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Aprendizado de cegas sobre anatomia e fisiologia do sistema reprodutor feminino mediante manual educativo

Resumo

Objetivos:

avaliar o aprendizado de cegas sobre anatomia e fisiologia do sistema reprodutor feminino mediante o uso de manual educativo.

Métodos:

estudo de desenvolvimento metodológico, realizado com mulheres cegas. As participantes responderam o pré-teste para avaliação do conhecimento sobre saúde sexual e reprodutiva, e receberam o manual sobre anatomia e fisiologia da reprodução. Após leitura individual, em prazo que variou entre três e quinze dias, responderam o pós-teste.

Resultados:

houve aumento de respostas corretas no pós-teste em todos os itens com relação às categorias O Corpo da Mulher e Como se Engravida, sendo significativo os seguintes conhecimentos “clitóris aumenta com a mulher excitada” (p=0,009), “função da vagina na relação sexual” (p<0,001), “como ocorre a fecundação” (p<0,001) e “período da ovulação” (p<0,001).

Conclusões:

o manual permitiu aprendizado das participantes quanto à anatomia feminina e à fisiologia da fecundação após utilização da tecnologia educativa assistiva.

Palavras-chave
Pessoas com deficiência visual; Sexualidade; Equipamentos de autoajuda; Educação em enfermagem; Cuidados de enfermagem

Abstract

Objectives:

to evaluate blind women’s learning on the anatomy and physiology of the female reproductive system through the use of an educational material.

Methods:

methodological development study performed with blind women. The participants responded the pre-test to evaluate their knowledge on sexual and reproductive health and received a manual on anatomy and the reproduction of the physiology After an individual reading, in a period ranging from three to fifteen days, they responded the post-test.

Results:

there was an increase of correct answers in the post-test in all the items in relation to the categories of The Woman's Body and How One Gets Pregnant becoming significant in the following knowledge of “clitoris increases with the woman excited" (p=0.009), “the function of the vagina in a sexual intercourse "(p<0.001), “How does fertilization occurs”(p<0.001) and "the ovulating period" (p<0.001).

Conclusions:

the manual enabled the participants to learn about the female anatomy and the physiology of fertilization after educational assistive technology.

Key words
Visually impaired; Sexuality; Self-help devices; Nursing education; Nursing care

Introdução

Estigmas sobre a sexualidade da população de deficientes ainda estão presentes em pleno século XXI, pois acredita-se que homens e mulheres, com essa condição, não possam ter filhos e nem praticar o ato sexual.11 Tellier S. Advancing the discourse: disability and BDSM. Sex Disabil. 2017; 35 (4): 485-93.

2 Oliveira MG, Moura ER, Evangelista DR, Pagliuca LM. Health education teaching for blinds about natural contraceptive methods. Rev Enferm UFPE. 2013; 7 (7): 4732-9.
-33 Chappell P. How Zulu-speaking youth with physical and visual disabilities understand love and relationships in constructing their sexual identities. Cult Health Sex. 2014; 16 (9): 1156-68. No entanto, pesquisa realizada com 426 pessoas com deficiência, identifica que 52% são sexualmente ativos, além de 75% terem iniciado a vida sexual entre 15 e 19 anos.44 Kassa TA, Luck T, Birru SK, Riedel-Heller SG. Sexuality and sexual reproductive health of disabled young people in Ethiopia. Sex Transm Dis. 2014; 41 (10): 583-8.

No Brasil, existem mais de 6,5 milhões de pessoas com deficiência visual, sendo 582 mil cegas e 6 milhões com baixa visão.5 Segundo dados do World Report on Disability e do Vision, a cada 5 segundos, 1 pessoa se torna cega no mundo. Cerca de 39 milhões de pessoas no mundo são cegas e outras 246 milhões tem baixa visão. Além disso, do total de casos de cegueira, 90% ocorrem nos países emergentes e subdesenvolvidos. Estima-se que, até 2020, o número de pessoas com deficiência visual no mundo poderá dobrar.66 WHO (World Health Organization). World report on disability. 2010 [acesso em 20 Jul 2018]. Disponível em: http://www.larchetoronto.org/wordpress/wp-content/uploads/2012/01/launch-of-World-Report-on-Disability-Jan-27-121.pdf
http://www.larchetoronto.org/wordpress/w...

No tocante a mulheres com deficiência, percebe-se a vivência da dupla vulnerabilidade, devido a desigualdade de gênero a mulher deficiente são impostas barreiras para participação social e política, acesso à educação, à justiça, ao trabalho. Ademais, o senso comum cria preconceitos acerca da mulher cega, quando considera que ela não se encaixa nos modelos estéticos vigentes e não pode despertar o interesse de outra pessoa, sendo difundido que esta não pode assumir o papel de cuidadora, esposa e mãe.77 Nicolau SM, Schraiber LB, Ayres JRCM. Mulheres com deficiência e sua dupla vulnerabilidade: contribuições para a construção da integralidade em saúde. Ciênc Saúde Coletiva. 2013; 18 (3): 863-72.

Questões sobre sexualidade de mulheres com deficiência ultrapassam o meio social e estão inseridas na área da assistência em saúde. Ações de saúde para essa população são inexpressivas nos serviços de Atenção Primária, e falta de acessibilidade física e comunicacional são fatores que precisam ser revistos. Além disso, profissionais precisam ser sensibilizados e capacitados para atuarem junto a essas mulheres, os quais possuem especificidades. Apesar da clientela feminina, ser privilegiada, em unidades de saúde, mulheres deficientes sofrem violação de seus direitos sexuais e reprodutivos.22 Oliveira MG, Moura ER, Evangelista DR, Pagliuca LM. Health education teaching for blinds about natural contraceptive methods. Rev Enferm UFPE. 2013; 7 (7): 4732-9. As consequências desse comportamento agravam-se quando aliadas à carência de materiais de educação em saúde adaptados e acessíveis aos cegos.88 Kelly SM, Kapperman G. Sexual activity of young adults who are visually impaired and the need for effective sex education. J Visual Impairment Blindness. 2012; 106 (9): 519-26.

Tecnologias educacionais podem ser bastante eficazes, como estratégia, para prevenção e promoção da saúde de modo geral. Desse modo, um manual educativo justifica-se pela carência de materiais acessíveis que abordam temas realacionados à sexualidade.

Diante deste contexto, percebe-se a relevância deste assunto e a necessidade de promover saúde às mulheres cegas, que desejam obter conhecimento sobre anatomia e funcionamento de seu corpo. Oferecer conhecimentos sobre aspectos relacionados à sexualidade é também um cuidado de enfermagem. Assim considerando que a pesquisa ora proposta é significativa, pois além de propiciar reflexão sobre o tema pode fornecer novas abordagens sobre educação sexual. O estudo teve como objetivo avaliar o aprendizado de cegas sobre anatomia e fisiologia do sistema reprodutor feminino mediante o uso de manual educativo.

Métodos

Estudo de desenvolvimento metodológico, realizado entre os meses de novembro de 2014 e fevereiro de 2016, na cidade de Fortaleza/Ceará. Participaram do estudo mulheres com cegueira congênita ou adquirida, maiores de 18 anos, alfabetizadas em Braille ou capazes de realizar leitura de texto ampliado. Foram excluídas mulheres com deficiência auditiva e que já tinham utilizado o manual aqui empregado, em estudos anteriores.

As participantes foram captadas em diferentes locais, como domicílio ou emprego, associações recreativas e instituições de ensino. Para selecionar a amostra, foi utilizada a técnica bola de neve, na qual cada participante indica outro e assim sucessivamente, constituindo amostra não probabilística de conveniência devido a restrição da amostra.

O estudo avaliou o aprendizado de cegas sobre anatomia feminina e fisiologia da reprodução após leitura de manual educativo construído e validado em estudo anterior.99 Oliveira MG, Pagliuca LM. Construction of assistive technology for blind women: handbook on behavioral contraceptive methods. Creative Education. 2014; 5 (23): 1979-83. O Manual é dividido em capítulos: O corpo da mulher; Como se engravida; Falando sobre anticoncepcionais; Métodos anticoncepcionais comportamentais. Este estudo focou nos dois primeiros capítulos que abordam o sistema reprodutivo da mulher onde são apresentados a anatomia feminina, os órgãos internos e externos e suas funções abordando também a fisiologia da fecundação. Material é impresso em Braille e tinta simultaneamente, com figuras em alto relevo e descritas, isto é, possui equivalência textual, facilitando assim sua compreensão por parte do leitor cego.

Para aplicação do manual, inicialmente foi realizada entrevista com cada participante, e aplicado o instrumento de pré-teste para avaliação do conhecimento sobre saúde sexual e reprodutiva. Em seguida, a participante recebeu o manual, para leitura individual, em prazo que variou entre 3 e 15 dias, de acordo com a necessidade de cada uma. No segundo encontro, foi preenchido o instrumento pós-teste, para avaliar aprendizado.1010 Oliveira MG. Validação do manual saúde sexual e reprodutiva: métodos anticoncepcionais comportamentais para cegas. [tese]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2016. Os instrumentos pré e pós-testes eram idênticos. Esses Instrumentos foram elaborados a partir do conteúdo do Manual com afirmativas sobre o tema, e o instrumento e Manual validado por especialista.

Os dados foram compilados no software Statistical Package for Social Sciences (SPSS). Utilizou-se coeficiente alfa de Cronbach para análise de confiabilidade; o teste de McNemar foi usado para verificar significância de mudanças; odds ratio de McNemar foi empregada para verificar a razão de chance de mudança do aprendizado após o uso do manual; e o teste de Wilcoxon foi utilizado para comparar médias de acertos antes e depois.

O desenvolvimento do estudo atendeu às normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisas (COMEPE) da Universidade Federal do Ceará (UFC) com o número do parecer 851.454.

Resultados

Participaram 48 mulheres cegas, sendo que a maioria, (52,1%) tinha cegueira congênita. A idade variou de 18 a 66 anos, com média de 35 ± 14 anos, predominando a faixa de 18 a 29 anos, (42%). Prevaleceram mulheres com Ensino Superior (40%), seguido do Médio (30%), e o estado civil prevalente foi o solteiro (56%).

Observam-se os acertos das questões sobre O corpo da mulher e Como se engravida, de acordo com o tipo de cegueira e características sociodemográficas (Tabela 1).

Tabela 1
Comparação da média de acertos entre pré e pós-teste, segundo características sociodemográficas. Fortaleza, CE, Brasil, 2017.

No tocante à categoria O Corpo da Mulher, participantes com cegueira congênita e adquirira, na faixa etária de 18 a 39 anos, com qualquer nível de escolaridade ou estado civil, apresentaram médias de acertos elevadas entre o pré-teste e pós-teste, com significância estatística (p<0,001).

Já na categoria Como se Engravida, foram obtidos resultados significativos entre mulheres com cegueira adquirida, na faixa etária de 18 a 29 anos e com 40 anos ou mais, com Ensino Fundamental completo e casada ou em união estável.

Constatou-se também que, quando a mulher cega utilizou o manual educativo, ela possuiu duas vezes mais chances de aprender sobre as questões acima, conforme observa na Tabela 2.

Tabela 2
Distribuição do número de cegas, segundo os acertos no pré e pós-teste sobre O corpo da mulher e Como se engravida. Fortaleza, CE, Brasil, 2017.

Em relação às questões da categoria O corpo da mulher, verificou-se que a intervenção educativa foi essencial para aumentar o aprendizado quanto ao clitóris aumenta com a mulher excitada (p=0,009) e função da vagina na relação sexual (p<0,001).

Dentre as três questões da categoria Como se Engravida, aquelas sobre como ocorre a fecundação e período da ovulação apresentaram aumento do aprendizado após a leitura do manual (p<0,001), tendo quatro vezes maiores as chances.

Neste estudo, identificou-se que aproximadamente 50% das cegas erraram seis afirmativas, das oito analisadas, sobre O Corpo da Mulher, com aumento do conhecimento significativo sobre o clitóris e a função da vagina na relação sexual após a leitura do manual. Ademais, no tocante à categoria Como se Engravida, apenas 20 das 48 participantes tinham o conhecimento sobre o período fértil.

Discussão

Houve aumento significativo no conhecimento de cegas com deficiência congênita e adquirira. Há evidências de que pessoas com cegueira congênita apresentam maior curiosidade sobre informações em saúde, apesar da dificuldade de compreensão, estando presente o interesse pela saúde sexual e reprodutiva em pesquisa realizada com 31 pessoas com deficiência visual.1111 Beverly CA, Bath PA, Barber R. Health and social care information for visually-impaired people. Aslib Proceedings. 2011; 63 (3): 256-74. Desse modo, percebe-se a qualidade do manual para o aprendizado de mulheres com cegueira congênita e adquirida.

Pesquisa realizada com 352 pessoas com deficiência sobre métodos contraceptivos, em cidades do Quênia, do Nepal e de Uganda, identificou que jovens apresentam conhecimento reduzido sobre saúde sexual e reprodutiva.1212 Tanabe M, Nagujjah Y, Rimal N, Bukania F, Krause S. Intersecting sexual and reproductive health and disability in humanitarian settings: risks, needs, and capacities of refugees with disabilities in Kenya, Nepal, and Uganda. Sex Disabil. 2015; 33 (4): 411-27. Tal resultado mostra consonância com este estudo, no qual as mulheres que estavam na faixa etária de 18 a 39 anos apresentaram índice de acertos baixo no pré-teste, quando comparadas às mulheres acima de 40 anos, apesar do aumento de acertos no pós-teste em todas as faixas etárias, evidenciando impacto positivo no aprendizado após uso da tecnologia avaliada.

Nota-se que são suficientes as informações dadas aos adolescentes sobre sexualidade e anticoncepção. Evidências mostram que há necessidade de programas e materiais que possam trazer mudanças no comportamento desses jovens. Para tal, recomenda-se treinamento dos profissionais de saúde e dos professores nas escolas.1313 Levy O, Cohen A, Hardoff D. Sexuality and reproductive health counselling for adolescents with disabilities. Rivista Italiana di Medicina dell'Adolescenza. 2014; 12 (1): 13-5.

A resposta para este problema é a educação: um em cada cinco adultos não casados afirmam que nunca tiveram educação sexual na escola e, entre aqueles que tiveram, apenas um quarto recebeu essa educação antes dos 15 anos de idade. Somam-se a isso os altos índices de confusão e informação errada que jovens adultos recebem sobre fertilidade e contracepção.1414 Macedo, HSdR, Nunes de Miranda, FA, Pessoa Júnior, JM, de Medeiros Nóbrega, VK. Adolescência e sexualidade: scripts sexuais a partir das representações sociais. Rev Bras Enf. 2013; 66 (1): 103-109. Nesse sentido, sugere-se a necessidade de educação direta e organizada, que apresente informação básica na anatomia, fertilidade, gravidez e infecções sexualmente transmissíveis, de forma a neutralizar e corrigir mitos e desinformação.

O comportamento sexual de risco e as desigualdades de saúde sexual podem ser ainda maiores entre pessoas jovens vulneráveis e minorias étnicas, que também podem ser influenciados negativamente por uma série de fatores, como ausência do pai em casa, baixa autoestima, falta de habilidades (por exemplo, no uso de preservativos), falta de habilidades de negociação, (por exemplo, para dizer "não" ao sexo sem preservativos), falta de conhecimento sobre os riscos de diferentes comportamentos sexuais e disponibilidade de recursos como preservativos ou serviços de saúde sexual, pressão dos pares; e atitudes e preconceitos da sociedade, o que pode afetar o acesso dos jovens aos serviços.1515 Hayford SR, Guzzo KB. Racial and Ethnic Variation in Unmarried Young Adults' Motivation to Avoid Pregnancy. Perspect Sex Reprod Health. 2013; 45 (1): 41-51 Para as mulheres cegas, e aliada a essas dificuldades enfrentadas por jovens, existe o preconceito relacionado à deficiência e à sexualidade.

Os resultados do Censo Demográfico demonstram que a população de 15 anos ou mais de idade com alguma deficiência não possui instrução ou possui apenas o Ensino Fundamental incompleto (61,1%), em comparação com o público que declara não ter nenhuma (38,2%). Dentre as mulheres com alguma deficiência a minoria apresenta Ensino Superior.1616 Straw F, Porter C. Sexual health and contraception. Arch Dis Child Educ Pract Ed. 2012; 97 (5): 177-84. Esse fato pode estar associado à dificuldade de acesso à escola, aos materiais e aos relacionamentos interpessoais.

Em contrapartida, a prevalência neste estudo de adultos-jovens e adultos apresentou nível de escolaridade elevado, prevalecendo o Ensino Superior (40%). Após leitura do manual, o aprendizado foi semelhante aos Ensinos Médio e Fundamental, pois ambos revelaram significância estatística na categoria O Corpo da Mulher.

Os resultados apontaram prevalência de cegas solteiras (56%). Pesquisadores afirmam que relações interpessoais e interações sociais estão prejudicadas na maioria dos indivíduos cegos, visto que a limitação da visão faz com que ocorra naturalmente isolamento por parte dessa população.1717 IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Censo demográfico 2010. [acesso em 23 Fev 2018]. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/...

O déficit de conhecimento de cegas sobre anatomia do corpo da mulher e fisiologia da reprodução pode ser justificado pelos preconceitos que a sociedade tem sobre a sexualidade de pessoas com deficiência. Estudos apontam que familiares e profissionais da saúde negam a existência da sexualidade entre mulheres cegas, acreditando que são assexuadas, por se tornarem dependentes, sendo consideradas infantis, e incapazes de usufruir de vida sexual adulta.11 Tellier S. Advancing the discourse: disability and BDSM. Sex Disabil. 2017; 35 (4): 485-93.,22 Oliveira MG, Moura ER, Evangelista DR, Pagliuca LM. Health education teaching for blinds about natural contraceptive methods. Rev Enferm UFPE. 2013; 7 (7): 4732-9.,1818 Agmon M, Sa'Ar A, Araten-Bergman T. The person in the disabled body: a perspective on culture and personhood from the margins. Int J Equity Health. 2016; 15 (147): 1-11. Isso porque a sociedade contemporânea associa a função reprodutiva e genital aos aspectos físicos do indivíduo, esquecendo que a sensualidade e o erotismo estão relacionados ao âmbito psicológico de cada ser humano.

Pesquisa qualitativa, realizada com seis homens e cinco mulheres, demonstra que cegas sentem-se excluídas quando o assunto é sexualidade, inclusive pelo sistema de saúde. Elas afirmam que, embora tenham seus direitos garantidos por diversas políticas públicas, quanto se trata de programas do Governo Federal, como o de prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, HIV e AIDS não são contempladas. Ademais, reivindicam recursos de ensino e aprendizagem adequados para atender suas necessidades.1919 Wanderley LD, Barbosa GOL, Rebouças CBA, Oliveira PMP, Pagliuca LMF. Sexualidade, DST e preservativo: comparativo de gênero entre deficientes visuais. Rev Enferm UERJ. 2012; 20 (4): 463-9.

Ao considerar que a mulher cega não é dotada de sexualidade, seu direito ao acesso a orientação e à educação sexual é negligenciado. Não existe um estímulo a esses programas, porque acredita-se que não são necessários. Crê-se que, ao abordar o assunto, a prática sexual é incentivada, enquanto na verdade a orientação sexual possibilitaria uma prática segura, plena, saudável e com responsabilidade. Diante do exposto, percebe-se a importância de construir e de aplicar recursos educacionais acessíveis para ensino e aprendizagem de cegos sobre sexualidade.

Revisão integrativa da literatura2020 França DNO. Direitos sexuais, políticas públicas e educação sexual no discurso de pessoas com cegueira. Rev Bioet. 2014; 22 (1): 126-33. avaliou efeitos de intervenções educativas com uso de tecnologias educativas sobre métodos contraceptivos em 15 artigos e identificou melhora estatisticamente significativa do conhecimento sobre riscos contraceptivos, benefícios, efeitos colaterais, eficácia e modo de uso em 14 estudos com diferentes públicos que envolvia homens e/ou mulheres maiores de 18 anos. Tais dados estão em consonância com achados do manual avaliado, que, além de proporcionar aprendizado sobre anatomia feminina e fisiologia da reprodução, mostrou-se quatro vezes mais eficaz para aumento do conhecimento sobre fecundação e período de ovulação. Este resultado indica a relevância de atividades de educação sobre saúde sexual e reprodutiva para aquisição de informações imprescindíveis para promoção da saúde.

A utilização de manual educativo como ferramenta de ajuda, baseado em conhecimento científico, pode promover saúde. A leitura desses materiais pode auxiliar pacientes, familiares e vizinhos durante o aprendizado e, assim, estimular o autocuidado, além de fazê-los compreender o processo de saúde-doença. Uma das vantagens de recursos educacionais é a uniformização das orientações a serem estudadas e realizadas pelos profissionais da saúde.2121 Zombini EV, Pelicioni MCF. Estratégias para a avaliação de um material educativo em saúde ocular. Rev Bras Cresc Desenv Hum. 2011; 21 (1): 51-8.

Profissionais de enfermagem precisam conhecer as peculiaridades desse público para serem capazes de prestar atendimento especializado e humanizado, de acordo com as necessidades da mulher cega, como preconizado nas políticas públicas.11 Tellier S. Advancing the discourse: disability and BDSM. Sex Disabil. 2017; 35 (4): 485-93.,2222 Dias JC, Santos WS, Kian GC, Silva PYF, Rodrigues LB. Os desafios da maternidade e a importância de ser mãe para mulheres com deficiências. Interfaces: Saúde, Hum Tecnol. 2014; 2 (6): 1-5. O manual educativo avaliado facilitará a inclusão das mulheres com deficiência aos serviços de saúde, conforme a prática dos princípios básicos do Sistema Único de Saúde: universalidade, equidade e integralidade.

A despeito dos debates atuais sobre a sexualidade de pessoas com deficiência, o assunto ainda tem sido negligenciado pela sociedade, inclusive por profissionais da saúde. Infere-se que mulheres cegas ainda se encontram vítimas de preconceitos, sendo expostas a gravidez não planejada, violência sexual e doenças sexualmente transmissíveis. Pessoas com deficiência são, antes de tudo, sujeitos de direito e, como tal, devem expressar sua sexualidade de forma segura, autônoma e prazerosa.

Apesar das associações significativas, com relação ao aprendizado de mulheres cegas após leitura do manual sobre O Corpo da Mulher e Como se Engravida, a ausência de um grupo controle ou de comparação não permitiu afirmar sua eficácia em relação as demais intervenções educativas.

O manual permitiu o aprendizado das participantes quanto à anatomia feminina e à fisiologia da fecundação, agregando conhecimentos prévios com os adquiridos durante leitura. Análises estatísticas evidenciam que, independentemente do tipo de cegueira e das características sociodemográficas, houve incremento de acertos, comparando pré e pós-teste, reforçando que o mesmo representa excelente estratégia de aprendizagem.

A pesquisa pretendeu, por conseguinte, solucionar uma situação na prática, carência de acesso às informações sobre este tema, por meio da avaliação de manual educativo acessível às mulheres cegas. O presente estudo deve beneficiar a clientela feminina, por permitir acesso a informações sobre anatomia e fisiologia de seu corpo, fornecendo-lhe autonomia e independência, prática sexual segura, plena, saudável e com responsabilidade, fato que pode evitar gravidezes não planejadas.

Dentre as implicações do estudo para a prática observa-se o uso do Manual em escolas, consultas de planejamento familiar, atividades de educação em saúde e promoção da saúde, pesquisas por pessoas cegas e outros.

Aqui, abordou-se o tema saúde sexual e reprodutiva, especificamente os métodos anticoncepcionais comportamentais, mas, futuramente, essa modalidade de Manual pode ser confeccionada com outros temas de interesse, ampliando as possibilidades de uso tanto em instituições de saúde quanto de educação e assim incluir as pessoas cegas. Ademais, percebeu-se para perspectivas futuras, utilização de outras modalidades, que não sejam impressas, como: CD falado, ou endereço eletrônico, ou página na internet, vídeo descrição e outros.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2018
  • Revisado
    23 Ago 2018
  • Aceito
    20 Set 2018
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