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Cuidados paliativos em medicina fetal

Como a nossa Revista, tem o escopo principal na saúde materno-infantil, entendemos pertinentes as seguintes considerações:

Os cuidados paliativos são, em geral, relacionados à população adulta. O movimento hospice moderno da década de 1970, criado por Cicely Saunders, representa um marco essencial na construção do que se considera cuidado paliativo atualmente. Cicely, assistente social, enfermeira e médica, defendia que o alívio da dor e controle de sintomas são essenciais no cuidado humanizado, o que a levou a fundar o St. Christopher’s Hospice, em Londres, referência em pesquisa, ensino e assistência em cuidados paliativos.11 Gomes ALZ, Othero MB. Cuidados paliativos. Estud Av. 2016; 30 (88): 155-66.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1990, definiu cuidados paliativos, atualizando em 2002, como sendo “a assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, além da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento da dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais”.22 WHO (World Health Organization). National cancer control programmes: policies and managerial guidelines. 2 ed. Geneva; 2002.

A gestação é um período de intensas mudanças físicas e psicológicas. A gestante e seus familiares criam as expectativas mais variadas, dentre elas, a saúde da criança. A medicina fetal é uma especialidade em constante avanço, com possibilidades diagnósticas cada vez mais precoces, utilizando a ultrassonografia e exames invasivos, além de terapias intraútero. Logo, as malformações fetais, entre as quais as graves ou letais, podem ser detectadas cedo no pré-natal.

Em países onde o abortamento é previsto em lei, diante de um diagnóstico de malformação fetal, as famílias podem optar por interromper a gestação ou realizar o seguimento pré-natal. Porém, existe uma escassez de dados na literatura sobre o manejo das famílias que escolhem manter a gestação em casos de anomalia congênita grave e/ou letal. A tendência de muitos obstetras é sugerir a interrupção da gravidez. A outra opção oferecida é “fazer nada”. Entretanto, é necessário entender que as famílias lidarão com o luto a despeito do desfecho da gravidez, sendo os cuidados paliativos um caminho para apoiar as famílias independentemente da opção escolhida.33 Munson D, Leuthner SR. Palliative care for the family carrying a fetus with a life-limiting diagnosis. Pediatr Clin North Am. 2007; 54 (5): 787-98. No Brasil, o abortamento previsto em lei compreende casos de estupro, risco de vida materno e, no contexto de anomalias fetais, apenas a anencefalia. Nos casos de demais malformações graves ou letais, ou daquelas que optam por continuar a gestação, o seguimento pré-natal deve seguir habitualmente.

Dar uma notícia de malformação grave ou letal a uma mãe é uma tarefa extremamente delicada e difícil. Desde o diagnóstico até o seguimento ambulatorial e parto, a assistência às famílias pode ser desafiadora. Medo, insegurança e culpa são sentimentos frequentes relatados pelas pacientes. Algumas gestantes aparentam permanecer longos períodos de negação em relação ao diagnóstico. Dessa forma, falar sobre cuidados paliativos perinatais durante o pré-natal é necessário, apesar de ainda parecer haver um bloqueio para muitos profissionais. Na década de 1980 já existiam trabalhos com o intuito de aplicar os cuidados paliativos em unidades de terapia intensiva neonatal. Em 1997, nos Estados Unidos, houve a primeira discussão sobre esse tipo de cuidado em feto com anomalia letal detectada ainda na gravidez. No Brasil, até 2017, não havia modelo pré-natal de cuidados paliativos, sendo implementado nesse ano na Universidade de São Paulo.44 Bolibio R, Jesus RCA, Oliveira FF, Gibelli MABC, Benute GRG, Gomes AL, Nascimento NBO, Barbosa TVA, Zugaib M, Francisco RPV, Bernardes LS. Cuidados paliativos em medicina fetal. Rev Med. 2018; 97 (2): 208-15.

Como será feita a abordagem sobre a adoção de cuidados paliativos ao nascimento depende do diagnóstico, do prognóstico e das decisões da família envolvida. Nos casos de anomalias sabidamente letais, fornecer atendimento intensivo pode ser considerado irresponsável, devendo o cuidado paliativo exclusivo ser sugerido. As anomalias fetais consideradas letais são as mais variadas, como anencefalia, holoprosencefalia alobar, agenesia renal bilateral, rins multicísticos bilaterais, trissomias dos cromossomos 13 ou 18, entre outras.55 Leuthner SR. Palliative care of the infant with lethal anomalies. Pediatr Clin North Am. 51. 2004; 51 (3): 747-59. É importante salientar que, diante de um diagnóstico de malformação fetal letal, não necessariamente está implicado um óbito imediato, podendo este ocorrer intraútero, no período periparto, neonatal ou em meses.44 Bolibio R, Jesus RCA, Oliveira FF, Gibelli MABC, Benute GRG, Gomes AL, Nascimento NBO, Barbosa TVA, Zugaib M, Francisco RPV, Bernardes LS. Cuidados paliativos em medicina fetal. Rev Med. 2018; 97 (2): 208-15.

A consulta pré-natal é o momento em que a paciente costuma levar seus questionamentos sobre os achados diagnósticos. Estabelecer um plano de cuidado durante a gestação, com respeito e apoio às decisões da gestante, com informações claras e em linguagem acessível, são pontos essenciais durante o acompanhamento. Deve-se atentar para a linguagem verbal e não verbal, escolher um local tranquilo para comunicar um diagnóstico, evitar termos técnicos excessivos, validar os sentimentos dos familiares, fazer pausas e checar o entendimento, saber ouvir.66 Baile WF, Buckman R, Lenzi R, Glober G, Beale EA, Kudelka AP. SPIKES-A six-step protocol for delivering bad news: application to the patient with cancer. Oncologist. 2000; 5 (4): 302-11. Deve-se entender que poderá ser necessário repetir informações em consultas subsequentes, pois por vezes, diante de um diagnóstico difícil, os pacientes podem não assimilar todas as informações num primeiro contato. Médicos obstetras e pediatras, enfermeiros e psicólogos, dentre outros membros da equipe, podem ser incluídos na linha de atendimento. Ressalta-se que, diante de um diagnóstico de doença grave, os cuidados paliativos podem ser oferecidos precocemente, pois seu objetivo é melhorar a qualidade de vida dos pacientes, mesmo se houver tratamento curativo proposto.44 Bolibio R, Jesus RCA, Oliveira FF, Gibelli MABC, Benute GRG, Gomes AL, Nascimento NBO, Barbosa TVA, Zugaib M, Francisco RPV, Bernardes LS. Cuidados paliativos em medicina fetal. Rev Med. 2018; 97 (2): 208-15.

Muitos profissionais de saúde têm dificuldade em falar sobre cuidados paliativos, especialmente na área de perinatologia. A medicina curativa e recursos de terapia intensiva são priorizados na assistência em saúde. O desconhecimento ou falta de experiência sobre o tema pode contribuir para tal conjuntura. A comunicação difícil em saúde permanece um campo a ser evitado por diversos profissionais. Assim, implementar disciplinas de cuidados paliativos nas universidades e programas de residência em saúde é o primeiro passo na melhoria da assistência. A educação em saúde possibilita qualificação dos profissionais para lidar com situações complexas, como diagnósticos de doenças graves e comunicar o óbito, a falta de terapêutica disponível e o prognóstico reservado. Possibilita, ainda, maior aceitação dos pacientes aos cuidados paliativos, já que melhora o entendimento e acesso à informação de qualidade quando atendidos por profissionais capacitados.77 Li WW, Chhabra J, Singh S. Palliative care education and its effectiveness: a systematic review. Public Health. 2021; 194: 96-108.

A gestante que se encontra diante de malformação fetal enfrenta vários lutos que se iniciam desde o momento da descoberta do diagnóstico. O luto de um bebê saudável que não virá, o luto de um parto previamente planejado mas não realizado, o luto de um puerpério idealizado e, muitas vezes, o luto da perda de um filho. Reconhecer as necessidades da gestante e familiares é essencial no cuidado prestado. É possível aplicar os cuidados paliativos, originalmente propostos para adultos, adaptados à perinatologia. Dessa forma, deve-se priorizar o conforto e alívio dos sintomas dos pacientes, comunicar a evolução do quadro, respeitar crenças e religião da família e fazer com que ela participe ativamente das decisões terapêuticas, acolhendo o luto em todas as suas fases.

References

  • 1
    Gomes ALZ, Othero MB. Cuidados paliativos. Estud Av. 2016; 30 (88): 155-66.
  • 2
    WHO (World Health Organization). National cancer control programmes: policies and managerial guidelines. 2 ed. Geneva; 2002.
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    Munson D, Leuthner SR. Palliative care for the family carrying a fetus with a life-limiting diagnosis. Pediatr Clin North Am. 2007; 54 (5): 787-98.
  • 4
    Bolibio R, Jesus RCA, Oliveira FF, Gibelli MABC, Benute GRG, Gomes AL, Nascimento NBO, Barbosa TVA, Zugaib M, Francisco RPV, Bernardes LS. Cuidados paliativos em medicina fetal. Rev Med. 2018; 97 (2): 208-15.
  • 5
    Leuthner SR. Palliative care of the infant with lethal anomalies. Pediatr Clin North Am. 51. 2004; 51 (3): 747-59.
  • 6
    Baile WF, Buckman R, Lenzi R, Glober G, Beale EA, Kudelka AP. SPIKES-A six-step protocol for delivering bad news: application to the patient with cancer. Oncologist. 2000; 5 (4): 302-11.
  • 7
    Li WW, Chhabra J, Singh S. Palliative care education and its effectiveness: a systematic review. Public Health. 2021; 194: 96-108.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021
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