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Violência no trabalho de profissionais de enfermagem na Estratégia Saúde da Família

Workplace violence against nursing professionals in the Family Health Strategy

Resumo

Objetivos:

caracterizar a violência sofrida por profissionais de enfermagem em Unidades Básicas de Saúde da Família, revelar as consequências dessas vivências, apontar medidas de prevenção.

Métodos:

pesquisa qualitativa com análise de conteúdo por categorização temática. Participaram do estudo 26 profissionais de enfermagem de 12 Unidades de Saúde da Família de um município do interior de São Paulo. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevista oral, utilizando roteiro semiestruturado.

Resultados:

a forma de violência mais relatada foi a agressão verbal de usuários insatisfeitos com o atendimento. Entre as consequências das experiências vividas, destacaram-se atitudes defensivas, além de sentimentos de medo e desânimo. As medidas de prevenção apontadas pelos participantes foram educação, ação organizacional, adoção de tecnologias relacionais. O descompasso entre oferta e demanda nos serviços, a falta de condições dignas de trabalho e a ausência de medidas de promoção da saúde dos trabalhadores - aliados à naturalização da violência - ajudaram a entender o cenário evidenciado.

Conclusão:

a violência está presente no ambiente laboral dos profissionais de enfermagem e precisa ser minimizada na Atenção Primária à Saúde. Refletir sobre as manifestações da violência, o quanto ela é prejudicial e como pode ser prevenida torna-se essencial para seu enfrentamento.

Palavras-chave:
saúde do trabalhador; violência no trabalho; equipe de enfermagem; estratégia saúde da família, pesquisa qualitativa

Abstract

Objectives:

to characterize workplace violence against nursing professionals working in Basic Family Health Units to reveal their consequences and point out preventive measures.

Methods:

qualitative research with content analysis by thematic categorization. Data were collected by means of semi-structured interviews with 26 nursing professionals from twelve Family Health Units in the São Paulo countryside.

Results:

verbal assault from users dissatisfied with the service was the most frequent form of violence experienced, leading to defensive attitudes and feelings of fear and despondency. Participants pointed out education, organizational action and adoption of relational technologies as prevention measures. The mismatch between supply and demand, the lack of decent working conditions and the absence of measures to promote occupational health - combined with a naturalized violence - help to explain this scenario.

Conclusion:

workplace violence is a common experience among nursing professionals and must be mitigated in Primary Health Care. Reflecting on how violence is manifested, its harmful consequences and prevention measures is essential for combating it.

Keywords:
occupational health; workplace violence; nursing team; family health strategy; qualitative research

Introdução

Estudos internacionais e nacionais demonstram preocupação com as ocorrências de violência ocupacional na saúde, setor considerado propício para esse fenômeno crescente no mundo11. Olímpio ACS, Lira RCM, Costa JBC, Dionisio BWR, Gomes AV. Violência ocupacional na Atenção Primária e as interfaces com as condições e a organização do trabalho. Sanare - Revista de Políticas Públicas. 2021;20(2):97-106.. Fatores ambientais e organizacionais podem predispor os profissionais de saúde a sofrerem violência no trabalho22. Ladeia PSS, Mourão TT, Melo EM. O silêncio da violência institucional no Brasil. Rev Med Minas Gerais. 2016;26(Supl 8):S398-401. e sua prevalência pode variar de 17% a 94%11. Olímpio ACS, Lira RCM, Costa JBC, Dionisio BWR, Gomes AV. Violência ocupacional na Atenção Primária e as interfaces com as condições e a organização do trabalho. Sanare - Revista de Políticas Públicas. 2021;20(2):97-106.. O desenvolvimento de estratégias contra a violência é tema central nas organizações do trabalho e da saúde mundiais33. Campos A, Pierantoni C. Violência no trabalho em saúde: um tema para a cooperação internacional em recursos humanos para a saúde. Rev Eletron Comunic Inform Inov Saude. 2010;4(1):86-92..

O processo de trabalho na Estratégia Saúde da Família (ESF) tem como eixo principal o desenvolvimento em equipe. Nesse processo, fortemente influenciado pelas relações interpessoais, há expectativas e potencialidades individuais que se manifestam no grupo44. Faria H, Wernek M, Santos MA. Processo de trabalho em saúde. Belo Horizonte: UFMG; 2009.. O objeto de atenção é a família no espaço em que vive, portanto, as equipes realizam atividades no ambiente familiar e comunitário e, dessa forma, vivenciam a realidade local55. Duarte SCM, Florido HG, Floresta WMC, Marins AMF, Broca PV, Moraes JRMM. Gerenciamento das situações de violência no trabalho na Estratégia de Saúde da Família pelo enfermeiro. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20180432..

Os usuários, por sua vez, têm expectativas e necessidades de saúde que se manifestam no coletivo das famílias e comunidade. Compreender as necessidades individuais e coletivas e atendê-las satisfatoriamente é o desafio da ESF, sobretudo em territórios marcados por vulnerabilidades sociais decorrentes da desigualdade existente no país66. Santos MS, Silva JG, Branco JGO. O enfrentamento à violência no âmbito da estratégia saúde da família: desafios para a atenção em saúde. Rev Bras Promoç Saude. 2017;30(2):229-38..

Os profissionais que atuam na ESF enfrentam cenários de violência doméstica e social, convivendo diariamente com essas situações, experienciando sentimentos de medo e vulnerabilidade77. Leite CN, Oliveira EB, Lisboa MTL, Penna LHG, Oliveira SA, Rafael RMR. Violência na ESF: riscos para trabalhadores. Rev Enferm UERJ. 2020;28:e45789.. Esses trabalhadores sofrem as consequências advindas do trabalho - muitas vezes precário - e se sentem acuados por testemunharem situações de violência e por estarem totalmente desprotegidos durante as visitas domiciliares ou nas ações no território55. Duarte SCM, Florido HG, Floresta WMC, Marins AMF, Broca PV, Moraes JRMM. Gerenciamento das situações de violência no trabalho na Estratégia de Saúde da Família pelo enfermeiro. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20180432.),(66. Santos MS, Silva JG, Branco JGO. O enfrentamento à violência no âmbito da estratégia saúde da família: desafios para a atenção em saúde. Rev Bras Promoç Saude. 2017;30(2):229-38..

Em decorrência disso, os profissionais da saúde - em especial da enfermagem - vivem um problema expressivo em nível nacional e internacional, com implicações à sua saúde física e mental, inclusive estendendo-se a colegas da equipe, familiares e sociedade, além das consequências no âmbito do trabalho88. Bordignon M, Monteiro MI. Violência no trabalho da Enfermagem: um olhar às consequências. Rev Bras Enferm. 2016;69(5):996-9.. Essa violência pode ser consumada pela pessoa cuidada (usuário do serviço de saúde) e/ou seu acompanhante, por outros trabalhadores, pela própria equipe, pelos gestores ou, ainda, por pessoas externas, quando a atividade laboral é exercida extramuros99. Santana ACCS, Jesus A, Souza SMOL, Lima WSS, Rocha VN. Violência no ambiente de trabalho da enfermagem: uma revisão integrativa. CGCBS. 2020;6(2):94..

O Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP) e o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) constataram, em inquérito sobre violência no estado de São Paulo, que 77% dos profissionais de enfermagem entrevistados sofreram violência no trabalho; em 53% das ocorrências, a violência foi cometida pelo paciente insatisfeito com o atendimento. Entre os tipos de violência relatados, 49,2% foram verbais; 38%, psicológicas; e 14,2%, físicas1010. Baptista PCV. Violência no trabalho: guia de prevenção para os profissionais de enfermagem. São Paulo: Coren-SP; 2017..

Não existe consenso sobre a conceitualização da violência no trabalho. Ela pode ser compreendida como dano físico ou psíquico referente à saúde e segurança do trabalhador, alvo da violência partida da ação voluntária de uma pessoa ou grupo, direcionada contra outra pessoa ou grupo, acontecendo dentro do ambiente de trabalho ou arredores1111. Oliveira RP, Nunes MO. Violência relacionada ao trabalho: uma proposta conceitual. Saude Soc. 2008;17(4):22-34.. No entanto, consiste em um evento complexo, multifacetado, uma vez que os contextos, as explicações e os sentimentos consequentes são passiveis de significações numerosas e contraditórias, dependendo da cultura, das circunstâncias e premissas que o cercam1212. Barros T, Almeida J, Alves L, Menezes R, Rocha F, Oliveira L. Violência de gênero como risco ocupacional contra enfermeiras da Estratégia de Saúde da Família de Campina Grande - PB. Rev Univ Vale Rio Verde. 2014;12(3):659-6..

Com o aumento da violência estrutural, todas as outras formas de violência vêm aumentando consideravelmente, necessitando de intervenções. O tema ganha relevância na atualidade e carece de estudos mais aprofundados. A violência ocupacional na Atenção Primária “se destaca como problema de saúde pública” e “pouco tem sido identificada, mensurada e prevenida”11. Olímpio ACS, Lira RCM, Costa JBC, Dionisio BWR, Gomes AV. Violência ocupacional na Atenção Primária e as interfaces com as condições e a organização do trabalho. Sanare - Revista de Políticas Públicas. 2021;20(2):97-106. (p. 104). Outrossim, os profissionais de enfermagem representam considerável parcela da força de trabalho nas instituições de saúde e podem estar sofrendo violência ocupacional.

Neste estudo, buscou-se conhecer essa realidade e retratar como as vivências de violência ocupacional influenciam o ambiente de trabalho, a qualidade da assistência e a vida pessoal dos trabalhadores, expandindo a discussão para aspectos mais amplos, bem como apresentar as propostas para prevenção da violência apontadas pelos próprios participantes.

Desse modo, caracterizar a violência sofrida pelos profissionais de enfermagem em Unidades Básicas de Saúde da Família (UBASF), revelar as consequências da violência no cotidiano de trabalho dos participantes e apontar as medidas de prevenção propostas por eles foram os objetivos do estudo.

Métodos

Trata-se de estudo descritivo, com abordagem qualitativa, realizado em 12 Unidades Básicas de Saúde da Família (UBASF) de Sorocaba, município do estado de São Paulo, com população estimada em 695.328 habitantes em 2021. Seu território tem 32 Unidades Básicas de Saúde, sendo 14 delas UBSAFs que englobam 44 equipes.

A pesquisa incluiu 26 profissionais, sendo 13 enfermeiros, 11 técnicos de enfermagem e dois auxiliares de enfermagem. Para a amostra de conveniência foi estabelecido que pelo menos dois profissionais de cada UBASF participariam do estudo, sendo um enfermeiro e um técnico ou auxiliar de enfermagem. Foram critérios de inclusão dos participantes: ser enfermeiro, técnico ou auxiliar de enfermagem integrante da Equipe de Saúde da Família, concordar em participar do estudo e já ter sofrido algum tipo de violência no trabalho.

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevista oral, gravada em áudio, utilizando um roteiro estruturado para dados sociodemográficos e outro roteiro semiestruturado para as vivências de violência ocupacional.

As questões sobre as vivências dos trabalhadores foram: “relate as vivências de violência que você sofreu no ambiente de trabalho”; “como essas vivências influenciaram seu cotidiano de trabalho?”; “quais suas sugestões para prevenir a violência no ambiente de trabalho?”.

Os participantes do estudo foram contatados pessoalmente nas UBASFs pelas entrevistadoras. O projeto de pesquisa e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foram apresentados aos profissionais presentes na unidade e aqueles que atendiam aos critérios de inclusão e tinham disponibilidade eram entrevistados após a assinatura do TCLE. Foi utilizado gravador de voz do telefone móvel para registrar os depoimentos.

As entrevistas, com duração média de 15 minutos, foram realizadas individualmente em salas apropriadas para garantir a privacidade. A coleta de dados foi feita entre outubro de 2019 e janeiro de 2020 por alunas de graduação em enfermagem, bolsistas de iniciação científica, que receberam treinamento prévio visando à realização das entrevistas. Além disso, o instrumento de coleta de dados foi testado previamente para as devidas adequações e reformulações.

Os depoimentos foram transcritos literalmente e analisados por meio do método de análise de conteúdo, que valoriza os significados presentes nas falas e sua correlação com as narrativas1313. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011..

O processo de análise iniciou-se com uma primeira leitura dos depoimentos, a fim de ter contato direto com o material obtido e se deixar impregnar pelo seu conteúdo. Após essa fase, foi efetuada a leitura exaustiva do material para selecionar partes que servissem de referência para as unidades de análise, identificando, assim, as unidades de contexto.

Após leituras detalhadas das unidades de contexto, foram selecionadas as unidades de análise ou unidades de registro, elementos de significação, classificação ou codificação. As unidades de registro foram classificadas em subtemas, que posteriormente foram agrupados nas categorias apriorísticas: formas de violência ocupacional sofridas pela equipe de enfermagem, consequências da violência no cotidiano do trabalho e sugestões de medidas preventivas para a violência ocupacional.

A título de organização, foi adotada a identificação dos relatos, utilizando codificação alfanumérica, de modo que a letra indicasse a categoria profissional do participante (E: enfermeiro; T: técnico de enfermagem; A: auxiliar de enfermagem) e o elemento numérico que compõe o conjunto indicasse a ordenação dos depoimentos por unidade de saúde.

Os dados sociodemográficos foram analisados segundo a frequência das variáveis.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com protocolo nº 10605219.6.0000.5373, em 17 de abril de 2019. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados e discussão

Com relação ao perfil dos entrevistados, verificou-se que o sexo feminino (84,6%) prevaleceu em comparação ao masculino (15,3%). A faixa etária predominante foi de 35 a 45 anos, representada por 80,7% dos participantes. Quanto ao tempo de formação, 57,6% dos entrevistados eram formados entre 12 e 20 anos, seguidos de 38,4% que se formaram entre 21 e 35 anos. O tempo de serviço predominante foi de 10 a 18 anos (50%), seguido de 5 a 9 anos (42,3%). Acerca do período da violência, 73% das vivências relatadas ocorreram nos últimos dois anos.

O Quadro 1 mostra as categorias e subcategorias temáticas resultantes da análise dos depoimentos.

Quadro 1
Categorias e subcategorias temáticas dos depoimentos dos profissionais de enfermagem (n=26) sobre as vivências de violência ocupacional em Unidades Básicas de Saúde da Família. Sorocaba (SP), 2020.

Formas de violência

A respeito das formas de violência sofrida pelos participantes, predominaram as agressões verbais vindas dos usuários, seguidas de assédio moral por parte da equipe ou coordenadores e, por fim, de ameaças dos usuários. As ofensas verbais e as ameaças foram frequentemente geradas por usuários descontentes com o serviço, pacientes que se sentiam contrariados ao terem suas solicitações negadas em diversos contextos ou que não confiavam na equipe de enfermagem para exercer a assistência, preferindo um profissional médico.

[…] paciente que começou a xingar… a ofender a equipe de enfermagem […]. (T3).

[…] paciente descontente por causa do serviço fala que a gente é incompetente, que a gente não faz nada […]. (E7).

O descontentamento do usuário com o serviço na ESF pode estar relacionado à dificuldade do acesso, ao não atendimento das suas necessidades e a aspectos do processo de trabalho1414. Gomide MFS, Pinto IC, Bulgarelli AF, Santos ALP, Serrano GMP. A satisfação do usuário com a atenção primária à saúde: uma análise do acesso e acolhimento. Interface (Botucatu). 2018;22(65):387..

Ainda que as reclamações sejam direcionadas ao serviço, os profissionais de enfermagem, por estarem atuando diretamente com o usuário, recebem essa frustração, por vezes, em forma de agressão.

[…] o paciente, às vezes, fica bravo de esperar muito tempo, e acaba descontando na gente, acaba xingando a gente de vagabundo […]. (E10).

A concepção biomédica hegemônica da assistência centrada na doença ainda é persistente no ideário dos usuários. Sendo assim, o critério para buscar atendimento nas UBASFs é a presença de doença, por isso os pacientes esperam procedimentos curativos e tratamento medicamentoso, em detrimento das ações preventivas e de promoção da saúde, resultando na expectativa do usuário de ser atendido pelo médico1515. Esmeraldo GROV, Oliveira LC, Esmeraldo Filho CE, Queiroz DM. Tensão entre o modelo biomédico e a estratégia saúde da família: a visão dos trabalhadores de saúde. Rev APS. 2017;20(1):98-106., como exemplifica a fala:

[…] começou a gritar comigo que onde já se viu passar com a enfermeira, que o problema dela era psiquiátrico […]. (E1).

Não raro, a equipe de saúde tem dificuldades para enfrentar situações do cotidiano, como a assistência ao paciente psiquiátrico e a insatisfação dos usuários com esse atendimento1616. Coelho BP, Silva AM, Souza e Souza LP, Silva KM, Pereira da Silva E, Pinto IS, et al. Saúde mental no trabalho do Enfermeiro da Atenção Primária de um município no Brasil. Rev Cubana Enferm. 2015;31(1):70-83..

[…] tem as agressões de pessoas que já têm um diagnóstico psiquiátrico e tem aqueles que são meio descontrolados […]. (E5).

Com a reforma psiquiátrica, que ocorreu no final dos anos 1970 no Brasil, houve a desinstitucionalização e substituição dos manicômios por políticas sociais e de saúde que ressignificaram a relação da sociedade com pessoas que sofrem de transtornos mentais. Desde então, coube à equipe de saúde da UBASF prestar assistência à pessoa com transtorno mental, realizando atendimento integral à família e ao paciente, atuando na promoção da saúde mental1717. Souto RSF, Silva TV, Souza SAN, Santos WL. As dificuldades enfrentadas pelo enfermeiro no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS): revisão de literatura. Rev Inic Cient Ext. 2018;1(Esp2):226-3..

Os participantes deste estudo relataram agressões físicas e verbais, que são vistas como ameaça à integridade e à segurança dos profissionais, resultando em constante medo e insegurança durante o atendimento ao paciente psiquiátrico. Esse dado está em consonância com a pesquisa realizada em uma unidade docente assistencial psiquiátrica que abordou a percepção dos trabalhadores de enfermagem sobre a violência relacionada ao trabalho na psiquiatria1818. Paula GS, Oliveira EB, Silva AV, Souza SRC, Fabri JMG, Guerra AO. Violência relacionada ao trabalho na psiquiatria: percepção dos trabalhadores de enfermagem. SMAD, Rev Eletronica Saude Mental Alcool Drog. 2017;13(2):86-92..

Os relatos de violência física foram citados, porém foram menos frequentes que os outros tipos de violência, coincidindo com estudos nacionais e internacionais na Atenção Primária à Saúde1919. Ruiz-Hernández JA, López-García C, Llor-Esteban B, Galián-Muñoz I, Benavente-Reche AP. Evaluation of the users violence in primary healthcare: adaptation of an instrument. J Health Psychol. 2016;16:295-305.),(2020. Sturbelle ICS, Pai DD, Tavares JP, Trindade LL, Riquinho DL, Campos LF. Violência no trabalho em saúde da família: estudo de métodos mistos. Acta Paul Enferm. 2019;32(6):632-41..

[…] uma pessoa da minha equipe que foi agredida na unidade, ela levou um soco […]. (E1).

[…] eu já cheguei levar uma “correntada” de uma criança na perna […]. (T7).

De acordo com as narrativas dos entrevistados, foi possível constatar que a violência, apesar de ser sentida de diversas formas no cotidiano, às vezes só é considerada se for física. Assim, as agressões verbais ou os tratamentos desrespeitosos são tolerados ou até mesmo esperados, configurando a banalização da violência, como mostra o depoimento:

[…] tem paciente que sai reclamando, xingando. Mas agressão mesmo nunca aconteceu […]. (T4).

Situações humilhantes, degradantes e hostis, efetuadas por colegas ou superiores hierárquicos, ocorridas de forma silenciosa e, outras vezes, de forma repetida e sistemática, emergiram nos depoimentos.

Essa descrição é compatível com assédio moral no ambiente de trabalho, no qual os colegas ou superiores hierárquicos reproduzem atitudes contínuas e deliberadas de maus-tratos que acabam gerando sofrimento e danos psicossociais. Essas agressões podem ser horizontais, quando praticadas pelos pares; verticais descendentes, pelos superiores hierárquicos; e verticais ascendentes, dos trabalhadores para os superiores hierárquicos2121. Busnello GF, Trindade TL, Dal Pai D, Beck CLC, Ribeiro OMPL. Tipos de violência no trabalho da enfermagem na Estratégia Saúde da Família. Esc Anna Nery. 2021;25(4):e20200427..

[…] eu tive um problema de assédio com a coordenadora daqui. Ela me perseguiu, me prejudicou muito. Emocionalmente, ela acabou comigo […]. (T1).

[…] é mais uma violência verbal e psicológica. Tanto da parte dos próprios colegas de enfermagem […] quanto da equipe […]. (E2).

Os relatos referem-se a vivências de assédio moral vertical e horizontal e são compatíveis com achados de outros estudos55. Duarte SCM, Florido HG, Floresta WMC, Marins AMF, Broca PV, Moraes JRMM. Gerenciamento das situações de violência no trabalho na Estratégia de Saúde da Família pelo enfermeiro. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20180432.),(2222. Fernandes H, Sala DCP, Horta ALM. Violência em ambientes de cuidados à saúde: repensando ações. 2018;71(5):2599-601.),(2323. Silva BV, Gonçalves CFG, Laranjeira de Sá AK, Silva CRDT, Carvalho VPS, Santos SC, et al. Perspectivas da equipe de enfermagem sobre as repercussões comportamentais e físicas da violência no trabalho. Brazi J Dev. 2020;6(9):66626-36.. O assédio moral no ambiente de trabalho é mais um fator estressante enfrentado pelos profissionais de enfermagem, acarretando consequências pessoais à vítima, à organização laboral e à sociedade2424. Silva AKL, Marinho MID, Machado LSSX, Queiroz JLF, Jucá RMN. Assédio moral no trabalho: do enfrentamento individual ao coletivo. Rev Bras Saude Ocup. 2019;44:e22.. As condições de trabalho são degradadas, desestabilizando e fragilizando o profissional, que se sente afetado na sua autoestima e autoconfiança, fato que dificulta ou impossibilita o desempenho de suas atividades laborais2121. Busnello GF, Trindade TL, Dal Pai D, Beck CLC, Ribeiro OMPL. Tipos de violência no trabalho da enfermagem na Estratégia Saúde da Família. Esc Anna Nery. 2021;25(4):e20200427..

Consequências da violência

Distanciamento afetivo do trabalho, medo, desmotivação e ansiedade foram relatados pelos participantes como consequências da violência sofrida em diversas situações. Os sentimentos de medo, insegurança e despreparo - manifestados pelos entrevistados para o atendimento aos portadores de transtorno mental - podem ser decorrentes de falha na formação acadêmica e na educação permanente referente a temas de saúde mental. Além disso, a estrutura física nem sempre apropriada para recepção e atendimento dos pacientes pode gerar tais sentimentos1717. Souto RSF, Silva TV, Souza SAN, Santos WL. As dificuldades enfrentadas pelo enfermeiro no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS): revisão de literatura. Rev Inic Cient Ext. 2018;1(Esp2):226-3.),(2525. Caminha ECCR, Jorge MSB, Pires RR, Carvalho RRS, Costa LSP, Lemos AM, Costa JP. Relações de poder entre profissionais e usuários da Atenção Primária à Saúde: implicações para o cuidado em saúde mental. Saude Debate. 2021;45:81-90..

[…] outras situações de medo diante de pacientes com algum distúrbio mental é que as nossas unidades não são preparadas com rotas de fuga […]. (E3).

O isolamento de membros da equipe é uma das consequências da violência ocupacional na dimensão coletiva; tal isolamento impacta o trabalho em equipe. Podem, também, ser observados falha na comunicação e desentendimentos que alimentam ainda mais o ciclo de violência entre os profissionais1010. Baptista PCV. Violência no trabalho: guia de prevenção para os profissionais de enfermagem. São Paulo: Coren-SP; 2017..

[…] você acaba perdendo um pouco, não o amor, mas o gosto, você acaba ficando meio mecânico […]. (T1).

Dessa forma, os trabalhadores ficam desmotivados e distantes emocionalmente, não despendem mais a mesma energia para o atendimento dos usuários, perdem a motivação e reduzem o comprometimento e o cumprimento de metas, diminuindo a qualidade da assistência, a qual depende do vínculo e da comunicação efetiva com o usuário. A violência ocupacional, além de ser multidimensional em sua definição, também se faz presente em diversos aspectos da vida dos trabalhadores, visto que ela não fica restrita ao local de trabalho88. Bordignon M, Monteiro MI. Violência no trabalho da Enfermagem: um olhar às consequências. Rev Bras Enferm. 2016;69(5):996-9..

O profissional de enfermagem está em contato frequente com a população e tem proximidade e vínculo potencializados pela ESF. Ao trabalhar com essa proximidade, desenvolvendo atividades nos territórios onde vivem os usuários, esses profissionais da ESF estão mais expostos à violência.

Os territórios das UBASFs - sobretudo em regiões com altas taxas de criminalidade - geram medo e insegurança aos profissionais que temem situações de conflito e violência armada55. Duarte SCM, Florido HG, Floresta WMC, Marins AMF, Broca PV, Moraes JRMM. Gerenciamento das situações de violência no trabalho na Estratégia de Saúde da Família pelo enfermeiro. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20180432.),(2020. Sturbelle ICS, Pai DD, Tavares JP, Trindade LL, Riquinho DL, Campos LF. Violência no trabalho em saúde da família: estudo de métodos mistos. Acta Paul Enferm. 2019;32(6):632-41..

A gente, aqui dentro do posto, se sente mais segura, mas na hora de vir ou voltar, cria essa insegurança de você estar no bairro […]. (T4).

A enfermagem é uma das principais categorias sujeitas a sofrer violência ocupacional por ser o maior contingente nos serviços de saúde e ter contato intenso com os usuários, sobretudo técnicos e auxiliares que realizam a maioria dos procedimentos2626. Schiblski J. Riscos ocupacionais do profissional de enfermagem e estratégias para a prevenção: revisão integrativa da literatura [trabalho de conclusão de curso]. Guarapuava: Centro Universitário Guairacá; 2021.),(2727. Freitas RJM, Pereira MFA, Lima CHP, Melo JN, Oliveira KKD. A violência contra os profissionais da enfermagem no setor de acolhimento com classificação de risco. Rev Gaucha Enferm. 2017;38(3):e62119.. A equipe também enfrenta sobrecarga de trabalho, excesso de demanda, déficit de recursos humanos e de materiais2828. Pedro DRC, Silva GKT, Lopes ATAP, Oliveira JLC, Tonini NS. Violência ocupacional na equipe de enfermagem: análise à luz do conhecimento produzido. Saude Debate. 2017;41(113):618-29.. Dessa forma, estresse emocional e atitudes defensivas podem surgir.

[…] a gente da enfermagem tá muito exposta, isso gera insegurança […]. (T7).

[…] Deixam a gente mais angustiado, mais tenso, mais nervoso […] você fica na defensiva […]. (T2).

Além da vulnerabilidade psicológica, os profissionais podem ser fisicamente afetados, resultando em afastamento do trabalho, como ocorreu com os profissionais abaixo subscritos.

[…] então eu enfartei em 2016 […]. (T2).

[…] eu fiquei oito meses afastada por depressão […]. (E1).

As categorias profissionais mais vulneráveis ao estresse laboral são aquelas que “cuidam do outro”, no caso os profissionais de saúde que demonstram sintomas físicos, comportamentais e defensivos como resposta à tensão sofrida no contexto de trabalho2929. Sousa CNS, Silva FB, Silva JL, Santos AJA, Rocha EP, Mello FRF, et al. Análise do estresse ocupacional na enfermagem: revisão integrativa. REAS. 2020;(52):e3511..

No entanto, cada trabalhador vivencia a experiência de violência de maneira singular. Comportamentos como empatia e resiliência diante da violência sofrida foram mencionados por dois entrevistados, que demonstraram sensibilidade com o contexto e com as necessidades da população, geradas por processos de desigualdade e injustiça social. A resiliência se manifesta como superação diante da situação de risco, possibilitando que o profissional se adapte e siga em frente, apesar da condição que se apresenta2929. Sousa CNS, Silva FB, Silva JL, Santos AJA, Rocha EP, Mello FRF, et al. Análise do estresse ocupacional na enfermagem: revisão integrativa. REAS. 2020;(52):e3511..

[…] entender o porquê de eles estarem passando […]. (E6).

[…] não me apego, continuo meu trabalho, continuo meu serviço […]. (E10).

A superação dos fatores de risco pode estar relacionada ao suporte social, à qualidade das relações interpessoais com os colegas de equipe e à boa interação grupal2929. Sousa CNS, Silva FB, Silva JL, Santos AJA, Rocha EP, Mello FRF, et al. Análise do estresse ocupacional na enfermagem: revisão integrativa. REAS. 2020;(52):e3511..

Medidas de prevenção apontadas pelos participantes

As sugestões para a prevenção da violência no trabalho no que tange à necessidade de se estabelecer uma maior ação organizacional incluíram a adequação de recursos humanos e materiais e a organização de oferta e demanda.

Nesse sentido, o fortalecimento de uma gestão que valorize seus profissionais e busque adequar o número de trabalhadores com as demandas de cada unidade vai ao encontro das expectativas abaixo manifestadas.

[…] tem que ter todo esse trabalho de organização, trabalho orgânico, uma boa organização, número de funcionários suficientes, boa estrutura […]. (T7).

[…] a gente precisa fazer uma avaliação da gestão, […] cuidar dos profissionais de saúde, pagar salários descentes […]. (E1).

A preocupação em adequar oferta e demanda aparece nas propostas de prevenção com o intuito de reorganizar o sistema de agendamento, melhorar o fluxo dos atendimentos, diminuir o tempo de espera e ofertar um acolhimento que propicie avaliação que atenda às necessidades dos usuários. A demanda espontânea é o nó crítico que dificulta o acolhimento, ainda que na ESF essa lógica não devesse prevalecer.

[…] sem dúvida, adequação da oferta e demanda […]. (E1).

[…] tem que ter um fluxo organizado na unidade, onde essas pessoas passem primeiro por uma recepção e por uma avaliação melhor. Seria o mais adequado […]. (E5).

Como forma de garantir a integralidade e o acesso aos serviços, as tecnologias leves são essenciais e se fazem presentes na escuta e no diálogo como práticas de acolhimento, sendo realizadas primordialmente pela equipe de enfermagem1414. Gomide MFS, Pinto IC, Bulgarelli AF, Santos ALP, Serrano GMP. A satisfação do usuário com a atenção primária à saúde: uma análise do acesso e acolhimento. Interface (Botucatu). 2018;22(65):387.),(3030. Santos DDS, Mishima SM, Merhy EE. Processo de trabalho na Estratégia de Saúde da Família: potencialidades da subjetividade do cuidado para reconfiguração do modelo de atenção. Cienc Saude Colet. 2018;23:861-70..

O acolhimento é uma das diretrizes da Política Nacional de Humanização (PNH), que propôs mudanças nos modos de gerir e de cuidar da saúde para alcançar os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS)1414. Gomide MFS, Pinto IC, Bulgarelli AF, Santos ALP, Serrano GMP. A satisfação do usuário com a atenção primária à saúde: uma análise do acesso e acolhimento. Interface (Botucatu). 2018;22(65):387.),(3131. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização (PNH): documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2007.. No entanto, as dinâmicas relacionais e as adversidades instituídas nos processos de trabalho são evidenciadas no acolhimento, expondo as necessidades de mudança nesse cenário. Ademais, o processo de precarização das políticas públicas de seguridade social, do qual a política de saúde faz parte, conflita com a humanização preconizada pela PNH3232. Rodrigues SS. A Política Nacional de Humanização: um breve debate acerca dos significados da humanização na PNH. X Jornada Internacional de Políticas Públicas; 16-19 nov 2021; [evento online]. São Luís: Universidade Federal do Maranhão; 2021..

A educação foi proposta como medida de prevenção, tanto voltada aos profissionais como aos usuários. As habilidades relacionais são essenciais no trabalho em saúde, seja nas relações interpessoais em equipe ou na abordagem dos usuários. Para tanto, o desenvolvimento das potencialidades comunicacionais dos profissionais é essencial, pois resultará em vínculos mais próximos ao usuário, possibilitando o desenvolvimento da escuta qualificada e a compreensão das suas necessidades3333. Souza JSR, Costa ACB, Vilela SC. Relações interpessoais entre enfermeiro-paciente na perspectiva da violência atual. R Pesqui Cuid Fundam Online. 2020;12:648-53.),(3434. Lira LBS, Santos DS, Neves SJF, Nagliate PC, Pereira EAT, Cavalcante MV. Acesso, acolhimento e estratégia saúde da família: satisfação do usuário. Rev Enferm UFPE. 2018;12(9):2334-40.. Os espaços de educação permanente nos serviços de saúde, assim como os currículos da graduação, podem contribuir ao focar conteúdos e discussões acerca das competências relacionais em saúde.

[…] mais reuniões de planejamento […] educação permanente. Eu acho muito importante […]. (E1).

[…] a sensibilização do profissional […]. (E2).

No que tange à educação dos usuários, ficou evidente a ênfase dos participantes nessa proposta. Vários relatos apontam para a responsabilização do usuário que precisa mudar sua cultura, entender como funciona o serviço público ou o sistema de agendamento de consultas, saber do que reclamar, compreender a rotina da unidade, conhecer a função dos profissionais de enfermagem. Algumas dessas falas são exemplificadas a seguir.

[…] Tem que mudar a cultura da população […]. (T2).

[…] Educar melhor as pessoas ter programas de educação mesmo, conscientizar a população da importância do nosso serviço […]. (A5).

A despeito dos diversos avanços para substituir o modelo curativo e biomédico hegemônico com a adoção dos princípios do SUS, persiste a ideia de que os profissionais de saúde são detentores exclusivos do saber e que o usuário não sabe ou não tem qualificação, sendo necessário corrigir ou superar seu conhecimento.

Essa concepção está inspirada nos ideais higienistas do século XX, que enxergam o outro como “culturalmente inferior” e que entendem que o profissional tem o dever de educar a população carente, sem levar em conta suas experiências e seus saberes, defendidos por Paulo Freire e preconizados na educação popular em saúde3535. Barreto ACO, Rebouças CBA, Aguiar MIF, Barbosa RB, Rocha SR, Cordeiro, LM, et al. Percepção da equipe multiprofissional da Atenção Primária sobre educação em saúde. Rev Bras Enferm. 2019;72:266-73.),(3636. Ximenes Neto FRG, Lopes ND, Cunha ICKO, Ribeiro MA, Freire NP, Kalinowski CE, et al. Reflexões sobre a formação em Enfermagem no Brasil a partir da regulamentação do Sistema Único de Saúde. Cienc Saude Colet. 2020;25(1):37-46..

Em unidades localizadas em territórios com populações vulneráveis, essa percepção se acentua. Permanece o entendimento de que a população carente é ignorante e precisa ser ensinada pelos profissionais de saúde para que melhorem a saúde individual e coletiva3737. Silva RP, Neres MCL, Burity TS, Rodrigues JC, França APB, Melo NLN. A importância da educação permanente em saúde no âmbito da atenção primária: revisão integrativa. Saude Colet. 2020;10(59):4398-407..

Tal pensamento se reflete nas falas dos entrevistados que citam a educação da população como a forma central de resolver a questão da violência ocupacional. Nessas propostas, surge uma fala emblemática que aponta para a violência institucional:

[…] quando eu escuto colegas falando da população… então eu acho que acaba sendo uma violência cruzada, né? […] aquela história dos micropoderes, “porque aqui sou eu que mando, se você chegou atrasado, eu não te atendo porque eu vou te educar” […]. (E1).

A violência institucional se manifesta nas relações de poder desiguais entre profissionais e usuários, configurando uma forma de violação de direitos, na qual o profissional extrapola sua autoridade, oprimindo o usuário ao não reconhecer sua autonomia. Muitas vezes, apresenta-se de forma naturalizada nos serviços de saúde e pode estar relacionada à fragilidade do vínculo entre profissionais e usuários. Essa forma de violência também pode ocorrer em virtude da dificuldade de acesso ao serviço de saúde pelo usuário, assim como pela insatisfação com o atendimento de suas necessidades22. Ladeia PSS, Mourão TT, Melo EM. O silêncio da violência institucional no Brasil. Rev Med Minas Gerais. 2016;26(Supl 8):S398-401..

O combate e a prevenção da violência têm um denominador comum, a humanização do ambiente de trabalho com relações mais dialógicas e empáticas, além de espaços de discussão e sensibilização, envolvendo profissionais, usuários e instituição. Essas ações, que preconizam a cultura da paz, são imprescindíveis para que seja possível enfrentar o problema e discutir abertamente e em segurança as agressões sofridas pelos trabalhadores3838. Fernandes H, Sala DCP, Horta ALM. Violência em ambientes de cuidados à saúde: repensando ações. Rev Bras Enferm. 2018;71(5):2599-601..

Medidas de apoio e proteção, incluindo suporte jurídico e psicossocial, foram relatadas pelos profissionais entrevistados.

[…] leis mais rigorosas que a lei do desacato […]. (E3).

[…] ter algum tipo de acompanhamento de psicólogo em grupo que seja na unidade […]. (E1).

Essas medidas podem ser concretizadas não apenas por meio da estruturação de serviços de vigilância e segurança institucional e da criação de comissão interna contra a violência por meio de monitoramento e observação, mas também pelo acolhimento das vítimas de violência no trabalho e em treinamentos de liderança3838. Fernandes H, Sala DCP, Horta ALM. Violência em ambientes de cuidados à saúde: repensando ações. Rev Bras Enferm. 2018;71(5):2599-601..

No entanto, a invisibilidade da violência e o silêncio dos envolvidos dificultam ações mais concretas para sua prevenção e controle. Nessa direção, as redes on-line em comunidades virtuais podem contribuir como fonte de informação e mobilização entre os profissionais de saúde3939. Medeiros ARS, Arruda SC, Piginatti MG, Leão LHC, Minayo MCS. Uso de redes sociais virtuais na vigilância da violência no trabalho sofrida por agentes comunitários de saúde. Rev Bras Saude Ocup. 2020;45:e7..

Ainda, a comunicação e o apoio psicológico são essenciais para que os casos relatados não sejam renegados a segundo plano ou discutidos apenas em âmbito jurídico, evitando, assim, o enorme prejuízo nas relações interpessoais e na saúde individual e coletiva, visto que a comunicação na área da saúde tem repercussões nas relações profissionais e entre os usuários1010. Baptista PCV. Violência no trabalho: guia de prevenção para os profissionais de enfermagem. São Paulo: Coren-SP; 2017..

[…] melhorar essa comunicação, tanto entre a equipe quanto entre equipe e população […]. (T8).

O enfermeiro - como líder da equipe de enfermagem e, muitas vezes, da equipe multiprofissional da UBASF - pode promover uma comunicação adequada com os colegas de trabalho e usuários, tanto para acolher relatos de quem sofreu agressão como para coibir agressões resultantes da comunicação com ruídos3838. Fernandes H, Sala DCP, Horta ALM. Violência em ambientes de cuidados à saúde: repensando ações. Rev Bras Enferm. 2018;71(5):2599-601.. O objeto da assistência da enfermagem é o cuidado ao ser humano. Dessa forma, a tecnologia relacional é intrínseca ao exercício da enfermagem e valiosa como medida de prevenção da violência ocupacional, incluindo comunicação clara, efetiva e respeitosa, escuta qualificada, empatia e vínculo com a população88. Bordignon M, Monteiro MI. Violência no trabalho da Enfermagem: um olhar às consequências. Rev Bras Enferm. 2016;69(5):996-9.),(3030. Santos DDS, Mishima SM, Merhy EE. Processo de trabalho na Estratégia de Saúde da Família: potencialidades da subjetividade do cuidado para reconfiguração do modelo de atenção. Cienc Saude Colet. 2018;23:861-70..

Vale ressaltar que o enfrentamento da violência ocupacional não é tarefa fácil, tampouco objeto de ações pontuais, requer medidas multidimensionais, programas institucionais e políticas amplas compartilhadas pelos profissionais envolvidos. No âmbito da Atenção Primária à Saúde, os estudos sobre violência no trabalho em enfermagem são escassos, assim como a existência de programas e políticas de combate e prevenção, prevalecendo as ações pontuais4040. Pereira CAR, Borgato MH, Colichi RMB, Bocchi SCM. Estratégias institucionais de prevenção à violência no trabalho da enfermagem: revisão integrativa Rev Bras Enferm. 2019;72(4):1052-60..

Considerações finais

Os principais achados sobre a caracterização da violência ocupacional se referiram à agressão verbal por usuários insatisfeitos com o atendimento recebido. Como consequência das vivências de violência, destacaram-se atitudes defensivas, sentimentos de medo e desânimo. Entre as medidas de prevenção, a educação (esclarecimentos aos usuários), a ação organizacional e a adoção de tecnologias relacionais foram as mais sugeridas pelos profissionais.

Durante as entrevistas, os participantes puderam refletir sobre as manifestações da violência, o quanto ela é prejudicial e como a prevenção é essencial para o enfretamento dessa adversidade. No entanto, a narrativa dos participantes dependeu da memória dos fatos, o que pode representar uma limitação do estudo, assim como não ter sido incluído - no roteiro da entrevista - qual foi o encaminhamento diante das situações de violência relatadas.

O problema da violência ocupacional está presente no cotidiano de trabalho dos profissionais de saúde, sendo vivenciado sobretudo pela equipe de enfermagem. Suas consequências podem levar à diminuição da capacidade do trabalhador de realizar suas atividades cotidianas, à deterioração das relações com os demais membros da equipe, influenciando negativamente a qualidade da assistência, além de acarretar prejuízos à saúde e à qualidade de vida dos trabalhadores.

A violência, por suas características complexas e polissêmicas, não pode ser analisada isoladamente, sem levar em conta o contexto em que ela se manifesta. Em nosso país, ainda se observam ideais biomédicos hegemônicos que abrangem o entendimento de grande parte dos profissionais de saúde e até mesmo da população.

Diante disso, é válido afirmar que os profissionais de enfermagem ainda não são devidamente reconhecidos, embora representem a maioria dos trabalhadores da saúde, sejam capacitados para prestar assistência qualificada e tenham contato direto com o usuário.

Além disso, o despreparo para a assistência em saúde mental, o descompasso entre oferta e demanda, a falta de condições dignas de trabalho e a ausência de medidas de promoção da saúde dos trabalhadores - aliados à naturalização da violência historicamente construída - ajudam a entender o panorama em que está a equipe de enfermagem diante da violência ocupacional.

Logo, o tema tem grande relevância, visto que é recorrente no cotidiano dos trabalhadores e que precisa ser mais bem elucidado na Atenção Primária à Saúde.

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  • As autoras declaram que o trabalho foi subvencionado por bolsa de graduação, processo nº 11673, fornecida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), aprovada no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Cientifica (Pibic) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, e que não há conflito de interesses.
  • As autoras informam que o trabalho foi apresentado no 29º Encontro de Iniciação Científica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), realizado on-line, em 2020.
  • Disponibilidade de dados

    Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está disponível mediante solicitação ao autor correspondente:
    • Nome do autor correspondente: Lúcia Rondelo Duarte
    • Motivo da restrição: os dados constam dos relatórios finais submetidos ao Pibic-PUC-SP e ao CEP da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde - PUC-SP.

Editado por

Editor-chefe: José Marçal Jackson Filho

Disponibilidade de dados

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está disponível mediante solicitação ao autor correspondente:

• Nome do autor correspondente: Lúcia Rondelo Duarte

• Motivo da restrição: os dados constam dos relatórios finais submetidos ao Pibic-PUC-SP e ao CEP da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde - PUC-SP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Out 2021
  • Revisado
    30 Abr 2022
  • Aceito
    01 Ago 2022
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