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A Inteligência Artificial poderia guiar as mãos dos cirurgiões?

EDITORIAL

No cenário em rápida evolução da medicina e, em particular, da cirurgia, a integração da Inteligência Artificial (IA) na prática clínica já não é uma fantasia futurística, mas uma realidade em desenvolvimento. O potencial da IA para revolucionar a cirurgia reside não apenas na sua capacidade de processar grandes quantidades de dados de várias fontes em tempo recorde, mas na sua capacidade de aumentar a percepção humana do campo operatório e melhorar a tomada de decisões cirúrgicas. A pergunta: “A IA poderia guiar as mãos dos cirurgiões?” não é meramente retórica, mas uma investigação profunda sobre o futuro dos cuidados cirúrgicos. Embora as promessas de maior eficiência processual, na mitigação e orientação no enfrentamento de riscos intraoperatórios e na automação de tarefas repetitivas sejam destacadas em quase todos os artigos científicos focados em IA em cirurgia, os principais obstáculos precisam ser superados antes que esta nova e excitante ferramenta possa ser adotada rotineiramente na sala de cirurgia11 Hashimoto DA, Rosman G, Rus D, Meireles OR. Artificial Intelligence in Surgery: Promises and Perils. Ann Surg. 2018;268(1):70-6. doi: 10.1097/SLA.0000000000002693.
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. Este editorial explora esses obstáculos ao mesmo tempo em que enfatiza o papel crítico do discurso interdisciplinar promovido pelas sociedades cirúrgicas. Além disso, convidamos a comunidade cirúrgica brasileira a moldar o futuro da IA cirúrgica participando de um projeto colaborativo internacional, o Critical View of Safety (CVS) Challenge, apoiado pela Society of American Gastrointestinal Surgeons (SAGES).

A cirurgia testemunhou uma mudança de paradigma com o advento da IA e do aprendizado de máquina. Após a introdução de antissépticos, anestesia geral e laparoscopia, a IA é frequentemente referida como a próxima revolução cirúrgica. Novas tecnologias, predominantemente baseadas na ciência de dados cirúrgicos, incluindo realidade aumentada, simulação, robótica e análise baseada em visão computacional de dados operacionais de vídeo e imagem, prometem aumentar a precisão cirúrgica, melhorar os resultados dos pacientes e até mesmo mitigar potencialmente o erro humano22 De Backer P, Van Praet C, Simoens J, Peraire Lores M, Creemers H, Mestdagh K, et al. Improving Augmented Reality Through Deep Learning: Real-time Instrument Delineation in Robotic Renal Surgery. Eur Urol. 2023;84(1):86-91. doi: 10.1016/j.eururo.2023.02.024.
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. Mas o caminho para a integração destas tecnologias na cirurgia não é isento de desafios. A principal delas é a necessidade de grandes quantidades de dados de alta qualidade, selecionados de acordo com as regulamentações de privacidade e rotulados de acordo com características-alvo clinicamente relevantes. No domínio da IA, esses dados são usados para treinar algoritmos para detectar e prever tais características relevantes e, posteriormente, serem capazes de detectar ou prever a presença em dados não rotulados (aprendizado de máquina supervisionado). O desenvolvimento de algoritmos de IA robustos, diversos e generalizáveis, capazes de fornecer previsões consistentes e confiáveis, independentemente da variedade intraoperatória, requer dados que reflitam a diversidade presente na população do mundo real33 Eckhoff JA, Rosman G, Altieri MS, Speidel S, Stoyanov D, Anvari M, et al. SAGES consensus recommendations on surgical video data use, structure, and exploration (for research in artificial intelligence, clinical quality improvement, and surgical education). Surg Endosc. 2023;37(11):8690-707. doi: 10.1007/s00464-023-10288-3.
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,44 Maier-Hein L, Eisenmann M, Sarikaya D, März K, Collins T, Malpani A, et al. Surgical data science - from concepts toward clinical translation. Med Image Anal. 2022;76:102306. doi: 10.1016/j.media.2021.102306.
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A maioria dos trabalhos publicados atualmente no campo da IA cirúrgica, estão centrados na análise espacial do campo operatório, incluindo instrumentos e anatomia, ou na interpretação temporal do fluxo de trabalho cirúrgico, fases, etapas, ações e eventos6, é limitado a estudos cujos conjunto de dados foram gerados sob curadoria local. A generalização dos modelos de IA apresentados, caracterizados pela capacidade de funcionar de forma semelhante em outros conjuntos de dados do mesmo procedimento de origem, é questionável. Isto significa que os algoritmos desenvolvidos num único conjunto de dados de um procedimento de uma única instituição podem não produzir o mesmo desempenho, medido por métricas habitualmente estabelecidas, como exatidão e precisão, num conjunto de dados do mesmo procedimento de outra instituição. Para atingir esse objetivo, os dados de treinamento inerentes têm de atenuar as variações entre estas fontes de dados, o que só pode ser conseguido através da composição de conjuntos de dados globais e coletivos. Os desafios de dados cirúrgicos podem representar uma solução na busca por tais conjuntos de dados abrangentes77 Eisenmann M, Reinke A, Weru V, Tizabi MD, Isensee F, Adler TJ, et al. Why Is the Winner the Best? In: Proceedings of the IEEE/CVF Conference on Computer Vision and Pattern Recognition. 2023. p. 19955-66.,88 Antonelli M, Reinke A, Bakas S, Farahani K, Kopp-Schneider A, Landman BA, et al. The Medical Segmentation Decathlon. Nat Commun. 2022;13(1):4128. doi: 10.1038/s41467-022-30695-9.
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Um excelente exemplo de tal esforço é o SAGES CVS Challenge. Esta iniciativa aborda uma medida de segurança cirúrgica estabelecida internacionalmente na colecistectomia laparoscópica - um dos procedimentos mais comumente realizados e altamente padronizados em todo o mundo, que se tornou referência em IA cirúrgica. A obtenção adequada da visão crítica de segurança (CVS) é um passo fundamental na prevenção de lesões do ducto biliar e, portanto, apresenta uma meta clinicamente significativa. Além disso, a visão crítica de segurança consiste em três características ou critérios visualmente distintos, que são uma meta realista para uma classificação baseada em visão computacional. O SAGES CVS Challenge reuniu um conjunto global de dados de aproximadamente 1.000 vídeos de colecistectomias procedentes de mais de 50 países em todo o mundo. Esses dados abrangem diversos grupos de pacientes, abordagens e técnicas cirúrgicas, experiência e estilo dos cirurgiões, características técnicas e ópticas, criando um recurso sem precedentes para o treinamento de modelos de IA.

Os desafios de dados criam um ecossistema de inovação, colaborando coletivamente na aquisição e consecutiva interpretação de dados, promovendo o desenvolvimento de ferramentas de IA mais precisas, confiáveis e generalizáveis. Dentro deste ecossistema, é essencial abordar considerações éticas de inclusão, justiça, equidade e preconceito nas diferentes fases do desenvolvimento da IA e, simultaneamente, cumprir as regulamentações de privacidade segundo suas variações internacionais. O portal de doação de dados SAGES, desenvolvido pela Surgical Safe Technologies, permite fácil utilização, acesso mundial e desidentificação segura, ao mesmo tempo que oferece a oportunidade de fornecer metadados demográficos selecionados. A natureza global do conjunto de dados resultante garante que os modelos de IA nele treinados não se concentrem estritamente em um grupo demográfico específico ou em um conjunto de práticas clínicas. Esta diversidade é crucial para o desenvolvimento de ferramentas de IA que possam guiar as mãos dos cirurgiões. Até o momento, a comunidade cirúrgica brasileira ocupa o segundo lugar no esforço global de doação de dados, atrás dos Estados Unidos e logo à frente da Austrália e do Canadá, e a coleta de dados está em andamento. No entanto, o percurso da IA até à implantação clínica é complexo. Envolve não apenas a montagem de grandes e diversos conjuntos de dados e o subsequente desenvolvimento de algoritmos. A anotação meticulosa destes conjuntos de dados, enraizada em protocolos e estruturas baseadas no consenso de especialistas, é fundamental para a relevância clínica e aplicabilidade da IA resultante. Apesar da crescente disponibilidade de tecnologia menos supervisionada, do treinamento e, mais importante, no contexto cirúrgico de alto risco, a validação rigorosa depende de marcadores de alta qualidade para garantir que a IA resultante atenda aos mais altos padrões de precisão e confiabilidade.

A infraestrutura necessária, conforme adotada pelo SAGES CVS |Challenge, envolve um protocolo de anotação baseado em consenso de especialistas e treinamento estruturado de anotadores. Em seu estado atual, o treinamento de anotadores, que ainda recebe colaboradores de todo o mundo, tendo como alvo residentes e fellows de Cirurgia que recebem uma visão geral concisa dos pré-requisitos de anotação para o desenvolvimento de aprendizado de máquina de alta qualidade. O treinamento envolve uma reunião online concisa para ambientação com um anotador experiente, seguida por uma anotação baseada na competência da anotação dos itens selecionados. O desempenho dos anotadores é avaliado através da concordância entre avaliadores quanto á uma informação predefinida que se sabe ser real ou verdadeira, fornecida por observação direta e medição. Esta abordagem gradual garante consistência e robustez na anotação99 Laplante S, Namazi B, Kiani P, Hashimoto DA, Alseidi A, Pasten M, et al. Validation of an artificial intelligence platform for the guidance of safe laparoscopic cholecystectomy. Surg Endosc. 2023;37(3):2260-8. doi: 10.1007/s00464-022-09439-9.
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. A implantação da IA na sala de cirurgia deve basear-se em práticas cirúrgicas sólidas e padronizadas e ser coordenada por princípios que priorizem a segurança do paciente para fornecer coletivamente conhecimentos cirúrgicos para os cirurgiões individualmente. Embora a IA possa orientar e ajudar, a autoridade de tomada de decisão final deve sempre residir no cirurgião humano, que traz sua experiência insubstituível para a mesa de operações. Portanto, a integração da IA na Cirurgia também exige uma mudança na formação dos cirurgiões que precisam estar preparados não apenas com habilidades técnicas, mas também com o conhecimento para interpretar e utilizar com eficácia os insights gerados pela IA. Isto inclui compreender as potencialidades e limitações das ferramentas de IA, bem como manter espirito crítico nas situações em que a contribuição da IA possa ser limitada ou indisponível.

Além de uma infraestrutura para composição e anotação coletiva e global de conjuntos de dados, o SAGES CVS Challenge fornece uma plataforma para colaboração interdisciplinar, promovendo a conscientização sobre os requisitos da IA cirúrgica entre cirurgiões e cientistas da computação. O caminho para a integração total da IA na prática cirúrgica está repleto de desafios, mas também repleto de oportunidades, que só podem ser aproveitadas através desta forma de diálogo interdisciplinar, reunindo cirurgiões, cientistas de dados, especialistas em ética e pacientes para moldar o futuro da IA na cirurgia1010 Moglia A, Georgiou K, Morelli L, Toutouzas K, Satava RM, Cuschieri A. Breaking down the silos of artificial intelligence in surgery: glossary of terms. Surg Endosc. 2022;36(11):7986-97. doi: 10.1007/s00464-022-09371-y.
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O objetivo é criar ferramentas de IA nas quais os cirurgiões possam confiar como auxiliares confiáveis na sala de cirurgia. O papel previsto da IA na cirurgia não é como um substituto para cirurgiões humanos, mas como um parceiro colaborativo. A IA pode fornecer análises em tempo real, avaliações de risco e apoio à decisão, melhorando a capacidade do cirurgião.

Aviso

Para obter mais informações sobre o SAGES CVS Challenge e como participar, acesse:www.cvschallenge.org ou entre em contato com jeckhoff@mgh.harvard.edu.

REFERENCES

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  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2023
  • Aceito
    23 Nov 2023
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