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Jovens em tratamento oncológico durante o COVID-19: indicadores da representação social do coronavírus

Resumo

Objetivos:

compreender indicadores da representação social do coronavírus em jovens em tratamento oncológico durante a pandemia do COVID-19.

Métodos:

utilizou-se como apoio teórico-metodológico a teoria das representações sociais na sua abordagem processual em estudo exploratório de natureza qualitativa. Empregou-se a técnica de associação livre de palavras na aplicação de formulários virtuais utilizando diretrizes do método bola de neve. Foram aplicados os termos indutores ‘Coronavírus’, ‘Ir ao hospital’ e ‘Tratamento contra o câncer’. Após esse momento foi solicitado aos participantes uma hierarquização e justificativa das palavras evocadas. A análise dos dados foi pautada na análise de conteúdo e distribuição de frequência dos conteúdos produzidos.

Resultados:

realizou-se articulações sobre os impactos que a conjuntura pandêmica gerou na experiência de tratamento da referida população. Identificou-se um carácter dotado de receio e tensão sobre a elaboração da realidade desses sujeitos no período atual diante da inevitabilidade de um cenário hospitalar facilitador da contaminação e frente a vulnerabilidade imunológica característica de seus tratamentos.

Conclusões:

os participantes construíram diferentes conteúdos de sofrimento psicológico voltados para expressões de medo e insegurança vivenciadas no período da pandemia diante da assistência em cenário hospitalar. Entende-se este estudo como uma contribuição para ações mais efetivas no intuito de adequar o plano de cuidado dessa população, visando futuras intervenções profissionais.

Palavras-chave:
Jovens; Psico-Oncologia; SARS-CoV-2; Psicologia social

Abstract

Objectives:

to understand indicators of the social representation of the coronavirus in adolescents undergoing cancer treatment during the COVID -19pandemic.

Methods:

the theory of social representations was used as theoretical and methodological support in its procedural approach in an exploratory study of a qualitative nature. The free word association technique was used in the application of virtual forms using guidelines of the snowball method. The terms ‘Coronavirus’, ‘Going to the hospital’ and ‘Cancer treatment’ were applied. After that moment, the participants were asked for a hierarchy and justification of the evoked words. Data analysis was based on content analysis and frequency distribution of the content produced.

Results:

articulations were made on the impacts that the pandemic situation had on the treatment experience of that population. It was identified a character endowed with fear and tension about the elaboration of the reality of these subjects in the current period in face of the inevitability of a hospital scenario that facilitates contamination and facing the immunological vulnerability characteristic of their treatments.

Conclusions:

the participants constructed different contents of psychological suffering aimed at expressions of fear and insecurity experienced during the pandemic period in the face of assistance in the hospital setting. This study is understood as a contribution to more effective actions in order to adapt the care plan of this population, aiming at future professional interventions.

Key words:
Teens; Psycho-Oncology; SARS-CoV-2; Social psychology

Introdução

A Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) tem ocupado um lugar significativo na atenção mundial, nos espaços midiáticos e, consequentemente, nas dinâmicas cotidianas de diferentes grupos sociais.11 Bú EA, Alexandre MES, Bezerra VAS, Sá-Serafim RCN, Coutinho MPL. Representações e ancoragens sociais do novo coronavírus e do tratamento da COVID-19 por brasileiros. Estud Psicol (Campinas). 2020; (37): 1-13. Descoberto em Wuhan, na China, em dezembro de 2019, mediante a um surto de doenças respiratórias, o novo coronavirus apresenta amplo espectro clínico, variando desde um resfriado comum até quadros mais graves como a sindrome respiratória do Oriente Médio (MERS-CoV) e a síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV-2).22 Saxena SK. Coronavirus Disease 2019 (COVID-19): Epidemiology, Pathogenesis, Diagnosis, and Therapeutics. Singapura: Springer; 2020.

O grande número de indivíduos oligossin-tomáticos e assintomáticos, compondo mais de 30% dos doentes, transmissores, somado à inexistência de vacinas e tratamentos específicos e a insuficiente cobertura de testes fez com que o vírus se propagasse em uma esfera global.33 Zhou F, Yu T, Du R, Fan G, Liu Y, Liu Z, Xiang J, Wang Y, Song D, Gu X, Guan L,Yuan Wei, Li H, Wu X, Xu J, Tu S, Yi Z, Chen H, Cao B. Articles Clinical course and risk factors for mortality of adult inpatients with COVID-19 in Wuhan, China: a retrospective cohort study. Lancet. 2020; 6736 (20): 1-9. Diversos países adotaram medidas rígidas de quarentena para toda a população, distanciamento social e fechamento de escolas e universidades, afim de evitar um colapso dos sistemas de saúde.44 Folha Informativa - COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). Organização Pan-americana de Saúde. Brasília, 2020. [acesso 8 jun 2020]. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content &view=article&id=6101:covid19&Itemid=875
https://www.paho.org/bra/index.php?optio...

Essas medidas também trazem outros impactos frente à mudança radical de rotina e ao distanciamento social, demandando cuidados a saúde mental - e à atenção psicossocial - do público jovem e adolescente. A experiência de isolamento pode produzir sentimentos de medos, incertezas, ansiedades os quais podem comprometer dimensões de bem-estar e a qualidade de vida.55 Oliveira WA, Silva JL, Andrade ALM, Micheli D, Carlos DM, Silva MAI. A saúde do adolescente em tempos da COVID-19: scoping review. Cad Saúde Pública. 2020; 36 (8): 1-14. A vivência do enfrentamento de um câncer em consonância ao período da pandemia do COVID-19 expõe os pacientes em tratamento a possibilidade de um alto risco de contaminação - com cerca de 40% a mais de chances de desenvolvimento de severos desdobramentos face a uma infecção.66 Brandes AA, Nunno V. How to face cancer treatment in the COVID-19 era. Expert Rev Anticancer Ther. 2020; 20 (6): 429-32.

Somado a isso ainda é importante destacar o contato direto com as unidades hospitalares, possível uso de transportes coletivos e poucos recursos para uso de proteção individual como álcool e máscaras. Gera-se, assim, uma preocupação com a possibilidade de contrair e também disseminar o vírus para familiares, amigos ou colegas, questões que podem impactar diretamente em sua saúde mental.77 Carneiro ES, Souza AIJ, Pina JC, Rumor PCF, Gevaerd TC, Cicéron MY. Abordagem da equipe de saúde nos agravos de saúde mental de crianças e adolescentes hospitalizados. Rev Soc Bras Enferm Pediatras. 2018; 18 (1): 7-14. Esses fatores podem resultar em diferentes níveis de sofrimento psicológico, tornando essa população vulnerável à sentimentos de insegurança em relação a sua própria vida, a ir ao hospital para continuação do tratamento, além de mudanças de perspectiva sobre seus respectivos prognósticos.

Diante do exposto, o tratamento contra câncer torna-se uma realidade ainda mais sensível. Estudos com a finalidade de entender como esses sujeitos em tratamento compreendem sua realidade diante da pandemia do novo coronavírus, inspiram relevância na comunidade científica. Pesquisas apontam, no tocante as representações sociais de doenças, para uma certa correspondência realizada pelos sujeitos entre as dimensões sociais e biológicas da experiência de adoecer.88 Apostolidis T, Fonte D, Aléssio RLS; Santos MFS. Representações sociais e educação terapêutica: questões teórico-práticas. Saúde Soc. 2020; 29 (1): 1-11. As representações sociais que tratam do adoecimento e suas formas de tratamento viabilizam a concepção da construção social de significados que norteiam as experiências dos pacientes considerando suas dimensões singulares e contextos sociais nos quais estão inseridos.

Objetivou-se compreender indicadores da Representação Social do novo coronavírus em jovens em tratamento oncológico durante a pandemia do COVID-19.

Métodos

Tratou-se de um estudo de caráter exploratório, de natureza qualitativa, conduzido pelo grupo de saúde mental do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP). A população alvo do estudo foram pacientes em tratamento oncológico -ou com até um ano da finalização do tratamento -durante o período do mês de julho de 2020, no decorrer da pandemia COVID-19, acompanhados em hospitais de referência do estado de Pernambuco. Sem restrição de gênero; com faixa etária de 18 anos a 24 anos. A faixa etária da população estudada foi delimitada dentro do intervalo estabelecido pela política nacional da juventude.99 Brasil. Projeto de Lei n° 4.530/2004. Política nacional de juventude: diretrizes e perspectivas. Secretaria Nacional de Juventude. Brasília, DF; 2018. O critério de exclusão foi determinado a partir do não enquadramento no critério de elegibilidade.

A amostra foi coletada por conveniência e não determinada previamente, uma vez que a pesquisa circulou através das redes sociais virtuais, mediante compartilhamento de link. A estratégia de aplicação dos formulários visou o recrutamento dos participantes a partir do método snowball sampling, 1010 Costa BRL. Bola de neve virtual: o uso das redes sociais virtuais no processo de coleta de dados de uma pesquisa científica. Rev Interdisciplinar Gestão Social. 2018. 7 (1): 15-37. “bola de neve”. Nessa estratégia o pesquisador pede aos participantes para encaminhar o link ou referência de novos informantes que possuam as características do critério de inclusão.

Esse processo continua até que as métricas estabelecidas antecipadamente para a coleta de dados, como prazo de coleta ou quantidade máxima de entrevistados, sejam atingidas, ou para a ocorrência de saturação teórica quando não surjam novas informações nos dados coletados.1010 Costa BRL. Bola de neve virtual: o uso das redes sociais virtuais no processo de coleta de dados de uma pesquisa científica. Rev Interdisciplinar Gestão Social. 2018. 7 (1): 15-37. O formulário -utilizando-se da técnica de associação livre de palavras1111 Coutinho MPL. A técnica de associação livre de palavras sobre o prisma do software tri-deux-mots. Campo do Saber. 2017; 3 (1): 219-43. - consistiu em três blocos de evocações com os termos indutores “coronavirus”, “ir ao hospital” e “tratamento contra o câncer” apresen-tados a partir dos enunciados: “Se eu lhe digo ‘coronavirus ’, o que vem a sua cabeça? ”; “Se eu lhe digo ‘ir ao hospital’, o que vem a sua cabeça?”; “Se eu lhe digo ‘tratamento contra o câncer’, o que vem a sua cabeça?”.

Para cada termo indutor foram solicitadas três respostas geradas a partir da associação livre de palavras. Após o momento de associação foi solicitada ao participante uma hierarquização das palavras evocadas e, posteriormente a esse exercício de organização, foi solicitada uma justificativa para esta.1111 Coutinho MPL. A técnica de associação livre de palavras sobre o prisma do software tri-deux-mots. Campo do Saber. 2017; 3 (1): 219-43. Por fim, os participantes responderam a um questionário biosociodemográfico.

A partir da Análise de Conteúdo temática1212 Bardin L. Análise de conteúdo. 1 ed. São Paulo: Edições 70; 2011. 279 p. foram construídas categorias temáticas a partir das justificativas e evocações livres, as quais também foram categorizadas por frequência simples de aparição e listadas aquelas consideradas como as mais importantes pelos sujeitos. Os participantes foram codificados com a letra ‘P’ e um número correspondente para garantir a preservação do sigilo. Como aporte teórico para análise foi utilizada a Teoria da Representações Sociais.1313 Moscovici S. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores; 1978.

Uma representação é concebida a partir de: um representante mental, abstrato, do objeto - que é reconstituído simbolicamente, atingindo também a concretude do ato de elaborar e de marcar o sujeito em sua atividade - e um objeto. Estabelece-se uma forma de conhecimento a respeito da relação entre ambos, relação essa cuja características do sujeito e objeto lhe são constitutivas. A atividade de representar pode indicar aproximação à aspectos cognitivos ou mecanismos intra-psíquicos, apontando para questões exclusivamente psicológicas do sujeito.1414 Jodelet D. Representações Sociais: Um domínio em expansão. In: Jodelet D, organizators. As Representações Sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ; 2001. p. 17-44. Analisar representações sociais permite compreender as instâncias individuais e grupais norteadoras do sentido da compreensão de uma realidade através de seu próprio sistema de referências.

A pesquisa foi realizada após a aprovação do Comitê de Ética-CEP/IMIP e/ou CONEP, sob CAEE n° 34102920.5.0000.5201.

Resultados e Discussão

A partir dos resultados dos formulários, foram coletadas as evocações espontâneas, ordem de importância e justificativa das palavras utilizadas para cada um dos três termos indutores. Foram respondidos 30 formulários, totalizando 270 palavras evocadas e 90 justificativas para o conjunto dos três termos indutores, que foram categorizados separadamente.

A primeira parte do corpus apresenta os resultados do questionário com o termo indutor “coro-navírus”. Das 90 palavras associadas ao termo indutor coronavírus, sendo ‘f’ uma representação da frequência de cada palavra, as mais evocadas foram medo (f: 8), isolamento (f: 7), doença (f: 5) e cuidado (f: 3). A palavra doença aparece como a de maior importância - ordenada em primeiro lugar -em cinco vezes, enquanto medo e isolamento aparecem três vezes cada.

A partir da análise de conteúdo das justificativas, foi possível identificar cinco categorias temáticas presentes no corpus total de análise e organizar as palavras evocadas a partir destas, sendo elas Medidas de cuidado, Consequências do COVID-19, Afetos evocados, Cenário Político (Tabela 1) e Outros.

Tabela 1
Categorização das evocações livres do descritor coronavírus com respectivas frequência e ordem de importância de cada categoria e de cada expressão evocada. Recife, 2020.

Do total de evocações, 33 pertencem à categoria medidas de cuidado, que contém palavras e justificativas que descrevem as formas de cuidado e prevenção a contaminação do COVID-19, e dentre elas nove foram consideradas mais importantes.

P15: Cuidado para prevenir porque eu acabei de sair do tratamento e não gostaria de ter outra doença agora, por isso estou me cuidando bastante. Higiene porque é fundamental não só por conta do Coronavírus mas porque sempre achei importante. Isolamento é para você se prevenir e ter os cuidados para que os outros não peguem também. (sic)

Esses cuidados trouxeram mudanças e perdas no cotidiano das pessoas, estando atrelados a sentimentos de alerta e perigo, pois mesmo diante dos referidos esforços o contágio da doença e sua taxa de mortalidade continuam crescentes.1515 Ornell F, Schuch JB, Sordi AO, Kessler FHP. Pandemia de medo e COVID-19: impacto na saúde mental e possíveis estratégicas [Editorial]. Rev Debates Psychiatry. 2020. Ao longo das evocações apresentadas nessa categoria foi possível identificar menções como: isolamento, quarentena, alerta, perigo, proteção, limpeza, cuidado.

As referidas medidas têm um espaço ainda maior no cotidiano de sujeitos em tratamento oncológico, pois as abordagens terapêuticas utilizadas contra o câncer acarretam prejuízos na imunidade, colocando-os em um lugar mais vulnerável.

P28: Cuidado porque tipo a gente precisa usar máscaras, evitar multidões. Preocupação é que eu fico pensando se eu pegar, porque eu sou pessoa de risco. Tipo eu sou paciente oncológico, fico preocupada. (sic)

Possíveis consequências do COVID-19 também foram citadas e formaram uma categoria contendo 13 evocações, dentre elas sintomas e desdobramentos da contaminação pelo vírus como doença (f: 5), falta de ar (f: 2) e morte (f: 2).

P29: Proteção porque com essa doença a gente precisa se proteger, porque é uma doença que pode matar. doença porque ela é muito perigosa deixa a pessoa com falta de ar, e leva a pessoa a ir para o hospital. perigo porque leva a pessoa a morte de forma triste, sozinha. (sic)

Dentro dessa categoria é apontado um certo domínio da população estudada a respeito das informações até então divulgadas pela comunidade científica dos sinais de manifestação do vírus COVID-19 e suas consequências no organismo humano. Como visto na fala de P9 “porque é a sequência do que escuto falar." A informação aponta para uma dimensão latente sobre a qual se constrói uma representação social.1616 Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Editora Vozes Ltda; 2003. Ela remete a quantidade e qualidade da compreensão dos sujeitos a respeito do objeto social.

Foi formada também uma categoria afetos, contendo 26 evocações que dizem respeito a sentimentos e sensações resgatadas pela pandemia, com destaque para medo que apareceu oito vezes. Surgiram também palavras como tristeza (f: 3), preocupação (f: 2), sofrimento (f: 2), saudade (f: 2) e esperança (f: 2).

P5: Porque tenho tido muito medo de pega essa doença e tenho ficado triste com tudo isso, com todas essas mortes, e sem poder sair de casa (sic)

A finalidade de toda representação social é tornar o desconhecido familiar.1616 Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Editora Vozes Ltda; 2003. Diante do cenário pandémico provocado pelo novo Coronavirus, esse exercício pode ser percebido na população estudada através do relato dos afetos sentidos na experiência de viver esse período como recurso para descrevê-lo e construí-lo. Essa categoria atingiu a segunda maior frequência e foram evocadas palavras como sofrimento, tristeza, saudade, esperança, raiva, solidão e medo.

P26: medo porque é uma doença que não tem cura, não tem vacina nem tratamento desconhecido porque é um vírus que pode tá em qualquer lugar e você não sabe e se contamina. (...) tenho medo de perder alguém da minha família, de não ver mais (sic)

É possível entender esse movimento como uma ilustração do processo de ancoragem caracterizado pela inserção do objeto de uma representação social em um sistema de convicções existentes traçando uma rede de significações em torno do desconhecido, atribuindo-lhe um sentido.1717 Santos MFS, Almeida LM. A teoria das representações sociais. In: Santos MFS, Almeida LM, organizators. Diálogos com a teoria da representação social. Recife: Ed. Universitária UFPE; 2005. p. 15-38. Essa atividade permite aos sujeitos se relacionar com o objeto coro-navírus, situando-o em um lugar comparativo a, por exemplo, doenças outras cujo tratamento e prevenção são conhecidos e acomodados de forma mais segura no imaginário dos sujeitos. No momento da justificativa foram produzidos conteúdos como:

P11: Pelo fato de já vim tendo complicações de saúde o medo só aumentou de pegar e sofrer ainda mais e aumentar as dores que já tenho constantemente fora o medo de morrer que não tenho como não ter. (sic)

Do total de evocações do termo indutor coro-navírus, 13 não possuíam correlações entre si e integraram a categoria outros. Além disso, surgiram conteúdos referentes a embates e questões latentes no cenário político, com um total de cinco evocações compondo essa categoria.

P19: Sinceramente, china porque o vírus veio de lá e cloroquina vem na minha mente por ser um remédio que não é eficaz, mas tem muita gente fazendo propaganda (...) (sic)

Na segunda parte do corpus estão presentes os resultados obtidos a partir do termo indutor “ir ao hospital". Das 90 palavras, as mais evocadas foram medo (f: 9), exame (f: 5), saúde (f: 5), amigos (f: 4), cuidado (f: 3), consulta (f: 3) e triste (f: 3). A palavra medo aparece como a de maior importância 4 vezes, enquanto consulta aparece três vezes.

A partir da análise de conteúdo das justificativas foram identificadas três categorias temáticas: Cenário hospitalar, Cuidados e Afetos evocados (Tabela 2). A categoria Cenário hospitalar reúne o maior número das evocações livres, contando com 39 palavras, e é colocada como mais importante 13 vezes. Contempla descrições acerca do cotidiano hospitalar, atividades realizadas nesse espaço e sensações comuns a ela, como a rotina de realização de exames (f: 5) e internamento (f: 2). O processo de tratamento oncológico do câncer infanto-juvenil não raro é composto por um acompanhamento terapêutico característico de longos e desgastantes períodos de alterações de rotina somadas a constantes idas ao hospital.1818 Hora SS, Monteiro MVC, Dias SM, Lima FFS, Silva JA. Acesso e Adesão ao Tratamento Oncológico Infantojuvenil: para além do aspecto médico-biológico. Rev Bras Cancerol. 2019; 64 (3): 405-8.

Tabela 2
Categorização das evocações livres do descritor ida ao hospital com respectivas frequência e ordem de importância de cada categoria e de cada expressão evocada. Recife, 2020.

P19: Exame porque eu to sendo acompanhado e não to mais em tratamento, o sono é porque moro no interior e saio de madrugada e quimioterapia porque passei 6 meses fazendo quimioterapia a cada duas semanas ficando internado cerca de 2 dias (sic)

Muitos pacientes relataram a necessidade (f: 2) de ir ao hospital para a realização do tratamento (f: 4) oncológico e a manutenção do mesmo, o que se mostrou articulado ao alto risco de contaminação frente a vulnerabilidade característica do tratamento.

P15: Manutenção no tratamento do câncer se a gente não for para a consulta de manutenção, a doença pode voltar e estar muito pior. Necessidade porque a gente no interior só procura o hospital quando o remédio de casa não serve mais, e é uma necessidade se cuidar. (sic)

Também foram classificadas 14 palavras na categoria Cuidados, tendo sido colocada como mais importante em 6 vezes. Nessa categoria os pacientes retratam cuidados (f: 3) com a saúde e prevenção (f: 2) de doenças por conta do tratamento oncológico e da pandemia do COVID-19, como o uso de máscara (f: 1) e álcool (f: 1).

P25: cuidado porque acima de tudo mesmo com o coro-navírus ou não, foi preciso redobrar os cuidados para ter sucesso com o tratamento. uma infecção dessa pode colocar trabalhos de anos de tratamento por água abaixo. Tomar os devidos cuidados que a médica mandar e acima de tudo a proteção de Deus. (sic)

A construção de uma representação social abarca um fenômeno de função mediadora entre um conjunto de concepções pautadas nas práticas sociais de um determinado grupo e seus indivíduos.1717 Santos MFS, Almeida LM. A teoria das representações sociais. In: Santos MFS, Almeida LM, organizators. Diálogos com a teoria da representação social. Recife: Ed. Universitária UFPE; 2005. p. 15-38. A realidade de estar em tratamento oncológico e precisar frequentar ambientes hospitalares durante a pandemia do novo Coronavírus inspirou no grupo estudado uma quantidade expressiva de evocações relacionas a preocupação com os cuidados diante da pandemia do COVID-19 agrupadas na categoria ‘Cuidado’. Conteúdos sobre medidas preventivas contra a contaminação pelo COVID-19 também foram mencionadas anteriormente nas categorias do termo indutor ‘Coronavírus’.

Em 11 relatos os pacientes pontuam a relação entre a facilidade de adoecer durante o tratamento oncológico e o receio de ser infectado pelo novo Coronavírus. Os pacientes com câncer têm maior possibilidade de contrair o coronavírus devido a vulnerabilidade causada pelo efeito imunossupressor que a doença e seu tratamento impõem, podendo comprometer a saúde geral do indivíduo e levar a complicações severas diante do COVID-19.1919 Rodrigues AB, Vieira AA, Santos SGC. Medidas de Prevenção e Manejo Adequado do Paciente Oncológico em Tempos de Covid-19. Rev Bras Cancerol. 2020. 66 (e1125): 109-18. A produção dos conteúdos latentes evocados aponta indicadores no que diz respeito a (re)construção da realidade dos sujeitos a partir de informações recebidas de e sobre o objeto coronavírus expressa no tocante à alta possibilidade de contágio no contexto hospitalar.

P4: Porque eu não quero ficar doente, depois qualquer doença vai fazer eu me internar e isso pode fazer com que eu pegue o coronavírus, e sintomas porque dependendo do que seja tudo é ruim né? (sic)

Sendo a representação social uma construção do sujeito sobre o objeto e não sua reprodução, entende-se a representação social como um produto-processo pelo qual um indivíduo ou um grupo reconstitui o real ao qual ele é confrontado concedendo-lhe uma significação particular.1717 Santos MFS, Almeida LM. A teoria das representações sociais. In: Santos MFS, Almeida LM, organizators. Diálogos com a teoria da representação social. Recife: Ed. Universitária UFPE; 2005. p. 15-38. No momento da justificativa de importância das palavras os participantes produziram reflexões diante da possibilidade de contaminação.

P3: Complicado vem primeiro devido à toda situação que de longe acompanhamos e vemos que não há indícios de melhora da situação por enquanto, problema porque é o que o hospital mais tem no momento com falta de respiradores e leitos. Receio porque ir ao hospital nesse momento é se expor a periculosidade do vírus. (sic)

Uma outra categoria que concentra um número grande de evocações, foi nomeada de Afetos e reúne conteúdos referentes aos sentimentos percebidos pelos pacientes ao precisarem ir ao hospital. O medo (f: 9) é bastante retratado por eles.

P11: O medo de ter outra complicação de saúde, tristeza porque já tenho que tá direto em hospital desde dos 15 anos na esperança de ficar livre mais Só aparece coisa pra mim precisar tá indo e sofrimento porque já sofro tanto com tudo que passei e venho passando que tenho medo de ter mais alguma coisa. (sic)

A vivência de uma pandemia pode trazer repercussões psicológicas e psiquiátricas. Observou-se que comportamentos de medo trouxeram impactos tanto individual como coletivo durante o surto de Ebola, por exemplo. Por tratar-se de um mecanismo de defesa importante a sobrevivência, não sem fundamento, o medo aparece nas evocações dos participantes.1515 Ornell F, Schuch JB, Sordi AO, Kessler FHP. Pandemia de medo e COVID-19: impacto na saúde mental e possíveis estratégicas [Editorial]. Rev Debates Psychiatry. 2020.

Outros afetos são retratados, como tristeza (f: 3), estresse (f: 2), angústia (f: 1) sofrimento (f: 1). Destaca-se aqui as implicações psicológicas relacionadas à nova dinâmica social imposta pelo Coronavírus.11 Bú EA, Alexandre MES, Bezerra VAS, Sá-Serafim RCN, Coutinho MPL. Representações e ancoragens sociais do novo coronavírus e do tratamento da COVID-19 por brasileiros. Estud Psicol (Campinas). 2020; (37): 1-13. A gravidade e as incertezas perante o desconhecido características a esse fenômeno social provocam afetos como o medo, o desespero e pavor, sendo essas algumas das palavras expressas pelos participantes. Os participantes mencionaram de forma direta angústias relacionadas ao somatório de doenças frente a possibilidade de contaminação pelo coronavírus, expressando indicativos da representação mental desse objeto que, nesse processo, é (re)constituído simbolicamente.

P21: Medo de ir para o hospital talvez pegar a doença do coronavírus, ou medo de ir para o hospital e descobrir que o câncer voltou. Medo da doença voltar. Adoecer de uma doença que ninguém sabe direito como é. (sic)

Para as categorias relacionadas ao indutor “tratamento oncológico” foram evocadas palavras e justificativas referentes ao tratamento de maneira dissociada do contexto de pandemia COVID-19, o que fugiu do objetivo desse artigo. Foram descritos e analisados os resultados referentes aos termos “coro-navírus” e “ir ao hospital”.

Considerações finais

Diante do exposto foi possível entender que os sujeitos participantes da pesquisa abordaram indicadores da representação social do coronavírus através da expressão do processo de apropriação da realidade exterior ao pensamento e de elaborações de cunho psicológico e social. Construíram uma compreensão particular através de suas próprias referências em um movimento de adaptação e (re)construção de seu lugar dentro das representações sociais dessa realidade.

Para os adolescentes em tratamento oncológico ou acompanhamento de cura, foi possível apontar elementos de uma construção da realidade no período pandêmico com um carácter dotado de receio e tensão diante de um cenário hospitalar facilitador da contaminação. Entende-se a pesquisa como uma contribuição para as teorias do pensamento social e, principalmente, a compreensão de diagnósticos atrelados a temas sociais, no qual os sujeitos puderam esclarecer elementos acerca da maneira como significaram esse processo, trazendo possibilidades de articulações sobre os impactos que essa conjuntura pode gerar em seus tratamentos.

Os resultados obtidos podem contribuir para gerar ações mais efetivas no intuito de adequar o plano de cuidado e acompanhamento dessa população, proporcionando subsídios para instrumentalizações de futuras intervenções profissionais.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Fev 2021

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2020
  • Aceito
    13 Dez 2020
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