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Instrumento de Rastreio para a Gagueira do Desenvolvimento: elaboração e validação de conteúdo

RESUMO

Objetivo:

elaborar um instrumento de rastreio com fins de identificação do risco para gagueira do desenvolvimento em crianças pré-escolares.

Métodos:

os procedimentos foram divididos em duas etapas: A primeira etapa - teórica, consistiu na revisão da literatura e a construção dos itens que compõe o instrumento; A segunda etapa - validação de conteúdo, consistiu da análise do instrumento por um comitê de juízes composto por 10 fonoaudiólogas atuantes na área da Fluência. Para análise dos dados foi calculado o índice de validade de conteúdo por item (IVC-I) e pelo total de respostas (IVC-T), bem como realizada uma análise da confiabilidade dos itens por meio do alfa de Cronbach.

Resultados:

o Instrumento de Rastreio para a Gagueira do Desenvolvimento (IRGD) foi composto por 24 itens distribuídos em quatro categorias-chaves. Os índices IVC-I e IVC-T evidenciaram alta concordância entre os juízes. Os coeficientes do alfa de Cronbach indicaram alta consistência interna entre as respostas dos juízes em 19 dos 24 itens. A análise qualitativa destacou a necessidade de novos ajustes. Todas as análises possibilitaram a construção da segunda versão do instrumento.

Conclusão:

o instrumento proposto mostrou evidências de validade baseada no conteúdo que permitiram, até o momento, ajustá-lo em relação ao seu construto. Sugere-se a continuidade do processo de validação por meio do emprego de novas medidas de acurácia.

Descritores:
Gagueira; Pré-Escolar; Programas de Rastreamento; Estudos de Validação

ABSTRACT

Purpose:

to develop a screening instrument to identify the risk of developmental stuttering in preschoolers.

Methods:

the procedures were divided into two stages: The first one (theoretical), consisted of the literature review and the construction of the items that make up the instrument; the second stage (content validation), consisted of the analysis of the instrument by a judging committee formed by 10 speech-language-hearing therapists who work in the field of fluency. The data analysis was based on the calculation of the item content validity index (I-CVI) and the total number of answers (T-CVI). Also, an item reliability analysis was conducted with Cronbach’s alpha.

Results:

the Developmental Stuttering Screening Instrument (DSSI) encompassed 24 items distributed into four key categories. The I-CVI and T-CVI revealed a high agreement between the judges. The Cronbach’s alpha coefficients indicated a high internal consistency between the judges’ answers in 19 of the 24 items. The qualitative analysis pointed to the need for new adjustments. All the analyses contributed to the construction of the second version of the instrument.

Conclusion:

the proposed instrument showed content-based validity evidence that made it possible, up to the present moment, to adjust it to its construct. It is suggested that the validation process continue, employing new accuracy measures.

Keywords:
Stuttering; Child, Preschool; Mass Screening; Validation Study

Introdução

A gagueira é um transtorno da fluência do neurodesenvolvimento com início na infância11. Micai M, Fulceri F, Caruso A, Guzzetta A, Gila L, Luisa M. Early behavioral markers for neurodevelopmental disorders in the first 3 years of life: an overview of systematic reviews. Neurosci Biobehav Rev. 2020;116:183-201.. Surge em média aos 33 meses quando as redes neurais que sustentam o processo da fala fluente produzem sinais de controle instáveis, apresentando disfluências atípicas que podem estar suscetíveis às influências genética, epigenética e ambiental, configurando-se com etiologia multifatorial e complexa22. Smith A, Weber C. How stuttering develops: the multifactorial dynamic pathways theory. J Speech Lang Hear Res. 2017;60(9):2483-505.. Estima-se que a incidência da gagueira entre as crianças menores de 5 ou 6 anos é muito maior do que em períodos posteriores da vida, variando no intervalo entre 3% a 17% na primeira infância, alertando para o período de desenvolvimento do transtorno em crianças pré-escolares33. Kefalianos E, Onslow M, Packman A, Vogel A, Pezic A, Mensah F et al. The history of stuttering by 7 years of age: follow-up of a prospective community cohort. J Speech Lang Hear Res. 2017;60(10):1-12..

A manifestação primária na fala consiste na frequência inesperada de disfluências típicas da gagueira, principalmente bloqueios, prolongamentos, e repetições, que permite o diagnóstico diferencial com outros transtornos da linguagem44. Alencar PBA, Palharini TA, Silva LM, Oliveira CMC, Berti LC. Indicators of speech fluency in stuttering and in phonological disorder. CoDAS. 2020;32(2):e20190002.. No entanto, há também características não tão visíveis com impacto psicossocial que pode interferir na qualidade de vida do sujeito a longo prazo. A criança que gagueja desde muito cedo pode desenvolver dificuldades sociais, emocionais e comportamentais, como possuir sentimentos negativos em relação à sua fala, redução da participação social comunicativa e passar a sofrer intimidações sistemáticas (bullying)55. McAllister J. Behavioural, emotional and social development of children who stutter. J Fluency Disord. 2016;50:23-32.. A detecção e os cuidados precoces podem minimizar o prejuízo na fala e prevenir o surgimento de outras complicações. Para além disso, é possível até evitar a instalação persistente da gagueira, caso seja identificada logo nos períodos iniciais da manifestação22. Smith A, Weber C. How stuttering develops: the multifactorial dynamic pathways theory. J Speech Lang Hear Res. 2017;60(9):2483-505..

As consequências da gagueira ficam mais agravadas à medida que a idade da criança avança. Na fase inicial do surgimento, por volta dos 2,5 anos, é possível potencializar a recuperação da fluência da fala em 80%, ao passo que aos 7 anos de idade a gagueira já tende a se cronificar22. Smith A, Weber C. How stuttering develops: the multifactorial dynamic pathways theory. J Speech Lang Hear Res. 2017;60(9):2483-505.. Isto reflete diretamente no prognóstico clínico, uma vez que quanto mais tempo uma criança gagueja, mais improvável é a sua recuperação espontânea, implicando em intervenção tardia, piores prognósticos, aumento do tempo clínico de reabilitação, cronificação da gagueira e menores chances de se tornarem adultos fluentes.

Por isso, a conduta profissional que se preconiza para o tratamento da gagueira é a intervenção precoce, que requer uma identificação precoce66. Sander RW, College M, Wisconsin W. Stuttering: understanding and treating a common disability. Am Fam Physician. 2019;100(9):556-60.. Esta pode ser realizada por meio de um instrumento de rastreio que elenque os principais fatores de risco do seu desenvolvimento na população-alvo. Tal instrumento deve ser acessível aos profissionais da educação e da saúde que atuem com crianças pré-escolares e, na presença de risco, a criança deve ser encaminhada para avaliação e diagnóstico especializados77. ASHA: American Speech-Language-Hearing Association. Preferred practice patterns for the profession of speech-language pathology. Speech-Language Screening-Children. Rockville: American Speech-Language-Hearing; 2004..

A literatura comumente aponta a necessidade de desenvolvimento de ações de rastreamentos a fim de que as crianças com risco para gagueira sejam encaminhadas o mais precocemente e, assim, sejam evitados os danos em decorrência do atraso em iniciar o atendimento88. Mohamadi O, Rahimi-Madiseh M, Sedehi M. The prevalence of stuttering, voice disorders, and speech sound disorders in preeschoolers in Shahrekord Iran. Int J Child Youth Family Stud. 2016;7(3-4):456-71.

9. Thapa KB, Okalidou A, Anastasiadou S. Teachers' screening estimations of speech-language impairments in primary school children in Nepal. Int J Lang Commun Disord. 2016;51(3):310-27.
-1010. Shimada M, Toyomura A, Fujii T, Minami T. Children who stutter at 3 years of age: A community-based study. J Fluency Disord. 2018;56:45-54.. Além disso, o rastreio na primeira infância favorece a divulgação de informações, a exemplo de orientações de promoção da fluência, atua como prevenção para gagueira e permite o acompanhamento da fala da criança77. ASHA: American Speech-Language-Hearing Association. Preferred practice patterns for the profession of speech-language pathology. Speech-Language Screening-Children. Rockville: American Speech-Language-Hearing; 2004.. Contudo, foi evidenciado que os instrumentos clínicos da área, além de muito variados, são mais voltados para o diagnóstico do distúrbio que para o rastreamento do risco, não tendo sido observado a aplicação de um instrumento exclusivamente para fins de rastreio na população de pré-escolares1111. Lima MMO, Cordeiro AAA, Queiroga BAM. Instruments of early identification of stuttering in preschool children: an integrative literature review. CoDAS. No prelo 2020..

Para a construção de um instrumento, é importante respeitar as propriedades psicométricas que buscam garantir a qualidade e eficácia dos resultados por meio de evidências de testes de validação. Um dos primeiros testes de validação são as evidências baseadas no conteúdo, pois representa o início da transformação dos conceitos abstratos em indicadores reais mensuráveis, etapa indispensável do processo1212. Echevarría-Guanilo ME, Gonçalves N, Romanoski PJ. Psychometric properties of measurement instruments: conceptual basis and evaluation methods - Part II. Texto Contexto Enferm. 2019;28:e20170311.

Neste sentido, considerando a importância da identificação precoce da gagueira e a carência de instrumentos de rastreio para este transtorno, o presente estudo se propôs a elaborar um instrumento de rastreio com fins de identificação do risco para a gagueira do desenvolvimento em crianças pré-escolares, com evidência de validade baseada no conteúdo.

Métodos

Esta pesquisa foi aprovada, de acordo com a Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Pernambuco, PE, Brasil, sob o CAAE: 00329018.1.0000.5208, com parecer de nº 3.061.209. Trata-se de um estudo caracterizado como uma pesquisa observacional, analítica e transversal, de abordagem quantitativa e qualitativa.

Participantes

O estudo envolveu a participação de 10 fonoaudiólogas com expertise na área de Fluência para formação do comitê de juízes. A quantidade de analistas condiz com os pressupostos na literatura1313. Coluci MZO, Alexandre MMC, Milani D. Construction of measurement instruments in the area of health. Cien Saude Colet. 2015;20(3):925-36..

A seleção das profissionais foi realizada a partir de divulgação digital da pesquisa, contando, principalmente, com o apoio de três entidades da área: o Instituto Brasileiro de Fluência (IBF), a Associação Brasileira de Gagueira (Abragagueira) e a Oficina de Fluência. O consentimento de participação se deu no ato da escolha da afirmação “Li e declaro minha disposição de participar voluntariamente” após a exposição do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) em formulário virtual.

Um total de 110 fonoaudiólogos foram convidados, por correio eletrônico, a responderem um formulário virtual de caracterização profissional estruturado pelas autoras a fim de atender aos critérios de elegibilidade (Figura 1). Este continha, além do TCLE, perguntas objetivas e discursivas, agrupadas em três categorias: questões sobre a formação acadêmica; questões sobre a atuação clínica na avaliação e intervenção da gagueira; questões referentes às concepções teóricas sobre gagueira infantil.

Dos 50 profissionais que responderam ao formulário virtual, 22 foram selecionados para participação do grupo de juízes. Selecionaram-se aqueles que declararam experiência clínica na área da Fluência acima de cinco anos, que concebem a gagueira como um transtorno do neurodesenvolvimento e de base genética, e que norteiam a atuação clínica considerando a abordagem neurolinguística e motora ou multidimensional da gagueira. Destes, apenas 10 fonoaudiólogas participaram do comitê de juízes ao darem retorno às suas respostas avaliativas dentro do prazo estabelecido. Os profissionais que não estiveram mais em exercício da profissão e que declararam não atuar mais na área da Fluência foram excluídos da seleção.

Figura 1:
Fluxograma metodológico da seleção do comitê de juízes. Recife, PE, Brasil, 2019

O detalhamento da formação e da caracterização do comitê de juízes encontra-se na Figura 2:

Figura 2:
Caracterização do comitê de juízes. Recife, PE, Brasil, 2019.

Materiais

Instrumento de Rastreio para a Gagueira do Desenvolvimento (IRGD)

O IRGD foi construído para ser aplicado aos pais e/ou responsáveis por profissionais treinados da saúde e da educação que atuem com crianças na faixa etária entre 2 a 5 anos e 11 meses. A aplicação deve ser realizada por meio de um roteiro de perguntas, buscando respostas objetivas e considerações subjetivas acerca dos aspectos envolvidos no desenvolvimento geral, na comunicação e na fluência da fala da criança.

A primeira versão do IRGD considerou que os principais fatores de risco para a gagueira do desenvolvimento envolviam várias dimensões, sendo algumas mais críticas e observáveis ao leigo. Por este motivo, o instrumento foi composto por quatro categorias-chaves, a saber: categoria I - Desenvolvimento Geral e da Comunicação (composta por cinco itens); categoria II - Aspectos Linguísticos (composta por oito itens); categoria III - Aspectos Motores da Fala (composta por cinco itens) e categoria IV - Aspectos Psicossociais (composta por seis itens). Cada item foi apresentado em formato de questões sobre os fatores de risco, norteando o avaliador sobre o desenvolvimento e o comportamento de fala da criança em relação à sua fluência, a partir da percepção dos responsáveis. Ao todo foram formuladas 24 questões. Na Tabela 1, é possível observar os fatores de risco organizados por categoria.

Tabela 1:
Composição e quantitativo de itens distribuídos por categoria da construção inicial do instrumento (primeira versão)

As possibilidades de respostas definidas para as questões que compõem a categoria I foram “sim”, “não” e “não soube responder”. As demais categorias foram avaliadas por meio da frequência de manifestação dos fatores de risco, utilizando uma escala no formato Likert de variação de 1 a 5, no qual o número 1 indica ausência, o número 5 indica presença constante e os números restantes revelam a percepção gradual da frequência (raramente, às vezes e frequentemente). A interpretação do resultado final é de que quanto maior for o escore total, maior o risco para gagueira.

Optou-se por utilizar uma escala no formato Likert devido ao caráter do distúrbio que se manifesta em frequência e intensidade. A escolha de variação da escala em cinco pontos justifica-se por ser o formato que aumenta a precisão do instrumento e fornece mais informações para medir o construto, sendo evidenciada como o ponto de equilíbrio entre o grau de ajuste do modelo e a precisão de medição1414. Aval FJP, Auné SE, Attorresi HF. Variation in Likert scale of the mathematics usefulness test. Interacciones. 2018;4(3):177-89.. Este formato tem recebido o reconhecimento como o melhor método para a identificação precoce de crianças pré-escolares com risco para transtornos do desenvolvimento, a exemplo do autismo1515. SBP: Sociedade Brasileira de Pediatria. Manual de Orientação: Transtorno do Espectro do Autismo. 2019;00(5):1-24.. Ademais, o uso de escalas tem sido empregado mais frequentemente na avaliação da severidade da gagueira por sua qualidade prática1111. Lima MMO, Cordeiro AAA, Queiroga BAM. Instruments of early identification of stuttering in preschool children: an integrative literature review. CoDAS. No prelo 2020..

Checklist de Avaliação do IRGD

Para a validação do instrumento, optou-se por seguir as diretrizes internacionais alinhadas aos avanços técnicos científicos adequados na elaboração e obtenção de evidências de validade, a qual estabelece como um dos primeiros testes psicométricos de validação, as evidências baseadas no conteúdo1616. Andrade JM, Valentini F. Guidelines for the construction of psychological tests : regulation CFP No: 009/2018 in Highlight. Psicol. cienc. prof. 2018;38(spe):28-39.. A validade de conteúdo considera dados sobre o conteúdo do instrumento, investigando o conjunto de itens, por meio da avaliação do grau de concordância quanto à relevância e representatividade destes para um determinado conceito1616. Andrade JM, Valentini F. Guidelines for the construction of psychological tests : regulation CFP No: 009/2018 in Highlight. Psicol. cienc. prof. 2018;38(spe):28-39..

Dessa forma, preparou-se um material de avaliação do instrumento no formato de checklist para preenchimento de três aspectos de julgamentos: (1) julgamento dos aspectos gerais do instrumento; (2) julgamento das categorias que compõem o instrumento; e (3) julgamento dos itens que compõem o instrumento. Os dois primeiros aspectos foram norteados pelas perguntas “No geral, como você avaliaria o instrumento quanto aos itens abaixo?” e “As categorias realmente estão adequadas ao seu conteúdo?”. O último aspecto (julgamento dos itens que compõem o instrumento) correspondeu ao nível de concordância da composição dos itens do IRGD, considerando os critérios adaptados propostos por Pasqualli (2010)1717. Pasquali L. Instrumentação psicológica: fundamentos e práticas. 1.ed. Porto Alegre: Artmed, 2010.: critério de objetividade (CO), critério de simplicidade (CS), critério de clareza (CC), critério de relevância (CR), critério de precisão (CP), critério de amplitude (CA), critério de modalidade (CM) e critério de credibilidade (CD). Além destes, foram considerados também critérios gramaticais: extensão de sentença (ES), estrutura frasal (EF) e vocabulário (V).

O material de avaliação também continha espaços abertos para comentários, apontamentos e observações, podendo ser utilizado para justificar análises com valores baixos acerca dos itens, sugerir mudanças ou acrescentar componentes que considerassem relevantes e que não estavam contemplados no instrumento.

Procedimentos

O procedimento de elaboração e validação do instrumento ocorreu a partir das seguintes fases: (I) investigação na literatura sobre a temática abordada; (II) construção e organização dos itens que compõem o instrumento (primeira versão), descrita na seção anterior; (III) avaliação do comitê de juízes; (IV) validação de conteúdo (análise dos dados); e (V) reformulação da segunda versão do instrumento (resultado final).

Fases I e II - Investigação na literatura e construção e organização do IRGD

A elaboração do Instrumento de Rastreio para a Gagueira do Desenvolvimento (IRGD) foi norteada segundo o modelo de elaboração de instrumentos sugerido por Pasquali (2010). O autor propõe seguir metodologicamente as etapas teórica, empírica (experimental) e analítica (estatística) para a construção de um instrumento1717. Pasquali L. Instrumentação psicológica: fundamentos e práticas. 1.ed. Porto Alegre: Artmed, 2010.. A presente pesquisa possibilitou a conclusão da primeira etapa do modelo, a etapa teórica, que contempla da fundamentação teórica, construção do instrumento à validação de conteúdo.

Para o planejamento e desenvolvimento da primeira versão do instrumento, foi utilizado como base teórica uma extensa revisão de literatura, já descrita em um estudo de revisão integrativa1111. Lima MMO, Cordeiro AAA, Queiroga BAM. Instruments of early identification of stuttering in preschool children: an integrative literature review. CoDAS. No prelo 2020.. Foram utilizadas as bases de dados BIREME e PubMed, visando identificar como estão avaliando as crianças pré-escolares que gaguejam e por meio de quais instrumentos. Os idiomas selecionados foram: inglês, português e espanhol nas publicações dos últimos cinco anos. A busca se deu pelos seguintes descritores: “diagnosis” e “screening”, sendo todos cruzados com o descritor “stuttering” pelo ícone AND. Desta maneira, foram selecionados 17 artigos para análise, que contribuíram significativamente para a construção do instrumento.

Fase III - Avaliação pelo comitê de juízes

As 10 juízas selecionadas receberam, por correio eletrônico, uma carta convite contendo o instrumento de rastreio elaborado (primeira versão finalizada após as fases I e II) e um documento com instruções (checklist) para avaliação dos itens que o compunha. O comitê foi orientado a julgar os aspectos gerais, as categorias e os itens que compõem o IRGD, utilizando a escala Likert para a análise dos critérios, a qual seguiu uma pontuação de 1 a 5, em que os números representaram, respectivamente: 1 - discordo totalmente; 2 - discordo parcialmente; 3 - nem discordo nem concordo, 4 - concordo parcialmente; 5 - concordo totalmente.

Análise dos Dados (Fase IV - Validação de Conteúdo)

A análise referente às partes de julgamento dos aspectos gerais do instrumento e julgamento das categorias que compõem o instrumento foi realizada por meio do cálculo do Índice de Validade de Conteúdo (IVC)1313. Coluci MZO, Alexandre MMC, Milani D. Construction of measurement instruments in the area of health. Cien Saude Colet. 2015;20(3):925-36., que permite medir a porcentagem de concordância entre os juízes sobre o instrumento. A fórmula do cálculo do IVC foi calculada dividindo o número total de respostas dos juízes que atribuíram escores de 4 ou 5 da escala Likert pelo número total de respostas dos juízes que avaliaram o item. Ou seja, IVC = número total de respostas 4 ou 5 por item (IVC-I) dividido pelo número total de respostas (IVC-T). Os indicadores quantitativos de aceitação entre os juízes deverão ser superiores a 0,78 para que os aspectos gerais e as categorias sejam considerados adequados1313. Coluci MZO, Alexandre MMC, Milani D. Construction of measurement instruments in the area of health. Cien Saude Colet. 2015;20(3):925-36..

Para a análise dos itens individualmente que compõem cada categoria do instrumento, foi utilizado o software estatístico SPSS, versão 20, a fim de avaliar a consistência interna e a confiabilidade. Estas variáveis dizem respeito à capacidade em reproduzir um resultado de forma consistente no tempo e no espaço1818. Souza AC, Alexandre NMC, Guirardello EB. Psychometric properties in instruments evaluation of reliability and validity. Epidemiol. Serv. Saude. 2017;26(3):649-59.. Para isto, foi necessária a aplicação de teste estatístico de confiabilidade e concordância denominado alfa de Cronbach (α)1919. Cunha CM, Almeida Neto OP, Stackfleth R. Main psychometric evaluation methods of measuring instruments reliability. Rev Atenção Saúde. 2016;14(49):98-103.. O valor mínimo aceitável para o alfa é 0,7, abaixo deste valor a consistência interna é considerada baixa, indicando que os itens medem atributos diferentes ou as respostas dos sujeitos são inconsistentes1919. Cunha CM, Almeida Neto OP, Stackfleth R. Main psychometric evaluation methods of measuring instruments reliability. Rev Atenção Saúde. 2016;14(49):98-103..

No que concerne à análise qualitativa, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo2020. Vosgerau DSR, Pocrifka DH, Simonian M. Association between the technical analysis of the content and the cycles of codification: possibilities from Atlas.ti software. RISTI. 2016;19(09):93-106., ordenando por item tudo que foi escrito e sugerido pelos juízes, visando a organização, significação e a compreensão em profundidade das informações. Criou-se um quadro com as transcrições dos comentários, a fim de possibilitar a verificação de detalhes não contidos no material de avaliação ou justificativa de notas negativas para um item. Os comentários foram codificados por temas centrais à medida que foram aparecendo. A interpretação desses dados passou por um consenso de um segundo grupo de juízes formado pelas presentes pesquisadoras responsáveis que analisaram a pertinência ou não das sugestões para o enquadramento ao instrumento do tipo rastreio.

Resultados

Evidência de Validação de Conteúdo

A análise descritiva, com base nas medidas de tendência central para o julgamento dos aspectos gerais do instrumento e do julgamento das quatro categorias, verificou que a média das respostas dos juízes foi de 4,63 e 4,74, respectivamente, conforme a Tabela 2. Os valores mínimos mostraram que os itens gerais que receberam análises mais baixas e, por isso, foram modificados, corresponderam aos seguintes itens: “Título do Instrumento”, “Qualidade dos itens (perguntas)”, “Clareza dos itens (perguntas)” e “Sequência de apresentação das categorias”. Da mesma forma, as variáveis de análise geral do julgamento das categorias que receberam valores mínimos foram: “Relevância das categorias II e III” e “Número de itens que compõem a categoria II”. Todavia, esses valores mínimos foram registrados exclusivamente por um único juiz. Os itens receberam a devida atenção, mas não refletiram no julgamento geral que foi positivo.

Tabela 2:
Medidas de tendência central dos aspectos gerais do instrumento e do julgamento geral das categorias

Dessa forma, ao considerar o Índice de Validade de Conteúdo (IVC) com julgamentos de números 4 e 5, foi possível dizer que os aspectos gerais do instrumento apresentaram IVC = 0,94, assim como o julgamento geral das categorias também apresentou IVC = 0,93. Isto significa que houve um alto nível de concordância entre os juízes, dado que o índice foi superior a 0,78, indicando que o instrumento, na visão geral, atendeu ao objetivo proposto.

Buscando avaliar o conteúdo dos itens de cada categoria separadamente, é possível observar na Tabela 3 os menores e maiores Índices de Validade de Conteúdo por Item (IVC-I). Os valores obtidos consideraram os critérios mencionados na seção de Métodos: objetividade, simplicidade, clareza, relevância, precisão, amplitude, modalidade e credibilidade. Considerou, ainda, a extensão da sentença, a estruturação frasal e o vocabulário.

Tabela 3:
Valores de maior e menor índices de validade de conteúdo dos itens por categoria

A análise de validação de conteúdo pelo IVC-I revelou grau de relevância e representatividade máxima em todos os itens das categorias II, III e IV, indicando que os conteúdos desses itens no instrumento refletem adequadamente o construto que está sendo medido. Entretanto, na categoria I, dois itens obtiveram pontuação abaixo de 0,78, tendo sido considerados como itens com necessidade de reformulação. Um item relacionava-se ao “desenvolvimento da linguagem”, envolvendo os critérios de simplicidade, precisão e amplitude. O outro item relacionava-se à “queixa na fala”, envolvendo o critério de simplicidade.

Consistência Interna

A consistência interna foi avaliada pelo alpha de Cronbach com intuito de aferir a homogeneidade dos itens do instrumento. Na Tabela 4 é possível observar a maior e menor média e o maior e menor alfa de Cronbach apresentados pelos itens em cada categoria. Os valores obtidos consideraram os mesmos critérios da tabela anterior, a saber: objetividade, simplicidade, clareza, relevância, precisão, amplitude, modalidade e credibilidade, assim como extensão da sentença, estruturação frasal e vocabulário.

Tabela 4:
Valores de maior e menor média e do alfa de Cronbach dos itens por categoria

Como é possível observar na Tabela 4, os resultados dos valores das médias por item demonstraram que praticamente quase todos os itens avaliados tiveram médias iguais ou maiores a 4,2, indicando boa aceitação pelos juízes. Apenas um item obteve média inferior a 4,2, que corresponde ao critério de simplicidade da questão sobre a presença ou não de queixa na fala da criança (item 4 da categoria I). Este item, com média de 3,8, foi analisado pelos juízes como uma pergunta que pode ocasionar confusão na resposta.

Já a avaliação do alfa de Cronbach evidenciou que, dos 24 itens do instrumento, 19 (80%) tiveram alta consistência interna e apenas cinco (20%) apresentaram baixa consistência interna entre os juízes em pelo menos um item de cada categoria. Os itens sobre “infecções” (categoria I), “disfluência típica da gagueira - prolongamentos” (categoria II), “disfluência típica da gagueira - repetição de som” (categoria II), “respiração” (categoria III) e “consciência da gagueira” (categoria IV) receberam α inferior a 0,7 e precisaram ser revisados. Os dados descritivos permitiram identificar em qual critério esses itens obtiveram valores mínimos, os quais foram: critério de relevância (item 1 - categoria I); critério da modalidade e estrutura frasal (item 5 - categoria II); critérios de simplicidade, da modalidade e estrutura frasal (item 1 - categoria II). Não foi observado valor mínimo abaixo de 4 para os itens sobre “respiração” e “consciência da gagueira”. Salienta-se que em dois itens, ambos da categoria III, não houve variância e, por isso, a análise do α foi ignorado, uma vez que ocorreu unanimidade de concordância entre os juízes nos itens sobre “tensão na fala” e presença de “concomitantes físicos”.

Análise Qualitativa do Instrumento

Os juízes puderam ainda pontuar suas considerações acerca de cada um dos itens de cada categoria. Todos os dez juízes utilizaram o espaço oferecido para tecer comentários sobre os itens do instrumento. Alguns elogios foram declarados, como por exemplo, “material sucinto, esclarecedor e objetivo, de fácil acesso aos pais e de fácil interpretação para o profissional” (juiz 7). Todavia, a análise qualitativa se deteve aos comentários referentes às sugestões para alterações no instrumento. Segue, abaixo, na Figura 3, os apontamentos mais importantes e que foram aceitos, em consenso, por um segundo grupo de juízes formado pelas presentes pesquisadoras responsáveis.

Figura 3:
Transcrição dos apontamentos realizados pelo comitê de juízes e respectivas classificações temáticas. Recife, PE, Brasil, 2020

Nota-se que a maior parte dos comentários (seis) estava relacionada à necessidade de modificações do vocabulário empregado no instrumento, a fim de que tivesse uma linguagem mais acessível aos pais e/ou responsáveis, sujeitos que serão submetidos às perguntas. Isto porque os aspectos socioeconômicos podem vir a influenciar no entendimento do que se propõe. Outras classificações temáticas também apareceram, como conteúdo (quatro vezes), clareza dos itens (três vezes), sintaxe (uma vez) e estruturação frasal (uma vez). Houve alteração nesses itens do instrumento em todos esses aspectos mencionados.

Considerando que a avaliação qualitativa revelou aspectos importantes, principalmente sobre o vocabulário, decidiu-se por detalhar mais a análise quantitativa referente a esse aspecto. Assim sendo, na Tabela 5 serão apresentadas as médias das respostas de todos os juízes para o vocabulário no julgamento de todos os itens de cada categoria.

Tabela 5:
Médias das respostas dos juízes para o julgamento do vocabulário por item em cada categoria

Os resultados obtidos a partir dos cálculos das médias das respostas dos juízes em relação ao vocabulário empregado em cada categoria revelaram que todas as categorias apresentaram médias acima de 4,6, o que significa dizer que houve uma avaliação positiva no que diz respeito ao vocabulário, apesar dos comentários sugestivos para possíveis necessidades de modificações. As médias mais baixas correspondem ao vocabulário das questões sobre “inteligibilidade do discurso” (categoria II), “percepção da gagueira (categoria III) e “reação social” (categoria III). Todos esses itens receberam a devida atenção e foram ajustados.

Na Tabela 6, é possível observar a composição do instrumento em função dos fatores de risco avaliados por categoria após julgamento do comitê de juízes.

Tabela 6:
Composição e quantitativo de itens distribuídos por categoria na segunda versão do instrumento (pós-avaliação)

Reformulação - Segunda Versão do Instrumento

Após análise e sugestões do comitê de juízes e do consenso do grupo de pesquisa, foram realizadas algumas modificações nas questões do instrumento proposto inicialmente. A quantidade de itens permaneceu a mesma (24), no entanto, alguns itens foram excluídos, outros acrescentados, outros realocados e outros reformulados. Além disso, mais exemplos foram adicionados para facilitar o entendimento às perguntas das categorias. As modificações resultaram na segunda versão do instrumento disponível no Apêndice A.

Discussão

Na Fonoaudiologia, há uma tendência nos últimos anos para construção e o aprimoramento de instrumentos clínicos. Contudo, a grande maioria desses instrumentos diz respeito ao processo de avaliação, diagnóstico e monitoramento da intervenção terapêutica. Poucos estudos têm procurado identificar o risco para um distúrbio da comunicação2121. Gurgel LG, Kaiser V, Reppold TZ. The search for validity evidence in the development of instruments in speech therapy: a systematic review. Audiol. Commun. Res. 2015;20(4):371-83.. No Brasil, foi verificado que a aplicação dos princípios psicométricos nos instrumentos fonoaudiológicos é escassa ou executada de forma parcial2121. Gurgel LG, Kaiser V, Reppold TZ. The search for validity evidence in the development of instruments in speech therapy: a systematic review. Audiol. Commun. Res. 2015;20(4):371-83.,2222. Goulart BNG, Chiari BM. Screening versus diagnostic tests: an update in the speech, language and hearing pathology practice. Pró-Fono R. Atual. Cient. 2007;19(2):223-32.. Tanto os testes de diagnóstico quanto os de rastreio carecem de validação para as populações às quais se destinam, sendo ainda necessário sistematizar o percurso metodológico para que gerem interpretações válidas e confiáveis dos seus resultados2222. Goulart BNG, Chiari BM. Screening versus diagnostic tests: an update in the speech, language and hearing pathology practice. Pró-Fono R. Atual. Cient. 2007;19(2):223-32.. Apesar de estudos nacionais e internacionais destacarem a importância de ações de rastreamentos na identificação precoce para o prognóstico terapêutico da gagueira do desenvolvimento2323. Ward D. Risk factors and stuttering: evaluating the evidence for clinicians. J Fluency Disord. 2013;38(2):134-40.

24. Howell P. Screening school-aged children for risk of stuttering. J Fluency Disord. 2013;38(2):102-23.
-2525. Oliveira CMC, Souza HA, Santos AC, Cunha D, Giacheti CM. Fatores de risco na gagueira desenvolvimental familial e isolada. Rev. CEFAC. 2011;13(2):205-13., não foram encontrados instrumentos validados para este fim.

Um dos primeiros procedimentos para obtenção de evidências psicométricas é aquele que avalia criticamente se os componentes do instrumento estão relacionados aos atributos a serem mensurados, a validação de conteúdo1212. Echevarría-Guanilo ME, Gonçalves N, Romanoski PJ. Psychometric properties of measurement instruments: conceptual basis and evaluation methods - Part II. Texto Contexto Enferm. 2019;28:e20170311. Em relação à validade de conteúdo do presente estudo, a análise dos juízes pelo cálculo do IVC demonstrou grau de concordância positiva (>0,8) na maioria dos itens, demostrando que os itens refletem adequadamente o construto que está sendo medido. Isto é, a amostra dos itens foi representativa ao conteúdo das categorias por julgamento de profissionais com experiência na área1313. Coluci MZO, Alexandre MMC, Milani D. Construction of measurement instruments in the area of health. Cien Saude Colet. 2015;20(3):925-36.,1818. Souza AC, Alexandre NMC, Guirardello EB. Psychometric properties in instruments evaluation of reliability and validity. Epidemiol. Serv. Saude. 2017;26(3):649-59.. Um instrumento de rastreio para disfagia orofaríngea no Acidente Vascular Encefálico (RADAVE)2626. Almeida TM, Cola PC, Pernambuco LA, Magalhães Junior HV, Magnoni CD, Silva RG. Screening tool for oropharyngeal dysphagia in stroke - Part I: evidence of validity based on the content and response processes. CoDAS. 2017;29(4):e20170009. também seguiu as diretrizes internacionais ao iniciar as análises psicométricas pelas evidências de validade baseada no conteúdo. O comitê de juízes observou necessidade de modificações no RADAVE após identificarem que não atingiram o IVC-I mínimo em alguns itens, mesmo apresentando forte concordância no geral. O mesmo ocorreu com o presente estudo, visto que o IVC-I em dois itens da categoria I ficaram abaixo do valor ideal, enquanto que a análise geral das categorias foi superior a 0,9.

No que se refere às evidências de validade de confiabilidade, a consistência interna analisada pelo coeficiente alfa de Cronbach mostrou-se adequada (>0,7). Apenas cinco itens apresentaram-se com baixa homogeneidade e passaram por reformulações. Isto indica confiabilidade satisfatória dos itens que compõem o presente instrumento para avaliar o risco para gagueira do desenvolvimento, uma vez que ele avalia um único construto por meio de uma diversidade de itens (24), situação considerada apropriada para aplicação da medida de consistência interna1818. Souza AC, Alexandre NMC, Guirardello EB. Psychometric properties in instruments evaluation of reliability and validity. Epidemiol. Serv. Saude. 2017;26(3):649-59.. Outros instrumentos nacionais de avaliação de aspectos da linguagem também analisaram a consistência interna pelo coeficiente alfa de Cronbach. O INFONO2727. Ceron MI, Gubiani MB, Oliveira CR, Keske-Soares M. Evidence of validity and reliability of a phonological assessment tool. CoDAS. 2018;30(3):e20170180., um instrumento de avaliação fonológica, analisou a consistência interna para a precisão dos seus escores e obteve resultado de mediana 0,8, demonstrando forte evidência de fidedignidade. Um instrumento de rastreio para identificação dos marcos do desenvolvimento da comunicação de crianças de 0-36 meses (IRC-36)2828. Queiroga CAM, Queiroga BAM, Cordeiro AAA. Communication screening instrument for children from 0 to 36 months (IRC-36): preparation and evidence of contente validation. CoDAS. No prelo 2020. também obteve resultados que indicaram alta confiabilidade interna (0,9) para os escores obtidos.

O Protocolo de Risco para Gagueira do Desenvolvimento (PRGD)2929. Andrade CRF. Gagueira Infantil: risco, diagnóstico e programas terapêuticos. Barueri, São Paulo: Pró-fono, 2012. que avalia o grau de risco em baixo, médio e alto para gagueira, é o instrumento clínico mais utilizado em pesquisas brasileiras sobre gagueira infantil atualmente3030. Oliveira CMC, Cunha D, Santos AC. Risk factors for stuttering in disfluent children with familial recurrence. Audiol. Commun. Res. 2013;18(1):43-9.,3131. Oliveira CMC, Nogueira PR. Prevalence of risk factors for stuttering among boys: analytical cross-sectional study. Sao Paulo Med J. 2014;132(3):152-7., porém ele ainda não fornece evidências de validade de conteúdo e de fidedignidade. A sua construção passou pela etapa teórica de revisão da literatura e estruturação, sendo que, em seguida, passou para a etapa empírica de aplicação do instrumento para definição dos escores2929. Andrade CRF. Gagueira Infantil: risco, diagnóstico e programas terapêuticos. Barueri, São Paulo: Pró-fono, 2012.. Isto é, não houve análise de testes psicométricos recomendados para elaboração de instrumentos, impossibilitando realizar comparações com o instrumento do presente estudo. Portanto, este estudo torna-se relevante para o fortalecimento da área da Fluência no país, pois contribuiu para a elaboração de um instrumento de rastreio, o qual passou por rigorosas etapas metodológicas de validação e fidedignidade a fim de poder ser utilizado na identificação de crianças com risco para a gagueira do desenvolvimento.

No presente estudo, a avaliação de um comitê formado por fonoaudiólogas com formação e/ou experiência na área, possibilitou a análise da primeira versão e a proposição da segunda versão do instrumento. A partir dos valores das médias, dos índices de validade de conteúdo por item, do alfa de Cronbach e dos comentários/observações realizados pelos juízes qualitativamente, foram realizadas algumas modificações, como exclusão, acréscimos, mudanças de locais dos itens e reformulações, principalmente no conteúdo e no vocabulário.

Dentre as alterações de conteúdo realizadas, destacam-se os fatores de risco da categoria I (desenvolvimento geral e da comunicação). Estudos recentes evidenciaram que doenças atópicas, a exemplo da rinosinusite alérgica, estão associadas a distúrbios do neurodesenvolvimento como a gagueira3232. Ajdacic-Gross V, Rodgers S, Müller M, Känel R, Seifritz E, Castelao E et al. Hay fever is associated with prevalence, age of onset and persistence of stuttering. Adv Neurodev Disord. 2020;4(1):67-73.. Também identificaram nas crianças que gaguejam maiores chances de apresentarem insônia, dificuldades para dormir, sonolência e fadiga durante o dia, sintomas estes que persistem desde a primeira infância até a adolescência3333. Merlo S, Briley PM. Sleep problems in children who stutter: evidence from population data. J Commun Disord. 2019;82:1-11.. Dessa forma, por sugestão dos juízes, foram acrescentadas duas questões na categoria 1 relacionadas à presença de alergias e problemas de sono, respectivamente.

Ainda relativo à categoria I, optou-se por excluir a questão referente à presença de infecção, visto que, se confirmada durante o início da manifestação das disfluências, não se trataria de uma gagueira do desenvolvimento, e, sim, uma gagueira por reação autoimune, seja causada pelos estreptococos tipo A da amigdalite (síndrome de PANDAS)3434. Maguire GA, Nguyen DL, Simonson KC, Kurz TL. The Pharmacologic treatment of stuttering and its neuropharmacologic basis. Front Neurosci. 2020;14:1-8., pela presença da bactéria h-pylori3535. Tsao JW, Shad JA, Faillace WJ. Tremor, aphasia, and stuttering associated with helicobacter pylori infection [letter]. Am J Med. 2004;116(3):211-2. ou pelo rotavírus3636. Theys C, Wieringen AV, Tuyls L, Nil LD. Acquired stuttering in a 16-year-old boy. J Neurolinguistics. 2009;22(5):427-35.. Este aspecto deve ser investigado por fonoaudiólogo especialista para diagnóstico diferencial dos transtornos da fluência. Como a questão sobre a presença de preocupação em relação à fala da criança foi o item que obteve pontuação baixa na média e no IVC-I, optou-se por realocá-la, mas não excluí-la, pois a presença de queixa configura-se como fator de risco para gagueira22. Smith A, Weber C. How stuttering develops: the multifactorial dynamic pathways theory. J Speech Lang Hear Res. 2017;60(9):2483-505.. Este item foi transferido para a parte das informações de identificação do instrumento e sugere-se que tenha uma pontuação ponderada no escore final.

Um dos cuidados que se deve ter na elaboração de um instrumento é com a adequação cultural3737. Fernandes BS, Reis IA, Pagano AS, Ceciclio SG, Torres HC. Development, validation and cultural adaptation of the Compasso protocol: Adherence to self-care in diabetes. Acta Paul Enferm. 2016;29(4):421-9.. A análise qualitativa do presente instrumento permitiu a exploração de aspectos importantes para alterações no vocabulário de alguns itens em cada categoria. Os coeficientes do alfa de Cronbach também corroboraram neste aspecto, dado que os itens com baixa consistência interna, em sua maioria, diziam respeito aos critérios de simplicidade e estruturação frasal. Considerando que esses critérios gramaticais consistem em garantir a sua acessibilidade, respeitando os diferentes padrões regionais e socioeconômicos para facilitar a compreensão do conteúdo1717. Pasquali L. Instrumentação psicológica: fundamentos e práticas. 1.ed. Porto Alegre: Artmed, 2010., as sugestões de substituições de palavras e termos foram acatadas. De modo semelhante, o protocolo Compasso3737. Fernandes BS, Reis IA, Pagano AS, Ceciclio SG, Torres HC. Development, validation and cultural adaptation of the Compasso protocol: Adherence to self-care in diabetes. Acta Paul Enferm. 2016;29(4):421-9., que visa promover a adesão às práticas de autocuidado em diabetes, em sua construção passou por essa etapa de adequação cultural por meio da participação de especialistas, o que permitiu o desenvolvimento de um protocolo mais funcional para a população-alvo. Assim, espera-se que as reformulações realizadas no instrumento do presente estudo possibilitem uma aproximação com o vocabulário local, por meio da adaptação de frases e termos técnicos por palavras mais simples que aumentem a clareza dos itens em conformidade com as características da cultura-alvo3737. Fernandes BS, Reis IA, Pagano AS, Ceciclio SG, Torres HC. Development, validation and cultural adaptation of the Compasso protocol: Adherence to self-care in diabetes. Acta Paul Enferm. 2016;29(4):421-9.. Esse critério deve ser melhor investigado nos processos de validações posteriores.

Apesar do interesse em propor um instrumento de rastreio para a gagueira do desenvolvimento com evidências psicométricas de validade de conteúdo, o presente estudo apresenta limitações inerentes ao próprio processo de construção de instrumentos por se encontrar ainda em fase inicial do processo geral de validação. As evidências de validade de conteúdo são essenciais, mas não são suficientes. Estudos futuros que darão continuidade à presente pesquisa deverão apresentar a análise da sensibilidade de discriminação da população-alvo com os valores limítrofes do risco para gagueira do desenvolvimento, bem como mostrar outras evidências de validade, como a de critério, a concorrente, a convergente, entre outros1818. Souza AC, Alexandre NMC, Guirardello EB. Psychometric properties in instruments evaluation of reliability and validity. Epidemiol. Serv. Saude. 2017;26(3):649-59..

O desenvolvimento deste instrumento tem importantes implicações clínicas para a identificação precoce da gagueira no país por representar o primeiro instrumento normatizado que apresenta evidências de validade baseadas no conteúdo. Foi desenvolvido para ser aplicado por qualquer profissional da educação e da saúde treinado para rastrear o risco para a gagueira do desenvolvimento em crianças pré-escolares. Estes deverão encaminhá-las para a avaliação específica da fluência de fala, quando o resultado for positivo para o risco, devendo a avaliação ser realizada por um fonoaudiólogo especialista.

Conclusão

Foi possível elaborar um instrumento de rastreio para identificação de risco para gagueira do desenvolvimento em crianças pré-escolares com evidência de validade baseada no conteúdo. As evidências de validade estudadas, até o momento, permitiram realizar relevantes modificações e a proposição da segunda versão do instrumento com construto mais adequado. Recomenda-se a continuidade das análises psicométricas por meio do emprego de novas medidas de acurácia. Espera-se que o instrumento aqui proposto possibilite o despertar da prática da saúde preventiva fonoaudiológica na identificação precoce da gagueira, como ponto de partida para intervenções pontuais na saúde da comunicação infantil.

Agradecimentos

À FACEPE - Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco. Além disso, o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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  • Fonte de financiamento: Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco - FACEPE e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    12 Ago 2020
  • Aceito
    20 Out 2020
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