Acessibilidade / Reportar erro

A OMS e a epidemia de cesarianas

Dentro de seu papel de divulgar documentos nacionais ou internacionais de marcante interesse científico, político e inovador sobre problemas de saúde materno-infantil, a Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil publica neste número como Editorial, o novo posicionamento da Organização Mundial da Saúde11 WHO (World Health Organization). WHO Statement on Caesarean Section Rates. Geneva; 2015 (WHO/RHR/15.02) (OMS) sobre o abuso das intervenções cesarianas na atualidade. O documento é oportuno e pertinente para o Brasil, que desponta, juntamente com a Nicarágua, com as estatísticas mais elevadas de cesarianas em escala mundial.

No século passado e, sobretudo, a partir dos anos 1950, a saúde no mundo passou por mudanças radicais, considerando as rápidas modificações nos padrões de natalidade e morbimortalidade. Este processo conhecido como "transição epidemiológica", com evolução própria para cada doença além das características mais genéricas do complexo de eventos que define o processo de transição, tem como denominador comum a passagem da polarização das infecções/carências nutricionais para um novo modelo epidemiológico dominado pelas doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) que atualmente congrega cerca de 70% das causas de morte no mundo,22 WHO (World Health Organization). Global status report on noncommunicable diseases 2014. Geneva; 2014. 298 p. [acesso em 12 mar 2017]. Disponível em: http://www.who.int/nmh/publications/ncdstatusreport2014/en/
http://www.who.int/nmh/publications/ncds...
sendo 68% no Brasil.33 Carvalho SPS, Cesse EDP, Lira PIC, Rissin A., Cruz RSBLC, Batista Filho M. Doenças crônicas não transmissíveis e fatores associados em adultos numa área urbana de pobreza do Nordeste Brasileiro. Ciênc Saúde Coletiva. (2018/Fev). [Citado em 09/03/2018]. Disponível em: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/doencas-cronicas-nao-transmissiveis-e-fatores-as-sociados-em-adultos-numa-area-urbana-de-pobreza-do-nordeste-brasileiro/16587?id=16587&id=16587&id=16587&id=16587&id=16587&id=16587
http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/...

Nesse contexto de grandes e rápidas mudanças, o que singulariza o problema das cesáreas como epidemia é o fato de que uma intervenção de saúde, em princípio concebida e aplicada como um instrumento de proteção, exercendo e ainda cumprindo este papel relevante, tenha ingressado na categoria de fator de risco, caracterizando uma epidemia iatrogênica. Na realidade, os efeitos adversos das intervenções de saúde, sejam em nível de procedimentos diagnósticos, de condutas terapêuticas medicamentosas ou cirúrgicas e até no estabelecimento de dependências dentro e fora da área de saúde, representando uma iatrogenia social, estabelece, de fato, um novo contexto da problemática saúde/doença em nível de cada e de praticamente todos os países, sejam ricos ou pobres. E nesta perspectiva e suas múltiplas conseqüências positivas e negativas que se projeta o novo documento da Organização Mundial da Saúde, divulgado no mês de fevereiro e encaminhado formalmente a todos os governos do mundo.44 WHO (World Health Organization). WHO recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience. Geneva; 2018. Licence: CC BY-NC-SA 3.0 IGO. Cataloguing-in-Publication (CIP) data. CIP data are available at http://apps.who.in
http://apps.who.in...

Na configuração temporal e geográfica do problema, a OMS ressalta que o índice de partos por cesárea era de 6%, em 1980, triplicando para 18,6% em 2016, que é referenciado como ano base para a análise mais recente das estatísticas internacionais sobre o tema. Na Europa, o índice elevou-se de 15% há 20 anos para 25%, ou seja, um quarto de todas as crianças nascidas vivas. Nos Estados Unidos atualmente cerca de 33% dos partos recorrem ao uso de cirurgias. Trata-se assim de uma medida de exceção que, infelizmente, agora está assumindo a indicação de uma regra geral.

É pertinente ressaltar que, em termos formais, o Brasil tem um histórico interessante no que se refere à busca de um consenso universal sobre a padronização das intervenções cesarianas. Recorda-se que foi em Fortaleza, no Ceará, que se realizou, com o patrocínio da OMS, o primeiro documento internacional sobre as práticas recomendadas de assistência hospitalar ao parto, estabelecendo-se como diretriz uma taxa de 12% a 15% de cesarianas. O documento de validação fundamentava-se então em dados de poucos países de nível de desenvolvimento socioeconômico mais adiantado. No entanto, até hoje se trata do pacto público e consenso técnico mais referenciado, como princípio normativo de políticas, programas e condutas profissionais sobre o recurso das cesarianas.55 Betran AP, Torloni MR, Zhang J, Ye J, Mikolajczyk R, Deneux-Tharaux C, Oladapo OT, Souza JP, Tunçalp Õ, Vogel JP, Gülme-zoglu AM. What is the optimal rate of caesarean section at population level? A systematic review of ecologic studies. Reprod Health. 2015; 12 (1): 57.,66 Vogel JP, Betrán AP, Vindevoghel N, Souza JP, Torloni MR, Zhang J, Tunçalp Õ, Mori R, Morisaki N, Ortiz-Panozo E, Hernandez B, Pérez-Cuevas R, Qureshi Z, Gülmezoglu AM, Temmerman M, WHO Multi-Country Survey on Maternal and Newborn Health Research Network. On behalf of the WHO Multi-Country Survey on Maternal and Newborn Health Research Network. Use of the Robson classification to assess caesarean section trends in 21 countries: a secondary analysis of two WHO multicountry surveys. Lancet Global Health. 2015; 3 (5): e260-70.

Já agora, adotando novos conceitos, perspectivas e recomendações, com fundamento em centenas de avaliações, abrangendo a grande maioria dos países, a OMS após o que se poderia chamar de "Consenso de Fortaleza", edita um novo documento de posição sobre a questão das intervenções cesarianas, que estão se tornando, repita-se uma das grandes epidemias da modernidade. As novas instruções se apóiam em 56 observações ou recomendações com princípios e normas de conduta a serem consultadas dentro do desafio de resgate do parto natural.

É muito oportuno e pertinente considerar no caso do Brasil, que já figura no mesmo patamar de 56%, de partos cesarianos, juntamente com a Nicarágua, que já se configura um promissor movimento em contrário, da mesma forma que já ocorreu em relação ao problema nacional e mundial do desmame precoce. Esta mobilização pode muito bem ser representada pela iniciativa das "doulas", que já existe em muitos países, como voluntárias ou profissionais que se dispõem a ajudar mães, famílias e profissionais de saúde (obstetras, sobretudo) no período crítico desde o ingresso das parturientes nas maternidades até o desfecho do trabalho de parto. Assim se resgata, parcialmente, em versão atualizada, os costumes antigos na história do parto normal, podendo representar um papel decisivo na reversão da tendência epidêmica das cesarianas no Brasil e no mundo. Na medida em que a participação das "doulas" ainda fica restrita aos serviços privados de saúde, existindo em quase todos os estados do Brasil, seu reaparecimento como uma tradição reciclada representa uma perspectiva potencial para sua extensão aos serviços públicos de obstetrícia, tornando-se uma estratégia plenamente viável como trabalho voluntário ou como tarefa profissional.77 Silva RM, Barros NF, Jorge HMF, Melo LPT, Ferreira Junior AR. Evidências qualitativas sobre o acompanhamento por doulas no trabalho de parto e no parto. Ciênc Saúde Coletiva. 2012; 17 (10): 2783-94. Seria assim a reconstituição atualizada de uma tradição que hoje faz parte das memórias mais antigas do parto e que pode ser revivida, com uma lógica própria, nas condutas normativas dos serviços de obstetrícia.

Malaquias Batista Filho1
Anete Rissin2
1,2Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira. Recife, PE, Brasil.

Referências

  • 1
    WHO (World Health Organization). WHO Statement on Caesarean Section Rates. Geneva; 2015 (WHO/RHR/15.02)
  • 2
    WHO (World Health Organization). Global status report on noncommunicable diseases 2014. Geneva; 2014. 298 p. [acesso em 12 mar 2017]. Disponível em: http://www.who.int/nmh/publications/ncdstatusreport2014/en/
    » http://www.who.int/nmh/publications/ncdstatusreport2014/en/
  • 3
    Carvalho SPS, Cesse EDP, Lira PIC, Rissin A., Cruz RSBLC, Batista Filho M. Doenças crônicas não transmissíveis e fatores associados em adultos numa área urbana de pobreza do Nordeste Brasileiro. Ciênc Saúde Coletiva. (2018/Fev). [Citado em 09/03/2018]. Disponível em: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/doencas-cronicas-nao-transmissiveis-e-fatores-as-sociados-em-adultos-numa-area-urbana-de-pobreza-do-nordeste-brasileiro/16587?id=16587&id=16587&id=16587&id=16587&id=16587&id=16587
    » http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/doencas-cronicas-nao-transmissiveis-e-fatores-as-sociados-em-adultos-numa-area-urbana-de-pobreza-do-nordeste-brasileiro/16587?id=16587&id=16587&id=16587&id=16587&id=16587&id=16587
  • 4
    WHO (World Health Organization). WHO recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience. Geneva; 2018. Licence: CC BY-NC-SA 3.0 IGO. Cataloguing-in-Publication (CIP) data. CIP data are available at http://apps.who.in
    » http://apps.who.in
  • 5
    Betran AP, Torloni MR, Zhang J, Ye J, Mikolajczyk R, Deneux-Tharaux C, Oladapo OT, Souza JP, Tunçalp Õ, Vogel JP, Gülme-zoglu AM. What is the optimal rate of caesarean section at population level? A systematic review of ecologic studies. Reprod Health. 2015; 12 (1): 57.
  • 6
    Vogel JP, Betrán AP, Vindevoghel N, Souza JP, Torloni MR, Zhang J, Tunçalp Õ, Mori R, Morisaki N, Ortiz-Panozo E, Hernandez B, Pérez-Cuevas R, Qureshi Z, Gülmezoglu AM, Temmerman M, WHO Multi-Country Survey on Maternal and Newborn Health Research Network. On behalf of the WHO Multi-Country Survey on Maternal and Newborn Health Research Network. Use of the Robson classification to assess caesarean section trends in 21 countries: a secondary analysis of two WHO multicountry surveys. Lancet Global Health. 2015; 3 (5): e260-70.
  • 7
    Silva RM, Barros NF, Jorge HMF, Melo LPT, Ferreira Junior AR. Evidências qualitativas sobre o acompanhamento por doulas no trabalho de parto e no parto. Ciênc Saúde Coletiva. 2012; 17 (10): 2783-94.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018
Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira Rua dos Coelhos, 300. Boa Vista, 50070-550 Recife PE Brasil, Tel./Fax: +55 81 2122-4141 - Recife - PR - Brazil
E-mail: revista@imip.org.br