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Impacto da Pandemia por COVID-19 nos Procedimentos Cirúrgicos Eletivos e Emergenciais em Hospital Universitário

RESUMO

Objetivo:

avaliar o impacto da pandemia da COVID-19 em cirurgias de reparo de hérnias de parede abdominal e colecistectomia em hospital centro de referência.

Métodos:

estudo transversal retrospectivo observacional realizado no Hospital Universitário Evangélico Mackenzie (HUEM), em Curitiba, Paraná, Brasil. Foram incluídos os dados obtidos através de prontuários eletrônicos de pacientes que realizaram colecistectomia e reparo de hérnias de parede abdominal no período de março a dezembro de 2019 e 2020 no HUEM. Os dados foram analisados por meio do teste Qui-Quadrado de Pearson e aplicação da Análise de Variância (ANOVA).

Resultados:

Foram analisados 743 prontuários ao todo, sendo constatada uma queda de 63,16% no número total de cirurgias no ano de 2020. Verificou-se um aumento de 91,67% no número de internações em UTI em 2020, bem como um aumento de 70% no tempo médio de internação. Foi observado um maior número de complicações (em 2020, 27% apresentaram complicações, enquanto em 2019 este valor foi de 18,8%) e um aumento em relação à mortalidade (em 2019, esta taxa foi de 1,3% e em 2020, 6,5%). Observaram-se 6 casos de COVID-19 em 2020, de modo que destes, 5 pacientes vieram a óbito.

Conclusão:

durante a pandemia da COVID-19, observou-se uma importante redução na quantidade de cirurgias de reparo de hérnia de parede abdominal e colecistectomia. Além disso, houve aumento estatisticamente relevante quanto às complicações pós-operatórias, taxa de mortalidade e tempo de internamento em 2020.

Palavras-chave:
COVID-19; Procedimentos Cirúrgicos Eletivos; Pandemias; Hérnia; Colecistectomia

ABSTRACT

Objective:

to assess the impact of the COVID-19 pandemic on abdominal wall hernia repair surgeries and cholecystectomy in a referral center hospital.

Methods:

a retrospective, observational, cross-sectional study carried out at Hospital Universitário Evangélico Mackenzie (HUEM), in Curitiba, Paraná, Brazil. Data obtained through electronic medical records of patients who underwent cholecystectomy and abdominal wall hernia repair from March to December 2019 and 2020 at HUEM were included. Data were analyzed using Pearsons Chi-Square test and analysis of variance (ANOVA).

Results:

a total of 743 medical records were analyzed, with a 63.16% drop in the total number of surgeries in 2020. There was a 91.67% increase in the number of ICU admissions in 2020, as well as a 70% increase in average length of stay. A greater number of complications was observed (in 2020, 27% had complications, while in 2019 this figure was 18.8%) and an increase in mortality (in 2019, this rate was 1.3% and in 2020, 6.5%). There were 6 cases of COVID-19 in 2020, so that of these, 5 patients died.

Conclusion:

during the COVID-19 pandemic, an important reduction in the number of abdominal wall hernia repair surgeries and cholecystectomy was observed. In addition, there was a statistically significant increase in postoperative complications, mortality rate and length of stay in 2020.

Keywords:
COVID-19; Elective Surgical Procedures; Pandemics; Hernia; Cholecystectomy

INTRODUÇÃO

Em janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu um alerta de saúde global para um novo coronavírus denominado síndrome respiratória aguda grave coronavírus 2 (SARS-CoV-2), originada em Wuhan, província de Hubei, China. A pandemia COVID-19, declarada pela OMS em março de 2020, resultou em mais de 770.000 casos em todo o mundo relatados até o final de março de 202011 Blouhos K et al. Understandig surgical risk during COVID-19 pandemic: the rationale behind the decisions. Front Surg. 2020;7:33. doi: 10.3389/fsurg.2020.00033.
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. Em novembro de 2021, devido à sua alta transmissibilidade, foram confirmados mais de 45.000.0000 casos espalhados por 219 países22 Peeri, NC et al. The SARS, MERS and novel coronavirus (COVID-19) epidemics, the newest and biggest global health threats: what lessons have we learned? Int J Epidemiol. 2020;49(3):717-726. doi: 10.1093/ije/dyaa033.
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.

Como a necessidade de hospitalização entre os casos sintomáticos é de 10% globalmente, com um aumento da necessidade de admissão em unidade de terapia intensiva e 3% de mortalidade, os hospitais começaram a reduzir intensivamente as atividades eletivas, incluindo cirurgias para se preparar para o alto número de admissões. Logo, a pandemia COVID-19 causou grandes interrupções nos serviços hospitalares de rotina em todo o mundo33 Covidsurg Collaborative. Elective surgery cancellations due to the COVID-19 pandemic: global predictive modelling to inform surgical recovery plans. Br J Surg. 2020;107(11):1440-1449. doi: 10.1002/bjs.11746.
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4 Poeran J et al. Cancellation of elective surgery and intensive care unit capacity in New York State: a retrospective cohort analysis. Anesth Analg. 2020;131(5):1337-1341. doi: 10.1213/ANE.0000000000005083.
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-55 Kapoor, D et al. Elective gastrointestinal surgery in COVID times. Indian J Surg. 2021;83(1):277-283. doi: 10.1007/s12262-020-02642-9.
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.

Dentre os principais serviços interrompidos estão as cirurgias eletivas, as quais foram canceladas de modo a oferecer maior segurança ao paciente. Reduzir as atividades eletivas protege os pacientes da transmissão intra-hospitalar do vírus e complicações pulmonares pós-operatórias associadas33 Covidsurg Collaborative. Elective surgery cancellations due to the COVID-19 pandemic: global predictive modelling to inform surgical recovery plans. Br J Surg. 2020;107(11):1440-1449. doi: 10.1002/bjs.11746.
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,55 Kapoor, D et al. Elective gastrointestinal surgery in COVID times. Indian J Surg. 2021;83(1):277-283. doi: 10.1007/s12262-020-02642-9.
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. Além disso, são preservados suprimentos de proteção, os quais têm prioridade para o atendimento de pacientes com COVID-1933 Covidsurg Collaborative. Elective surgery cancellations due to the COVID-19 pandemic: global predictive modelling to inform surgical recovery plans. Br J Surg. 2020;107(11):1440-1449. doi: 10.1002/bjs.11746.
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,44 Poeran J et al. Cancellation of elective surgery and intensive care unit capacity in New York State: a retrospective cohort analysis. Anesth Analg. 2020;131(5):1337-1341. doi: 10.1213/ANE.0000000000005083.
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. Ainda, a equipe cirúrgica pode ser remanejada para outras especialidades e linha de frente, no caso de necessidade6. Estima-se que 72,3% das cirurgias foram canceladas durante o pico da pandemia, nas suas primeiras 12 semanas, ao redor do mundo77 Köckerling, F et al. Elective hernia surgery cancellation due to the COVID-19 pandemic. Hernia. 2020;24(5):1143-5. doi: 10.1007/s10029-020-02278-4.
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.

Atentando ao fato que semanalmente são realizados, aproximadamente, seis milhões de procedimentos ao redor do mundo, é notório que o cancelamento de cirurgias eletivas durante a pandemia irá gerar um acúmulo em breve99 Søreide, K et al. Immediate and long-term impact of the COVID-19 pandemic on delivery of surgical services. Br J Surg. 2020;107(10):1250-61. doi: 10.1002/bjs.11670.
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. Os impactos dessa realidade poderão ser vistos nos mais diversos âmbitos, ocasionando impactos econômicos e aumento na morbidade e mortalidade aos pacientes que tiveram suas cirurgias postergadas1010 Grubic AD et al. COVID-19 outbreak and surgical practice: The rationale for suspending non-urgent surgeries and role of testing modalities. World J Gastrointest Surg. 2020;12(6):259-68. doi: 10.4240/wjgs.v12.i6.259.
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.

Dentre os procedimentos cirúrgicos eletivos mais realizados nos centros hospitalares estão a colecistectomia e o reparo de hérnia. A primeira consiste na retirada da vesícula biliar, sendo a via laparoscópica a mais utilizada atualmente. É um dos procedimentos cirúrgicos abdominais mais realizados nos EUA todos os anos1111 Kapoor T et al. Cost Analysis and Supply Utilization of Laparoscopic Cholecystectomy. Minim Invasive Surg. 2018;2018:7838103. doi: 10.1155/2018/7838103.
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. Já o reparo de hérnia envolve, principalmente, o fechamento do defeito pelo qual houve a protrusão do órgão, realizado através de um reparo sem tensão, a tela geralmente é a escolhida para tal1212 Hammoud, M et al. Inguinal Hernia. StatPearls Publishing. 2020 Jan..

Estudos buscaram avaliar o impacto da pandemia da COVID-19 em ambos os procedimentos, avaliando aspectos como o volume de cirurgias durante a pandemia, a incidência de complicações operatórias e, até mesmo, mudanças na abordagem destes procedimentos de modo a trazer mais segurança ao paciente. O presente trabalho busca compreender melhor o impacto da pandemia nas cirurgias de colecistectomia e reparo de hérnias no serviço Hospital Universitário Evangélico Mackenzie (HUEM), em Curitiba, Paraná, Brasil.

METODOLOGIA

Desenho do estudo:

Estudo transversal retrospectivo observacional.

Local da pesquisa:

A pesquisa foi realizada no Hospital Universitário Evangélico Mackenzie (HUEM), na cidade de Curitiba, Paraná, Brasil.

Sujeitos da pesquisa

Foram incluídos pacientes homens e mulheres, maiores de 18 anos, que fizeram cirurgias eletivas de colecistectomia e reparo de hérnias de parede abdominal no período de março a dezembro de 2019 e março a dezembro de 2020. Incluídos os seguintes CIDS (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde): K40, K41, K42 e K43 referentes às hérnias de parede abdominal, e K80 e K81 referentes a colelitíase e colecistite aguda calculosa.

Coleta de dados

A coleta de dados foi realizada no mês de fevereiro de 2021, através de análise de prontuário eletrônico.

Análise de dados:

As variáveis comparadas nos prontuários dos pacientes que realizaram cirurgia eletiva de colecistectomia aberta ou por videolaparoscopia e cirurgia eletiva de reparação de hérnia de parede abdominal foram: idade, sexo, tempo de internação, n° de contaminados por COVID-19 durante o período de internação, complicações pós-cirúrgicas, intercorrências intraoperatórias, adiamento na procura de atendimento médico, taxa de mortalidade. Para verificar a significância da relação entre os achados, foram aplicados testes estatísticos paramétricos (Qui-quadrado de Pearson, Aplicação da análise de Variância - ANOVA) através do Software SPSS - Statistical Package for the Social Sciences, adotando intervalo de confiança de 95% e margem de erro de 5% (p-valor <0,05).

Revisão de literatura

Realizou-se uma revisão de literatura com buscas na base de dados PubMed a partir dos seguintes descritores: “COVID and hernia”, “COVID and cholecystectomy”, “cholecystectomy”, “hernia repairs”, “surgery and COVID”, “surgery” and “hernia” and “COVID”, “impact” and “surgery” and “COVID” e “epidemiology and surgery and “COVID”. Incluiram-se artigos que abordem os objetivos do presente estudo, sem restrição quanto a data de publicação destes.

Questões de ordem ética

A pesquisa foi realizada com autorização prévia por escrito assinada pelo responsável pela instituição pesquisada e aprovação pela Plataforma Brasil. Somente os pesquisadores tiveram acesso aos dados coletados, sendo estes mantidos em local seguro e sigiloso. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Faculdade Evangélica Mackenzie do Paraná, conforme estabelece a legislação, com Certificado de Apresentação para Apreciação para Apreciação Ética - CAAE número 42959121.7.0000.0103.

RESULTADOS

O estudo incluiu no total 743 prontuários de pacientes que realizaram cirurgia de reparo de hérnia de parede abdominal e colecistectomia. O grupo de pacientes do ano de 2019 foi considerado como grupo 1 e o grupo de pacientes do ano de 2020 como grupo 2, mostrados na Figura 1. Do total de cirurgias realizadas em 2019 e 2020, 543 ocorreram do período de março a dezembro de 2019 e 200 ocorreram neste mesmo período no ano de 2020, o que representa uma queda de 63,16% no volume total de procedimentos cirúrgicos. Em 2019, foram verificadas 348 colecistectomias e 209 reparos de hérnia de parede abdominal. Já em 2020, verificaram-se 148 colecistectomias e 103 reparos de hérnias. Ao todo havia 381 mulheres e 162 homens em 2019 e 114 mulheres e 86 homens em 2020. Em 2019, 286 pacientes já possuíam alguma comorbidade prévia, em 2020, 105 pacientes apresentavam comorbidades. A faixa etária foi similar entre os dois grupos, com o grupo 1 apresentando média de desvio padrão de 46,92 ± 15,18 e o grupo 2 de 48,42 ± 15,57.

Figura 1
Pacientes em 2019 versus 2020.

As variáveis quantitativas analisadas foram a faixa etária, morbidade, mortalidade e o volume de procedimentos cirúrgicos realizados. A análise estatística não encontrou diferença significativa (p>0,05) entre a média de idade. No entanto, foi encontrada diferença estatisticamente significativa (p<0,05) nas variáveis: morbidade, mortalidade e volume de procedimentos cirúrgicos realizados.

Em relação às complicações, 102 (18,8%) evoluíram com morbidade no grupo 1, e 54 (27%) no grupo 2, sendo as principais complicações: seroma, infecção da ferida operatória e hérnia incisional. Quanto à mortalidade, 7 (1,3%) pacientes vieram a óbito no grupo 1, e 13 (6,5%) no grupo 2. Dentre as causas de mortalidade, destaca-se no grupo 1 choque hemorrágico e choque séptico como sendo as principais causas de óbito (sendo cada tipo de choque responsável por 3 mortes), verificando-se ainda um óbito devido a quadro de acidose metabólica/distúrbio hidroeletrolítico. Já no grupo 2, choque séptico e infecção por COVID-19 corresponderam às principais causas de morte (sendo cada uma responsável por 5 óbitos), seguidos de choque hemorrágico, o qual foi associado a 3 óbitos neste grupo. Vale ressaltar que pacientes com comorbidades apresentaram maior taxa de mortalidade no ano de 2020, sendo esta de 10,6%, em comparação a taxa de 2,4% em 2019 (p<0,05). Pacientes que apresentaram complicações pós-operatórias em 2020 também apresentaram maior taxa de mortalidade, sendo esta taxa de 22,2% em comparação a 5,9% em 2019 (p<0,05). Dados demonstrados na Tabela 1.

Tabela 1
Prevalência de morbidade, mortalidade em pacientes que realizaram cirurgias eletivas de reparo de hérnia e/ou colecistectomia e volume de procedimentos cirúrgicos do ano de 2019 (março-dezembro) e no ano de 2020 (março-dezembro), em um Hospital Universitário - Curitiba/PR.

A análise demonstrou que também houve um aumento de internações na unidade de terapia intensiva, sendo necessárias 12 internações no grupo 1 e 23 internações no grupo 2. Em relação ao tempo de internação, o grupo 1 obteve uma média de desvio padrão de 3,51 ± 2,9 e o grupo 2 uma média de desvio padrão de 5,97 ± 6,9. Relativo ao tempo médio de procura por atendimento médico, houve uma diminuição de 377,43 dias no grupo 1, para 150,93 dias no grupo 2.

No total, ocorreram 6 casos de COVID-19 dentre os 200 pacientes analisados no ano de 2020, representando 3% do total de pacientes. Destes, 5 (83,33%) foram a óbito. A confirmação diagnóstica da infecção pela COVID-19 se deu através da realização de teste molecular PCR-RT no hospital após a realização dos procedimentos cirúrgicos.

DISCUSSÃO

A pandemia por COVID-19 impactou de forma significativa não somente o volume de procedimentos cirúrgicos como também diversos aspectos epidemiológicos relacionados.

No presente estudo, observou-se uma queda de 63,16% na quantidade total de colecistectomias e reparos de hérnia da parede abdominal durante a pandemia. Esta importante redução está de acordo com dados encontrados na literatura. Em artigo de McBride e colaboradores, por exemplo, verificou-se uma redução de 26% no número de procedimentos cirúrgicos eletivos e emergenciais ao ser feita a comparação entre os períodos de fevereiro a setembro de 2019 e 2020 em um centro de referência na Austrália1313 McBride KE et al. From the sidelines: The indirect repercussions of COVID-19 on the delivery of hospital surgical services. ANZ J Surg. 2021;91(7-8):1345-51. doi: 10.1111/ans.17016.
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. Outro estudo de Presl e colaboradores obteve uma queda de 42,5% na quantidade de procedimentos cirúrgicos de emergência na Áustria também na comparação entre os anos de 2019 e 2020, de modo que os reparos de hérnias de parede abdominal e colecistectomias de emergência foram reduzidos em 70% e 39% respectivamente1414 Presl J et al. Impact of the COVID-19 pandemic lockdown on the utilization of acute surgical care in the State of Salzburg, Austria: retrospective, multicenter analysis. Eur Surg. 2021;53(2):48-54. doi: 10.1007/s10353-021-00692-1.
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.

Dentre os 200 pacientes analisados no período de março a dezembro de 2020, 6 (3%) foram diagnosticados com COVID-19. Deste total, 5 pacientes (83,33%) foram a óbito após confirmação da infecção pelo vírus. Além disso, somente um destes pacientes foi diagnosticado com COVID-19 na mesma internação referente ao procedimento cirúrgico realizado. Os demais pacientes receberam alta hospitalar após a cirurgia e retornaram logo em seguida ao hospital com sintomatologia sugestiva de infecção por COVID-19, sendo então realizado teste molecular PCR-RT no hospital para confirmação diagnóstica. o que sugere que estes pacientes entraram em contato com o vírus durante a primeira internação, porém não apresentaram manifestações clínicas até o momento da alta.

As taxas de morbidade e mortalidade apresentaram aumento estatisticamente significativo no período da pandemia, o que está em concordância com a literatura. Cano-Valderrama e colaboradores demonstraram um aumento estatisticamente relevante na taxa de complicações pós-operatórias ao compararem grupos de pacientes operados antes e durante a pandemia, com a taxa subindo de 34,74% para 47,01% respectivamente88 Cano-Valderrama O et al. Acute care surgery during the COVID-19 pandemic in Spain: changes in volume, causes and complications. A multicenter retrospective cohort study. Int J Surg. 2020;80:157-61. doi: 10.1016/j.ijsu.2020.07.002.
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. Entretanto, a taxa de mortalidade foi muito semelhante em ambos os grupos, não representando aumento significativo. Já no artigo de Surek et al., foi observado um aumento estatisticamente importante na taxa de mortalidade durante a pandemia, porém as taxas de complicações foram semelhantes1515 Surek A et al. Effects of COVID-19 pandemic on general surgical emergencies: are some emergencies really urgent? Level 1 trauma center experience. Eur J Trauma Emerg Surg. 2021;47(3):647-52. doi: 10.1007/s00068-020-01534-7.
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. É interessante destacar também que a presença de comorbidades contribuiu significativamente para o aumento da taxa de mortalidade em 2020, uma vez que neste ano a taxa de mortalidade em pacientes com comorbidades foi de 10,6%, em comparação a uma taxa de 2,4% em 2019.

Ao mesmo tempo, nossa pesquisa obteve uma diminuição importante no tempo médio de procura por atendimento médico, o qual foi reduzido de 377,43 dias em 2019 para 150,93 dias em 2020. Esta redução consiste em um achado inesperado neste estudo, visto que a literatura relata de modo geral um aumento no tempo médio de procura por atendimento durante a pandemia. Em artigo de Patriti et al., por exemplo, onde foi aplicado questionário para cirurgiões de serviços de cirurgia geral na Itália, 40% dos cirurgiões relataram um atraso importante por parte dos pacientes na procura por atendimento na pandemia1616 Patriti A et al. FACS on behalf of the Associazione Chirurghi Ospedalieri Italiani (ACOI). Emergency general surgery in Italy during the COVID-19 outbreak: first survey from the real life. World J Emerg Surg. 2020;15(1):36. doi: 10.1186/s13017-020-00314-3.
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. Cano-Valderrama e Surek também apontam para um aumento no tempo de procura por atendimento médico durante a pandemia, o que levou a um aumento do número de pacientes com quadros clínicos mais graves e, portanto, a maiores taxas de morbidade e mortalidade observadas nestes estudos88 Cano-Valderrama O et al. Acute care surgery during the COVID-19 pandemic in Spain: changes in volume, causes and complications. A multicenter retrospective cohort study. Int J Surg. 2020;80:157-61. doi: 10.1016/j.ijsu.2020.07.002.
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,1515 Surek A et al. Effects of COVID-19 pandemic on general surgical emergencies: are some emergencies really urgent? Level 1 trauma center experience. Eur J Trauma Emerg Surg. 2021;47(3):647-52. doi: 10.1007/s00068-020-01534-7.
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.

A redução no tempo médio de procura aqui observada pode ser atribuída principalmente à priorização de casos emergenciais em relação aos pacientes eletivos, os quais tiveram suas cirurgias na grande maioria adiadas. Além disso, pode-se supor que a maior proporção de casos urgentes durante a pandemia levou a um aumento nas taxas de complicações e de mortalidade, visto que foram casos com quadro clínico mais grave no geral. Este aumento no atendimento de casos urgentes foi observado no estudo de Patriti também, o qual demonstra que 79,3% dos cirurgiões que participaram do estudo relatam ter operado somente casos urgentes no período pandêmico1616 Patriti A et al. FACS on behalf of the Associazione Chirurghi Ospedalieri Italiani (ACOI). Emergency general surgery in Italy during the COVID-19 outbreak: first survey from the real life. World J Emerg Surg. 2020;15(1):36. doi: 10.1186/s13017-020-00314-3.
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.

Verificou-se também um aumento estatisticamente significativo no tempo médio de internação no ano de 2020, entretanto alguns trabalhos na literatura trazem dados divergentes: em artigo de Presl et al., o tempo médio de internação foi reduzido de 4 para 3 dias na pandemia, representando uma queda de 25% neste valor1414 Presl J et al. Impact of the COVID-19 pandemic lockdown on the utilization of acute surgical care in the State of Salzburg, Austria: retrospective, multicenter analysis. Eur Surg. 2021;53(2):48-54. doi: 10.1007/s10353-021-00692-1.
https://doi.org/10.1007/s10353-021-00692...
. Os trabalhos de Patel et al. e de Cano-Valderrama et al. também demonstraram quedas importantes neste valor88 Cano-Valderrama O et al. Acute care surgery during the COVID-19 pandemic in Spain: changes in volume, causes and complications. A multicenter retrospective cohort study. Int J Surg. 2020;80:157-61. doi: 10.1016/j.ijsu.2020.07.002.
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,1717 Patel R et al. Frequency and severity of general surgical emergencies during the COVID-19 pandemic: single-centre experience from a large metropolitan teaching hospital. Ann R Coll Surg Engl. 2020;102(6):1-6. doi: 10.1308/rcsann.2020.0147.
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. Estas reduções relatadas na literatura provavelmente estão associadas, segundo os autores, ao manejo e liberação rápida de pacientes não portadores de COVID-19 de modo a evitar ao máximo o contágio destes pacientes com o vírus e preparar os sistemas de saúde para a pandemia, estratégia esta adotada por diversos países ao redor do mundo88 Cano-Valderrama O et al. Acute care surgery during the COVID-19 pandemic in Spain: changes in volume, causes and complications. A multicenter retrospective cohort study. Int J Surg. 2020;80:157-61. doi: 10.1016/j.ijsu.2020.07.002.
https://doi.org/10.1016/j.ijsu.2020.07.0...
,1414 Presl J et al. Impact of the COVID-19 pandemic lockdown on the utilization of acute surgical care in the State of Salzburg, Austria: retrospective, multicenter analysis. Eur Surg. 2021;53(2):48-54. doi: 10.1007/s10353-021-00692-1.
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. Por outro lado, em artigo de Fouad e colaboradores, o qual avaliou o impacto da pandemia no manejo de colecistite aguda, verificou-se um aumento no tempo médio de internação de pacientes submetidos a colecistectomia em 2020 (média de 13,5 dias) em comparação a 2019 (média de 2,6 dias)1818 Fouad MMB et al. Effect of the COVID-19 Pandemic on the Management of Acute Cholecystitis and Assessment of the Crisis Approach: A Multicenter Experience in Egypt. Asian J Endosc Surg. 2022;15(1):128-36. doi: 10.1111/ases.12980.
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. O autor atribui estes resultados novamente ao adiamento de um grande volume de procedimentos cirúrgicos, o que levou ao agravamento dos quadros de colecistite e, portanto, a cirurgias com maiores taxas de complicações, mais intercorrências intraoperatórias e consequentemente, a um maior tempo de internação1818 Fouad MMB et al. Effect of the COVID-19 Pandemic on the Management of Acute Cholecystitis and Assessment of the Crisis Approach: A Multicenter Experience in Egypt. Asian J Endosc Surg. 2022;15(1):128-36. doi: 10.1111/ases.12980.
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.

No presente estudo, pode-se explicar o aumento no tempo médio de internação devido aos aumentos significativos nas taxas de morbidade e de mortalidade e no número de internações em UTI durante o período pandêmico (evidenciando o aumento na incidência de complicações pós-operatórias). Este aumento também pode estar associado aos pacientes infectados por COVID-19 durante a internação, os quais apresentaram um tempo médio de internação elevado de 29,33 dias.

Vale enfatizar que o trabalho possui certas limitações, como o fato de ter sido realizado em um único hospital, a escassa literatura sobre o tema e o não acompanhamento das repercussões geradas pelas decisões de 2020 no ano de 2021, como o possível acúmulo de procedimentos por conta do adiamento das cirurgias eletivas e o aumento de complicações por tal postergação. Espera-se que mais estudos sejam feitos para avaliar os impactos da pandemia ao longo dos anos, de modo que melhores decisões possam ser tomadas futuramente, considerando os erros cometidos no passado.

CONCLUSÃO

É notório, portanto, que a pandemia da COVID-19 impactou significativamente os hospitais ao redor do mundo, em especial os setores cirúrgicos. Dentre as cirurgias, o presente estudo focou nos reparos de hérnia e as colecistectomias, em que foi percebida uma redução de mais de 63% na quantidade destes procedimentos comparando 2019 (ano não pandêmico) e 2020 (ano pandêmico). Por conta do cancelamento dos procedimentos eletivos e remanejo das equipes médicas para os setores de atendimento ao COVID-19, as cirurgias não urgentes foram deixadas para um segundo momento, de modo que apenas procedimentos de maior urgência fossem realizados durante o período. Esse fato foi demonstrado pela diminuição no tempo médio de procura por atendimento médico em 226,5 dias.

Ainda, é importante aludir quanto ao impacto direto da COVID nos pacientes submetidos aos procedimentos cirúrgicos, em que, dos que foram acometidos pelo vírus, mais de 80% foram a óbito. Observou-se ainda um aumento nas taxas de complicações e de mortalidade, um aumento no número de internações em UTI e aumento do tempo médio de internação durante a pandemia. Não houve diferença importante quanto às taxas de intercorrências intraoperatórias.

Vale ressaltar que, devido à finalidade de se comparar o momento pré-pandêmico com o pandêmico, analisou-se um grupo heterogêneos de pacientes, já que houve uma redução quantitativa de cirurgias realizadas. Assim, será possível uma continuação do presente estudo com os mesmos métodos comparando anos comprometidos pela pandemia, visto que, neste caso, a infecção pela COVID-19 seria distribuída de forma igualitária entre os grupos analisados.

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  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2022
  • Aceito
    15 Jun 2022
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