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Anastomose uretero-ureteral término-lateral anisoperistáltica ultracurta no transplante renal

RESUMO

O aprimoramento das técnicas cirúrgicas no transplante renal tem o objetivo de reduzir a incidência de complicações pós-transplante, contribuindo com a redução do tempo de internamento hospitalar, os custos relacionados, a morbidade e a mortalidade, além de melhorar a qualidade de vida dos pacientes. A escolha da melhor técnica é influenciada por diversos fatores e a técnica mais comum de reconstrução do trato urinário nos transplantes é a realizada com implante do ureter do enxerto na posição caudal, com a anastomose feita na bexiga. No entanto, pode-se inverter o polo do rim, posicionando o polo inferior cranialmente e realizar a anastomose do ureter do enxerto diretamente no ureter do receptor, facilitando a anastomose ureteral e diminuindo as complicações urológicas.

Palavras-chave:
Transplante de Rim; Procedimentos Cirúrgicos Urológicos; Anastomose Cirúrgica; Complicações Pós-Operatórias; Ureter

ABSTRACT

The improvement of surgical techniques in kidney transplantation aims to reduce the incidence of post-transplant complications, contributing to the reduction of hospital stay, related costs, morbidity and mortality, in addition to improving the quality of life of patients. The choice of the best technique is influenced by several factors and the most common technique for urinary tract reconstruction in transplants is performed with implantation of the ureter of the graft in the caudal position, with the anastomosis performed in the bladder. However, the kidney pole can be inverted and the graft ureter anastomosis can be performed directly on the recipient’s ureter, facilitating venous and ureteral anastomoses and reducing urological complications.

Keywords:
Kidney Transplantation; Urological Surgical Procedures; Surgical Anastomosis; Postoperative Complications; Ureter

INTRODUÇÃO

O aprimoramento das técnicas cirúrgicas e o surgimento de drogas imunossupressoras mais efetivas transformaram o transplante renal em uma terapia substitutiva com elevada qualidade de vida e significativo aumento da sobrevida. Apesar da gradativa redução da morbidade operatória, o procedimento envolve grande variedade de complexas e detalhadas etapas sob o enxerto e seu receptor, agregando relevantes complicações cirúrgicas, sobretudo aquelas relacionadas ao trato urinário11 Deininger S, Nadalin S, Amend B, Guthoff M, Heyne N, Königsrainer A, et al. Minimal-invasive management of urological complications after kidney transplantation. Int Urol Nephrol. 2021;53(7):1267-77. doi: 10.1007/s11255-021-02825-7.
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. Melhorias do material de sutura e o refinamento das técnicas operatórias, contudo, têm permitido reduzir a incidência de complicações e da mortalidade pós-operatórias, contribuindo também para a redução do tempo de internamento e dos custos hospitalares22 Yang KK, Moinzadeh A, Sorcini A. Minimally-Invasive Ureteral Reconstruction for Ureteral Complications of Kidney Transplants. Urology. 2019;126:227-31. doi: 10.1016/j.urology.2019.01.002.
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Como regra geral, a técnica habitualmente empregada consiste no implante retroperitoneal do enxerto via incisão arciforme na fossa ilíaca. As anastomoses vasculares são realizadas de modo término-lateral na artéria e na veia ilíaca externa, respectivamente33 Brockschmidt C, Huber N, Paschke S, Hartmann B, Henne-Bruns D, Wittau M. Minimal access kidney transplant: A novel technique to reduce surgical tissue trauma. Exp Clin Transplant. 2012;10(4):319-24. doi: 10.6002/ect.2012.0045.
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Historicamente, anastomose ureteroneocis-tostomia intravesical a Politano-Leadbetter foi utilizada como técnica primária de reconstrução ureteral em transplante renal. No entanto, caiu em desuso devido às altas taxas de complicações. As técnicas de ureteroneocistostomia extravesical, que evitam grandes aberturas na bexiga e têm tempos operatórios mais curtos, reduziram as taxas de complicações de 10% para 6,3%, sendo a técnica de Lich-Gregoir mais utilizada atualmente. Nessas duas técnicas, o implante do ureter do enxerto é realizado na posição habitual, ou seja, com o polo inferior na posição caudal44 Suttle T, Fumo D, Baghmanli Z, Saltzman B, Ortiz J. Comparison of urologic complications between ureteroneocystostomy and ureteroureterostomy in renal transplant: A meta-analysis. Exp Clin Transplant. 2016;14(3):276-81. doi: 10.6002/ect.2015.0161.
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,55 Alberts VP, Idu MM, Legemate DA, Laguna Pes MP, Minnee RC. Ureterovesical anastomotic techniques for kidney transplantation: A systematic review and meta-analysis. Transpl Int. 2014;27(6):593-605. doi: 10.1111/tri.12301.
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TÉCNICA

O manejo operatório dos pacientes, incluindo rotina anestésicas, posicionamento cirúrgico, acesso e preparo do espaço extraperitoneal para receber o enxerto são realizados de maneira usual. Para emprego da técnica de anastomose uretero-ureteral término-lateral anisoperistáltica ultracurta, contudo, faz-se necessário a inversão do enxerto com aposição cranial do polo renal inferior a fim de aproximar as estruturas do rim transplantado as estruturas homólogas do receptor (Figura 1).

Figura 1
Posição do rim invertido e sua relação com os ureteres.

Seguindo a sequência habitual das anastomoses nos transplantes são realizadas as anastomoses venosa e arterial. A artéria e veia renais do enxerto são anastomosadas com as respectivas artéria e veia ilíacas externas do receptor, utilizando-se agulha atraumática e fio de polipropileno 6-0 em sutura contínua incluindo todos os planos da parede vascular. Após a perfusão do enxerto, é confeccionada a anastomose ureteral.

O ureter do enxerto fica posicionado cranial e muito próximo do ureter nativo, na altura de seu cruzamento com a artéria ilíaca comum (Figura 2). Este posicionamento invertido permite uma anastomose uretero-ureteral término-lateral com um ureter transplantado ultracurto, aproximadamente 2,0cm, preservando a vasta rede vascular periureteral (Figura 3). Realizar uma anastomose uretero-ureteral evita deixar um ureter longo, propício a angulações, isquemia ou necrose. A sutura inclui todos os planos da parede ureteral e é realizada de modo contínuo utilizando-se fio de polidioxanona 6-0 em agulha atraumática. Finalmente, os procedimentos de revisão, síntese e cuidados pós-operatórios seguem de modo usual, dispensando, inclusive, a colocação de cateter ureteral duplo J e a drenagem do leito cirúrgico (Figura 4).

Figura 2
Ureter do receptor aberto antes da realização da anastomose término-lateral.

Figura 3
Anastomose uretero-ureteral término-lateral ultracurta.

Figura 4
Rim invertido e suas anastomoses.

DISCUSSÃO

O transplante renal heterotópico comumente envolve o implante em posição crânio-caudal na fossa ilíaca do receptor e a confecção de ureteroneocistostomia extravesical sob a técnica de Lich-Gregoir55 Alberts VP, Idu MM, Legemate DA, Laguna Pes MP, Minnee RC. Ureterovesical anastomotic techniques for kidney transplantation: A systematic review and meta-analysis. Transpl Int. 2014;27(6):593-605. doi: 10.1111/tri.12301.
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. Neste contexto, complicações cirúrgicas podem ocorrer em até 15% dos casos, sendo a maioria delas relacionada ao trato urinário (5,9%)66 Carvalho JA, Nunes P, Antunes H, Parada B, Tavares da Silva E, Rodrigues L, et al. Surgical Complications in Kidney Transplantation: An Overview of a Portuguese Reference Center. Transplant Proc. 2019;51(5):1590-6. doi: 10.1016/j.transproceed.2019.05.001.
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. Dentre as complicações urinárias, as mais comuns são estenose ureteral e fístula, com incidências variáveis de 2,7% a 6,5% e 1,6% a 5,4%, respectivamente77 Abdo N, Murez T, Cabaniols L, Robert M, Marchal S, Amadane N, et al. Results of surgical revisions for ureteral complications after renal transplantation. Prog en Urol. 2019;29(10):474-81. doi: 10.1016/j.purol.2019.05.010.
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A estratégia de inversão renal, descrita pela primeira vez no início da década de 1970, não é comum e seu uso gera alguns questionamentos. Um deles é se essa posição causaria algum problema na vascularização do enxerto ou se dificultaria a drenagem da via urinária, já que haveria a necessidade deixar um ureter mais longo em se tratando de anastomoses vesicais. Entretanto, não é isso que ocorre: essa abordagem invertendo os polos renais e posicionando o polo inferior renal cranialmente permite aproximar as estruturas urinárias do rim transplantado com essas estruturas do receptor, facilitando a realização da anastomose ureteral ultracurta.

Apesar da maioria dos grupos transplantadores renais reservarem a anastomose uretero-ureteral como uma técnica de resgate para transplantes renais com complicações ureterais, o que se observa em poucos artigos na literatura é uma menor taxa de reoperação com essa técnica. Uma das explicações é que vascularização prejudicada do ureter distal do enxerto seria responsável por estenoses e necrose de ponta do ureter com extravasamentos de urina88 Bueno Jimenez A, Larreina L, Serradilla J, de Borja Nava F, Lobato R, Rivas S, et al. Upside-down kidney placement: An alternative in pediatric renal transplantation. J Pediatr Surg. 2021;56(8):1417-20. doi: 10.1016/j.jpedsurg.2020.09.019
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,99 Serrell EC, Su R, O'Kelly F, Semanik M, Farhat WA. The utility of native ureter in the management of ureteral complications in children after renal transplantation. Pediatr Transplant. 2021;25(7):1-11. doi: 10.1111/petr.14051.
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Uma grande preocupação dos cirurgiões que não realizam essa anastomose é como tratar possíveis complicações ureterais, uma vez que o ureter nativo não está mais disponível para correção adicional. Porém, o que ocorre é o inverso: uma maior facilidade no tratamento das complicações, já que uso do ureter nativo permite fácil cateterização endoscópica e, portanto, o fácil acesso a procedimentos endourológicos comuns, como a ureteroscopia, para investigar ou tratar qualquer evento urológico. Além disso, apesar do sistema antirrefluxo realizado na técnica de reimplante ureteral vesical a incidência de refluxo vesicoureteral permanece significativa e aumenta o risco de infecção recorrente do trato urinário e pielonefrite havendo, consequentemente, um prejuízo na função do enxerto1010 Timsit MO, Lallou F, Bayramov A, Taylor M, Billaut C, Legendre C, et al. Should routine pyeloureterostomy be advocated in adult kidney transplantation? A prospective study of 283 recipients. J Urol. 2010;184(5):2043-8. doi: 10.1016/j.juro.2010.06.144.
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Com a técnica de anastomose uretero-ureteral término-lateral, a sonda vesical é retirada no primeiro dia de pós-operatório, há um menor risco de infecção do trato urinário, a colocação de cateter duplo J não é necessária e a instrumentalização endo-ureteral ocorre de forma fisiológica, semelhante a pacientes não transplantados, reduzindo o insucesso relacionado ao acesso quando o implante se faz na cúpula vesical. A facilidade desta técnica diminui o tempo cirúrgico, permite reprodutibilidade entre os cirurgiões e preserva a anatomia do receptor.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à instituição e aos pacientes nos quais esta técnica está sendo realizada permitindo melhora da qualidade da sobrevida.

Agradecemos também ao Dr. Romero Marques, cirurgião vascular, pela arte gráfica.

Iremos disponibilizar os dados, métodos analíticos e materiais de estudo para outros pesquisadores, sob demanda específica após contato com o autor para correspondência: Dr. Rafael Azevedo Foinquinos.

REFERENCES

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  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Maio 2022
  • Aceito
    03 Ago 2022
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