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Xenotransplante: uma perspectiva consistente

RESUMO

Apresentam-se resultados de xenotransplante suíno de rim experimental no Brasil que visa reduzir as listas de espera nas quais falecem muitos inscritos à espera do transplante. Comentam-se os recentes resultados clínicos obtidos no exterior.

Palavras-chave:
Transplante Heterólogo; Proteína 9 Associada à CRISPR; Ética

ABSTRACT

Are presented results of experimental pig kidney xenotransplantation in Brazil, which aims to reduce the waiting list mortality due to shortage of organs. Recent clinical results obtained abroad are commented.

Keywords:
Transplants; CRISPR-Associated Protein 9; Ethical Theory

Em todos os centros transplantadores faltam órgãos causa das filas de espera. Muitos inscritos evoluem para óbito antes do procedimento. Tenta-se, então, desenvolver métodos para obter órgãos adicionais. O mais promissor é o xenotransplante que propõe transplantar órgãos animais em humanos.

Os suínos (Sus scrofa domesticus) são os doadores mais adequados. De fácil manuseio, onívoros, fisiologia semelhante à nossa, órgãos de tamanho compatível, curto período de gestação e leitegadas numerosas.

Entretanto, seu uso como doadores de órgãos depende de modificações no seu genoma, tais como, inativação (knock out) dos genes responsáveis pela produção de açúcares, causa da rejeição hiperaguda e do acréscimo (knock in) de genes humanos produtores de substancias capazes de modular a rejeição crônica

Em 2014, a técnica CRISPR-Cas9 facilitou as edições genéticas. Com facilidade permite bloquear, adicionar ou subtrair genes de qualquer ser vivo.

Com essa técnica, referem-se resultados experimentais de xenotransplante animadores. Em 2016, Mohammad Mohiuddin e col (Nature) relatam xenotransplante de coração suíno em babuínos, com sobrevida de até 2,5 anos. Em 2017, Hayato Iwase e col (Xenotransplantation) relatam, também em babuínos, xenotransplante de rim suíno com sobrevida de até 8 meses. Os animais foram sacrificados por outras causas (falta de acesso) com função renal excelente (sic).

Faltava resolver o risco da transmissão dos PERVs (pig endogenous retro virus), motivo da proibição do xenotransplante suíno, codificada pelas declarações de Changsa de 1998 e 2006.

Entretanto, em 2017, Church e col da Universidade Harvard, publicaram na revista Science a inativação dos 62 loci dos PERVs, produzindo suínos virus free, abrindo perspectivas para o uso clinico do novo método.

Considerando todos esses fatos e a demanda no Brasil onde, em 2019, 133 mil pacientes estavam em hemodiálise, dos quais 59.850 eram elegíveis para transplante de rim, mas apenas 6 mil foram transplantados (9,8%) e que 22 mil faleceram à espera do procedimento (1 óbito a cada 6 horas), justifica-se tentar desenvolver o novo método também entre nós.

Assim, juntamente com uma equipe multidisciplinar da USP da qual fazem parte os professores Jorge Kalil, Elias David Neto e Maria Rita Passos Bueno estamos desenvolvendo um projeto para sistematização do xenotransplante suíno de rim.

Obteve-se a concordância de autoridades éticas, religiosas e jurídicas para seu emprego clínico no Brasil. Nesse sentido, vale salientar que, em 2021 um grupo da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto chefiado pela Dra Cinthia Pavan demonstrou, no Brasil, uma aceitação ao xenotransplante suíno acima de 80% entre 50 pacientes inscritos na lista de espera e 50 já transplantados de fígado.

No Centro de Estudos do Genoma Humano e Células Tronco (CEGH-CEL) da USP, já concluímos a fase de edição genética programada: inativaram-se em fibroblastos (knock out) os 3 genes produtores de açúcares imunogênicos - CMAH, GGTA1, β4GalNT2 transferindo-os para o núcleo de embriões na fase zigoto. Ao mesmo tempo, acrescentaram-se os genes CD55 e CD47 (knock in). A seguir, o embrião assim modificado, será implantado por via laparoscópica na tuba uterina de matrizes silvestres. Estas produzirão leitegadas de suínos geneticamente modificados cujos órgãos poderão ser transplantados em humanos.

Agora se faz necessário construir um biotério (pig facility), obedecendo às rigorosas normas nacionais e internacionais de biossegurança (NB2) para criar suínos cujos órgãos possam ser transplantados em seres humanos.

Considerando que dados recentes da literatura referem bons resultados também com xenotransplante de coração, pele e córnea, programamos as seguintes experiencias pré clinicas durante os 18 meses previstos para construção da pig facility.

Os animais geneticamente modificados serão criados até atingir 40kg, em ambiente normal de higiene especificamente construído no biotério da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Seus rins e coração serão testados durante 18 horas em sistemas de perfusão isolada em experiencias alternadas com sangue suíno e sangue humano. Os resultados serão avaliados por dosagens bioquímicas em amostras sucessivas colhidas no perfusato e por estudo anatomopatológico de biopsias seriadas e estudo dos órgãos após o fim da perfusão.

Para pele serão usados enxertos obtidos com dermátomo e armazenados, no Banco de Pele do HC, em soro fisiológico a 25ºC durante períodos progressivamente maiores para sistematização do seu uso no tratamento de queimados graves. A enxertia será feita alternativamente em animais silvestres e em animais geneticamente modificados.

A córnea será retirada após enucleação ocular do suíno doador, a seguir, preservada em Optisol GS a 4ºC por até 14 dias e, finalmente, implantada alternativamente em animais silvestres e em animais geneticamente modificados.

Dependendo dos resultados da perfusão isolada do rim, geneticamente modificado em nosso laboratório, com sangue humano, serão realizados um ou dois xenotransplantes de rim em receptores humanos descerebrados (semelhante ao realizado recentemente em Nova Iorque).

Finalizando, o desenvolvimento deste projeto, tornou evidente que não se trata apenas de uma iniciativa acadêmico-cientifica, mas da tentativa de modificar em nosso meio vários conceitos inclusive um médico-social, ou seja, a produção e o emprego de órgãos de animais para transplante em humanos. Essa modificação exigiu solucionar dificuldades inesperadas como, entre outras, obter autorização para criação de suínos no perímetro urbano, autorização para lançamento dos dejetos de animais geneticamente modificados no esgoto municipal, obter ovários suínos recém extraídos em abatedouros próximos ao Centro do Genoma e obter 1500 marrãs de 100kg por ano.

O xenotransplante suíno de coração realizado em Maryland (EUA) no dia 17 de janeiro de 2022, abre perspectivas para o início clínico também do xenotransplante de rim, pele e córnea. De fato, a evolução favorável do paciente até o sexto dia (data da redação deste artigo) mostra que foi superada a rejeição hiperaguda, causa do óbito da paciente xenotransplantada em 1984.

Vencer todos esses obstáculos tem sido um grande desafio. Todavia, a experiência mostra que em projetos inovadores cada etapa vencida permite um maior ângulo de visão que tanto pode identificar dificuldades não previstas, que atrasam a concretização do objetivo final, quanto mostrar atalhos que permitam antecipa-la. Para benefício de muitos, esperemos que para o nosso projeto, ocorra a segunda alternativa.

  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Fev 2022
  • Aceito
    08 Fev 2022
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