados que utilizaram os potenciais evocados auditivos de longa latência para avaliar as mudanças neurofisiológicas ocorridas após treinamento auditivo, verificaram melhora na amplitude, na latência e/ou na morfologia das ondas após o período de estimulação auditiva, não havendo um consenso de qual a medida, amplitude ou latência, seria a mais sensível para detectar a plasticidade neuronal2020. Gil D, Iorio MC. Formal auditory training in adult hearing aid users. Clinics. 2010;65(2)165-74.,2323. Musiek FE, Shinn J, Hare C. Plasticity, auditory training and auditory processing disorders. Seminars in Hearing. 2002;23(4):264-75.

24. Tremblay KL, Kraus N. Auditory training induces asymmetrical changes in cortical neural activity. J Speech Lang Hear Res. 2002;45(3):564-72.

25. Hayes EA, Warrier CM, Nicol TG, Zecker SG, Kraus N. Neural plasticity following auditory training with learning problems. Clin Neurophysiol. 2003;114(4):673-84.
-2626. Russo NM, Nicol TG, Zecker SG, Ilayes EA, Kraus N. Auditory training improves neural timing in the human brainstem. Behav Brain Res. 2005;156(1):95-103.. Neste caso, a medida que evidenciou mudança foi a amplitude da onda.

Foi observado que seis meses após o TAAC, o desempenho do indivíduo na avaliação comportamental e eletrofisiológica manteve-se estável ou até mesmo melhor, como no Teste Padrão de Duração, na Avaliação Qualitativa do SSW, e na amplitude do componente P3 (Tabelas de 1 a 5 e Figuras de 1 a 3), demonstrando que o treinamento auditivo formal propiciou alteração do substrato neuronal, ou seja, provocou o efeito da plasticidade neuronal, mantendo-se estável ao longo do tempo, como demonstrado pelas avaliações comportamentais e eletrofisiológicos.

Estudos mostraram que as mudanças neurais, muitas vezes, precedem as comportamentais2828. Tremblay K, Kraus N, McGee T. The time course of auditory perceptual learning: neurophysiological changes during speech-sound training. Neuroreport. 1998;9(16):3557-60.,2929. Kraus N. Speech-sound perceptual learning. Hear J. 1999;52(11):64-6., o que sugere que a realização de um acompanhamento mais extenso (em termos de tempo) pode trazer melhora ainda maior das habilidades auditivas. Sabe-se que quando os indivíduos treinados se expõem às atividades com demanda auditiva, tais como se comunicar em ambiente ruidoso, o próprio meio se encarrega de manter as habilidades auditivas aprimoradas e ainda possibilita que continuem sendo aperfeiçoadas.

Autores2121. Musiek FE, Berge BE. A neuroscience view of auditory training/stimulation and central auditory processing disorders. In Masters MG, Stecker NA, Katz J. Central auditory processing disorders - mostly management. Boston: Allyn and Bacon; 1998. p. 15-32. relataram que se uma reabilitação gerar mudanças neuronais, pode-se dizer que a estratégia de intervenção foi bem sucedida. Assim, cabe afirmar que, neste caso, o TAAC foi eficaz em reabilitar as alterações auditivas centrais encontradas neste paciente que sofreu TCE, concordando com um estudo3030. Musiek FE, Baran JA, Shinn J. Assessment and remediation of an auditory processing disorder associated with head trauma. J Am Acad Audiol. 2004;15(2):117-32. que evidenciou melhora nos sintomas, nas avaliações comportamental e eletrofisiológica do PA, pós treinamento auditivo, em uma paciente que sofreu TCE leve.

Sabe-se que a plasticidade neuronal em indivíduos lesados ocorre de forma diferente daqueles sem lesão cerebral. No entanto, este caso evidenciou que o TAAC mostrou-se eficiente em favorecer a plasticidade neuronal por meio de estimulação em indivíduos após TCE, adequando habilidades auditivas e podendo compensar, ainda que parcialmente, deficits cognitivos, metacognitivos e metalinguísticos, como citado por autores22. Musiek FE, Chermak G. Testing and treating (C) APD in head injury patients. Hear J. 2008;61(6):36-8..

Conclusão

O treinamento auditivo acusticamente controlado mostrou-se eficaz ao desenvolver e refinar diferentes habilidades auditivas como demonstrado na avaliação comportamental e eletrofisiológica em um indivíduo após traumatismo cranioencefálico grave e que as habilidades mantiveram-se estáveis seis meses após o treinamento auditivo.

Referências

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  • Trabalho realizado no Departamento de Fonoaudiologia, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - São Paulo (SP), Brasil.
  • Fonte de Auxilio: À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FAPESP - processo nº 2010/04404-0

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Fev 2017

Histórico

  • Recebido
    12 Ago 2016
  • Aceito
    24 Out 2016
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