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O médico mau caráter é muito pior que um malformado?

A resposta é um sonoro sim com um enorme ponto de exclamação no final.

Eu poderia dar por encerrada, objetivamente, com essa resposta também carregada com enorme peso de responsabilidade, nossa discussão. Mas, não seria justo com a imensa maioria dos médicos, belos em caráter, que dedicam quase a totalidade de suas vidas em prol de vidas de outrem.

Recentemente, em meio ao desinquieto e ordinário bombardeamento diário de mensagens em minhas redes sociais de vídeos, mensagens, “bons dias” - o que acredito ser a rotina dos bilhões de humanos em quarentena neste planeta - tive que parar e sentar-me!

Suscetibilizei-me com uma série de vídeos, riquíssimos em hediondez, de uma Sra. médica expondo seus pacientes e seus procedimentos cirúrgicos em meio a dancinhas, caras e bocas recheadas por musiquinhas, tudo mal editado com requintes de mau gosto, em um desses aplicativos da hora que permitem a criação instantânea de milionários investidores de startups, além de celebridades estéreis e, nesse caso, perigosas para a comunidade médica e para a sociedade.

Você poderia me perguntar: qual o perigo, qual o problema em editar e postar vídeos com dancinhas, musiquinhas e tantas outras “inhas”, fato tão comum em todas as redes sociais (zinhas)?

A resposta seria nenhum problema em um ambiente desmesurado de redes sociais. Mas estamos falando - para quem não viu os vídeos (imploro, por favor, continue sem os ver!) - de uma Sra. médica com partes de corpos humanos (peças cirúrgicas) sendo expostas por ela sem qualquer pudor, quase que como malabares em um circo de horrores. Não vou me ater aos limites das redes sociais, seria objeto de outro artigo e, diga-se de passagem, um “correr atrás do rabo” interminável.

É importante ressaltar, com o intuito pedagógico, os limites impostos pelas leis em vigor no País. A Constituição brasileira reconhece os direitos fundamentais com o objetivo de proteger a dignidade essencial da pessoa humana, tanto na perspectiva individual quanto social, do direito. A Constituição dignifica o principio da dignidade à hierarquia de regra número um dos direitos fundamentais (direito à vida; à integridade física; à liberdade; à igualdade; à honra).

Nesse prisma de direitos fundamentais, o Código de Ética Médica (CEM)11 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. RESOLUÇÃO CFM Nº 2.217/2018. [Online].; 2018 [cited 2021 ABR 15. Available from: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf.
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contido na Resolução CFM n° 2.217, de 27 de setembro de 2018 (modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019) constituído por seus onze direitos e 117 deveres dos médicos brasileiros, é inequívoco em seus direitos fundamentais:

  • II - O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.

  • IV - Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão.

  • V - Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente e da sociedade.

  • VI - O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício, mesmo depois da morte. [...]

  • XI - O médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei.

Pois bem, após as múltiplas postagens da Sra. médica, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica muito eficaz e rapidamente suspendeu a Sra. médica de seu quadro associativo. Em seguida, o Conselho Regional de Medicina (CREMESP) a interditou cautelarmente, dentro do balizamento legal - a saber, o CEM em suas disposições gerais, parágrafo II “Os médicos que cometerem faltas graves previstas neste Código e cuja continuidade do exercício profissional constitua risco de danos irreparáveis ao paciente ou à sociedade poderão ter o exercício profissional suspenso mediante procedimento administrativo específico”.

Para a surpresa de alguns, após sua interdição ter sido oficializada pelo CREMESP, a Sra. médica fez outros tantos vídeos afrontando a interdição, com referencia a tragédia familiar do passado que a fez ser inabalável, quase um personagem na luta por conta bancária vultuosa. Logo, surgiram os comentários de que se tratava de pessoa com algum (ou todos) grau(s) de psicopatia - acredito até, que muitos comentaristas médicos, tivessem interesses pessoais na defesa de seu lado mau caráter. E, é aí o cerne de minha narrativa: uma doença mental torna alguém mau caráter?

É obvio que não, e o maior responsável por essa associação é a argumentação incomplexa, linear, que associa qualquer “coisa ruim” como sendo doença mental e convertendo a sanidade em sempre algo positivo. A história da humanidade é repleta de exemplos similares, existem pessoas perigosíssimas sem nenhum problema psiquiátrico, e vice-versa. Aqui reside a grande ambiguidade desse pensamento linear, essa tendência de resumir os fatos que não compreendemos claramente para que passem a ter sentido, o que na maioria das vezes corresponde à charlatã realidade.

Ser portador de psicopatia não está implícito ser mau. Já o caráter (ah, o caráter...), um dos componentes de nossa personalidade, na definição filosófica, o mau-caráter, muitas vezes com véu de título de especialista ou ocupando cargos honoríficos classistas sem a menor honra e caráter, age contra a natureza da razão, tornando-se responsavelmente incapaz de perceber a hierarquia dos valores que devem nortear as ações humanas. Padece ele, portanto, de gravíssimo déficit cognitivo, que ao ser descoberto clama pela bondade divina, quase um paralelo com usar o nome de Deus em vão (usam hashtags envolvendo Deus, Jesus, o Criador... mas que deliberadamente e continuamente desobedecem aos Seus mandamentos).

Aqui, vou me reportar ao Aquinate (conjunto da obra de Aquino - Santo Tomás) que afirma que quando é dito que uma pessoa tem a potência de fazer algo, tratamos daquilo que a alma pode realizar (suas faculdades). Segundo o Alquinate, a vontade e o intelecto (faculdades superiores da alma humana) são afetados nos indivíduos de mau caráter. E assim, seus repetidos atos movidos pelo orgulho, vanglória, cupidez...o fazem privar-se da virtude maior no âmbito prático da razão: a prudência, definida por Santo Tomás de Aquino como a “reta razão no agir”11 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. RESOLUÇÃO CFM Nº 2.217/2018. [Online].; 2018 [cited 2021 ABR 15. Available from: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf.
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Nesse cenário, já respondendo o questionamento inicial, um médico mau caráter é sim MUITO pior que um malformado. O malformado com bom caráter segue o seu juramento hipocrático, e o pudor vindo do berço, além de sempre buscar ajuda (de conhecimento ou de outros colegas mais experientes). Já o mau caráter, é recheado por lapsos éticos que geralmente envolvem objetivos em curto prazo, sem a mínima preocupação com o paciente apenas com sua vanglória exibicionista pautada pelos sete pecados capitais que oscilam em intensidade, a depender da audiência.

Como dissemos, esses são movidos pela farsante necessidade de um estéreo volume de pessoas com algum transtorno psiquiátrico (ou não?), fiéis seguidores e repetidores de “likes”, “shares”, “saves” que acabam sendo vítimas de seus próprios “touch screen clicks” na plateia de um médico mau caráter, com título de especialista, que os usam claramente para engordar suas contas bancárias às custas de crimes geridos por simples cupidez. O perfil é quase sempre o mesmo, vendem (caríssimo) o conceito de uma Medicina sempre alegre e isenta de complicações e pudor, até que haja a exigência urgente de um médico formado e fiel ao juramento hipocrático para resolver as complicações, sempre trágicas. Algumas dessas até gravíssimas aberrações. Esse colega irá salvar uma vida com o respeito e pudor acima de tudo, até mesmo o de não denunciar esses maus-caracteres. Uma vez acontecido o crime, qualquer que seja, esses maus-caracteres tornam-se, frente aos olhos nem sempre isentos, pessoas com “algum distúrbio psiquiátrico”, “tementes a Deus”, “desproporcionalmente apenados”... Basta! Por favor, respeitem minha insanidade e meu caráter, que acredito ser bom (dentro da minha sanidade). Por fim, aos patologicamente insanos, tratamento adequado e imediato. Aos maus-caracteres o rigor da lei, para que não fiquemos insanos! E parafraseando Sidney Silveira em seu estilo Aquinate: “não nos enganemos: ao perder a reta razão no agir, o mau caráter perdeu também a reta razão no pensar”22 Silveira S. O fundamento metafísico das virtudes. [Online].; 2010 [cited 2021 03 30. Available from: http://contraimpugnantes.blogspot.com/2010/11/o-fundamento-metafisico-das-virtudes.html.
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REFERENCES

  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    28 Abr 2021
  • Aceito
    11 Maio 2021
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