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Primeiros casos de rejeição em transplante penetrante após vacina contra COVID-19

First cases of penetrating corneal transplant rejection after COVID-19 vaccines

RESUMO

Este artigo descreve dois casos de reação imunológica de rejeição de transplante penetrante após a aplicação de dois tipos de vacina contra a COVID-19 – CoronaVac (Sinopharm/Butantan) e MRNA BNT162&2 (Pfizer-BioNTech) – com intervalo de 1 e 10 dias, respectivamente. A rejeição se manifestou com hiperemia, edema corneano e embaçamento da visão, que responderam rapidamente ao uso de corticoide tópico e subconjuntival. Até onde sabemos, este é o primeiro relato de rejeição de transplante penetrante de córnea pós-vacina anti-COVID-19.

Recomendamos, presentemente, como prevenção, colírio de prednisolona a 1% 4 dias antes e durante 2 semanas após receber qualquer tipo de vacina para a COVID-19.

Descritores:
Transplante de córnea; Rejeição; Coronavírus; CoronaVac; Vacinas; COVID-19; Vacina Pfizer

ABSTRACT

This paper describes two cases of allograft corneal transplant rejection after the application of two types of COVID-19 vaccines – Coronavac (Sinopharm/Butantan) and MRNA BNT162&2 (Pfizer-BioNTech) vaccines – with an interval of 1 to 10 days, respectively. The rejection manifested in the form of corneal edema, hyperemia and blurred vision, which responded rapidly to the use of topical and subconjunctival corticosteroid. As far as we know, this is the first published report of immunological rejection of penetrating corneal transplant after COVID-19 vaccination.

As a preventative measure, we now recommend the use of 1% prednisolone eye drop 4 days before and during 2 weeks after having received any type of COVID-19 vaccine.

Keywords:
Corneal transplantation; Rejection; Coronavirus; CoronaVac; COVID-19; Pfizer vaccine

INTRODUÇÃO

O transplante de córnea é o transplante mais realizado no Brasil e com a menor taxa de complicações. Em 2019, foram realizados aproximadamente 15 mil procedimentos no Brasil, o que representa dois terços do total de transplantes.(11 Dimensionamento dos Transplantes no Brasil e em cada Estado (2012-2019). RBT: Registro Brasileiro de Transplantes. 2019;15(4):1-81.)

Pela característica avascular do botão receptor, a reação imunológica ao tecido doador é mais branda e, em geral, controlada pela terapia de imunossupressão local.(22 Xiao X, Xie L. The influencing factors and characteristics of corneal graft endothelial decompensation after penetrating keratoplasty. Eur J Ophthalmol. 2010;20(1):21-8.) Tais características impõem à cirurgia um bom prognóstico a longo prazo, apresentando taxa de rejeição que pode variar entre 2% e 38%.(33 Steinemann TL, Koffler BH, Jennings CD. Corneal allograft rejection following immunization. Am J Ophthalmol. 1988;106(5):575-8.) Entre as causas de rejeição, há relatos esparsos de reação imunológica local após vacinas, como, por exemplo, pela vacina contra tétano, hepatite e vírus influenza.(33 Steinemann TL, Koffler BH, Jennings CD. Corneal allograft rejection following immunization. Am J Ophthalmol. 1988;106(5):575-8.,44 Solomon A, Frucht-Pery J. Bilateral simultaneous corneal graft rejection after influenza vaccination. Am J Ophthalmol. 1996;121(6):708-9.)

No último ano, a pandemia pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (Sars-CoV-2) impôs questões quanto ao seu acometimento ocular e, mais recentemente, quanto à efetividade e à segurança das vacinas. No mundo, existem sete vacinas contra a doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19) em uso, elaboradas por três metodologias diferentes, com mecanismos de ação também distintos – alguns deles inovadores.(55 Chung JY, Thone MN, Kwon YJ. COVID-19 vaccines: The status and perspectives in delivery points of view. Adv Drug Deliv Rev. 2021;170:1-25.)

Relatamos aqui dois casos: o primeiro de uma paciente que desenvolveu rejeição imunológica no botão transplantado no dia seguinte à segunda dose da CoronaVac (Sinopharm/Butantan) e um segundo caso, que ocorreu 10 dias pós-vacina MRNA BNT162&2 (Pfizer-BioNTech).

RELATO DOS CASOS

Caso 1

Paciente de 54 anos de idade, sexo feminino, procurou o serviço de emergência sentir há 1 dia uma diminuição súbita da acuidade visual no olho direito transplantado. Identificou-se um surto de rejeição imunológica na forma de edema de córnea e hiperemia perilimbar, sem outros achados clínicos, que foi tratada de imediato com supressão da reação imunológica com corticoide tópico.

O histórico da paciente revelou que ela tinha sido submetida em janeiro de 1985 (36 anos antes) a um transplante penetrante de córnea de 8mm de diâmetro para tratamento de leucoma central pós-ceratite herpética, pelo mesmo oftalmologista deste serviço. Na época, a acuidade visual melhorou de 20/200 para 20/30 após 6 meses de pós-operatório. Nos 20 anos seguintes, em visitas de rotina, a visão manteve-se estável, com refração evoluindo em torno de -3.75 (DE) -3.25 (DC) x 55º (20/25).

Em janeiro do ano passado, apresentou, pela primeira vez, reação de rejeição imunológica, com edema total do transplante e acuidade reduzida para contar dedos a 1 metro. Foi medicada de imediato com corticoide tópico e injetável por via subconjuntival, melhorando gradativamente, tendo a transparência recuperada e com a visão retornado para o nível de 20/30 com correção após 3 meses de tratamento.

No dia 10 de abril de 2021, tomou a primeira dose da vacina produzida pelo Instituto Butantan (CoronaVac) e, no dia 4 de maio de 2021, a segunda dose da mesma vacina. No dia seguinte à segunda dose, apresentou a referida queixa de embaçamento súbito da visão e leve dor ocular. Ao exame de biomicroscopia, diagnosticou-se quadro típico de rejeição com hiperemia perilimbar moderada e edema estromal moderado no transplante. Foi iniciado prontamente tratamento com colírio de prednisolona a 1% a cada hora. Após 5 dias de tratamento, apresentou melhora exponencial, e a acuidade visual melhorou de 20/200 para 20/50, com correção; o transplante ficou acentuadamente mais transparente (Figura 1). A microscopia especular, anteriormente com 865cels/mm2, apresentava, após esse episódio, 599cels/mm2, com espessura corneana de 585µm.

Figura 1
(A) Em 20 de janeiro de 2020, primeira rejeição; (B) em 17 de maio de 2021, segunda rejeição pós-vacina; (C) em 16 de julho de 2021, paciente totalmente recuperada.

Caso 2

No segundo caso, paciente de 40 anos de idade, sexo masculino, foi submetido a transplante penetrante em olho direito (OD) em 8 de maio de 1998, para tratamento de ceratocone avançado. Sua acuidade visual de 20/400 melhorou para 20/20 com a correção (plano x -1.75 (DC) x 35º) e, assim, permaneceu por 23 anos sem incidentes. Em 16 de junho de 2021, voltou ao nosso serviço por apresentar o “olho direito vermelho e embaçado”, que se iniciara 4 dias antes (12 de junho de 2021). O paciente havia tomado a primeira dose da vacina MRNA BNT162&2 (Pfizer-BioNTech) em 2 de junho de 2021 (10 dias antes).

No exame oftalmológico, constatou-se a presença de hiperemia perilimbar moderada, edema da córnea transplantada em sua metade inferior, delimitado superiormente por linha de Khodadoust, e acuidade visual em 20/50, com correção. Foi diagnosticado com manifestação de rejeição imunológica, sendo tratado de imediato com prednisolona a 1% tópica, injeção de dexametasona e depomedrol subconjuntivais, além de meticorten sistêmico (80mg). A resposta ao tratamento aconteceu em poucos dias com melhora da visão, dos PKS na linha de Khodadoust e do edema corneano, que regrediu totalmente (Figura 2). Outra manifestação significativa é que, 2 anos antes, a microscopia especular (CEM-530, Nidek Co, Gamagori, Japan) assinalava 943cels/mm2 e espessura de 567µm 2 meses após a vacinação, seguida de redução das células endoteliais para 620cels/mm2 e espessura aumentada para 574µm, sugerindo enfraquecimento da função endotelial.

Figura 2
(A) Em 16 de junho de 2021, rejeição pós-vacina; (B) em 19 de junho de 2021, recuperação parcial; (C) em 7 de julho de 2021, paciente totalmente recuperado.

Estes relatos, até onde sabemos, são os primeiros registros de rejeição de transplante penetrante após a vacina para COVID-19, utilizando a segunda dose da CoronaVac no primeiro caso e a primeira dose da vacina MRNA BNT162&2 (Pfizer-BioNTech) no segundo caso.

DISCUSSÃO

Como no passado Wertheim relatou rejeição pós-vacina contra a influenza e Steinemann(33 Steinemann TL, Koffler BH, Jennings CD. Corneal allograft rejection following immunization. Am J Ophthalmol. 1988;106(5):575-8.) contra a hepatite e a influenza, tínhamos como conduta desaconselhar qualquer tipo de vacina em transplantados de córnea. Com o surgimento da COVID-19, por sua alta letalidade, mudamos a recomendação, autorizando nossos pacientes a se vacinarem exclusivamente contra esse vírus. Acompanhamos 43 transplantes de córnea em 30 pacientes que tomaram uma das vacinas contra a COVID-19, os quais foram monitorados com frequência. Eles não apresentaram sinais de rejeição de córnea até o momento. São doadores distintos com diferentes estímulos antigênicos, podendo ou não produzir reações cruzadas com as respostas humorais e citológicas das diversas vacinas. Isso explicaria a pequena incidência de rejeições pós-vacinação.

Phylactou et al. publicaram três casos de rejeição pós-DMEK no Moorfields Hospital de Londres, após imunização com a vacina da Pfizer-BioNTech. No primeiro caso, um paciente com 66 anos recebeu a primeira dose da vacina MRNA BNT162&2 (Pfizer-BioNTech) 14 dias após cirurgia bem-sucedida de DMEK e apresentou rejeição aguda ocorrida 7 dias após a vacina e 21 dias após o transplante endotelial; no segundo caso, uma paciente de 83 anos foi submetida à DMEK no olho direito há 6 anos e no olho esquerdo há 3 anos, em ambos com sucesso. Ela recebeu as duas doses da vacina MRNA BNT162&2 (Pfizer-BioNTech) e apresentou sinais de rejeição 3 semanas após a segunda dose, que se manifestou simultaneamente em ambos os olhos. Os três olhos com rejeição imunológica pós-DMEK responderam ao tratamento com colírio de dexametasona, clareando as córneas. É interessante ressaltar que os três casos relatados de rejeição pós-vacina Pfizer BioNTech foram submetidos a transplante com a técnica DMEK – justamente o tipo de transplante envolvendo o endotélio, que apresenta a menor incidência de rejeição. Todos responderam bem ao tratamento com corticoide, recuperando a viabilidade do endotélio.(66 Phylactou M, Li JO, Larkin DFP. Characteristics of endothelial corneal transplant rejection following immunisation with SARS-CoV-2 messenger RNA vaccine. Br J Ophthalmol. 2021;105(7):893-6.)

Diferentemente do que foi publicado por Phylactou et al., nossos dois casos foram submetidos a transplante penetrante, tendo sido vacinados 1 e 10 dias antes da manifestação da rejeição, respectivamente. Curiosamente, o primeiro caso apresentou quadro de rejeição há 1 ano, com características clínicas semelhantes (porém de maior intensidade) ao quadro pós-vacinal. Outro fato que deve ser salientado é que o quadro se deu após a segunda dose, assim como o quadro descrito por Phylactou et al., e o controle foi mais facilmente obtido em relação à rejeição ao incidente ocorrido há 1 ano, retornando ao quadro pré-rejeição. Ocorreu queda importante da densidade de microscopia especular, mas o que não está claro é como o mecanismo de ação da vacina pôde influenciar na resposta imunológica corneana, uma vez que, no nosso caso, a CoronaVac é produzida por meio de vírus inativado e tem eficácia relatada inferior à da Pfizer, que é por RNA mensageiro. O tempo pós-transplante não constitui referência, pois, nos casos relatados, a rejeição ocorreu passados 21 dias, 3 anos, 31 anos e 23 anos. O tempo pós-vacina variou de 1 dia a 3 semanas, e a rejeição ocorreu tanto após a primeira como após a segunda dose. Os dois casos aqui relatados (leucomia central e ceratocone) não eram de alto risco. Concluímos, assim, que todas as córneas transplantadas correm risco pós-vacina contra a COVID-19.

Apesar de pouco relatado até o momento e do eficaz tratamento tópico, em comparação a quadros tradicionais de rejeição, considerando a acentuada queda da densidade celular do endotélio, o que, portanto, encurtará a vida da córnea transplantada, adotamos uma nova conduta preventiva em pacientes pós-transplante de córnea que serão submetidos à vacina contra a COVID-19. Recomendamos, presentemente, como prevenção, colírio de prednisolona a 1% 4 dias antes e durante 2 semanas após receber qualquer tipo de vacina para a COVID-19. Com essa conduta, não registramos nenhum outro caso com o mesmo problema.

  • Instituição de realização do trabalho: Instituto de Oftalmologia Tadeu Cvintal, São Paulo, SP, Brasil.
  • Fonte de auxílio à pesquisa: não financiado.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Dimensionamento dos Transplantes no Brasil e em cada Estado (2012-2019). RBT: Registro Brasileiro de Transplantes. 2019;15(4):1-81.
  • 2
    Xiao X, Xie L. The influencing factors and characteristics of corneal graft endothelial decompensation after penetrating keratoplasty. Eur J Ophthalmol. 2010;20(1):21-8.
  • 3
    Steinemann TL, Koffler BH, Jennings CD. Corneal allograft rejection following immunization. Am J Ophthalmol. 1988;106(5):575-8.
  • 4
    Solomon A, Frucht-Pery J. Bilateral simultaneous corneal graft rejection after influenza vaccination. Am J Ophthalmol. 1996;121(6):708-9.
  • 5
    Chung JY, Thone MN, Kwon YJ. COVID-19 vaccines: The status and perspectives in delivery points of view. Adv Drug Deliv Rev. 2021;170:1-25.
  • 6
    Phylactou M, Li JO, Larkin DFP. Characteristics of endothelial corneal transplant rejection following immunisation with SARS-CoV-2 messenger RNA vaccine. Br J Ophthalmol. 2021;105(7):893-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2021
  • Aceito
    02 Dez 2021
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