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A Síndrome Compartimental Aguda existe e pode conduzir a desfechos irreversíveis se não tratada a tempo

RESUMO

A SCA é uma condição potencialmente letal causada por qualquer evento que produza aumento da PIA induzindo colapso sistêmico, hipoperfusão tecidual e disfunção orgânica. Assim, a SCA não é um problema exclusivamente da população de pacientes traumáticos e cirúrgicos. A SCA iatrogénica predispõe os pacientes à falência de múltiplos órgãos se nenhuma ação urgente for tomada.

Palavras-chave:
Hipertensão Intra-Abdominal; Abdome Agudo; Cirurgia Geral; Tratamento de Emergência

ABSTRACT

ACS is a potentially lethal condition caused by any event that produces an increase in IAP, inducing systemic collapse, tissue hypoperfusion and organ dysfunction. Thus, ACS is not exclusively a problem of the traumatic and surgical patient population.Iatrogenic ACS predisposes patients to multiple organ failure if no urgent action is taken.

Keywords:
Intra-Abdominal Hypertension; Acute Disease; General Surgery; Emergency Treatment

Esteve em minha clínica o pai de uma menina de 8 anos. Faleceu vítima de Síndrome Compartimental Abdominal (SCA) consequente a um procedimento anestésico, culminando com perfuração gástrica e subsequente aumento súbito da pressão intra-abdominal que não foi diagnosticada em tempo suficiente para evitar um desfecho irreversível.

Este caso me comoveu muito. Há 15 anos venho estudando sobre a Hipertensão Intra-abdominal e SCA e me pergunto por que no Brasil progredimos tão pouco. Nos últimos dois anos, três casos iatrogênicos de SCA aguda chegaram até meu conhecimento, consequentes a algum tipo de procedimento anestésico-cirúrgico ou endoscópico. Uma média de 1,5/ano apenas no interior de São Paulo. Número pequeno e talvez subestimado, pelo baixo conhecimento sobre o assunto, mas com altíssimo índice de mortalidade. Dois dos três casos faleceram. O caso da paciente sobrevivente, dependeu exclusivamente da informação prévia sobre SCA que o médico endoscopista e também cirurgião possuía. Percebendo a perfuração do cólon durante a colonoscopia o cirurgião-endoscopista realizou a clipagem do orifício, fez contato telefônico direto e conduziu a paciente até o hospital onde me encontrava. O tratamento imediato para paciente que exibia sinais de choque grave como hipotensão, taquipneia, diaforese, abdome tenso, doloroso e sensação iminente de morte foi a punção abdominal descompressiva com Abocath® 14. Assim como se faz no pneumotórax hipertensivo, a Síndrome Compartimental Abdominal aguda (pneumoperitoneo hipertensivo) necessita de descompressão imediata ou pode conduzir a um cenário irremediável. Na paciente em questão a resposta à punção foi exatamente igual no pneumotórax hipertensivo, ou seja, alívio imediato dos sintomas e recuperação total do estado perfusional. Este caso foi um caso feliz diante de tantos outros sabidos e não sabidos.

A pergunta que impreterivelmente precisa ser feita a esta comunidade de cirurgiões é: até quando? Até quando vamos ignorar a presença de SCA consequente a doenças, procedimentos cirúrgicos ou iatrogenias? A conscientização e conhecimento sobre SCA precisa estar urgentemente presente no dia-a-dia dos médicos intervencionistas.

Sabemos que a SCA pode se apresentar de forma mais insidiosa (menos grave) e de forma mais aguda (mais grave) e que sem dúvida alguma, a perpetuação progressiva de um estado de hipoperfusão se mantém associada à presença do colapso sistêmico, motivo este já suficiente para que servisse de alerta por sobre a comunidade médica11 Reintam Blaser A, Regli A, De Keulenaer B, et al. Incidence, Risk Factors, and Outcomes of Intra-Abdominal Hypertension in Critically Ill Patients-A Prospective Multicenter Study (IROI Study). Crit Care Med. 2019;47(4):535-42. doi: 10.1097/CCM.0000000000003623.
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2 Kirkpatrick AW, De Waele JJ, De Laet I, De Keulenaer BL, D'Amours S, Bjorck M, et al. WSACS - The Abdominal Compartment Society. A Society dedicated to the study of the physiology and pathophysiology of the abdominal compartment and its interactions with all organ systems. Anaesthesiol Intensive Ther. 2015;47(3):191-4. doi: 10.5603/AIT.a2015.0024.
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3 Pereira, BM. Abdominal compartment syndrome: immeasurable relevance. Rev Col Bras Cir. 2019;46(2):e200. doi: 10.1590/0100-6991e-20192001.
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-44 Pereira BM. Abdominal compartment syndrome and intra-abdominal hypertension. Curr Opin Crit Care. 2019;25(6):688-96. doi: 10.1097/MCC.0000000000000665.
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Evidências nós já temos o suficiente. O estudo observacional prospectivo IROI publicado recentemente, demonstrou que a hipertensão intra-abdominal ocorreu em aproximadamente metade de todos os indivíduos e foi duas vezes mais prevalente em pacientes ventilados mecanicamente do que em pacientes com respiração espontânea. A presença e a gravidade da hipertensão intra-abdominal durante o período de observação aumentaram de forma significativa e independente a mortalidade em 28 e 90 dias. Cinco variáveis da admissão foram independentemente associadas à presença ou desenvolvimento de hipertensão intra-abdominal. O balanço hídrico positivo foi associado ao desenvolvimento de hipertensão intra-abdominal após o primeiro dia. Por definição, PIA é a pressão contida no compartimento abdominal. Embora do ponto de vista fisiológico a PIA possa atingir marcadores transitórios de até 80mmHg (tosse, manobra de Valsalva, levantamento de peso, etc), esses valores não podem ser tolerados por longos períodos de tempo, como ocorre na SCA iatrogênica. De acordo com a Sociedade Mundial do Compartimento Abdominal (WSACS), a HIA é definida como PIA acima de 12mmHg em duas medições consecutivas dentro de um intervalo de 4 a 6 horas. Entretanto este conceito não extrapola para casos de SCA aguda onde a pressão extremamente alta e sustentada demanda a necessidade imediata de intervenção. Em cenários insidiosos os efeitos nocivos da HIA ocorrem muito antes de ocorrer a manifestação da SCA, e os pacientes que apresentam HIA têm um aumento de 11 vezes na chance de mortalidade em comparação com aqueles que não têm HIA/SCA. Na SCA aguda como a iatrogênica por exemplo, e muitas vezes traduzida clinicamente como pneumoperitonio hipertensivo, a rápida progressão para SCA definida como uma PIA >20mmHg traz consequências clínicas e hemodinâmicas imediatas subsequentes a pressão demasiadamente elevada. A SCA aguda deve, portanto, ser vista como o resultado final de um aumento súbito e sustentado da PIA levando ao risco iminente de morte. Nestes casos específicos a medição de rotina da PIA torna-se sem sentido assim como se faz a solicitação de um raio-x de tórax para diagnóstico do pneumotórax hipertensivo. São causas comuns de disfunção múltipla orgânica na presença de SCA sustentada: Acidose metabólica, oligúria/anúria, pressão elevada das vias aéreas o hipercarbia refratária ao aumento da frequência respiratória, hipoxemia refratária a terapia com oxigênio e PEEP, hipertensão intracraniana. No caso da SCA iatrogênica especificamente, o colapso sistêmico é mais comumente observado e muito mais grave em decorrência do aumento súbito e sustentado da pressão intra-abdominal, diminuição do retorno venoso, diminuição do débito cardíaco, aumento da pressão intratorácica, aumento da resistência ventilatória, aumento da pressão intracraniana, diminuição da pressão de perfusão cerebral e síndrome policompartimental11 Reintam Blaser A, Regli A, De Keulenaer B, et al. Incidence, Risk Factors, and Outcomes of Intra-Abdominal Hypertension in Critically Ill Patients-A Prospective Multicenter Study (IROI Study). Crit Care Med. 2019;47(4):535-42. doi: 10.1097/CCM.0000000000003623.
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2 Kirkpatrick AW, De Waele JJ, De Laet I, De Keulenaer BL, D'Amours S, Bjorck M, et al. WSACS - The Abdominal Compartment Society. A Society dedicated to the study of the physiology and pathophysiology of the abdominal compartment and its interactions with all organ systems. Anaesthesiol Intensive Ther. 2015;47(3):191-4. doi: 10.5603/AIT.a2015.0024.
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3 Pereira, BM. Abdominal compartment syndrome: immeasurable relevance. Rev Col Bras Cir. 2019;46(2):e200. doi: 10.1590/0100-6991e-20192001.
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4 Pereira BM. Abdominal compartment syndrome and intra-abdominal hypertension. Curr Opin Crit Care. 2019;25(6):688-96. doi: 10.1097/MCC.0000000000000665.
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5 Wise R, Roberts DJ, Vandervelden S, Debergh D, De Waele JJ, De Laet I, et al. Awareness and knowledge of intra-abdominal hypertension and abdominal compartment syndrome: results of an international survey. Anaesthesiol Intensive Ther. 2015;47(1):14-29. doi: 10.5603/AIT.2014.0051.
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6 Popescu GA, Bara T Jr, Rad P. Abdominal compartment syndrome as a multidisciplinary challenge. A literature review. J Crit Care Med. 2018;4:114-9. doi: 10.2478/jccm-2018-0024.
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-77 Patel A, Davis C, Davis T. Percutaneous catheter drainage of secondary abdominal compartment syndrome: A case report. Radiol Case Rep. 2021;16(3):670-2. doi: 10.1016/j.radcr.2021.01.008.
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As consequências da SCA aguda ou da Síndrome Aguda de Hipertensão Abdominal (SAHA) não param por ai. É notório que o tempo de isquemia, ou seja, de permanência do processo de hipertensão exagerada do compartimento abdominal gera influência no desfecho e nas taxas de mortalidade. Pacientes que permaneçam por prazo alargado em síndrome compartimental abdominal aguda não diagnosticada estão mais susceptíveis ao colapso sistêmico num curto período ou sujeitos à síndrome isquêmica-reperfusão88 Souadka A, Mohsine R, Ifrine L, Belkouchi A, El Malki HO. Acute abdominal compartment syndrome complicating a colonoscopic perforation: a case report. J Med Case Rep. 2012;6:51. doi: 10.1186/1752-1947-6-51.
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A lesão de isquemia-reperfusão é uma condição crítica no qual se deve controlar o dano celular e preservar a função orgânica. Isquemia é simplesmente definida como um estado hipoperfusional tecidual consistente induzindo ao ciclo celular anaeróbio e consequentemente menor produção de ATP e produção de lactato. Várias condições, como sepse, síndrome coronariana aguda, transplante de órgãos, a própria síndrome compartimental e lesão de membros, são obviamente causadores de hipoperfusão tecidual. Estudos anteriores demonstraram a importância em reduzir o tempo de hipoperfusão afim de preservar a função orgânica. Para a sepse, as diretrizes da Surviving Sepsis Campaign recomendam terapia precoce direcionada a metas para ressuscitação oportuna, incluindo tratamento precoce com antibióticos e reanimação com fluidos e vasopressores adequados para reduzir a hipoperfusão tecidual periférica, em outras palavras tratar a causa da infecção e otimizar o transporte de oxigênio baseando-se na fórmula do DO2 (DO2 = DC x CaO2). Para síndrome coronariana aguda, por sua vez, as diretrizes American Heart Association (AHA) recomendam a revascularização precoce para controlar a lesão miocárdica e reduzir a lesão isquemia-reperfusão o mais brevemente possível. Recomendações semelhantes foram feitas para transplante de órgãos e lesão de membros. Nenhum estudo no entanto, existe até a presente data para definir quanto a síndrome de reperfusão pós SCA aguda pode interferir nas taxas de mortalidade. Indícios clínicos que ela acontece, contudo, são evidentes. Estudos recentes demonstraram que a reperfusão tem o potencial de induzir lesão subsequente no tecido isquêmico (lesão de isquemia-reperfusão) apresentando-se como um desafio para preservação das funções orgânicas vitais. A lesão de isquemia-reperfusão está associada a manifestações clínicas graves, incluindo insuficiência cardíaca aguda, disfunção cerebral, disfunção gastrointestinal, síndrome da resposta inflamatória sistêmica e síndrome de disfunção de múltiplos órgãos. É uma condição médica crítica que representa um importante desafio terapêutico que incluem o envolvimento de espécies reativas de oxigênio (ERO) e vias de morte celular. Quando o suprimento sanguíneo é restabelecido após isquemia prolongada, a inflamação local e a produção de EROs aumentam, levando a lesão secundária. O dano celular induzido por lesão de isquemia-reperfusão prolongada pode levar a apoptose, autofagia, necrose e necroptose99 Ornellas FM, Ornellas DS, Martini SV, Castiglione RC, Ventura GM, Rocco PR, et al. Bone Marrow-Derived Mononuclear Cell Therapy Accelerates Renal Ischemia-Reperfusion Injury Recovery by Modulating Inflammatory, Antioxidant and Apoptotic Related Molecules. Cell Physiol Biochem. 2017;41:1736-52. doi: 10.1159/000471866.
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Por fim, a SCA aguda ou pneumoperitonio hipertensivo é uma condição potencialmente letal causada por qualquer evento que produza aumento da PIA induzindo colapso sistêmico, hipoperfusão tecidual e disfunção orgânica. Quando não tratada a tempo, as condições clínicas devastadoras da SCA aguda conduzem ao colapso sistêmico, quando tratada tardiamente se somam com a síndrome isquemia-reperfusão agregando mais um fator de letalidade. A Síndrome Aguda de Hipertensão Abdominal (SAHA), está sujeita a ocorrer como grave complicação nos cenários subsequentes a procedimentos endoscópicos, anestésicos ou minimamente invasivos, predispõe os pacientes à falência múltipla orgânica progressiva e altas taxas de mortalidade se nenhuma ação emergente for tomada. O diagnóstico precoce, baseado no conhecimento médico sobre o assunto, atenção clínica e entendimento dos fatores de risco para SCA aguda ou SAHA é desta forma a única oportunidade viável para a melhor e mais simples terapêutica de emergência: a punção descompressiva.

REFERENCES

  • 1
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  • 3
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    » https://doi.org/10.1590/0100-6991e-20192001
  • 4
    Pereira BM. Abdominal compartment syndrome and intra-abdominal hypertension. Curr Opin Crit Care. 2019;25(6):688-96. doi: 10.1097/MCC.0000000000000665.
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  • 5
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    Ornellas FM, Ornellas DS, Martini SV, Castiglione RC, Ventura GM, Rocco PR, et al. Bone Marrow-Derived Mononuclear Cell Therapy Accelerates Renal Ischemia-Reperfusion Injury Recovery by Modulating Inflammatory, Antioxidant and Apoptotic Related Molecules. Cell Physiol Biochem. 2017;41:1736-52. doi: 10.1159/000471866.
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  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2022
  • Aceito
    12 Jun 2022
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