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Estudo retrospectivo de rastreamento pré-operatoria mandatória de SARS-COV-2 na população pediátrica. Será hora de parar de testar nossos pacientes?

RESUMO

A pandemia causada pelo novo coronavírus (SARS-COV-2) alterou a rotina de pacientes, profissionais e serviços de saúde em todo o mundo levando ao adiamento ou suspensão de muitos procedimentos cirúrgicos. Muitos serviços implementaram protocolos de triagem sistemática pré-operatória para SARS-COV-2. No entanto, segue incerta a eficácia da triagem sistemática de pacientes assintomáticos para SARS-COV-2 quando comparada com outras medidas de mitigação como o uso de máscaras e o distanciamento social apesar da aparente sensação de segurança conferida pela testagem pré-operatória de pacientes para SARS-COV-2. Sendo assim, descrevemos a experiência de dois anos de um hospital pediátrico (n=7.199) na triagem sistemática pré-operatória para SARS-COV-2 e comparamos a taxa de positividade mensal reportada pelo serviço em relação a taxa de positividade mensal regional do Estado de São Paulo. No período de Abril de 2020 a Fevereiro de 2022 houveram 187 (2,56%) RT-PCR positivos para COVID-19 dos quais 62.1% assintomáticos. Os sintomas mais comuns foram coriza (10,7%), febre (10%) e diarreia (8,7%). Dois pacientes faleceram em decorrência de sintomas relacionados a COVID-19. Mais estudos são necessários para determinar o impacto da testagem pré-operatória de RT-PCR para SARS-COV-2 em pacientes assintomáticos na mitigação da transmissão intra-hospitalar e na morbidade cirúrgica.

Palavras-chave:
Teste para COVID-19; Período Perioperatório; Anestesia; Cirurgia Geral

ABSTRACT

The novel coronavirus SARS-COV-2 (COVID-19) pandemic dramatically changed the workflow of healthcare professionals around the world. Surgical procedures were withheld and postponed in a scenario of fear and uncertainty. Despite numerous medical institutions having swiftly and widely implemented pre-operative screening protocols, cost-effective studies remain scarce specially when comparing to other mitigation measures such as the donning of masks and social distancing measures. The objective of our study is to report the monthly positivity rates of SARS-COV-2 infection in our service and compare our data with monthly positivity rates reported by the State Health Department. Between April, 2020, to February, 2022, 7,199 patients had the RT-PCR for SARS-COV-2 collected, with 187 (2.59%) testing positive for COVID-19. Most of them (62.1%) were asymptomatic. The most common symptoms were coryza (10.7%), fever (10%), and diarrhea (8.7%). Nonetheless, there were two deaths due to COVID-19 reported in our center. Further studies are necessary to elucidate the impact of pre-operative screening for SARS-COV-2 in asymptomatic patients.

Keywords:
COVID-19 Testing; Perioperative Period; Anesthesia; General Surgery

No início de 2020, os centros cirúrgicos tiveram sua rotina altamente impactada pela pandemia e, em um cenário de medo e incertezas, muitas cirurgias eletivas foram adiadas ou suspensas. Ainda em maio de 2020, estudos em pacientes submetidos à cirurgia na vigência de infecção por SARS-COV-2 já demonstravam aumento de 23,8% na mortalidade e 53,2% em complicações pulmonares11 Nepogodiev D, Bhangu A, Glasbey JC, Li E, Omar OM, Simoes JF, et al. Mortality and pulmonary complications in patients undergoing surgery with perioperative SARS-CoV-2 infection: an international cohort study. Lancet. 2020;396(10243):27-38. doi: 10.1016/S0140-6736(20)31182-X.
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e profissionais do centro cirúrgico preocupavam-se com o risco de transmissão intra-hospitalar do vírus, em um momento em que vacinas ainda não eram disponíveis22 Peterson MB, Gurnaney HG, Disma N, Matava C, Jagannathan N, Stein ML, et al. Complications associated with paediatric airway management during the COVID-19 pandemic: an international, multicentre, observational study. Anaesthesia. 2022;77(6):649-58. doi: 10.1111/anae.15716.
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. Embora muitos desses estudos tenham incluído pacientes pediátricos em sua amostra, ainda desconhecemos o impacto da COVID-19 na evolução de pacientes cirúrgicos pediátricos. À luz dos dados atuais, pode-se especular que o risco de complicações seja menor do que em adultos: seja por conta da apresentação mais leve da doença; seja pelo perfil das cirurgias, frequentemente, mais curtas e menos invasivas33 Lee-Archer P, Ungern-Sternberg BS. Pediatric anesthetic implications of COVID-19-A review of current literature. Ungern-Sternberg BS, editor. Pediatr Anesth. 2020;30(6):136-41. doi: 10.1111/pan.13889.
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.

A instituição de protocolos de triagem sistemática pré-operatória para SARS-COV-2 atenuou essa situação, por, potencialmente, reduzir o risco de efeitos adversos em pacientes e minimizar a exposição ocupacional em profissionais de saúde. Além disso, evitou gastos com materiais de proteção nos casos de diagnóstico incerto fortalecendo os processos de qualidade e segurança hospitalar44 American Society of Anesthesiologists and the Anesthesia Patient Safety Foundation Statement on Perioperative Testing for the COVID-19 Virus [Internet]. American Society of Anesthesiology; 2021 Aug p 3. Available from: https://www.asahq.org/about-asa/newsroom/news-releases/2022/06/asa-apsf-statement-on-perioperative-testing-for-covid
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. Embora a adesão pelos hospitais no Brasil tenha sido ampla, estudos em relação à sua eficácia e custo-efetividade continuam escassos55 Lother SA. Preoperative SARS-CoV-2 screening: Can it really rule out COVID19? Can J Anesth. 2020;67(10):1321-6. doi: 10.1007/s12630-020-01746-w.
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. Na população pediátrica - relativamente poupada de formas graves da doença - a falta de evidências é ainda mais crítica.

O serviço de controle de infecção hospitalar, com objetivo de reduzir o risco de transmissão intra-hospitalar de COVID-19, estabeleceu o uso obrigatório de máscaras N95/PFF2 para todos os colaboradores desde abril de 2020. Além disso, estabeleceu triagem de sintomas e epidemiológica, com aplicação de questionário estruturado na avaliação pré-anestésica, e coleta de RT-PCR para SARS-COV-2 até 72 horas antes do procedimento. Casos eletivos com RT-PCR positivo foram adiados por pelo menos 15 dias da data do exame. Quadros clínicos moderados a graves, ou pacientes imunossuprimidos, a cirurgia era adiada por no mínimo 20 dias. Crianças com RT-PCR negativo, com sintomas respiratórios ou gripais leves, poderiam ser operadas após a melhora dos sintomas, caso a coleta tivesse ocorrido 24 horas após do início dos sintomas.

O RT-PCR para SARS-COV-2 é coletado sistematicamente desde abril de 2020 Sendo assim, o objetivo do presente estudo é descrever as taxas de positividade em um dos maiores centros hospitalares pediátricos privados do Brasil e, devido a ubiquidade da disseminação do SARS-COV-2 durante o período pandêmico, comparar com as taxas de positividade geral da população do Estado de São Paulo, no período de abril de 2020 a fevereiro de 2022 disponibilizados em plataforma digital de acesso livre pela Secretaria Estadual de Saúde66 Sistemas de Monitoramente Inteligente (SIMI-SP). Dados Abertos [Internet]. Governo do Estado de São Paulo; [cited 2022 Oct 3]. Available from: https://www.saopaulo.sp.gov.br/planosp/simi/dados-abertos/
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.

Durante o período estudado 7.199 pacientes realizaram RT-PCR para SARS-COV-2 pré-operatório, e foram diagnosticados 187 (2,59%) casos de COVID-19, sendo a maioria (62,1%) assintomática (Tabela 1).

Tabela 1
Dados pré-operatórios dos pacientes.

A comparação da taxa de positividade mensal em nosso serviço com a taxa de positividade geral do estado de São Paulo pode ser visualizada na Figura 1 e as caraterísticas clínicas e demográficas dos pacientes na Tabela 1. A taxa de positividade média mensal foi de 2,56% (95% CI 1,19-3,93%) em comparação com a taxa geral do estado de São Paulo de 17,4% (95% CI 11,37-23,41%)(p<0.001). Os sintomas apresentados pelos pacientes positivos estão descritos na Tabela 1 sendo febre, coriza, tosse e diarreia os sintomas mais comumente relatados. Nielson et al. relatou um padrão similar de sintomas com febre, fadiga, náusea e vômitos mais comumente reportados assim como o aumento de complicações pulmonares77 Nielson C, Suarez D, Taylor IK, Huang Y, Park AH. Surgical outcomes inchildren with perioperative SARS-CoV-2 diagnosis. Am J Infect Control. 2022;50(6):602-7. doi: 10.1016/j.ajic.2022.02.024.
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. Em nosso serviço, dois pacientes (1,06%) tiveram piora do quadro com necessidade de internação hospitalar. O primeiro, portador da Distrofia Muscular de Becker, devido a um aumento inespecífico de transaminases hepáticos e o segundo paciente, dependente de ventilação mecânica por piora do padrão respiratório. No entanto, dois pacientes evoluíram a óbito em decorrência do diagnóstico de COVID-19 no período estudado.

Figura 1
Taxa de positividade na população Geral do Estado de São Paulo x Pacientes cirúrgicos da instituição.

Nossos resultados estão em consonância com outros estudos publicados na França88 Colas AE, Azale M, Ayanmanesh F, Tran C, Papapanayotou L, Assaker R, et al. Mandatory preoperative SARS-CoV-2 infection screening policies for paediatric surgery. Br J Anaesth. 2021;126(5):e182-4. doi: 10.1016/j.bja.2021.01.007.
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e EUA99 Lin EE, Blumberg TJ, Adler AC, Fazal FZ, Talwar D, Ellingsen K, et al. Incidence of COVID-19 in Pediatric Surgical Patients Among 3 US Children's Hospitals. JAMA Surg. 2020;155(8):775-7. doi: 10.1001/jamasurg.2020.2588.
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em populações cirúrgicas pediátricas que descreveram taxas de positividade do RT-PCR entre 0,93% e 1,2% em comparação com 2,56% reportada por nosso serviço. Comparando com outros serviços regionais, Aguiar et al. relatou uma taxa de positividade de 6,8-7,6% em pacientes cirúrgicos adultos oncológicos e assintomáticos1010 Aguiar S, Baiocchi G, Duprat JP, Coimbra FJF, Makdissi FB, Vartanian JG, et al. Value of preoperative testing for SARS-CoV-2 for elective surgeries in a cancer center during the peak of pandemic in Brazil. J Surg Oncol. 2020;122(7):1293-5. doi: 10.1002/jso.26146.
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. À luz dos dados atuais, pode-se especular que os dados apresentados demonstram padrões similares de transmissão entre serviços do mundo todo.

Com o arrefecimento da pandemia, após a alta causada pela variante Ômicron pode-se questionar o benefício da realização do exame de triagem pré-operatório em crianças, considerando:

  1. O custo hospitalar na realização dos exames de RT-PCR para SARS-COV-2, sem reembolso dos planos de saúde;

  2. A sensibilidade variável do teste em pacientes assintomáticos, entre 70 a 90%;

  3. A queda progressiva do número de casos novos de COVID-19;

  4. A similar probabilidade de doença pós-teste negativo de RT-PCR SARS-COV-2 em pacientes assintomáticos quando comparado com a probabilidade de doença em pacientes não testados em uma população com baixa prevalência da doença;

  5. O desgaste e estresse causado às crianças e às famílias pela falta de colaboração e dificuldade de coleta de swab nasal, com impacto negativo na experiência do paciente5.

Mas por que, mesmo com poucas evidências, os protocolos de triagem sistemática se mantêm e são pouco questionados? Primeiramente, pela sensação de segurança conferida aos pacientes, familiares e profissionais de saúde; sendo essa variável difícil de mensurar objetivamente. É fato que a triagem sistemática elevou a sensação de segurança e contribuiu para a retomada das cirurgias eletivas, cujo número se manteve elevado mesmo em períodos de elevada incidência geral da doença. Em segundo lugar, porque as crianças com COVID-19 são, em sua maioria, assintomáticas ou oligossintomáticas. No entanto, com a expansão da cobertura vacinal da população há de se questionar até quando a triagem pré-operatória se fará necessária e quais os parâmetros que deverão ser considerados como métrica de suporte para a manutenção de políticas de testagem pré-operatória.

Em nosso estudo não foram analisados o impacto de outros fatores como a disponibilidade de equipamentos de proteção individual (EPI) e o fluxo hospitalar dedicado para pacientes com diagnóstico confirmado de COVID-19 para minimizar a transmissão viral intra-hospitalar. Mais estudos são necessários para determinar o verdadeiro impacto da testagem pré-operatória de RT-PCR para SARS-COV-2 em pacientes assintomáticos na mitigação da transmissão viral intra-hospitalar e na morbidade cirúrgica.

REFERENCES

  • 1
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  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2022
  • Aceito
    23 Ago 2022
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