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Versão brasileira da classificação funcional de mielomeningocele (MMFC): Tradução, adaptação cultural e propriedades psicométricas

Resumo

Objetivo:

Realizar a tradução e adaptação cultural da Classificação Funcional da Mielomeningocele (MMFC) para o português (Brasil) e estudar suas propriedades psicométricas.

Método:

Estudo de validação com tradução, adaptação cultural e avaliação das propriedades psicométricas: confiabilidade, teste-reteste e validade convergente. Amostra de 20 indivíduos com mielomeningocele e idade mediana de 10 (5 a 24,25) anos, com mínimo de 3 e máximo de 66 anos. A confiabilidade foi determinada pela concordância intra e interobservador, utilizando os resultados do coeficiente de correlação intraclasse (ICC) e o intervalo de confiança de 95% (IC- 95%). A validade convergente foi realizada por meio das classificações de Sharrard, Hoffer, Inventário de Avaliação Pediátrica de Incapacidade (Pediatric Evaluation of Disability Inventory [PEDI]) e Escala de Mobilidade Funcional (Functional Mobility Scale [FMS]). Além disso, o teste de correlação de Spearman foi realizado.

Resultados:

A confiabilidade intraobservador (ICC: 0,900-1,0) e interobservador (ICC: 0,936; IC - 95%: 0,839-0,975) apresentou excelentes níveis de ICC. A validade convergente mostrou correlações muito fortes com FMS-5 (r = 0,94, p = 0,00) e FMS-50 (r = 0,94, p = 0,00); correlações fortes com FMS-500 (r = 0,87, p = 0,00), Sharrard (r = 0,76, p = 0,00), Hoffer (r = 0,83, p = 0,00) e Habilidades Funcionais: Mobilidade (PEDI) (r = 0,84, p= 0,00) e Assistência do Cuidador: Mobilidade (PEDI) (r = 0,77, p = 0,00); e fracas com o domínio autocuidado de PEDI (r = 0,46, p = 0,04). O teste-reteste revelou que ICC =1,00.

Conclusões:

Este estudo apresenta as propriedades psicométricas da MMFC, além de sua tradução e adaptação cultural para o português, língua nativa do autor da classificação. A MMFC demonstra correlação com classificações de mielomeningocele anteriormente utilizada. A MMFC teve bons resultados nas propriedades psicométricas avaliadas. Assim, a MMFC parece adequada e aplicável a indivíduos com mielomeningocele e é válida para a população brasileira.

Palavras-chave
classificação; estudo de validação; marcha; meningomielocele; prognóstico

Abstract

Objective:

Perform the translation and cultural adaptation of the Myelomeningocele Functional Classification (MMFC) into Portuguese (Brazil) and study its psychometric properties.

Method:

Validation study with translation, cultural adaptation and evaluation of psychometric properties: reliability, test-retest and convergent validity. Sample of 20 individuals with myelomeningocele with a median age of 10 (5 - 24.25) years, with a minimum of 3 and a maximum of 66 years. Reliability was determined by intra and interobserver agreement, using the results of the Intra-class Correlation Coefficient (ICC) and Confidence Interval 95% (IC- 95%). Convergent validity was performed using the Sharrard, Hoffer, Pediatric Evaluation of Disability Inventory (PEDI) and Functional Mobility Scale (FMS) classifications, and The Spearman Correlation Test was calculated.

Results:

Intra (ICC range: 0.900-1.0) and interobserver (ICC: 0.936; IC- 95%: 0.839-0.975) reliability showed excellent levels of ICC. Convergent validity showed very strong correlations with FMS-5 (r = 0.94, p = 0.00) and FMS-50 (r = 0.94, p = 0.00); strong correlations with FMS-500 (r = 0.87, p = 0.00), Sharrard (r = 0.76, p = 0.00), Hoffer (r = 0.83, p = 0.00), PEDI Functional Skills: Mobility (r = 0.84, p = 0.00) and PEDI Caregiver Assistance: Mobility (r = 0.77, p = 0.00); and weak correlations with self care domain of PEDI (r = 0.46, p = 0,04). The test-retest showed ICC = 1.00.

Conclusions:

This study presents the psychometric properties of the MMFC, in addition to its translation and cultural adaptation into Portuguese, the native language of the author of the classification. MMFC demonstrates correlation with previously used myelomeningocele classifications. MMFC demonstrated good results in the psychometric properties evaluated. Thus, the MMFC seems adequate and applicable to individuals with myelomeningocele and valid for the Brazilian population.

Keywords
classifications; gait; myelomeningocele; prognosis; validation study

Introdução

A mielomeningocele (MM) é um dos defeitos congênitos do fechamento do tubo neural em que há exposição das meninges, da medula espinhal e das raízes, o que causa perdas motoras e sensitivas nos membros inferiores. Além disso, anomalias espinhais (hidromielia, siringomielia) ou centrais (hidrocefalia, Arnold-Chiari) provocam déficits motores e de equilíbrio.11 Wenger DR. Tachdjian's Pediatric Orthopaedics, 4th ed. J Pediatr Orthop 2008;28(08):891. Doi: 10.1097/BPO.0b013e31818ee3ad
https://doi.org/10.1097/BPO.0b013e31818e...
O quadro clínico e funcional varia dependendo principalmente do nível neurológico, mas é muito influenciado pela presença de deformidades da coluna vertebral e dos membros inferiores, complicações neurológicas, obesidade e motivação, entre outros fatores.22 Dicianno BE, Karmarkar A, Houtrow A, et al. Factors Associated with Mobility Outcomes in a National Spina Bifida Patient Registry. Am J Phys Med Rehabil 2015;94(12):1015-1025 Assim, a classificação de cada indivíduo do ponto de vista funcional é muito importante, pois auxilia a antecipação de intervenções e tratamentos necessários e o prognóstico quanto ao grau de independência na vida diária.

A classificação dos diferentes quadros de MM já foi estudada por muitos pesquisadores. Sharrard publicou uma das classificações mais conhecidas, que considera o nível neurológico da lesão (torácica, lombar, sacral).33 Sharrard WJ. The segmental innervation of the lower limb muscles in man: Arris and Gale lecture delivered at the Royal College of Surgeons of England on 2nd January 1964. Ann R Coll Surg Engl 1964;35(02):106-122 Broughton propôs uma modificação dos níveis neurossegmentares de Sharrard.44 Broughton NS, Menelaus MB, Cole WG, Shurtleff DB. The natural history of hip deformity in myelomeningocele. J Bone Joint Surg Br 1993;75(05):760-763 Hoffer classificou os pacientes de acordo com sua capacidade de deambulação (ausência de deambulação, deambulação não funcional, presença de deambulação e deambulação comunitária).55 Hoffer MM, Feiwell E, Perry R, Perry J, Bonnett C. Functional ambulation in patients with myelomeningocele. J Bone Joint Surg Am 1973;55(01):137-148 McDonald et al.66 McDonald CM, Jaffe KM, Mosca VS, Shurtleff DB. Ambulatory outcome of children with myelomeningocele: effect of lower-extremity muscle strength. Dev Med Child Neurol 1991;33(06): 482-490 basearam a classificação no grau de força muscular nos membros inferiores, assim como Asher et al.;77 Asher M, Olson J. Factors affecting the ambulatory status of patients with spina bifida cystica. J Bone Joint Surg Am 1983; 65(03):350-356 os primeiros também tentaram determinar a correlação com a previsão da capacidade de deambulação. Na classificação de Lindseth,88 Lindseth R. Treatment of the lower extremity in children paralyzed by myelomeningocele (Birth to 18 months), instructional course lectures. J Am Acad Orthop Surg 1976;25:76-82 o nível motor é determinado pelo controle motor articular voluntário. A análise comparativa destes estudos, porém, revelou a incompatibilidade entre as classificações baseadas em critérios anatômicos e aquelas baseadas em critérios funcionais e de deambulação,99 Bartonek A, Saraste H, Knutson LM. Comparison of different systems to classify the neurological level of lesion in patients with myelomeningocele. Dev Med Child Neurol 1999;41(12): 796-805 essenciais para o estabelecimento dos objetivos terapêuticos.

Como na paralisia cerebral, com o desenvolvimento do Sistema de Classificação da Função Motora Básica (Gross Motor Function Classification System [GMFCS])1010 Palisano R, Rosenbaum P, Walter S, Russell D, Wood E, Galuppi B. Development and reliability of a system to classify gross motor function in children with cerebral palsy. Dev Med Child Neurol 1997;39(04):214-223 e da Escala de Mobilidade Funcional (Functional Mobility Scale [FMS]),1111 Graham HK, Harvey A, Rodda J, Nattrass GR, Pirpiris M. The functional mobility scale (FMS). J Pediatr Orthop 2004;24(05): 514-520 uma classificação que abrange diversos aspectos do quadro clínico e funcional foi desenvolvida para a MM - a Classificação Funcional de Mielomeningocele (Myelomeningocele Functional Classification [MMFC]).1212 Dias LS, Swaroop VT, de Angeli LRA, Larson JE, Rojas AM, Karakostas T. Myelomeningocele: a new functional classification. J Child Orthop 2021;15(01):l-5 A classificação considera a força muscular dos membros inferiores, o tipo de suporte externo e as órteses necessárias para a deambulação e a capacidade de marcha por meio da distância percorrida. Assim como as classificações GMFCS e FMS, é de fácil interpretação e tem valor prognóstico em termos de função, auxiliando o planejamento terapêutico e a comunicação entre os membros da equipe que participam do tratamento do paciente, além de ampliar o entendimento de sua evolução. O uso dessa classificação também permite a avaliação mais precisa dos resultados terapêuticos.

A MMFC foi publicada em inglês1212 Dias LS, Swaroop VT, de Angeli LRA, Larson JE, Rojas AM, Karakostas T. Myelomeningocele: a new functional classification. J Child Orthop 2021;15(01):l-5 e, entendendo a importância dessa classificação abrangente, este estudo propõe sua tradução, adaptação cultural e validação psicométrica; esta última ainda não foi relatada na literatura. Nosso propósito é tornar seu uso mais acessível em todos os serviços envolvidos no tratamento de pacientes com MM no Brasil, padronizando dados para fins de comunicação e apresentação de resultados. Assim, os objetivos deste estudo são: tradução e adaptação cultural do conteúdo da MMFC para o português (Brasil) e estudar as propriedades psicométricas da MMFC na versão brasileira.

Método

Estudo observacional descritivo, transversal, dividido em duas fases: Fase 1-Tradução e Adaptação Cultural da MMFC para o português e Fase 2-Validação Psicométrica.

A Fase 1, Tradução e Adaptação Cultural da MMFC para o português, foi desenvolvida seguindo as etapas propostas por Beaton et al.:1313 Beaton DE, Bombardier C, Guillemin F, Ferraz MB. Guidelines for the process of cross-cultural adaptation of self-report measures. Spine 2000;25(24):3186-3191 Fase 1: Tradução inglês-português por dois tradutores; Fase 2: Harmonização entre as duas traduções, gerando em uma única versão em português; Etapa 3: Retrotradução (português-inglês) da versão harmonizada das duas traduções anteriores; Fase 4: Harmonização entre as duas retrotraduções, gerando uma única versão em inglês; Etapa 5: Harmonização internacional, em que as versões resultantes da primeira e da segunda harmonização foram avaliadas com o autor original do instrumento.

Para a Fase 2, a amostra foi selecionada por conveniência em clínicas de reabilitação no sul do Brasil. Dos 40 pacientes com diagnóstico de MM convidados a participar, 22 aceitaram e dois foram excluídos por critérios de elegibilidade. Os critérios de inclusão foram: indivíduos brasileiros com MM, sem limite de idade; e os critérios de exclusão foram pacientes em pós-operatório de cirurgia ortopédica há menos de 6 meses e com doenças associadas que influenciam a função motora, como paralisia cerebral, entre outras. O autor RDNP fez as avaliações dos 20 participantes, sendo que metade deles veio após 10 a 15 dias para nova avaliação e análise de estabilidade (teste-reteste). O recrutamento e a coleta de dados ocorreram entre julho de 2021 e fevereiro de 2022.

As propriedades psicométricas avaliadas foram:

• Confiabilidade

A confiabilidade intraexaminador foi determinada por 15 profissionais (fisioterapeutas e ortopedistas) com experiência na área, selecionados por conveniência. Estes profissionais receberam por e-mail a classificação MMFC na versão em português e um vídeo com os dados a serem analisados em cada paciente. Eles classificaram os indivíduos em duas ocasiões, com 2 semanas de intervalo, e enviaram o resultado aos autores após o término de cada etapa. Os dados consistiram na apresentação do caso (idade, características clínicas), um vídeo demonstrando a avaliação manual da força muscular de membros inferiores (quadriceps, isquiotibiais, glúteo médio, gastrocnêmio-sóleo), um vídeo da marcha em distâncias curtas (5 metros), incluindo o uso de órteses e dispositivos externos, se presente, e entrevista sobre capacidade de caminhada em média (50 metros) e longa distância (500 metros). Todo o exame físico e a entrevista foram realizados pelo mesmo pesquisador.

A confiabilidade interexaminador foi avaliada por meio da resposta da primeira avaliação dos 15 profissionais que realizaram os exames.

• Validade convergente

Para a determinação da validade convergente, um autor classificou os 20 indivíduos segundo MMFC, Hoffer, Sharrard e FMS, realizou a avaliação manual da força muscular de membros inferiores e coletou os dados do Inventário de Avaliação Pediátrica de Incapacidade (Pediatric Evaluation of Disability Inventory [PEDI]).1414 Faria TCC, Cavalheiro S, da Costa MDS, et al. Functional Motor Skills in Children Who Underwent Fetal Myelomeningocele Repair: Does Anatomic Level Matter? World Neurosurg 2021; 149: e269-e273,1515 Haley SM. Pediatric Evaluation of Disability Inventory (PEDI): Development, standardization and administration manual. Boston: Therapy Skill Builders; 1992,1616 Steinhart S, Kornitzer E, Baron AB, Wever C, Shoshan L, Katz-Leurer M. Independence in self-care activities in children with myelomeningocele: exploring factors based on the International Classification of Function model. Disabil Rehabil 2018;40(01): 62-68,1717 Tsai PY, Yang TF, Chan RC, Huang PH, Wong TT. Functional investigation in children with spina bifida - measured by the Pediatric Evaluation of Disability Inventory (PEDI). Childs Nerv Syst 2002;18(l-2):48-53

Teste-Reteste

A estabilidade da classificação foi avaliada por teste-reteste, em que 10 indivíduos foram novamente analisados pelo mesmo profissional após 10 a 15 dias.

Este estudo obteve a aprovação ética de um Comitê de Ética em Pesquisa e os participantes ou seus responsáveis assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido referente ao estudo e à publicação dos resultados.

A análise estatística foi feita pelo software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 20.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, Estados Unidos). Em todos os casos, o nível de significância adotado foi de 5%. A confiabilidade e a repetibilidade inter e intraexaminadores foram avaliadas por meio dos resultados do coeficiente de correlação intraclasse (ICC), considerando um nível de significância de p < 0,05. Um valor de ICC igual a 1 indica que os valores são idênticos nas comparações intra e interexaminadores ou repetibilidade do método. Valores de ICC abaixo de 0,70 foram considerados inaceitáveis; entre 0,71 e 0,79, aceitáveis; entre 0,80 e 0,89, muito bons; e acima de 0,90, excelentes. O teste de correlação de Spearman foi realizado e os resultados foram classificados de acordo com o coeficiente de correlação (r): muito fortes (r>0,9), fortes (r entre 0,7 e 0,9), moderados (r entre 0,5 e 0,7) e fracos (r entre 0,3 e 0,5)

Resultados

Na fase 1, tradução e adaptação cultural, houve apenas divergências gramaticais e de vocabulário entre os tradutores, o que não afetou a equivalência semântica do conteúdo. Essas diferenças foram discutidas e harmonizadas e, devido ao teor prático da classificação, não houve problemas de equivalência idiomática e cultural (expressões coloquiais). Somente uma pequena adaptação cultural foi necessária, acrescentando: 1- ao termo Hip Knee Ankle Foot Orthosis (HKAFO) o termo tutor longo com cinto pélvico, utilizado clinicamente no Brasil e 2- ao termo Ankle Foot Orthosis (AFO), o termo órtese suropodálica. A versão brasileira da MMFC é mostrada na Fig. 1.

Fig. 1
Versão Brasileira da Classificação Funcional de Mielomeningocele (MMFC).

A Fase 2-Validação Psicométrica - envolveu um total de 20 indivíduos com MM e idade entre 3 e 66 anos. A ►Tabela 1 apresenta as características gerais da amostra. A ►Tabela 2 mostra as classificações neurossegmentares e funcionais dos pacientes avaliados.

Tabela 1
Características demográficas e clínicas da amostra de indivíduos com mielomeningocele
Tabela 2
Classificações neurossegmentares e funcionais dos indivíduos com mielomeningocele avaliados

Confiabilidade

A Tabela 3 apresenta os excelentes níveis de ICC tanto na confiabilidade interobservador quanto na confiabilidade intraobservador; nesta última, foram observados valores idênticos em 60% dos examinadores.

Tabela 3
Confiabilidade inter e intraobservador da Classificação Funcional de Mielomeningocele (MMFC)

Validade Convergente

A Tabela 4 mostra as correlações significativas da MMFC com as escalas funcionais analisadas.

Tabela 4
Correlação de Spearman mostrando a validade concomitante da Classificação Funcional de Mielomeningocele (MMFC)

Teste-Reteste

A reprodutibilidade da MMFC analisada por teste-reteste após 10 a 15 dias da primeira avaliação em metade da amostra apresentou ICC =1,00.

Discussão

Este é o primeiro estudo a avaliar as propriedades psicométricas da MMFC. O presente estudo traduziu e adaptou culturalmente a classificação para o português brasileiro, língua nativa do autor principal e do autor da classificação, e mostrou que a MMFC tem excelente confiabilidade intra e interobservador, excelente reprodutibilidade e validade convergente e correlações fortes ou muito fortes com PEDI, FMS e as classificações padrões de Hoffer e Sharrard.

Muitos estudos concluíram que o fator mais importante na determinação do nível de funcionalidade de pacientes com MM é a gravidade do acometimento neurológico.33 Sharrard WJ. The segmental innervation of the lower limb muscles in man: Arris and Gale lecture delivered at the Royal College of Surgeons of England on 2nd January 1964. Ann R Coll Surg Engl 1964;35(02):106-122,44 Broughton NS, Menelaus MB, Cole WG, Shurtleff DB. The natural history of hip deformity in myelomeningocele. J Bone Joint Surg Br 1993;75(05):760-763,55 Hoffer MM, Feiwell E, Perry R, Perry J, Bonnett C. Functional ambulation in patients with myelomeningocele. J Bone Joint Surg Am 1973;55(01):137-148,77 Asher M, Olson J. Factors affecting the ambulatory status of patients with spina bifida cystica. J Bone Joint Surg Am 1983; 65(03):350-356 Uma das classificações mais conhecidas da MM por níveis neurológicos é a de Sharrard, que utilizada em muitos estudos de avaliação e indicação de tratamento.77 Asher M, Olson J. Factors affecting the ambulatory status of patients with spina bifida cystica. J Bone Joint Surg Am 1983; 65(03):350-356 Essa classificação, porém, pode não retratar por completo os aspectos funcionais, que podem variar muito dentro de cada nível devido a diversos fatores, como idade, índice de massa corporal, motivação, presença de doenças neurológicas que interferem no equilíbrio, deformidades da coluna vertebral e dos membros inferiores que dificultam a postura ereta e a marcha, aspectos sociais, tipo de órtese e suporte externo para a marcha, entre outros. Assim, a classificação mais completa é aquela que engloba também os aspectos funcionais e os pilares da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) - Funções e Estruturas do Corpo, Atividades e Participação e Fatores Ambientais. Dentro dessa perspectiva, a MMFC representa uma importante ferramenta de classificação por incluir esses fatores. A adição da FMS a esta classificação detalha ainda mais o perfil funcional e de desempenho do indivíduo. Além disso, a MMFC deve ser sempre aplicada em conjunto com a FMS.

A avaliação da qualidade dos instrumentos de medição é importante para a escolha daqueles que geram resultados válidos e confiáveis.1818 Souza AC, Alexandre NMC, Guirardello EB. Psychometric properties in instruments evaluation of reliability and validity. Epidemiol Serv Saude 2017;26(03):649-659 A necessidade de uma avaliação adequada das propriedades de medição dos instrumentos de avaliação tem sido fortemente recomendada pela literatura.1919 Salmond SS. Evaluating the reliability and validity of measurement instruments. Orthop Nurs 2008;27(01):28-30 Até onde sabemos, a avaliação das propriedades psicométricas da MMFC não foi publicada, o que é essencial para seu uso não apenas na prática diária, mas também em estudos e publicações futuras.

Os excelentes resultados observados na confiabilidade intra e interobservador da MMFC não podem ser comparados, pois não há estudos anteriores a esse respeito na literatura. As confiabilidades foram determinadas por fisioterapeutas e ortopedistas da área de reabilitação neuroortopédica que receberam uma explicação por escrito sobre a classificação, mostrando a facilidade de compreensão e execução.

Este estudo é o primeiro a apresentar a validade convergente da MMFC. Observou-se correlação forte a muito forte com as classificações de Sharrard e Hoffer e as escalas de mobilidade PEDI e FMS e correlação fraca com a escala de autocuidado do PEDI. Outros estudos compararam as várias classificações de MM. Rethlefsen et al.2020 Rethlefsen SA, Bent MA, Mueske NM, Wren TAL. Relationships among classifications of impairment and measures of ambulatory function for children with spina bifida. Disabil Rehabil 2021 ;43 (25):3696-3700 mostraram a relação entre a Classificação Funcional de Mielomeningocele (Functional Classification of Myelomeningocele [FCM]) proposta por Dias et al.,1212 Dias LS, Swaroop VT, de Angeli LRA, Larson JE, Rojas AM, Karakostas T. Myelomeningocele: a new functional classification. J Child Orthop 2021;15(01):l-5 similar à MMFC, mas que não incluía o uso da FMS - com outras classificações de MM. Os pesquisadores analisaram 61 pacientes com espinha bífida (77% com MM e 23% com lipomielomeningocele) entre 6 e 16 anos de idade que foram classificados segundo a FCM, a FMS, a classificação de Hoffer, o nível neurológico radiológico (International Myelodysplasia Study Group - IMSG) e força e capacidade muscular de deambulação. Estes autores encontraram uma excelente correlação entre a FCM e a FMS para todas as distâncias e uma correlação fraca a moderada entre a classificação de Hoffer e a FCM.2020 Rethlefsen SA, Bent MA, Mueske NM, Wren TAL. Relationships among classifications of impairment and measures of ambulatory function for children with spina bifida. Disabil Rehabil 2021 ;43 (25):3696-3700 A análise entre a FCM e o nível neurológico pela força muscular mostrou excelente correlação.2020 Rethlefsen SA, Bent MA, Mueske NM, Wren TAL. Relationships among classifications of impairment and measures of ambulatory function for children with spina bifida. Disabil Rehabil 2021 ;43 (25):3696-3700 A FCM não teve correlação excelente com a classificação radiológica.2020 Rethlefsen SA, Bent MA, Mueske NM, Wren TAL. Relationships among classifications of impairment and measures of ambulatory function for children with spina bifida. Disabil Rehabil 2021 ;43 (25):3696-3700 Em outro estudo, Battibugli et al.2121 Battibugli S, Gryfakis N, Dias L, et al. Functional gait comparison between children with myelomeningocele: shunt versus no shunt. Dev Med Child Neurol 2007;49(10):764-769 analisaram 161 pacientes com MM a fim de determinar a influência da presença de shunt ventrículo-peritoneal na marcha. Estes autores classificaram os pacientes de acordo com o nível neurológico, a força muscular dos membros inferiores e o tipo de suporte externo para marcha e FMS. Alguns desses pacientes também foram avaliados por meio de parâmetros espaço-temporais da marcha por análise computadorizada. Os autores demonstraram que os participantes com shunt tiveram pontuações de FMS de 500 metros e FMS de 50 metros significativamente mais baixas em comparação àqueles sem shunt, mas não observaram correlação com a pontuação de 5 metros.2121 Battibugli S, Gryfakis N, Dias L, et al. Functional gait comparison between children with myelomeningocele: shunt versus no shunt. Dev Med Child Neurol 2007;49(10):764-769 Apesar do número menor de pacientes analisados, o presente estudo incluiu apenas pacientes com MM e abrange diferentes faixas etárias e níveis neurológicos, mas ainda encontrou resultados muito semelhantes aos descritos acima. Em relação à excelente correlação de FCM com FMS em todas as distâncias relatada por Rethlefsen et al.,2020 Rethlefsen SA, Bent MA, Mueske NM, Wren TAL. Relationships among classifications of impairment and measures of ambulatory function for children with spina bifida. Disabil Rehabil 2021 ;43 (25):3696-3700 nossos resultados mostraram que a MMFC teve correlação excelente ou muito forte com FMS de 5 metros e FMS de 50 metros. Houve, porém, forte correlação com a FMS de 500 metros, talvez devido aos pacientes mais velhos de nossa amostra, na qual os indivíduos mais funcionais já não tinham muita independência para longas distâncias e usavam cadeira de rodas.

Outro estudo comparativo entre as diversas classificações foi publicada por Bartonek et al.,99 Bartonek A, Saraste H, Knutson LM. Comparison of different systems to classify the neurological level of lesion in patients with myelomeningocele. Dev Med Child Neurol 1999;41(12): 796-805 em que 73 pacientes foram analisados usando as classificações de Sharrard, Hoffer, Lindseth, Broughton e Ferrari. Estes autores demonstraram que, com base no nível neurológico, não é possível identificar ou predizer a capacidade funcional por meio de nenhuma das classificações. Tita et al.2222 Tita AC, Frampton JR, Roehmer C, Izzo SE, Houtrow AJ, Dicianno BE. Correlation Between Neurologic Impairment Grade and Ambulation Status in the Adult Spina Bifida Population. Am J Phys Med Rehabil 2019;98(12):1045-1050 também compararam dados retirados de prontuários de 409 pacientes adultos, classificando seu nível neurológico de acordo com duas versões da Classificação Nacional de Registro de Pacientes com Espinha Bífida dos Estados Unidos (National Spina Bifida Patient Registry Classification), o nível motor dos Padrões Internacionais para Classificação Neurológica de Lesão Medular Espinhal (International Standards for Neurological Classification of Spinal Cord Injury) e a classificação de Broughton e comparando-os com a habilidade de marcha da classificação de Hoffer. Os autores notaram uma correlação significativa entre a classificação de Hoffer e todas as escalas de nível neurológico avaliadas, sendo a correlação mais forte com a classificação de Broughton.

Um diferencial do presente estudo foi a adição da análise dos aspectos da atividade da ICF por meio do PEDI. Obtivemos uma forte correlação entre a MMFC e a mobilidade, tanto em termos de habilidades funcionais quanto a quantidade de assistência do cuidador, e uma fraca correlação com o autocuidado. Mostramos, portanto, que quanto maior a MMFC, maiores a funcionalidade do indivíduo, a mobilidade, o autocuidado e a independência de deambulação. Isso revela que a capacidade de se levantar e ter mobilidade é um fator determinante para maior independência nas atividades diárias. A fraca magnitude da correlação com o autocuidado possivelmente se deve ao fato de que as medidas de marcha, mobilidade e atividades de autocuidado da MMFC dependem mais das habilidades funcionais dos membros superiores.

Este estudo tem limitações. A amostra é pequena e de uma região geográfica específica, que pode não refletir as características da população com MM; além disso, foram incluídos pacientes submetidos a procedimentos ortopédicos ou neurocirúrgicos prévios, que poderiam ter influenciado a força muscular e sua associação a outras variáveis. Também não controlamos variáveis como o acesso a programas de reabilitação, a presença de shunt ventrículo-peritoneal etc., que poderiam ter influenciado os resultados. Além disso, há uma limitação acerca das faixas etárias de alguns instrumentos de avaliação, uma vez que este estudo incluiu pacientes adultos.

Conclusão

A MMFC apresentou forte correlação com as classificações de MM utilizadas anteriormente. A versão brasileira da MMFC teve bons resultados nas propriedades psicométricas avaliadas: confiabilidade intra e interobservador, teste-reteste e validade convergente. Assim, a MMFC parece adequada e aplicável a indivíduos com MM e válida para a população brasileira.

  • Estudo desenvolvido no Centro Universitário da Serra Gaúcha, Caxias do Sul, Brasil.

Agradecimentos

Ao Grupo de Inovação FSG e aos alunos pesquisadores do Grupo de Pesquisa em Reabilitação FSG (Giovana Ramos, Mariana Raidi e Maria Helena Calcagnotto) pelo apoio.

  • Suporte Financeiro
    Este estudo não recebeu qualquer financiamento específico de agências públicas, comerciais ou sem fins lucrativos.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2022
  • Aceito
    27 Mar 2023
  • Publicado
    08 Dez 2023
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