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Violência e assédio no trabalho: expectativa sobre a ratificação da Convenção 190 da OIT pelo Brasil

A violência e o assédio no trabalho apresentam elevada prevalência e têm efeitos profundos e custosos, que envolvem desde danos à saúde física e mental até desligamento do trabalho e perdas econômicas para trabalhadores, empregadores e sociedades11. Andrade CB, Assis SG. Assédio moral no trabalho, gênero, raça e poder: revisão de literatura. Rev Bras Saude Ocup. 2018;43:e11.),(22. International Labour Organization. Experiences of violence and harassment at work: a global first survey. Geneva: ILO, 2022.. A Convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é o primeiro tratado internacional a reconhecer o direito a um mundo do trabalho livre de violência e assédio e foi adotada, em junho de 2019, pela Conferência Geral da OIT, juntamente à Recomendação nº 206. Em seu primeiro artigo, a expressão “violência e assédio” no mundo do trabalho é definida como “uma série de comportamentos e práticas inaceitáveis, ou ameaças desses, seja uma única ocorrência ou repetida, que visam, resultam ou podem resultar em danos físicos, psicológicos, sexuais ou econômicos, e inclui violência e assédio de gênero”. Por sua vez, “violência e assédio de gênero” significa “violência e assédio dirigido a pessoas por causa de seu sexo ou gênero, ou que afeta pessoas de um determinado sexo ou gênero de forma desproporcional, e inclui o assédio sexual” 33. International Labour Organization. C190 - Convenio sobre la violencia y el acoso. Geneva: ILO, 2019 (núm. 190)..

O conceito unificado de violência e assédio é considerado um marco importante para coibir práticas abusivas no contexto do trabalho, pois inclui as diversas formas conhecidas, bem como novas manifestações desses fenômenos que possam causar danos às vítimas. De forma semelhante, o “mundo do trabalho” é definido de maneira ampliada, incluindo não apenas o local de trabalho físico tradicional, mas qualquer espaço privado ou público que seja local de trabalho, como os espaços públicos, inclusive para trabalhadores informais, como vendedores ambulantes, assim como o domicílio, em particular para trabalhadores domésticos e teletrabalhadores. Inclui também locais onde o trabalhador é remunerado, faz pausa para descanso ou refeição, ou utiliza instalações sanitárias, de higiene e vestiário, o deslocamento para o trabalho, os eventos sociais e nas comunicações relacionadas ao trabalho. Essa abordagem conjunta e ampliada possibilita maior alcance dos dispositivos da Convenção, abrangendo todas as formas de condutas violentas e assediadoras, bem como pessoas, lugares, setores ou situações que estejam relacionadas aos fenômenos da violência e do assédio no âmbito das relações de trabalho44. Santos CMPG, Pamplona Filho R. "Convenção 190 da OIT: Violência e assédio no mundo do trabalho." Direito UNIFACS - Debate Virtual. 2021;251..

Também merece destaque o incentivo à adoção de uma “abordagem sensível às questões de gênero” para que os países passem a incorporá-la como dimensão relevante no desenho, desenvolvimento, implementação e resultados de programas, ações, políticas, leis, normas e acordos coletivos. Essa abordagem implica considerar as diferenças de gênero, que compreendem as realidades e necessidades distintas de mulheres e meninas, buscando contemplar sua participação nos processos de tomada de decisão em todos os níveis, para lograr o alcance da igualdade de gênero55. Organização Internacional do Trabalho. Violência e assédio no mundo do trabalho: Um guia sobre a Convenção Nº 190 e a Recomendação N.º 206. 2021 [citado em 25 abril 2023]. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-brasilia/documents/publication/wcms_832010.pdf.
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. Não obstante, é reconhecido o papel das interseccionalidades na gênese da violência no trabalho, uma vez que categorias como raça, classe, origem geográfica, capacidade e idade, além do sexo e gênero, relacionam-se entre si e se associam às condições de trabalho e saúde66. Vieira CEC. Violência no trabalho: dimensões estruturais e interseccionais. Rev Bras Saude Ocup. 2023;48:edepi3..

Estudo global realizado pela OIT em parceria com institutos de pesquisa, com dados de aproximadamente 125.000 entrevistas realizadas em 121 países durante o ano de 2021, revelou que 22,8%, ou 743 milhões, das pessoas em situação de emprego sofreram violência e assédio no trabalho - seja físico, psicológico ou sexual - durante sua vida laboral. A prevalência foi maior no continente americano (34,3%), assim como entre pessoas que sofreram discriminação de gênero, deficiência, nacionalidade/etnia, cor da pele e/ou religião em algum momento de sua vida. As mulheres foram as principais vítimas da violência e assédio sexual no trabalho. Cabe ressaltar, todavia, que esses resultados revelam somente a “ponta do iceberg”, considerando as limitações da pesquisa e as dificuldades das pessoas em se reconhecerem como vítimas de violência e assédio no trabalho22. International Labour Organization. Experiences of violence and harassment at work: a global first survey. Geneva: ILO, 2022..

No Brasil, inexiste estudo de abrangência nacional que tenha estimado a prevalência da violência no trabalho. Contudo, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019 estimou que cerca de 18,3% das pessoas com mais de 18 anos no Brasil, o equivalente a 29,1 milhões de indivíduos, sofreram algum tipo de violência psicológica, física ou sexual nos 12 meses anteriores à entrevista, sem delimitar o contexto no qual ocorreu a violência. Dentre as pessoas que relataram experiências com violência psicológica (17,4% da população), 18,4% informaram o trabalho como local de ocorrência e 7,1% apontaram o “empregado em geral, patrão, patroa ou chefe” como principal agressor77. Mascarenhas MDM, Melo AS, Rodrigues MTP, Bahia CA, Lima CM, Corassa RB, et al. Prevalence of exposure to violence among adults - Brazil, 2019. Rev Bras Epidemiol. 2021;24:e210019.. Segundo Minayo, no Brasil, o ambiente familiar, comunitário, institucional e social, em geral, é permeado pelos vários tipos de violência interpessoal que afetam a saúde individual e coletiva, bem como diminuem o potencial do saudável crescimento e desenvolvimento88. Minayo MCS, Pinto LW, Silva CMFP. A violência nossa de cada dia, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde 2019. Cien Saude Colet. 2022;29(09):3701-3714.. Neste cenário, a violência e o assédio no trabalho acabam, de certo modo, invisibilizados.

Embora o Brasil possuísse um arcabouço legal de proteção ao trabalhador bem estabelecido desde a década de 1940, quando foi criada a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), houve retrocessos recentes. A reforma trabalhista aprovada em 2017 alterou diversos dispositivos da CLT e, inclusive, tornou facultativa a contribuição sindical, além de ter ampliado as modalidades possíveis da terceirização e do contrato temporário. Essa reforma tem sido caracterizada como instrumento de desconstrução de direitos, alinhada a um conjunto de ações políticas neoliberais em curso no Brasil, que passou a expor os trabalhadores a situações de maior vulnerabilidade social99. Krein JD. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva: consequências da reforma trabalhista. Tempo Soc. 2018;30(1):77-104.),(1010. Krein JD, Colombi APF. A reforma trabalhista em foco: desconstrução da proteção social em tempos de neoliberalismo autoritário. Educ Soc. 2019;40:e0223441.. Ademais, colidiu com diversos tratados internacionais de direitos humanos previamente ratificados pelo Brasil, como aqueles “relacionados à igualdade e à não discriminação, à saúde e segurança no trabalho, ao combate ao trabalho em condições análogas à de escravo, à liberdade sindical e à negociação coletiva e ao regime de emprego socialmente protegido”1111. Porto LV. A terceirização na reforma trabalhista e a violação às normas internacionais de proteção ao trabalho. Rev Trib Reg Trab 3ª Reg. 2017;63(96):149-182..

Nesse contexto, existe grande expectativa sobre a ratificação da Convenção 190 da OIT. Durante a cerimônia do Dia Internacional da Mulher, em 8 de março de 2023, o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, assinou mensagens ao Congresso Nacional visando iniciar o processo de ratificação da Convenção 190, bem como da Convenção 156 da OIT, que discorre sobre a igualdade de oportunidades e de tratamento para homens e mulheres trabalhadores. Até abril de 2023, a Convenção 190 havia sido ratificada por 27 países1212. International Labour Organization. France ratifies Convention C190 on violence and harassment in the world of work. 2023 [citado em 25 abril 2023]. Disponível em: https://www.ilo.org/global/topics/violence-harassment/news/WCMS_876548/lang--en/index.htm.
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. Sua ratificação e implementação no Brasil têm sido uma reivindicação importante das entidades sindicais nacionais, da Magistratura do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho e de instituições dedicadas à defesa dos direitos das mulheres1313. Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho. Convenção 190 da OIT. Brasília, DF: ANAMATRA, [2022] [citado em 25 abril 2023]. Disponível em: https://www.anamatra.org.br/trabalhosemassedio/convencao-190-da-oit.
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Os países que ratificam a Convenção 190 assumem o compromisso de implementar as leis e políticas necessárias para prevenir e abordar a violência e o assédio no mundo do trabalho em diversas áreas, o que inclui medidas para fornecer orientação, recursos e capacitação sobre esses temas, abrangendo violência e assédio de gênero para empregadores, trabalhadores e suas respectivas organizações, bem como para autoridades competentes, além de campanhas de sensibilização. Essas medidas também devem contemplar o estabelecimento de estruturas para garantir que as vítimas tenham acesso a recursos legais e apoio psicológico adequado, além da criação de mecanismos para monitorar e relatar casos de violência e assédio, de modo a assegurar que nenhuma represália seja praticada contra os denunciantes1414. Ministério Público do Trabalho. Pela paz no trabalho - Manifesto pela ratificação da Convenção 190 da OIT. Brasília, DF: MPT, 2020 [citado em 25 abril 2023]. Disponível em: https://mpt.mp.br/pgt/noticias/nota-publica-ratificacao-convencao-190-oit-assinada.pdf.
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. Ainda, a Recomendação nº 206 reforça a importância do aprimoramento das fontes de dados e informações sobre violência e assédio no trabalho1515. International Labour Organization. R206 - Violence and Harassment Recommendation. Geneva: ILO, 2019 [citado em 25 abril 2023] (No. 206). Disponível em: https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO::P12100_ILO_CODE:R206.
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A ratificação da Convenção 190 da OIT no Brasil representa uma oportunidade histórica para que o país retome sua trajetória na direção do compromisso com os direitos humanos no contexto do trabalho, o que pode beneficiar sua imagem no cenário internacional, bem como representar uma mensagem de esperança para as trabalhadoras e trabalhadores.

No entanto, ainda há um processo a ser concluído antes da ratificação, que inclui a tramitação e a aprovação do Projeto de Lei no Congresso Nacional, a sanção pelo Presidente da República, bem como o depósito do instrumento de ratificação junto à OIT. Outrossim, há muito trabalho a ser feito para garantir que as disposições da Convenção 190 venham a ser implementadas em todo o território nacional após a sua ratificação. É responsabilidade coletiva dos empregadores, governos, trabalhadores e da comunidade científica envidar todos os esforços necessários para a construção de um mundo do trabalho justo, seguro e baseado na dignidade e no respeito para todas e todos.

Referências

  • 1
    Andrade CB, Assis SG. Assédio moral no trabalho, gênero, raça e poder: revisão de literatura. Rev Bras Saude Ocup. 2018;43:e11.
  • 2
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  • 4
    Santos CMPG, Pamplona Filho R. "Convenção 190 da OIT: Violência e assédio no mundo do trabalho." Direito UNIFACS - Debate Virtual. 2021;251.
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    Organização Internacional do Trabalho. Violência e assédio no mundo do trabalho: Um guia sobre a Convenção Nº 190 e a Recomendação N.º 206. 2021 [citado em 25 abril 2023]. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-brasilia/documents/publication/wcms_832010.pdf
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  • 10
    Krein JD, Colombi APF. A reforma trabalhista em foco: desconstrução da proteção social em tempos de neoliberalismo autoritário. Educ Soc. 2019;40:e0223441.
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    As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade da autora, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou do Governo Federal.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023
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