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Valor da autópsia no diagnóstico de lesões despercebidas e na definição de metas para programa de qualidade em trauma: estudo de 192 casos

RESUMO

Objetivo:

Avaliar a utilidade da autópsia no diagnóstico de lesões despercebidas (LD) e no estabelecimento de metas para programa de qualidade em trauma.

Método:

análise retrospectiva dos laudos de autópsia por trauma entre outubro/2017 e março/2019 provenientes do mesmo hospital. Lesões descritas na autópsia, mas não no prontuário médico, foram consideradas como despercebidas (LD) e classificadas pelos critérios de Goldman: Classe I: mudariam a conduta e alterariam o desfecho; Classe II: mudariam a conduta, mas não o desfecho; Classe III: não mudariam nem a conduta nem o desfecho. As variáveis coletadas foram comparadas entre o grupo com LD e os demais, através de método estatístico orientado por profissional na área. Consideramos p<0,05 como significativo.

Resultados:

analisamos 192 casos, com média etária de 56,8 anos. O trauma fechado foi o mecanismo em 181 casos, sendo 28,6% por quedas da própria altura. LD foram observadas em 39 casos (20,3%), sendo 3 (1,6%) classe I e 11 (5,6%) classe II. O tórax foi o segmento com maior número de LD (25 casos - 64,1% das LD). Foram associados à presença de LD (p<0,05): tempo de internação menor que 48 horas, mecanismo de trauma grave e a não realização de procedimento cirúrgico ou tomografia. Nos óbitos até 48h, valores de ISS e NISS nas autópsias foram maiores que os da internação.

Conclusão:

a revisão das autópsias permitiu identificação de LD, na sua maioria sem influência sobre conduta e prognóstico. Mesmo assim, várias oportunidades foram criadas para o programa de qualidade.

Palavras-chave:
Autopsia; Índices de Gravidade do Trauma; Diagnóstico Ausente; Traumatismo Múltiplo

ABSTRACT

Objective:

to assess the role of autopsy in the diagnosis of missed injuries (MI) and definition of trauma quality program goals.

Method:

Retrospective analysis of autopsy reports and patient’s charts. Injuries present in the autopsy, but not in the chart, were defined as “missed”. MI were characterized using Goldman’s criteria: Class I, if the diagnosis would have modified the management and outcome; Class II, if it would have modified the management, but not the outcome; Class III, if it would not have modified neither the management nor the outcome. We used Mann-Whitney’s U and Pearson’s chi square for statistical analysis, considering p<0.05 as significant.

Results:

We included 192 patients, with mean age of 56.8 years. Blunt trauma accounted for 181 cases, and 28.6% were due to falls from the same level. MI were diagnosed in 39 patients (20.3%). Using Goldman’s criteria, MI were categorized as Class I in 3 (1.6%) and Class II in 11 (5.6%). MI were more often diagnosed in the thoracic segment (25 patients, 64.1% of the MI). The variables significantly associated (p<0.05) to MI were: time of hospitalization < 48 h, severe trauma mechanism, and not undergoing surgery or computed tomography. At autopsy, the values of ISS and NISS were higher in patients with MI.

Conclusion:

the review of the autopsy report allowed diagnosis of MIs, which did not influence outcome in their majority. Many opportunities of improvement in quality of care were identified.

Keywords:
Autopsy; Trauma Severity Indices; Missed Diagnosis; Multiple Trauma

INTRODUÇÃO

A doença trauma é reconhecida há décadas como uma das principais causas de morte e impacto sócio-econômico em todo mundo11 WHO health statisticas 2014. P 71-92.. Segundo o DATASUS, em 2019, o trauma foi responsável por 142.800 mortes no Brasil22 TabNet Win32 3.0: Óbitos por Causas Externas - Brasil [Internet]. [cited 2022 Feb 4]. Available from: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/ext10uf
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. As causas mais frequentes são o trauma cranioencefálico, seguido de hemorragia e associações, decorrentes de acidentes de tráfego e violência interpessoal33 Stewart RM, Myers JG, Dent DL, Ermis P, Gray GA, Villarreal R, et al. Seven hundred fifty-three consecutive deaths in a level I trauma center: The argument for injury prevention. Journal of Trauma. 2003;54(1):66-71.,44 Wilson JL, Herbella FAM, Takassi GF, Moreno DG, Tineli AC. Fatal trauma injuries in a Brazilian big metropolis: a study of autopsies. Revista do Colegio Brasileiro de Cirurgioes [Internet]. 2011 Mar [cited 2022 Feb 4];38(2):122-6. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21710051/
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.

O trauma é uma “tempestade perfeita”, capaz de induzir o mais experiente médico ao erro55 Gruen RL, Jurkovich GJ, McIntyre LK, Foy HM, Maier R v. Patterns of errors contributing to trauma mortality: lessons learned from 2,594 deaths. Annals of surgery [Internet]. 2006 Sep [cited 2022 Feb 4];244(3):371-8. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16926563/
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. Há fatores que predispõem à falha, como lidar com pacientes instáveis sem as informações necessárias, ser obrigado a tomar decisões prontamente e em tempo limitado, bem como lidar com múltiplas tarefas e diferentes equipes simultaneamente55 Gruen RL, Jurkovich GJ, McIntyre LK, Foy HM, Maier R v. Patterns of errors contributing to trauma mortality: lessons learned from 2,594 deaths. Annals of surgery [Internet]. 2006 Sep [cited 2022 Feb 4];244(3):371-8. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16926563/
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. O resultado é relatado em vários estudos, que descrevem detalhadamente os eventos adversos, mesmo nos melhores centros de trauma e sistemas maduros de atendimento55 Gruen RL, Jurkovich GJ, McIntyre LK, Foy HM, Maier R v. Patterns of errors contributing to trauma mortality: lessons learned from 2,594 deaths. Annals of surgery [Internet]. 2006 Sep [cited 2022 Feb 4];244(3):371-8. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16926563/
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6 World Health Organization., International Society of Surgery., International Association of Trauma Surgery and Intensive Care. Guidelines for trauma quality improvement programmes. World Health Organization; 2009. 104 p.

7 Vioque SM, Kim PK, McMaster J, Gallagher J, Allen SR, Holena DN, et al. Classifying errors in preventable and potentially preventable trauma deaths: a 9- year review using the Joint Commission's standardized methodology. American journal of surgery [Internet]. 2014 [cited 2022 Feb 4];208(2):187-94. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24814306/
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-88 Teixeira PGR, Inaba K, Hadjizacharia P, Brown C, Salim A, Rhee P, et al. Preventable or potentially preventable mortality at a mature trauma center. The Journal of trauma [Internet]. 2007 [cited 2022 Feb 4];63(6):1338-47. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/18212658/
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. Desta forma, a implementação de programas de qualidade é fundamental99 Stelfox HT, Straus SE, Nathens A, Bobranska-Artiuch B. Evidence for quality indicators to evaluate adult trauma care: a systematic review. Critical care medicine [Internet]. 2011 [cited 2022 Feb 4];39(4):846-59. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21317653/
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.

A revisão dos óbitos e das falhas no atendimento são ferramentas importantes nos programas de qualidade. Vioque et al., em 2014, revisaram 377 mortes em vítimas de trauma, classificando 106 casos (28%) como “evitáveis” ou “potencialmente evitáveis”77 Vioque SM, Kim PK, McMaster J, Gallagher J, Allen SR, Holena DN, et al. Classifying errors in preventable and potentially preventable trauma deaths: a 9- year review using the Joint Commission's standardized methodology. American journal of surgery [Internet]. 2014 [cited 2022 Feb 4];208(2):187-94. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24814306/
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. Teixeira et al., em 2007, classificaram as falhas como decorrentes de atraso no tratamento, erros de julgamento clínico, problemas técnicos e lesões despercebidas (LD)88 Teixeira PGR, Inaba K, Hadjizacharia P, Brown C, Salim A, Rhee P, et al. Preventable or potentially preventable mortality at a mature trauma center. The Journal of trauma [Internet]. 2007 [cited 2022 Feb 4];63(6):1338-47. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/18212658/
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.

A análise das lesões despercebidas é importante para entendermos o que realmente ocorreu com o paciente1010 Hardcastle TC. Missed injury - Decreasing morbidity and mortality: A literature review. South African Journal of Surgery. 2011 Nov;49(4):199-201.,1111 Sharma BR, Gupta M, Harish D, Pal Singh V. Missed diagnoses in trauma patients vis-à-vis significance of autopsy. Injury [Internet]. 2005 Aug [cited 2022 Feb 4];36(8):976-83. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16005004/
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. A autópsia se mostrou um instrumento importante na identificação de lesões não diagnosticadas, que ocorrem em 10% a 47% dos óbitos hospitalares em vítimas de trauma1111 Sharma BR, Gupta M, Harish D, Pal Singh V. Missed diagnoses in trauma patients vis-à-vis significance of autopsy. Injury [Internet]. 2005 Aug [cited 2022 Feb 4];36(8):976-83. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16005004/
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12 Albrektsen SB, Thomsen JL. Detection of injuries in traumatic deaths. The significance of medico-legal autopsy. Forensic science international [Internet]. 1989 [cited 2022 Feb 4];42(1-2):135-43. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/2759519/
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13 Stothert JC, Gbaanador GBM, Herndon DN. The role of autopsy in death resulting from trauma. The Journal of trauma [Internet]. 1990 [cited 2022 Feb 4];30(8):1021-5. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/2388303/
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14 Ong AW, Cohn SM, Cohn KA, Jaramillo DH, Parbhu R, McKenney MG, et al. Unexpected findings in trauma patients dying in the intensive care unit: results of 153 consecutive autopsies. Journal of the American College of Surgeons [Internet]. 2002 [cited 2022 Feb 4];194(4):401-6. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/11949744/16
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15 Sharma BR, Gupta M, Bangar S, Singh VP. Forensic considerations of missed diagnoses in trauma deaths. Journal of forensic and legal medicine [Internet]. 2007 May [cited 2022 Feb 4];14(4):195-202. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16914359/
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16 Steinwall D, Befrits F, Naidoo SR, Hardcastle T, Eriksson A, Muckart DJJ. Deaths at a Level 1 Trauma Unit: a clinical finding and post-mortem correlation study. Injury [Internet]. 2012 Jan [cited 2022 Feb 4];43(1):91-5. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21106197/
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17 Autopsies and death certification in deaths due to blunt trauma: what are we missing? - PubMed [Internet]. [cited 2022 Feb 4]. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/10812348/
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/10812348...
-1818 Boudreau RM, O’Neal E, Besl KM, Gordon SJ, Ralston W, Elterman JB, et al. Do Autopsies Still Matter? The Influence of Autopsy Data on Final Injury Severity Score Calculations. The Journal of surgical research [Internet]. 2019 Jan 1 [cited 2022 Feb 4];233:453–8. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30502285/
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. O código penal brasileiro exige a autópsia de todos os casos de suspeita ou morte não natural1919 1779_2005.htm - 1779_2005.pdf [Internet]. [cited 2022 Mar 4]. Available from: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2005/1779
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. Apesar da lei promover um alto número de autópsias, não encontramos muitos estudos nacionais que comparam os achados ante-mortem e post-mortem das vítimas de trauma1919 1779_2005.htm - 1779_2005.pdf [Internet]. [cited 2022 Mar 4]. Available from: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2005/1779
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.

Nosso estudo tem como objetivo analisar o valor da autópsia na identificação de lesões despercebidas e suas características, bem como no seu uso na definição de metas para programa de qualidade

MÉTODO

Este estudo foi aprovado pele comitê de ética e pesquisa de nosso hospital sob o registro CAAE: 24878919.0.0000.5479.

Realizamos uma análise retrospectiva dos laudos de autópsia por trauma realizadas no Instituto Médico Legal - SP (IML), de casos atendidos entre outubro de 2017 a março de 2019 provenientes do mesmo hospital. Em cada autópsia, observamos o laudo descritivo, as lesões relatadas e as causas de óbito. Cada caso teve seu prontuário hospitalar revisado, com intuíto de comparar as informações da internação com o laudo da autópsia. Foram excluídos os pacientes admitidos em parada cardiorrespiratória, os casos de reinternação por complicações pós-trauma, os com dados insuficientes e os com diagnósticos de trauma não confirmado (por ausência de lesão traumática na internação e na autópsia).

Coletou-se dados demográficos, mecanismo de trauma, conduta inicial, lesões identificadas e seu tratamento, como também o tempo entre admissão e óbito. Todas as lesões observadas durante à internação, bem como as descritas nos laudos de autópsia, foram estratificadas conforme o Abbreviated Injury Scale 2015 (AIS 2015), Injury Severity Score (ISS) e New Injury Severity Score (NISS)2020 AIS 2015 Released - Association for the Advancement of Automotive Medicine [Internet]. [cited 2022 Feb 4]. Available from: https://www.aaam.org/ais-2015- released/
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21 Osler T, Baker SP, Long W. A modification of the injury severity score that both improves accuracy and simplifies scoring. The Journal of trauma [Internet]. 1997 Dec [cited 2022 Feb 4];43(6):922-6. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/9420106/
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-2222 The injury severity score: a method for describing patients with multiple injuries and evaluating emergency care - PubMed [Internet]. [cited 2022 Feb 4]. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/4814394/
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. Sucintamente, a escala AIS classifica as lesões em 6 graus, sendo as AIS≥3 consideradas como graves.

Consideramos a variável “tempo de internação” (TI) como aquele entre internação em nosso hospital e o óbito. A variável “tempo entre o primeiro atendimento e óbito” (TPAO) se refere ao tempo entre o primeiro atendimento no hospital de origem até o óbito, no nosso hospital, sendo calculado nos pacientes transferidos de outro serviço.

Uma dupla de revisores (cirurgiões) analisou os prontuários dos pacientes elegíveis e os seus laudos de autópsia para definir a presença de lesões despercebidas e seu impacto sobre o desfecho. Em caso de dúvida persistente, um terceiro revisor foi chamado a dar sua opinião para desempate. Uma lesão foi considerada “despercebida” quando, a partir de sua observação no laudo da autópsia, ela não pode ser identificada em prontuário.

O impacto das lesões despercebidas no desfecho foi estimada a partir da modificação dos critérios clínico-patológicos de Goldman, método também usado por Ong et al. e Light et al.1414 Ong AW, Cohn SM, Cohn KA, Jaramillo DH, Parbhu R, McKenney MG, et al. Unexpected findings in trauma patients dying in the intensive care unit: results of 153 consecutive autopsies. Journal of the American College of Surgeons [Internet]. 2002 [cited 2022 Feb 4];194(4):401-6. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/11949744/16
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,2323 Goldman L, Sayson R, Robbins S, Cohn LH, Bettmann M, Weisberg M. The value of the autopsy in three medical eras. The New England journal of medicine [Internet]. 1983 Apr 28 [cited 2022 Feb 4];308(17):1000-5. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/6835306/
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,2424 Light TD, Royer NA, Zabell J, Le MB, Thomsen TA, Kealey GP, et al. Autopsy after traumatic death--a shifting paradigm. The Journal of surgical research [Internet]. 2011 May 1 [cited 2022 Feb 4];167(1):121-4. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/20031159/
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.

  • Classe I: lesões que, se diagnosticadas, possivelmente mudariam a conduta e alterariam o desfecho;

  • Classe II: lesões que, se diagnosticadas, possivelmente mudariam a conduta, mas não alterariam o desfecho;

  • Classe III: lesões que não mudariam nem a conduta nem o desfecho;

  • Classe IV (este item é uma adição dos autores deste estudo, pela impossibilidade de classificação com base nas informações disponíveis): paciente possui lesão despercebida, mas não há dados para classificá-la.

Se mais de uma LD fosse identificada em um paciente, a classificação de Goldman seria anotada como a da lesão mais grave.

Realizamos uma comparação das variáveis coletadas entre dois grupos:

  • a) Grupo com LD: com lesões despercebidas caracterizadas conforme critérios acima, excluindo os pacientes com lesões classe III e AIS=1, pois estas correspondiam a lesões mínimas, sem significado clínico, que possivelmente não foram valorizadas no contexto dos traumas graves (P. ex. escoriação de coxa direita).

  • b) Grupo sem LD: Demais pacientes

Os pacientes com lesões “não classificáveis” na autópsia, seja por falta de dados ou pelo fato de terem sido tratadas na internação (p.ex. paciente com lesão esplênica tratado por esplenectomia) foram excluídos do cálculo dos ISS e NISS. Por tal motivo não realizamos a comparação do ISS e NISS calculados entre a internação e autópsia.

A análise estatística foi conduzida por profissional da área, em conjunto com os autores. Os dados foram apresentados como médias, desvios-padrão, valores mínimos e máximos dos escores das variáveis quantitativas e proporções para as variáveis qualitativas. Realizamos o teste de Shapiro-Wilk para verificar a aderência das variáveis quantitativas à distribuição normal, determinando os tipos de testes estatísticos a serem utilizados. Para as variáveis categóricas, as análises de associação foram feitas utilizando o teste qui-quadrado de Pearson. Havendo alguma variável com frequência esperada menor que 5 na casela utilizamos o teste qui-quadrado com correção de Yates. Para comparação das médias das variáveis quantitativas segundo variáveis dicotômicas foi utilizado o teste U de Mann-Whitney. Em todas as análises foi utilizado o nível descritivo p<0,05. Para fins das análises univariadas, algumas variáveis qualitativas tiveram suas categorias agrupadas, como também, variáveis quantitativas foram categorizadas, utilizando como critérios as distribuições de frequência e/ou risco observado e/ou pontos de corte de literatura. Para realização das análises estatísticas foi utilizado o software STATA versão 14.

RESULTADOS

Trezentos e quarenta pacientes foram incluídos inicialmente. Foram excluídos 31 casos encaminhados ao IML como vítimas de trauma, mas sem lesões traumáticas identificadas na autópsia, outros 11 por ser reinternação, 19 por dados insuficientes e 87 pacientes que chegaram ao hospital em parada cardiorrespiratória.

A amostra foi constituída de 192 casos, sendo 78,1% do sexo masculino, com média etária de 56,8 anos. Oitenta e cinco pacientes (44,3%) tinham idade igual ou superior a 60 anos (Tabela 1). O mecanismo de trauma mais frequente foi a queda de própria altura, em 55 casos (28,6%) (Tabela 1). Trinta e oito pacientes (19,8%) vieram transferidos de outros hospitais. O tempo entre internação e óbito foi menor que dois dias em 48 (25,0%) casos e maior que 14 dias em 66 (34,4%) (Figura 1). A tomografia computadorizada foi realizada em 155 (81,0%) pacientes e 90 (47,0%) foram submetidos a algum procedimento cirúrgico.

Tabela 1
Distribuição dos 192 pacientes conforme faixa etária e mecanismo de trauma.

Figura 1
Tempo de internação e tempo entre primeiro atendimento e óbito.

Segundo as informações do prontuário, 62,4% dos pacientes tinham lesões no segmento cefálico, 45,3% em extremidades, 20,9% em tórax e 11,4% em abdome. As lesões com AIS≥3 foram identificadas no segmento cefálico em 57,9%, nas extremidades em 20,9%, no tórax em 13,0% e no abdome em 6,8% (Figura 2A). O trauma raquimedular foi identificado em 14,2%. Nas autópsias, as lesões em segmento cefálico foram identificadas em 65,7%, sendo 54,7% com AIS≥3 (Figura 2B). A média e o desvio padrão do ISS calculado durante a internação e na autópsia foram 16,9±8,5 e 14,6±9,3, respectivamente. O NISS calculado durante a internação foi 24,5±14,0 e, o da autópsia, 21,0±12,3.

Figura 2a
Lesões identificadas na internação, separadas por segmento corporal e Abbreviated Injury Scale (AIS).

Figura 2b
Lesões identificadas na autópsia, separadas por segmento corporal e Abbreviated Injury Scale (AIS).

As lesões despercebidas foram identificadas em trinta e nove pacientes (20,3%). Segundo os critérios de Goldman, vinte e quatro (12,5%) foram classe III, 11 (5,7%) classe II e 3 (1,6%) classe I. Um paciente não teve dados suficientes para classificação (classe IV). As LD foram mais frequentemente identificadas no tórax (25 casos - 64,1%), no crânio (13 casos - 33,3%) e no abdome (11 casos - 28,2%). Se considerarmos apenas as LD Goldman I e II, o tórax foi o segmento mais acometido, com 9 casos, seguido de crânio (2), abdome (2) e extremidades (1) (Tabela 2).

Tabela 2
Distribuição das lesões despercebidas (LD) classificadas como Goldman I ou II (somadas) por segmento anatômico, na amostra de 192 pacientes.

As LD foram significativamente menos frequentes em vítimas de quedas de própria altura (9,1% vs. 24,8%, p=0,011). Quedas de altura e atropelamentos tiveram frequência significativamente maior de LD, sendo 33,3% e 26,7%, respectivamente (Tabela 3). As LD foram menos frequentes nos pacientes que foram submetidos a algum procedimento cirúrgico (12,9% vs. 27,3%, p=0,013). O mesmo ocorreu no grupo que realizou tomografia computadorizada, em comparação aos demais (14,8% vs. 43,2%, p<0,001). As LD ocorreram mais frequentemente no grupo de pacientes que faleceu até 48h (47,9% vs. 11,1%, p<0,001) (Tabela 3).

Tabela 3
Análise das características pessoais e internação, conforme presença de lesão despercebida.

Na autópsia, os valores do ISS (20,9±10,9 vs. 12,4±7,6; p<0,001) e do NISS (26,8±12,0 vs. 19,0±11,8; p<0,001) foram maiores nos pacientes com LD. Ao analisarmos os óbitos até 48 da internação, a média do ISS (23,6±10,4 vs. 13,4±7,2; p<0,001) na autópsia foi também maior nos pacientes com lesões despercebidas.

DISCUSSÃO

Identificamos alguns pontos importantes na análise da nossa amostra. A distribuição das mortes ocorre de maneira equilibrada entre as faixas etárias, com 44,3% em pacientes idosos. O mecanismo de queda de própria altura é o mais frequente, o que pode ser explicado pela presença dos pacientes idosos2525 Parreira JG, Farrath S, Soldá SC, Perlingeiro JAG, Assef JC. Comparative analysis of trauma characteristics between elderly and superelderly. Revista do Colegio Brasileiro de Cirurgioes. 2013;40(4): 269-274.. As lesões cranioencefálicas são as mais frequentes e as mais graves, sendo a principal causa de óbito. Dutton et al., em 2010, registraram que 51,6% dos óbitos em trauma ocorreram por lesões intracranianas2626 Dutton RP, Stansbury LG, Leone S, Kramer E, Hess JR, Scalea TM. Trauma mortality in mature trauma systems: are we doing better? An analysis of trauma mortality patterns, 1997-2008. The Journal of trauma [Internet]. 2010 Sep [cited 2022 Feb 4];69(3):620-6. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/20093983/
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. Nossa amostra foi também caracterizada por baixa porcentagem de ferimentos penetrantes, comparado a outras séries brasileiras44 Wilson JL, Herbella FAM, Takassi GF, Moreno DG, Tineli AC. Fatal trauma injuries in a Brazilian big metropolis: a study of autopsies. Revista do Colegio Brasileiro de Cirurgioes [Internet]. 2011 Mar [cited 2022 Feb 4];38(2):122-6. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21710051/
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,2727 Trajano AD, Pereira BM, Fraga GP. Epidemiology of in-hospital trauma deaths in a Brazilian university hospital. BMC emergency medicine [Internet]. 2014 Oct 31 [cited 2022 Feb 4];14(1). Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/25361609/
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/25361609...
.

Trunkey, em 1983, descreveu a distribuição trimodal das mortes em traumatizados2828 Trunkey DD. Trauma. Accidental and intentional injuries account for more years of life lost in the U.S. than cancer and heart disease. Among the prescribed 17 remedies are improved preventive efforts, speedier surgery and further research - PubMed [Internet]. [cited 2022 Feb 4]. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/6623052/
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/6623052...
. Neste modelo, cerca de 50% das mortes ocorreriam imediatamente após o trauma, 30% algumas horas após e, as demais, tardiamente. As mortes do segundo pico, entendidas como “precoces”, seriam consideradas evitáveis ou potencialmente evitáveis, direcionado esforços de melhoria de qualidade no atendimento. Nos últimos anos, com a melhoria do atendimento pré-hospitalar e hospitalar, observou-se mudança neste cenário, com distribuição bimodal ou mesmo em pico único de mortes, que ocorreria precocemente após o trauma2929 Hwang K, Jung K, Kwon J, Moon J, Heo Y, Lee JCJ, et al. Distribution of Trauma Deaths in a Province of Korea: Is "Trimodal" Distribution Relevant Today? Yonsei medical journal [Internet]. 2020 Mar 1 [cited 2022 Feb 4];61(3):229-34. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32102123/
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32102123...
.

Observamos que 25% dos nossos casos faleceram até 48h de internação, sendo justamente o grupo mais grave e com maior chance de ter lesões despercebidas. Contudo, mais da metade dos pacientes faleceu após 7 dias de internação. É importante diferenciar nosso estudo dos que analisam mortes em trauma de uma maneira geral. As mortes pré-hospitalares, bem como os pacientes em parada cardiorrespiratória a admissão, não fazem parte da nossa amostra, o que pode explicar os números diferentes.

Este fato pode ser compreendido pelo estudo de Evans et al., que identificaram uma distribuição diferente dos óbitos de acordo com a gravidade do trauma3030 Evans JA, van Wessem KJP, McDougall D, Lee KA, Lyons T, Balogh ZJ. Epidemiology of traumatic deaths: comprehensive population-based assessment. World journal of surgery [Internet]. 2010 Jan [cited 2022 Feb 4];34(1):158-63. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/19882185/
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. Estes autores observaram maior frequência de óbitos em até 48h para traumas de alta energia (79,4%). Já para mecanismos de menor complexidade (quedas menores de 1 metro) a relação se inverte, com apenas 20% dos óbitos até 48h e 49% em mais de 7 dias. Nossos dados também demonstram essa tendência, uma vez que a maioria dos nossos casos foram de mecanismos com menor energia (quedas de própria altura), com valores baixos de ISS e NISS.

A incidência de LD foi comparável a outros estudos1111 Sharma BR, Gupta M, Harish D, Pal Singh V. Missed diagnoses in trauma patients vis-à-vis significance of autopsy. Injury [Internet]. 2005 Aug [cited 2022 Feb 4];36(8):976-83. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16005004/
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,1212 Albrektsen SB, Thomsen JL. Detection of injuries in traumatic deaths. The significance of medico-legal autopsy. Forensic science international [Internet]. 1989 [cited 2022 Feb 4];42(1-2):135-43. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/2759519/
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,1515 Sharma BR, Gupta M, Bangar S, Singh VP. Forensic considerations of missed diagnoses in trauma deaths. Journal of forensic and legal medicine [Internet]. 2007 May [cited 2022 Feb 4];14(4):195-202. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16914359/
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,1818 Boudreau RM, O’Neal E, Besl KM, Gordon SJ, Ralston W, Elterman JB, et al. Do Autopsies Still Matter? The Influence of Autopsy Data on Final Injury Severity Score Calculations. The Journal of surgical research [Internet]. 2019 Jan 1 [cited 2022 Feb 4];233:453–8. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30502285/
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,3131 Steinwall D, Befrits F, Naidoo SR, Hardcastle T, Eriksson A, Muckart DJJ. Deaths at a Level 1 Trauma Unit: A clinical finding and post-mortem correlation study. Injury. 2012 Jan;43(1):91-5.. Observamos LD em cerca de 20,3% em nossos casos, sendo 35,9% das classes I e II. Albreksten e Thomsen descreveram LD em 34,0% de 218 autópsias revisadas, sendo 81,3% consideradas associadas ao desfecho clínico1212 Albrektsen SB, Thomsen JL. Detection of injuries in traumatic deaths. The significance of medico-legal autopsy. Forensic science international [Internet]. 1989 [cited 2022 Feb 4];42(1-2):135-43. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/2759519/
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. Sharma et al., identificaram 11,2% de LD em 842 autópsias, em um serviço com alta porcentagem de queimados (25%)1111 Sharma BR, Gupta M, Harish D, Pal Singh V. Missed diagnoses in trauma patients vis-à-vis significance of autopsy. Injury [Internet]. 2005 Aug [cited 2022 Feb 4];36(8):976-83. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16005004/
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. Steinwall et al. estudaram 132 óbitos observando incidência de 10,6% de LD, sendo 28,6% relacionadas ao óbito1616 Steinwall D, Befrits F, Naidoo SR, Hardcastle T, Eriksson A, Muckart DJJ. Deaths at a Level 1 Trauma Unit: a clinical finding and post-mortem correlation study. Injury [Internet]. 2012 Jan [cited 2022 Feb 4];43(1):91-5. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21106197/
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. Ong et al. observaram que 19% dos casos de autópsias pós trauma apresentavam algum diagnóstico clinicamente relevante não identificado durante a internação1414 Ong AW, Cohn SM, Cohn KA, Jaramillo DH, Parbhu R, McKenney MG, et al. Unexpected findings in trauma patients dying in the intensive care unit: results of 153 consecutive autopsies. Journal of the American College of Surgeons [Internet]. 2002 [cited 2022 Feb 4];194(4):401-6. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/11949744/16
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. Estes achados reforçam a importância da realização de autópsia em traumatizados, bem como a análise dos seus resultados em programas que visam a melhora do atendimento.

As lesões despercebidas ocorreram mais frequentemente no segmento torácico (64,1%), correspondendo a 23,1% das lesões classes I e II. Boudreau et al., bem como Steinwall et al., observaram que mais de um terço das lesões despercebidas estavam também no segmento torácico1616 Steinwall D, Befrits F, Naidoo SR, Hardcastle T, Eriksson A, Muckart DJJ. Deaths at a Level 1 Trauma Unit: a clinical finding and post-mortem correlation study. Injury [Internet]. 2012 Jan [cited 2022 Feb 4];43(1):91-5. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21106197/
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,1818 Boudreau RM, O’Neal E, Besl KM, Gordon SJ, Ralston W, Elterman JB, et al. Do Autopsies Still Matter? The Influence of Autopsy Data on Final Injury Severity Score Calculations. The Journal of surgical research [Internet]. 2019 Jan 1 [cited 2022 Feb 4];233:453–8. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30502285/
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, assim como em nosso estudo.

A escala AIS e os índices de gravidade ISS e NISS são utilizados para estratificar a gravidade anatômica das lesões. Boudreau et al., descreveram um aumento médio de 38,9% nos valores de ISS observados na autópsia, em relação ao anotado durante a internação1818 Boudreau RM, O’Neal E, Besl KM, Gordon SJ, Ralston W, Elterman JB, et al. Do Autopsies Still Matter? The Influence of Autopsy Data on Final Injury Severity Score Calculations. The Journal of surgical research [Internet]. 2019 Jan 1 [cited 2022 Feb 4];233:453–8. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30502285/
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. Como no nosso estudo, estes autores notaram esta diferença nos óbitos precoces, mas não nas internações prolongadas. Esses dados também reforçam a importância da análise post mortem para compreensão da evolução do paciente.

O nosso estudo possui algumas limitações. Por ser retrospectivo, os dados de prontuário e de autópsia não são completos em muitos casos. As descrições da autópsia não são compatíveis, muitas vezes, com a denominação do AIS, o que necessitou de interpretação por parte dos revisores. A classificação das lesões conforme a escala do AIS e a estratificação por classes é dependente tanto do detalhamento e clareza da fonte de dados, quanto da habilidade dos revisores de interpretá-los, o que pode corresponder a um viés. Ressalta-se que em alguns códigos do AIS são baseados em informações clínicas e dificultam seu uso principalmente na análise dos dados de autópsia, nas quais as descrições são algumas vezes limitadas.

Talvez o ponto mais forte de nosso estudo seja a comparação da evolução clínica com os achados da autópsia, o que não é frequente em nosso meio. A maioria dos estudos visa a descrição das causas de óbitos e não faz uma ligação com o atendimento hospitalar. Em estudos anteriores, tivemos a oportunidade de estudar desfechos com bases em índices de trauma, classificando óbitos como evitáveis ou não. Com o resultado muitas vezes surpreendentes da autópsia, há uma visão mais ampla do problema e dos pontos a serem trabalhados no programa de qualidade.

Um programa de qualidade em trauma tem como metas a identificação de oportunidades para melhora do atendimento, o planejamento e implantação de medidas com este objetivo, bem como a reavaliação para garantir a eficácia destas iniciativas. Com a análise dos dados deste estudo, podemos propor algumas ações para melhora da qualidade do atendimento. Pela presença de lesões despercebidas em 20,3% dos óbitos, poderíamos propor a avaliação terciária (reavaliação completa após 24h da admissão), como medida direcionada a diminuir estes números. Como as lesões despercebidas foram mais frequentes nos pacientes que não foram submetidos a TC, protocolos de realização deste exame precisam ser revistos, com intuito de oferecer esta oportunidade aos pacientes mais graves. Também foi observado que as LD ocorreram mais frequentemente nos traumatizados que não foram operados e nos com menor tempo entre admissão e óbito, reforçando a ideia de que a tomada de decisão cirúrgica é um ponto importante para identificação destas lesões. Com esta informação, nota-se a necessidade de treinamento da equipe no intuito de rapidamente tomar decisões como indicação de tomografia e reanimação no centro cirúrgico. Por fim, um fato contundente neste estudo foi a frequência de óbitos em idosos e nos com quedas de própria altura. Esta parte da amostra teve um tempo de internação maior com óbitos muitas vezes não relacionados a lesão traumática diretamente. A implementação de um grupo de cuidados específicos para atendimento destes casos, com visão multidisciplinar e com suporte de geriatras poderia ser uma opção para diminuir estes números. Obviamente, não podemos entender que estas ações terão o resultado esperado obrigatoriamente, ou mesmo que estas medidas sejam possíveis de ser implantadas. São propostas que devem ser discutidas com gestores e equipe assistencial, certamente sendo submetidas a avaliação de seus resultados em análise futura.

A mensagem principal deste estudo é que a análise da autópsia, em conjunto com a evolução do prontuário médico, permitiu identificação de lesões despercebidas, sua classificação e sugestão de pontos a serem trabalhados em programa de qualidade.

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  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2022
  • Aceito
    08 Jul 2022
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