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Ciência, conflitos de interesse e ética

EDITORIAL

A Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões passou a requerer, desde o segundo semestre de 2021, como condição obrigatória, que todos os autores de qualquer manuscrito submetido, para eventual publicação, deverão preencher e assinar o formulário de conflitos de interesse. Tal premissa está de acordo com as normas sugeridas pelo Comitê Internacional de Editores de Revistas Médicas11 Institute of Medicine Committee on Conflict of Interest in Medical Research E, Practice. The National Academies Collection: Reports funded by National Institutes of Health. In: Lo B, Field MJ, editors. Conflict of Interest in Medical Research, Education, and Practice. Washington (DC): National Academies Press (US) Copyright (c) 2009, National Academy of Sciences.; 2009. e objetivam minimizar o impacto negativo que potenciais conflitos de interesse individuais ou coletivos possam causar à sociedade.

Questionamentos do tipo “se digo que todos os autores participaram do trabalho é a verdade, porque me questiona sobre o número de autores?” ou afirmativas como “tudo o que fiz pela Cirurgia do país merece ser salientado e publicado” destacaram-se entre as mais diversas mensagens recebidas por esta editora. A ideia de que o(s) nome(s) ou a(s) instituição(ões) por detrás do artigo são suficientes para garantir o caminho para a publicação foram veemente rechaçadas durante este período, e podem-se imaginar as consequências de tais ações.

Conflitos de interesse expõem a comunidade e os doentes a grandes riscos. Entende-se como conflito de interesses “grupo de condições para as quais o julgamento profissional relacionado a um interesse primário (p. ex. o bem-estar do paciente ou a validade de determinada investigação) tende a ser influenciada por um interesse secundário (p. ex. ganho financeiro)”. Contudo, deve-se ressaltar que esse interesse secundário nem sempre é de origem econômica, mas muitas vezes contempla paixão por conhecimento ou ambição pessoal22 Gasparini M, Tarquini D, Pucci E, Alberti F, D'Alessandro R, Marogna M, et al. Conflicts of interest and Scientific Societies. Neurological Sciences. 2020;41(8):2095-102.. Em se tratando de sociedades médicas de especialidade, o interesse primário deve contemplar a obrigatoriedade da base sólida dos princípios de ética. Afinal, a Medicina é essencialmente marcada pela prática de ações morais e éticas. Assim, quando médicos se associam a sociedades, o que almejam é que essas atendam aos seus anseios relacionados à defesa profissional, ao ensino e à pesquisa33 Pellegrino ED, Relman AS. Professional medical associations: ethical and practical guidelines. Jama. 1999;282(10):984-6.. Este conjunto de interesses visa essencialmente proporcionar o “bem” a quem está na ponta dos serviços prestados: o paciente! Contudo, tal tônica tem sido sobreposta por agendas políticas, comerciais e econômicas em detrimento do princípio fundamental de obrigações éticas33 Pellegrino ED, Relman AS. Professional medical associations: ethical and practical guidelines. Jama. 1999;282(10):984-6..

Ações diversas combatendo conflitos de interesse datam de 1907. Nesse ano, George H. Simmons publicou na revista da Associação Médica Americana (JAMA) a primeira interpretação sobre o tema, colocando em cheque a passividade dos médicos da época contra a vultuosa indústria de medicamentos, muitos produzidos sem o aval de químicos/farmacêuticos, e cujos “criadores” faziam uso de marketing perverso para influenciar os profissionais da saúde, em especial, médicos44 Simmons gh. the commercial domination of therapeutics and the movement for reform. Journal of the American Medical Association. 1907;XLVIII(20):1645-53.. Segundo ele “O negócio de novos remédios proporcionou avanços para métodos científicos com intuito de melhores tratamentos, inibindo a observação clínica inteligente, desenvolvendo um otimismo exagerado que não é apoiado pelos fatos - um otimismo mais fatal do que o mais radical niilismo terapêutico. Mas, acima de tudo e pior, tais práticas arruinaram a literatura ao debochar de revistas médicas e até mesmo denegrindo a credibilidade de livros”44 Simmons gh. the commercial domination of therapeutics and the movement for reform. Journal of the American Medical Association. 1907;XLVIII(20):1645-53..

A ciência e a literatura científica, desafiadas desde então, têm evoluído a passos rápidos para atender tantas demandas, mas equilibram-se numa linha ténue dos princípios da ética. Particularmente, como cientista e educadora, agradeço a evolução para um mundo mais civilizado, em que as fogueiras não são mais o fim de quem questiona paradigmas, e defende a ética e a moral, entre os pares. Afinal, há cerca de 500 anos, esta pessoa certamente teria sido queimada pelo simples ação de questionar, entendida como ato de bruxaria. O monge italiano Giordano Bruno foi condenado à morte e queimado porque acreditava e defendia o pensamento livre da filosofia e ciência. Galileu Galilei por pouco não teve o mesmo fim, mas para tal, teve que negar em público que não apoiava as visões de Copernicus55 Iaccarino M. Science and ethics. As research and technology are changing society and the way we live, scientists can no longer claim that science is neutral but must consider the ethical and social aspects of their work. EMBO Rep. 2001;2(9):747-50.. Isto tudo e muito mais foi enfrentado por milhares de mulheres que ousaram fazer-se ouvidas e foram queimadas. Evoluímos, mas longe de alcançar a ética!

O conceito de ética proposto inicialmente por Aristóteles para discutir princípios cotidianos “ethike theoria” estuda e oferece critérios para a avaliação do comportamento humano. De sorte que, ética tem sido um dos grandes temas da filosofia ocidental, em especial, ao debaterem-se valores individuais e sociais, assim como, a relação e a hierarquia na sociedade. Atualmente, o significado de ética se mescla com o da moral, palavra originária do Latim “mos, moris”, que também significa hábito ou comportamento, mas de espectro mais individual. Independentemente do contexto, ambas, ética e moral estão diretamente relacionadas com a prática e difusão da ciência. Logo, deveriam ser amplamente discutidas em sociedades científicas, pilares da difusão do conhecimento, mas que enfrentam cotidianamente grandes desafios frente a exposição dos avanços da Medicina e de toda a indústria por detrás. Inegável, contudo, o relevante papel da parceria indústria, ensino e ciência, especialmente, em países sem apoio governamental. Contudo “Science san conscience et la ruine l’âme” (Rabelais, em Pantagruel)55 Iaccarino M. Science and ethics. As research and technology are changing society and the way we live, scientists can no longer claim that science is neutral but must consider the ethical and social aspects of their work. EMBO Rep. 2001;2(9):747-50., ou seja, a ciência deve ser submissa à moral para evitar o exagero. A liberdade de poder falar e expressar-se, assim como, a liberdade de não ter medo são dois dos princípios que devem guiar o ser humano, contemplados no Discurso da União - As quatro liberdades, de 6 de janeiro de 1941, pelo então presidente americano Franklin D. Roosevelt66 Roosevelt FD. Franklin D. Roosevelt and the Fours Freedoms of Speech Estados Unidos da América1941 [Available from: https://www.fdrlibrary.org/four-freedoms.
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e que foram um dos pilares que, posteriormente, apoiou a redação da Declaração dos Direitos Humanos, assinados em 1948. Em 2005, o então secretário geral das Nações Unidas, Kofi Annan, destacou a importância de operacionalizar o direito à saúde como parte dos Direitos Humanos, e sendo a ciência a base para a melhor oferta de cuidados médicos, essa passa a ser um Direito Humano77 Mann JM, Gostin L, Gruskin S, Brennan T, Lazzarini Z, Fineberg HV. Health and human rights. Health Hum Rights. 1994;1(1):6-23.,88 Wyndham JM, Vitullo MW. Define the human right to science. Science. 2018;362(6418):975..

As razões que justificam a ciência como um Direito Humano estão relacionadas ao princípio de empoderamento do indivíduo, de fortalecimento de comunidades e a melhoria da qualidade de vida de todos88 Wyndham JM, Vitullo MW. Define the human right to science. Science. 2018;362(6418):975.. Assim, a prática de ciência sem ética e moral vai contra os preceitos de desfrutar do mais alto padrão de saúde, como um dos direitos fundamentais de todo o ser humano99 Williams C, Amon JJ, Bassett MT, Diez Roux AV, Farmer PE. 25 Years: Exploring the Health and Human Rights Journey. Health Hum Rights. 2019;21(2):279-82.. Ademais, a má ciência opõem-se à lista de 29 temas, publicados em outubro de 2018, pelo Comitê Econômico, Social e Cultural das Nações Unidas sobre o direito ao benefício da ciência e da propriedade intelectual na translação do conhecimento científico88 Wyndham JM, Vitullo MW. Define the human right to science. Science. 2018;362(6418):975.. De sorte que a divulgação da ciência precisa ser livre do controle político e de outros conflitos de interesse. Ao ignorar-se este quesito incorre-se em atentado à ética e à moral!

Thèrese Murphy1010 Murphy T. Health and Human Rights' Past: Patinating Law's Contribution. Health Hum Rights. 2019;21(2):205-14. defende o papel das instituições internacionais, consideradas “Palácios de esperança”, ainda que na verdade, atuem precariamente e distante daqueles que demandam proteção. Segundo ela, essas instituições são fracas quando enfrentam o poder, indevidamente focadas em apoios escusos e enlameadas pela falta de reformas, enquanto governos populistas e autoritários estão em crescimento.

Termino, obrigatoriamente, por agradecer a todos os que contribuíram para a minha caminhada, sem mencionar nomes, para não incorrer na falha do esquecimento! Obrigada e até um dia!

REFERENCES

  • 1
    Institute of Medicine Committee on Conflict of Interest in Medical Research E, Practice. The National Academies Collection: Reports funded by National Institutes of Health. In: Lo B, Field MJ, editors. Conflict of Interest in Medical Research, Education, and Practice. Washington (DC): National Academies Press (US) Copyright (c) 2009, National Academy of Sciences.; 2009.
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    Gasparini M, Tarquini D, Pucci E, Alberti F, D'Alessandro R, Marogna M, et al. Conflicts of interest and Scientific Societies. Neurological Sciences. 2020;41(8):2095-102.
  • 3
    Pellegrino ED, Relman AS. Professional medical associations: ethical and practical guidelines. Jama. 1999;282(10):984-6.
  • 4
    Simmons gh. the commercial domination of therapeutics and the movement for reform. Journal of the American Medical Association. 1907;XLVIII(20):1645-53.
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    » https://www.fdrlibrary.org/four-freedoms
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  • 8
    Wyndham JM, Vitullo MW. Define the human right to science. Science. 2018;362(6418):975.
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  • 10
    Murphy T. Health and Human Rights' Past: Patinating Law's Contribution. Health Hum Rights. 2019;21(2):205-14.
  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2021
  • Aceito
    20 Dez 2021
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