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O tratamento psiquiátrico no Brasil em meados do século XIX

Psychiatric treatment in Brazil on the 19th century

Memória

O tratamento psiquiátrico no Brasil em meados do século XIX

Psychiatric treatment in Brazil on the 19th century

Paulo Dalgalarrondo 1 1 . Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp

Introdução

Dispomos de poucos dados sobre o autor destas quatorze proposições, Francisco Júlio de Freitas e Albuquerque. Pudemos saber que nasceu em Recife, seu pai era médico e graduou-se na Faculdade de Medicina da Bahia, em 1858. Sua tese contém três partes: a primeira compreende uma revisão do conceito, etiologia, sintomatologia, curso e tratamento das monomanias; a segunda inclui 14 proposições sobre o tratamento das moléstias mentais e a terceira, 12 proposições sobre acidentes das feridas de armas de fogo. As 14 proposições revelam de forma muito significativa as noções dominantes deste período sobre a doença mental e seu tratamento. Indicam, sobretudo, como o meio médico brasileiro vinha incorporando alguns pontos cruciais do alienismo europeu da primeira metade do século XIX.

"Quatorze proposições relativas ao tratamento das moléstias mentais"

1. É principalmente sobre o conhecimento das causas que está baseado o melhor método de tratamento das moléstias mentais.

2. Não se pode adotar um método exclusivamente moral ou físico no tratamento destas moléstias.

3. As afusões frias repentinas não obrão somente pela sua temperatura.

4. As emissões sanguíneas abundantes e repetidas são sempre prejudiciais.

5. A loucura aguda contra-indica o emprego de vomitivos.

6. A medicação drástica sistematizada, com o fim de combater a constipação, deve ser proscrita

da terapêutica dos alienados.

7. Sempre que não houver confiança, respeito ou temor dos alienados para com o médico, não haverá cura possível.

8. O isolamento é indispensável no tratamento das moléstias mentais.

9. O uso não permanente de camisola de força é preferível ao isolamento nas celas.

10. As idéias delirantes dos alienados não deverão ser combatidas diretamente.

11. Os trabalhos físicos ou intelectuais metodicamente aplicados, e em relação ao estado dos doentes, são os principais meios que se devem empregar no tratamento das moléstias mentais.

12. A demência crônica é muito raras vezes curável; a demência paralítica é incurável.

13. Quando a sensibilidade dos alienados se acha enfraquecida a tal ponto, que eles podem fixar o sol, sofrer impassíveis as intempéries atmosféricas; e que além disso há a perda do olfato e do gosto, podemos afiançar a incurabilidade da alienação.

14. A alienação consecutiva ao escorbuto e à epilepsia é incurável.

Fonte: Tese para obter o título de doutor em medicina, apresentada por Francisco Júlio de Freitas e Albuquerque à Faculdade de Medicina da Bahia, 1858

Discussão

Nas proposições 1 e 2 o autor adverte, logo de início, quais os princípios gerais que devem reger a terapêutica do alienismo. O tratamento depende do conhecimento da doença e, posto que há fatores físicos e psicológicos na sua gênese, o seu tratamento deve enfocar esses múltiplos fatores.

As proposições 4, 5 e 6 exprimem a influência das concepções terapêuticas hipocráticas no alienismo nascente, pois recomenda restrições quanto aos métodos agressivos e invasivos no tratamento da alienação mental. Nas proposições 7 a 11 verificam-se claramente como o ideário do tratamento moral de Pinel e Esquirol é plenamente absorvido pelo alienismo brasileiro embrionário. Isolamento da família e meio social, disciplina, trabalhos regulares metodicamente aplicados, respeito, confiança ou temor pelo médico. Nas palavras de Bercherie1, encontramos nas concepções terapêuticas de Pinel e Esquirol "o gosto pelo método expectante hipocrático, a utilização moderada da farmacopéia, adaptada a cada caso, e a insistência no tratamento moral".

Finalmente, nas proposições 12 a 14 estão expressas algumas das principais preocupações do alienismo de século XIX: o estudo do curso e evolução da alienação mental, assim como a identificação de possíveis fatores prognósticos. Os alienistas de então queriam saber se é possível a identificação de formas incuráveis de alienação, e nas fases iniciais da doença, quais os elementos etiológicos e semiológicos que podem servir como fatores prognósticos.

Hoje, cerca de um século e meio depois da publicação dessas 14 proposições, continuamos preocupados com métodos terapêuticos que atinjam o mais diretamente possível os fatores etiológicos, fisiopatológicos ou psicológicos, que sejam específicos. Desejamos que tais tratamentos sejam eficazes, mas também o mínimo possível lesivos ou agressivos e, afinal, queremos saber quais são os fatores decisivos no curso diferencial dos diversos transtornos mentais. Cabe a pergunta: essas 14 proposições, formuladas há tanto tempo por um médico iniciante, fariam parte ainda do "corpus" de nossa especialidade?

Referências bibliográficas

1. Bercherie P. Os fundamentos da clínica: História e estrutura do saber psiquiátrico. Rio de Janeiro (RJ): Jorge Zahar Editor; 1989.

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    . Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jun 2000
    • Data do Fascículo
      Jun 1999
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