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Subfenotipagem de doenças graves: onde medicina intensiva protocolizada e personalizada se encontram

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, foram testadas iniciativas bem-sucedidas de melhoria da qualidade nos cuidados críticos, e entre os princípios incluídos estavam a “não maleficência” (que significa evitar complicações adquiridas em unidades de terapia intensiva e excesso de tratamento) e a providência de intervenções precoces para condições agudas (ou seja, antibióticos para sepse, assim como reperfusões para derrame e infarto do miocárdio). Entretanto, há um grau de desequilíbrio nas premissas mencionadas. A maioria dos melhores desfechos observados em cuidados críticos nas últimas décadas pode ser atribuída à prevenção de complicações (ou seja, infecções nosocomiais, ventilação protetora e trombose venosa profunda) e ao tratamento de condições etiológicas bem definidas (ou seja, acidente vascular cerebral e infarto do miocárdio), resultando em síndromes muito prevalentes (síndrome do desconforto respiratório agudo - SDRA e sepse, por exemplo), o que compreende parcela menor dos tratamentos eficazes e explica parcialmente suas altas taxas de mortalidade atuais. Os defensores dos cuidados protocolizados utilizaram esses argumentos para promover a implementação ampla de práticas bem normalizadas e baseadas em evidências, a fim de reduzir as variações dos cuidados e melhorar os desfechos. Além disso, quem propõe cuidados personalizados afirma que uma abordagem baseada em fisiologia seria fundamental para melhorar os desfechos em pacientes com choque, insuficiência respiratória aguda (IRpA), lesão cerebral e outras condições.

Estudos envolvendo psicologia e tomada de decisões mostram que, quando avaliamos e comparamos uma série de pontos de dados, tendemos a negligenciar a força relativa da evidência e seu espectro e a tratar a evidência como simplesmente binária. Isto é conhecido como o “viés binário”. De alguma forma, essa abordagem (juntamente da tendência nos cuidados críticos de agrupar populações heterogêneas de pacientes sujeitos a síndromes, ou seja, IRpA, SDRA, sepse e delirium) está bem representada nos protocolos de tratamento que se encontram disponíveis nas unidades de terapia intensiva (ou seja, sepse e grupos de pneumonia associados à ventilação mecânica). Em contrapartida, a abordagem baseada puramente em fisiologia tem sido a base de várias intervenções fracassadas em suporte ventilatório, controle da glicose e delirium, entre outras intervenções.

Lições de outras áreas da medicina têm mostrado que a integração de ambas as iniciativas é provavelmente mais eficaz. Um bom exemplo vem da oncologia, na qual o mapeamento das características do paciente (como capacidade funcional e perfis genéticos), aspectos da doença atual (como tipo de tumor, assinatura genética e extensão da doença) e preferências do paciente deve estabelecer a escolha de um protocolo de tratamento. Essa escolha (quando combinada com as características mencionadas) é traduzida em características prognósticas e o potencial de resposta ao tratamento.

Nos cuidados críticos, ainda lutamos para fundir uma compreensão personalizada do paciente com uma ampla escolha de protocolos de tratamento eficazes.

Terapias subfenotipicamente voltadas a pacientes criticamente doentes

Nas últimas décadas, a maioria dos ensaios e intervenções em cuidados críticos não conseguiu melhorar os desfechos relevantes dos pacientes por meio de estratégias farmacológicas e de ventilação mecânica, bem como ressuscitações hemodinâmicas, para doenças críticas heterogêneas e complexas (na maioria das vezes, em condições sindrômicas). Esses ensaios são muito úteis para demonstrar a potencial iatrogenicidade de uma intervenção de abordagem “tamanho único” para condições sindrômicas. Entretanto, eles também mostraram que enxergar além dos diagnósticos heterogêneos pode fornecer informações valiosas sobre caracterização clínica, critérios de ingresso em ensaios clínicos e, por fim, capacidade de resposta ao tratamento. Os avanços na ciência -ômicas (como genômica, proteômica e metabolômica), as ferramentas analíticas e o big data permitiram identificar novos subgrupos de doenças (conhecidos como subfenótipos), que melhoraram a compreensão biológica e clínica das características, os desfechos e as respostas a tratamento em síndromes prevalentes e graves, como sepse, SDRA, delirium, lesão renal aguda (LRA) e outros distúrbios.(11 Reddy K, Sinha P, O’Kane CM, Gordon AC, Calfee CS, McAuley DF. Subphenotypes in critical care: translation into clinical practice. Lancet Respir Med. 2020;8(6):631-43.,22 Bowman EM, Cunningham EL, Page VJ, McAuley DF. Phenotypes and subphenotypes of delirium: a review of current categorisations and suggestions for progression. Crit Care. 2021;25(1):334.) Reddy et al. propuseram recentemente definições para agrupar pacientes por fenótipo, subfenótipo, endótipo e fator tratável (Figura 1).(11 Reddy K, Sinha P, O’Kane CM, Gordon AC, Calfee CS, McAuley DF. Subphenotypes in critical care: translation into clinical practice. Lancet Respir Med. 2020;8(6):631-43.) Uma abordagem assim pode informar melhor os desfechos e otimizar a orientação para tratamentos.(11 Reddy K, Sinha P, O’Kane CM, Gordon AC, Calfee CS, McAuley DF. Subphenotypes in critical care: translation into clinical practice. Lancet Respir Med. 2020;8(6):631-43.,33 Vincent JL. The future of critical care medicine: integration and personalization. Crit Care Med. 2016;44(2):386-9.)

Figura 1
Exemplo de abordagens protocolizadas versus protocolizadas e personalizadas no futuro.

Na sepse, a maioria dos ensaios controlados randomizados com foco em terapias farmacológicas não conseguiu melhorar os desfechos. A Surviving Sepsis Campaign(44 Evans L, Rhodes A, Alhazzani W, Antonelli M, Coopersmith CM, French C, et al. Surviving sepsis campaign: international guidelines for management of sepsis and septic shock 2021. Intensive Care Med. 2021;47(11):1181-247.) apresenta atualmente as melhores evidências disponíveis para o tratamento da sepse. Contudo, muitas críticas têm sido feitas, argumentando que nem todos os pacientes deveriam ter a mesma abordagem.(55 Vincent JL, Singer M, Einav S, Moreno R, Wendon J, Teboul JL, et al. Equilibrating SSC guidelines with individualized care. Crit Care. 2021;25(1):397.) Seymour et al. identificaram quatro fenótipos clínicos de sepse que se correlacionavam com padrões de resposta do hospedeiro e desfechos clínicos.(66 Seymour CW, Kennedy JN, Wang S, Chang CC, Elliott CF, Xu Z, et al. Derivation, validation, and potential treatment implications of novel clinical phenotypes for sepsis. JAMA. 2019;321(20):2003-17.) Nesse estudo, os autores utilizaram simulações de três grandes ensaios multicêntricos e estimaram que o benefício ou dano do tratamento era sensível às distribuições fenotípicas. Ao considerar que os ensaios clínicos quase concluídos não reconheceram heterogeneidade nos efeitos do tratamento utilizando fenótipos clínicos, fazem-se necessárias mais pesquisas para determinar a utilidade desses fenótipos nos cuidados clínicos. Por exemplo, em uma análise de simulação, o autor descobriu que a terapia precoce orientada por metas era benéfica para o “fenótipo alfa” e prejudicial para o “fenótipo delta”. Zhang et al. analisaram dados de 14.993 pacientes e identificaram quatro subfenótipos de sepse que demonstravam diferentes taxas de mortalidade e resposta à hidratação.(77 Zhang Z, Zhang G, Goyal H, Mo L, Hong Y. Identification of subclasses of sepsis that showed different clinical outcomes and responses to amount of fluid resuscitation: a latent profile analysis. Crit Care. 2018;22(1):347.) Mais recentemente, em análise secundária de registros multicêntricos no Japão, Kudo et al. reconheceram quatro fenótipos de sepse utilizando critérios de coagulopatia e observaram que, em pacientes com disfunção orgânica grave e coagulopatia, o uso de trombomodulina estava associado a uma taxa de mortalidade menor.(88 Kudo D, Goto T, Uchimido R, Hayakawa M, Yamakawa K, Abe T, et al. Coagulation phenotypes in sepsis and effects of recombinant human thrombomodulin: an analysis of three multicentre observational studies. Crit Care. 2021;25(1):114.)

Na SDRA, inúmeros estudos contribuíram para ampliar nosso conhecimento sobre farmacoterapia e suporte ventilatório. Entretanto, as taxas de mortalidade têm se mantido estáveis nos últimos anos, oscilando entre aproximadamente 30% - 40%.(99 Bellani G, Laffey JG, Pham T, Fan E, Brochard L, Esteban A, Gattinoni L, van Haren F, Larsson A, McAuley DF, Ranieri M, Rubenfeld G, Thompson BT, Wrigge H, Slutsky AS, Pesenti A; LUNG SAFE Investigators; ESICM Trials Group. Epidemiology, patterns of care, and mortality for patients with acute respiratory distress syndrome in intensive care units in 50 countries. JAMA. 2016;315(8):788-800.,1010 Thompson BT, Chambers RC, Liu KD. Acute respiratory distress syndrome. N Engl J Med. 2017;377(19):1904-5.) Atualmente, os tratamentos associados a melhores desfechos na SDRA incluem estratégias ventilatórias protetoras, posição prona e uso de bloqueadores neuromusculares - sendo as duas últimas estratégias utilizadas em pacientes com SDRA moderada a grave.(1010 Thompson BT, Chambers RC, Liu KD. Acute respiratory distress syndrome. N Engl J Med. 2017;377(19):1904-5.) Assim, as intervenções atualmente eficazes estão principalmente ligadas à prevenção de lesões pulmonares induzidas pela ventilação mecânica (que é um fator potencialmente iatrogênico, não uma modulação ou tratamento da doença e suas características fisiopatológicas subjacentes).

Ao abordar a SDRA com a perspectiva do subfenótipo, Calfee et al. identificaram dois subfenótipos de pacientes com SDRA (os subfenótipos hiperinflamatórios e hipoinflamatórios), com diferentes prevalências, mortalidades e respostas à estratégia ventilatória.(1111 Calfee CS, Delucchi K, Parsons PE, Thompson BT, Ware LB, Matthay MA; NHLBI ARDS Network. Subphenotypes in acute respiratory distress syndrome: latent class analysis of data from two randomised controlled trials. Lancet Respir Med. 2014;2(8):611-20.) Recentemente, Duggal et al. utilizaram nove variáveis clínicas para analisar dados de ensaios sobre SDRA e identificaram dois subfenótipos. Pacientes com subfenótipo B apresentavam níveis aumentados de marcadores pró-inflamatórios, maior mortalidade e maior tempo de ventilação do que aqueles com fenótipo A.(1212 Duggal A, Kast R, Van Ark E, Bulgarelli L, Siuba MT, Osborn J, et al. Identification of acute respiratory distress syndrome subphenotypes de novo using routine clinical data: a retrospective analysis of ARDS clinical trials. BMJ Open. 2022;12(1):e053297.) Além disso, Calfee et al. descobriram que os desfechos variam com o tratamento com estatina, dependendo do fenótipo da SDRA, com melhores respostas observadas em pacientes com o “fenótipo hiperinflamatório”.(1313 Calfee CS, Delucchi KL, Sinha P, Matthay MA, Hackett J, Shankar-Hari M, McDowell C, Laffey JG, O’Kane CM, McAuley DF; Irish Critical Care Trials Group. Acute respiratory distress syndrome subphenotypes and differential response to simvastatin: secondary analysis of a randomised controlled trial. Lancet Respir Med. 2018;6(9):691-8.)

Mais recentemente, também foram realizados estudos sobre a doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19), que poderiam ajudar a identificar fenótipos clínicos e imunofenótipos associados a desfechos, bem como potencialmente identificar respostas a terapias específicas.(1414 Azoulay E, Zafrani L, Mirouse A, Lengliné E, Darmon M, Chevret S. Clinical phenotypes of critically ill COVID-19 patients. Intensive Care Med. 2020;46(8):1651-2.)

Assim, uma melhor compreensão dos perfis clínicos e laboratoriais associados a desfechos e respostas ao tratamento (subfenotipagem) pode fornecer uma forma de transição de protocolos dicotômicos (em que trataremos ou não pacientes críticos com base na existência de diagnóstico) para uma abordagem mais refinada, na qual a assistência protocolizada seria amplamente oferecida a condições sindrômicas (como sepse, SDRA, delirium ou LRA) em uma abordagem mais personalizada. Árvores de decisões e algoritmos podem ajudar os clínicos a abrir caminhos por entre esses protocolos, de forma semelhante àquela que os oncologistas aplicam às suas escolhas de tratamento. Nesse cenário de múltiplas combinações de tratamento possíveis para cada paciente com uma determinada síndrome, os protocolos garantirão a adesão à medicina baseada em evidências.

CONCLUSÃO

Pacientes gravemente doentes e síndromes de cuidados críticos são complexos. Cuidados protocolizados para as síndromes mais comuns agregam valor significativo, porque seu uso permite aos médicos e à equipe multidisciplinar oferecer a melhor medicina baseada em evidências com menor variação. Entretanto, atualmente, eles demonstram opções limitadas e uma abordagem de “tamanho único”. O agrupamento de pacientes em fenótipos, subfenótipos e endótipos permitirá implementações melhores e customizadas de protocolos, de forma mais personalizada para pacientes de cuidados críticos.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Reddy K, Sinha P, O’Kane CM, Gordon AC, Calfee CS, McAuley DF. Subphenotypes in critical care: translation into clinical practice. Lancet Respir Med. 2020;8(6):631-43.
  • 2
    Bowman EM, Cunningham EL, Page VJ, McAuley DF. Phenotypes and subphenotypes of delirium: a review of current categorisations and suggestions for progression. Crit Care. 2021;25(1):334.
  • 3
    Vincent JL. The future of critical care medicine: integration and personalization. Crit Care Med. 2016;44(2):386-9.
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    Evans L, Rhodes A, Alhazzani W, Antonelli M, Coopersmith CM, French C, et al. Surviving sepsis campaign: international guidelines for management of sepsis and septic shock 2021. Intensive Care Med. 2021;47(11):1181-247.
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    Vincent JL, Singer M, Einav S, Moreno R, Wendon J, Teboul JL, et al. Equilibrating SSC guidelines with individualized care. Crit Care. 2021;25(1):397.
  • 6
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    Kudo D, Goto T, Uchimido R, Hayakawa M, Yamakawa K, Abe T, et al. Coagulation phenotypes in sepsis and effects of recombinant human thrombomodulin: an analysis of three multicentre observational studies. Crit Care. 2021;25(1):114.
  • 9
    Bellani G, Laffey JG, Pham T, Fan E, Brochard L, Esteban A, Gattinoni L, van Haren F, Larsson A, McAuley DF, Ranieri M, Rubenfeld G, Thompson BT, Wrigge H, Slutsky AS, Pesenti A; LUNG SAFE Investigators; ESICM Trials Group. Epidemiology, patterns of care, and mortality for patients with acute respiratory distress syndrome in intensive care units in 50 countries. JAMA. 2016;315(8):788-800.
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    Calfee CS, Delucchi KL, Sinha P, Matthay MA, Hackett J, Shankar-Hari M, McDowell C, Laffey JG, O’Kane CM, McAuley DF; Irish Critical Care Trials Group. Acute respiratory distress syndrome subphenotypes and differential response to simvastatin: secondary analysis of a randomised controlled trial. Lancet Respir Med. 2018;6(9):691-8.
  • 14
    Azoulay E, Zafrani L, Mirouse A, Lengliné E, Darmon M, Chevret S. Clinical phenotypes of critically ill COVID-19 patients. Intensive Care Med. 2020;46(8):1651-2.

Editado por

Editor responsável: Pedro Póvoa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Fev 2022
  • Aceito
    07 Ago 2022
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