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Efeito da taxa de hemoglobina na saturação arterial de oxigênio durante suporte com oxigenação por membrana extracorpórea veno-venosa em pacientes com síndrome do desconforto respiratório agudo: uma abordagem matemática marginal

AO EDITOR

Taxas de hemoglobina (Hb) na faixa de 7 - 14g/dL têm sido consideradas ideais para pacientes com síndrome do desconforto respiratório agudo em tratamento com oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO). Existe associação entre ventilação mecânica prolongada e episódios de sangramento com níveis séricos reduzidos de Hb. Por outro lado, taxas mais altas de Hb estão associadas a menor fluxo sanguíneo da ECMO, aumento da hemólise e aumento de custos. As estratégias transfusionais atuais baseiam-se principalmente no julgamento individual, derivado sobretudo do princípio da oferta de oxigênio (DO2) versus demanda de oxigênio (VO2).(11 Cornish JD, Gerstmann DR, Null DM Jr, Smith MD, Kuehl TJ. Oxygen delivery rate and sufficiency of oxygenation during ECMO in newborn baboons. J Appl Physiol (1985). 1989;66(1):210-6.) Centros com alto volume de ECMO estão acostumados a estratégias mais restritivas de Hb, embora não haja consenso sobre uma abordagem transfusional definitiva.(22 Hughes T, Zhang D, Nair P, Buscher H. A systematic literature review of packed red cell transfusion usage in adult extracorporeal membrane oxygenation. Membranes (Basel). 2021;11(4):251.) Em contrapartida, alguns centros experientes usam limiares mais altos de Hb para transfusão e aceitam saturação arterial de oxigênio (SatO2) de até 70% com excelentes desfechos clínicos.(33 Lindén V, Palmér K, Reinhard J, Westman R, Ehrén H, Granholm T, et al. High survival in adult patients with acute respiratory distress syndrome treated by extracorporeal membrane oxygenation, minimal sedation, and pressure supported ventilation. Intensive Care Med. 2000;26(11):1630-7.)

As doenças críticas estão relacionadas a disfunção celular devido à redução de DO2 aos tecidos. A DO2 depende do débito cardíaco (DC), da taxa de Hb, da pressão parcial de oxigênio no sangue arterial (PaO2) e da SatO2, como na equação 1.(44 Schumacker PT, Cain SM. The concept of a critical oxygen delivery. Intensive Care Med. 1987;13(4):223-9.)

Equação 1 D O 2 = D C × ( [ H b × S a t O 2 × 1 , 36 ] + [ 0 , 0031 × P a O 2 ] )

O papel fisiológico da SatO2 sobre a DO2 é crucial, sendo o oxigênio ligado à Hb responsável pela maior parte do conteúdo arterial de oxigênio. Além disso, como a quantidade de O2 dissolvida no plasma é insignificante em condições normobáricas, esta geralmente é excluída do cálculo da DO2.(44 Schumacker PT, Cain SM. The concept of a critical oxygen delivery. Intensive Care Med. 1987;13(4):223-9.) Como o objetivo principal da ECMO veno-venosa é proporcionar DO2 adequada, as configurações de oxigenação por ECMO veno-venosa baseiam-se principalmente em SatO2.

Embora o efeito das taxas de Hb sobre a DO2 em pacientes com suporte em ECMO tenha sido previamente modelado, a dimensão do efeito das taxas de Hb sobre a SatO2 permanece incerta.(55 Spinelli E, Bartlett RH. Relationship between hemoglobin concentration and extracorporeal blood flow as determinants of oxygen delivery during venovenous extracorporeal membrane oxygenation: a mathematical model. ASAIO J. 2014;60(6):688-93.) Utilizamos um modelo matemático marginal multicompartimental previamente descrito de SatO2 sistêmica durante o suporte femoro-jugular com ECMO veno-venosa.(66 Besen BA, Romano TG, Zigaib R, Mendes PV, Melro LM, Park M. Oxygen delivery, carbon dioxide removal, energy transfer to lungs and pulmonary hypertension behavior during venous-venous extracorporeal membrane oxygenation support: a mathematical modeling approach. Rev Bras Ter Intensiva. 2019;31(2):113-21.) Esse modelo considera a recirculação proporcional ao fluxo sanguíneo da ECMO e sistêmico aos compartimentos pulmonar nativo e pulmonar artificial. Para avaliar o efeito da taxa de Hb na SatO2, contrastamos diferentes cenários relacionados às variáveis do paciente e da ECMO, como taxas sistêmicas de VO2, fluxo sanguíneo da ECMO e débito cardíaco, para destacar os cuidados dinâmicos requeridos por tais pacientes. O comportamento das configurações bicaval e femoro-femoral (veno-venosa) de duplo lúmen são provavelmente similares, mas com recirculação ligeiramente aumentada.

Utilizou-se o software R de código aberto para a modelagem matemática e as construções gráficas. O roteiro do modelo é de livre acesso no site.

A figura 1 mostra os resultados da influência da taxa de Hb na SatO2 sobre três níveis diferentes de VO2. A figura 2 mostra o mesmo efeito sobre a VO2 fixa e diferentes DCs. A figura 3, por sua vez, mostra o mesmo efeito com VO2 e DCs fixos, mas variando-se os fluxos sanguíneos da ECMO. A figura 4 mostra a relação linear entre as taxas de Hb e DO2.

Figura 1
Comportamento da saturação arterial de oxigênio com taxas de hemoglobina progressivamente mais altas sob três diferentes demandas sistêmicas de oxigênio.

Figura 2
Comportamento da saturação arterial de oxigênio com taxas de hemoglobina progressivamente mais altas sob três débitos cardíacos diferentes.

Figura 3
Comportamento da saturação arterial de oxigênio com taxas de hemoglobina progressivamente mais altas sob três diferentes fluxos de sangue com oxigenação por membrana extracorpórea.

Figura 4
Oferta sistêmica de oxigênio com taxas de hemoglobina progressivamente mais altas sob três diferentes demandas sistêmicas de oxigênio.

Os resultados dessas simulações matemáticas marginais foram compatíveis com o aumento da SatO2 e DO2 com taxas de Hb mais altas. Outras variáveis fisiológicas à beira do leito interagiram com a relação entre taxa de Hb e SatO2. Portanto, nossos achados refletem que, para uma taxa de Hb fixa, uma VO2 mais alta, DC mais alto e fluxo sanguíneo da ECMO mais baixo estiveram associados à hipoxemia mais severa.

O mecanismo do efeito da Hb sobre a SatO2 é uma questão de conteúdo de oxigênio. Para uma mesma VO2, DC e fluxo sanguíneo de ECMO, uma taxa maior de Hb proporciona um maior conteúdo arterial de oxigênio. Portanto, o conteúdo venoso de oxigênio residual também estará aumentado, resultando em maior saturação venosa de oxigênio e, consequentemente, maior SatO2 após oxigenação através dos pulmões nativo e artificial.

As relações relatadas não pretendem ter um papel preditivo em circunstâncias clínicas, já que o modelo foi construído para refletir associações entre as variáveis estudadas em um hipotético estado de “steady-state”. Apesar dessas limitações, nossos achados refletem conceitos fisiológicos importantes que podem ser incorporados à lógica de manejo de pacientes gravemente hipoxêmicos em suporte com ECMO veno-venosa.

Entre pacientes submetidos a suporte com ECMO, circunstâncias de hipoxemia extrema não são incomuns, e intensivistas podem ter que aceitar valores muito baixos de SatO2. Nesses casos, limiares de Hb mais altos poderiam ser usados para permitir a adequação entre VO2 e DO2. Além disso, nosso modelo matemático pode melhorar a compreensão da lógica por trás dos achados de SatO2 muito baixa e desfechos clínicos satisfatórios na prática clínica.(33 Lindén V, Palmér K, Reinhard J, Westman R, Ehrén H, Granholm T, et al. High survival in adult patients with acute respiratory distress syndrome treated by extracorporeal membrane oxygenation, minimal sedation, and pressure supported ventilation. Intensive Care Med. 2000;26(11):1630-7.) Entretanto, continua sendo fundamental enfatizar os possíveis efeitos deletérios da hipoxemia grave com a instalação de hipertensão pulmonar e disfunção ventricular direita, além de efeitos cognitivos a longo prazo.

Em conclusão, taxas mais altas de Hb estão associadas ao aumento da DO2 e da SatO2. Essa associação é modulada, pelo menos, pelo débito cardíaco do paciente, pelo VO2 sistêmico e pelo fluxo sanguíneo da ECMO.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Cornish JD, Gerstmann DR, Null DM Jr, Smith MD, Kuehl TJ. Oxygen delivery rate and sufficiency of oxygenation during ECMO in newborn baboons. J Appl Physiol (1985). 1989;66(1):210-6.
  • 2
    Hughes T, Zhang D, Nair P, Buscher H. A systematic literature review of packed red cell transfusion usage in adult extracorporeal membrane oxygenation. Membranes (Basel). 2021;11(4):251.
  • 3
    Lindén V, Palmér K, Reinhard J, Westman R, Ehrén H, Granholm T, et al. High survival in adult patients with acute respiratory distress syndrome treated by extracorporeal membrane oxygenation, minimal sedation, and pressure supported ventilation. Intensive Care Med. 2000;26(11):1630-7.
  • 4
    Schumacker PT, Cain SM. The concept of a critical oxygen delivery. Intensive Care Med. 1987;13(4):223-9.
  • 5
    Spinelli E, Bartlett RH. Relationship between hemoglobin concentration and extracorporeal blood flow as determinants of oxygen delivery during venovenous extracorporeal membrane oxygenation: a mathematical model. ASAIO J. 2014;60(6):688-93.
  • 6
    Besen BA, Romano TG, Zigaib R, Mendes PV, Melro LM, Park M. Oxygen delivery, carbon dioxide removal, energy transfer to lungs and pulmonary hypertension behavior during venous-venous extracorporeal membrane oxygenation support: a mathematical modeling approach. Rev Bras Ter Intensiva. 2019;31(2):113-21.

Editado por

Editor responsável: Felipe Dal-Pizzol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2021
  • Aceito
    06 Mar 2022
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