Perfil socioclínico de pacientes submetidos a transplante de córnea em hospital de referência

Socioclinical profile of patients submitted to corneal transplantation in a reference hospital

RESUMO

Objetivo

conhecer o perfil clínico e cirúrgico de pacientes que realizaram ceratoplastia em um hospital universitário.

Métodos

Trata-se de um estudo observacional analítico, do tipo transversal. Foram avaliadas as fichas de descrição cirúrgica dos prontuários dos pacientes transplantados nos anos de 2019 e 2020, a fim de analisar dados sociais e clínicos. Os dados foram tratados por meio do programa Microsoft Office Excel 2017. As variáveis numéricas foram analisadas com auxílio da estatística descritiva no programa Bioestat versão 5.3 (frequência, porcentagem, média). As informações descritivas foram analisadas qualitativamente.

Resultados

Foram realizados 167 procedimentos nesse período, notando-se faixa etária média de 45 anos, indivíduos do sexo masculino, receptores de tecidos doados no Pará ou provenientes do Estado do Ceará. Os transplantes foram majoritariamente ópticos, eletivos, com botão corneano doador em média de 8mm e receptor de 7,5mm. Quanto às indicações, a maioria era decorrente de distrofias corneanas, seguidas de leucoma e perfuração do globo ocular, com predominância da técnica cirúrgica penetrante, sutura interrompida e anestesia local.

Conclusão

O conhecimento desses dados é importante para considerar que o perfil clínico e cirúrgico dos pacientes do hospital estudado se aproxima da realidade nacional, sobretudo na indicação clínica.

Transplante de córnea; Perfil de saúde; Pesquisa nos serviços de saúde

ABSTRACT

Objective

to investigate the clinical and surgical profile of patients who performed keratoplasty in a university hospital.

Methods

It is a cross-sectional, observational study. The surgical description from the medical records of transplanted patients in the years 2019 and 2020 was assessed to analyze social and clinical data. Data were processed using the Microsoft Office Excel 2017 program. Numerical variables were analyzed using descriptive statistics in the Bioestat program version 5.3. Descriptive information was analyzed qualitatively.

Results

167 procedures were performed in this period, with an average age of 45 years old, male individuals, recipients of tissue donated in Pará or sent from the State of Ceará. Transplants were mostly optic, elective, with an average corneal donor button of 8mm and recipient of 7.5mm. As for the indications, most were due to corneal dystrophies, followed by leukoma and perforation of the eyeball, with a predominance of the penetrating surgical technique, interrupted suture, and local anesthesia.

Conclusion

The knowledge of these data is important to consider that the clinical and surgical profile of patients in the hospital studied is close to the national reality, especially in clinical indication.

Corneal transplantation; Health profile; Health services research

INTRODUÇÃO

As doenças da córnea estão relacionadas a cerca de 5% das causas de cegueira reversível no mundo. Dentre estas, incluem-se doenças inflamatórias, infecciosas, traumáticas, crônicas e distrofias, as quais geram consequências físicas e biopsicossociais aos pacientes e a seus familiares. ( ¹ , ² )

Assim, o transplante de córnea é indicado quando é afetada sua transparência ou curvatura, substituindo essa córnea por outra saudável e, consequentemente, restaurando a saúde ocular. É um procedimento muito realizado em escala nacional e relacionado a bons índices de sucesso, sendo sua indicação específica variável em diferentes regiões do país. ( ³ )

Os transplantes de córneas podem ser eletivos ou de urgência. No Brasil, a principal indicação é o ceratocone, ( ⁴ , ⁵ ) havendo algumas diferenças regionais. No Estado do Pará, a ceratopatia bolhosa ganhou destaque, entre os anos de 2001 a 2009, representando 28,2% dos casos, ( ⁶ ) e, atualmente, é uma importante causa em idosos, enquanto em jovens o ceratocone é a indicação principal. ( ⁷ )

O Brasil é referência mundial na área de transplantes e possui o maior sistema público de transplantes do mundo, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, cerca de 96% dos procedimentos de todo o país são financiados pelo SUS. Assim, o Brasil é o segundo maior transplantador do mundo, atrás somente dos Estados Unidos. ( ⁸ )

O transplante de córnea é o mais realizado dentre os transplantes de órgãos e tecidos, com crescimento proporcional a cada ano. No ano de 2019, 14.943 transplantes de córnea foram feitos no Brasil (251 no estado do Pará). Já em 2020, foram realizados 7.127 no país, sendo que, no Pará, ocorreram 189 transplantes de córnea. ( ⁹ )

O aumento no número desses procedimentos é justificado pelo aperfeiçoamento das técnicas relacionadas ao manejo do tecido, do aperfeiçoamento profissional, do desenvolvimento das técnicas cirúrgicas, do maior conhecimento sobre a fisiologia da córnea e demais fatores que contribuem para o crescimento quantitativo e qualitativo desse procedimento, como o surgimento de novos bancos de olhos no país, e devido ao fato de a córnea ser um tecido imunologicamente privilegiado, com baixo risco de rejeição. ( ⁸ , ¹⁰ , ¹¹ ) Além de que, diferentemente de outros órgãos e tecidos, como fígado, rim ou pâncreas, a captação da córnea é mais fácil e menos restrita. ( ⁴ )

No cenário paraense, ressalta-se que 13,4% das indicações da ceratoplastia correspondem à rejeição ao transplante ou falência do enxerto. ( ⁶ ) O número significativo de retransplantes de córnea entre as indicações para o procedimento está relacionado ao insucesso de primeiros transplantes, os quais desenvolveram complicações. ( ⁴ , ¹² )

Além disso, no Estado do Pará, há uma das maiores filas de espera do país. No final de 2018, eram cerca de 868 pacientes ativos aguardando transplante de córnea, sendo que, durante o ano, foram realizados 59 procedimentos a menos em relação a 2017. ( ¹³ ) Esses dados continuaram em crescente ao comparar 2019 com 2020, principalmente por influência da pandemia da doença do coronavírus 2019 (COVID-19). Notou-se que a lista de espera nacional para o transplante de córnea cresceu cerca de 38%, enquanto seu ingresso em lista caiu 37%. O ano de 2020, no Pará, finalizou com 1.008 pacientes ativos na lista de espera. ( ⁹ )

Conhecer o perfil clínico e cirúrgico de pacientes que passaram pelo transplante de córnea é de fundamental importância para o desenvolvimento de estratégias que minimizem as ocorrências de possíveis complicações relacionadas, gerando melhores resultados.

O objetivo deste estudo foi conhecer o perfil clínico e cirúrgico de pacientes que realizaram ceratoplastia em um hospital universitário.

MÉTODOS

O estudo caracteriza-se como observacional analítico, do tipo transversal. Na presente pesquisa, foram analisadas as fichas de descrição cirúrgica dos prontuários dos pacientes pós-transplantados, após autorização do Comitê de Ética e Pesquisa e aceite do Hospital Universitário Bettina Ferro de Souza da Universidade Federa do Pará (UFPA). Nesses arquivos, foram considerados dados sociais e clínicos dos indivíduos submetidos ao transplante, a fim de estabelecer suas indicações, tipos de cirurgia e estimativa de sucesso.

A pesquisa foi realizada na Unidade da Visão do Hospital Universitário Bettina Ferro de Souza da UFPA.

A população-alvo foi formada por pacientes submetidos a transplante de córnea nos anos de 2019 e 2020, no Hospital Universitário Bettina Ferro de Souza.

Foram incluídos pacientes submetidos a transplante de córnea no serviço em questão; de ambos os sexos e de qualquer faixa etária. Foram excluídos pacientes cujos prontuários possuem dados inconclusivos.

Foram analisadas as fichas de descrição cirúrgica dos prontuários dos indivíduos transplantados, sendo feita seleção de dados específicos de caráter social e clínico, para posterior análise, a fim de contemplar os objetivos da pesquisa. A coleta foi realizada pelos pesquisadores, por meio de instrumento de coleta de dados próprio, após autorização do Hospital Universitário Bettina Ferro de Souza, em datas pré-agendadas. Os dados coletados foram os seguintes: idade, sexo, procedência do tecido doado, lateralidade, indicação, tipo de procedimento, diagnóstico, comorbidades oculares associadas, tamanho do botão corneano, técnica cirúrgica, tipo de anestesia, ocorrência de complicações e estimativa de sucesso.

Foram empregados documentos que assegurassem os aspectos éticos da pesquisa, dentre eles o Termo de Compromisso de Utilização de Dados (TCUD), o aceite de orientação e o aceite da instituição.

Os dados foram analisados e, posteriormente, tratados por meio do programa Microsoft Office Excel 2017. As variáveis numéricas foram analisadas com auxílio da estatística descritiva no programa Bioestat versão 5.3 (frequência, porcentagem, média). As informações descritivas foram analisadas qualitativamente.

O projeto foi submetido à Plataforma Brasil para avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) responsável. Após aprovação, a coleta foi iniciada. Todos os dados que fazem parte desta pesquisa foram estudados segundo as normas da Declaração de Helsinque e o Código de Nuremberg, sendo respeitadas as Normas de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (CNS 466/12) do Conselho Nacional de Saúde.

RESULTADOS

Foram coletados dados de 167 pacientes que realizaram transplante de córnea entre 2019 e 2020 no Hospital Universitário Bettina Ferro de Souza da UFPA. Destes, 105 foram no ano de 2019, mostrando o impacto da pandemia da COVID-19 na realização do transplante de córnea. Em todo o território nacional, em 2020, houve redução de ٤١,٥٪ do total de cirurgias eletivas. ( ¹⁴ ) No presente estudo, em relação à associação do transplante de córnea a outras afecções oftalmológicas, foi observado que 15% dos pacientes apresentavam glaucoma, e 65,8% possuíam vascularização corneana em diferentes níveis. Dos pacientes investigados, 38% (64 casos) tinham antecedente de cirurgia oftalmológica. A média de idade foi 45 anos (29 a 90 anos), sendo que, analisando a idade, por sexo, as mulheres apresentaram média mais elevada (48 anos; 32 a 88 anos) em relação aos homens (41 anos; 29 a 90 anos), com a maior parte dos tecidos doados no Estado do Pará (56,2%), sendo que os tecidos provenientes de outros Estados em sua maioria vieram do Ceará (25,1%), conforme figura 1 .

Figura 1
Frequência absoluta da doação de córnea considerando a procedência.

Três prontuários não continham informação registrada sobre a procedência do tecido doado, mas não houve prejuízo à pesquisa pela insignificância estatística.

Em relação ao olho operado, não houve diferença significante entre a lateralidade do órgão, mas a maioria foi no olho direito (51,4%). Não houve nenhum caso relatado de transplante em ambos os olhos, e havia um prontuário sem o registro de lateralidade.

Quanto à indicação, a maioria se tratava de transplantes ópticos (77,2%), seguidos dos tectônicos (17,3%), destacando-se, nesse cenário, os procedimentos eletivos.

Conforme demonstrado na figura 2 , quanto ao tipo de patologias indicadoras, destacaram-se as distrofias corneanas (40,7%), seguidas de leucomas de qualquer etiologia (25,1%) e da perfuração do globo ocular (18,5%).

Figura 2
Frequência absoluta das patologias corneanas de indicação para transplante de córnea entre 2019 e 2020.

Em relação às características cirúrgicas, o tamanho do botão corneano do tecido do doador obteve maior frequência na variação entre 7,25mm e 9,00mm, enquanto dos receptores foram mais frequentes entre 7,00mm e 8,5mm. Foram penetrantes 160 transplantes (96%), enquanto apenas um (0,5%) foi lamelar, conforme a figura 3 . O tipo de sutura predominante foi a interrompida, com a mesma proporção de 96% dos casos, e a anestesia mais utilizada foi a local, feita em 94% dos pacientes.

Figura 3
Técnica cirúrgica aplicada em pacientes que realizaram transplante de córnea entre 2019 e 2020.

DISCUSSÃO

O Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010 demonstrou que a deficiência visual é a deficiência física mais prevalente no Brasil, com 35,7 milhões de pessoas numa população de 190 milhões de habitantes. Nesse contexto, o baixo quantitativo de pessoas transplantadas observado no presente estudo demonstra uma das problemáticas observadas no transplante de córnea no Estado do Pará: o elevado tempo de espera em fila. Apesar do aumento do número de transplantes de córneas no Brasil, ainda existem discrepâncias regionais que necessitam ser resolvidas. ( ¹⁵ , ¹⁶ ) Dentre os pacientes do estudo, percebe-se que o público masculino lidera os transplantes ocorridos no Pará, o que coincide com o cenário de estudo sobre o perfil clínico e epidemiológico de pacientes transplantados no Rio Grande do Norte entre 2010 e 2014 ( ¹⁷ ) . Na presente pesquisa, as causas de indicação distróficas sobrepujam as infecciosas, o que acompanha o cenário nacional na questão da indicação clínica. ( ¹⁷ , ¹⁸ )

Observa-se que um quantitativo expressivo de tecidos oculares dos transplantes de córnea do Pará são provenientes do Ceará, o que zerou a fila de espera de transplantes de córnea em 2016, depois de 34 anos realizando esse procedimento, iniciado em 1982. Fatores relacionados ao aumento do número de procedimentos e à implementação de mais bancos de olhos foram apontados como causas do êxito no alcance da fila zerada naquele estado. ( ¹⁹ )

Sabe-se que fatores observados na pesquisa, como a vascularização corneana e a falência prévia, relacionam-se com a rejeição do tecido transplantado, podendo justificar resultados menos promissores nesses procedimentos. As técnicas cirúrgicas de ceratoplastia lamelar, raras no presente estudo, apresentam potenciais melhores resultados, por gerarem menos complicações. ( ²⁰ )

Os dados sobre o transplante de córnea no Pará nos últimos anos mostram que o estado realiza menos transplantes do que o necessário para o alcance da meta da fila zero. No ano de 2014, eram necessários 745 transplantes e foram realizados apenas 303 (40%), enquanto o estado de Pernambuco, no mesmo ano, apresentou necessidade de 847 transplantes e realizou 967, transplantando mais do que o previsto. Esses dados podem indicar que o Pará possui importantes nós críticos no processo do transplante de córnea, destacando-se o elevado tempo de espera em fila, decorrente da reduzida oferta de tecidos doados. ( ¹ )

Por meio do levantamento de dados sobre o perfil dos pacientes transplantados em diferentes centros de referência, é possível comparar e analisar as variáveis que determinam os mais diversos desfechos envolvendo o transplante de córnea. No Brasil, o resultado e a estimativa de sucesso dos procedimentos apresentam variações regionais. Em estudo realizado no estado do Pará em 2010, ( ⁶ ) a ceratopatia bolhosa foi considerada a principal indicação para o transplante de córnea, seguida de leucoma e úlcera corneana, resultado divergente do encontrado no presente estudo, que refere a distrofia corneana como causa principal. Esse resultado pode representar uma transição epidemiológica do perfil de transplantes de causas infecciosas para causas crônicas no Estado do Pará. ( ¹ )

Em relação à pandemia da COVID-19, sua disseminação restringiu significativamente os programas de transplante no mundo, não somente com tecidos corneanos. Observa-se, nesse período, no Brasil, queda também no volume de transplantes de rim, fígado, coração, pulmão e pâncreas. ( ⁹ , ²¹ )

A redução do volume de procedimentos durante a pandemia é multifatorial, relacionando-se com o distanciamento social, a redução do número de leitos hospitalares, a redução dos recursos humanos em saúde e as incertezas dos resultados, levando os centros transplantadores a indicar somente as cirurgias classificadas como situação de urgência, sendo que os resultados do presente estudo apontam no Hospital Universitário Bettina Ferro de Souza o perfil cirúrgico do período avaliado com predominância de procedimentos em caráter eletivo, com objetivo óptico. ( ²² )

Com relação ao transplante de córnea, doadores em potencial falecidos com COVID-19 ativa, teste de reação em cadeia da polimerase via transcriptase reversa (RT-PCR) positivo para o coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2) e síndrome respiratória aguda grave, sem etiologia definida ou com teste laboratorial indefinido, receberam contraindicação absoluta à doação do tecido, reduzindo significativamente a oferta para transplantes. ( ²³ )

A pandemia da COVID-19 gerou também algumas modificações no processo de captação de tecidos para transplante de córnea, passando o exame de RT-PCR para SARS-CoV-2 a ser obrigatório para todos os doadores em diversos centros de captação, o que certamente contribui para o aumento da burocracia no processo, no entanto, a exigência não pode ser modificada por se tratar de procedimento de segurança. ( ²³ )

O conhecimento do perfil clínico e cirúrgico dos pacientes submetidos a transplante de córnea é muito importante para identificar os grupos de risco e, por meio desses dados, elaborar estratégias de prevenção e promoção da saúde ocular, reduzindo o número de indicações de transplante de córnea e contribuindo com a prevenção da cegueira.

CONCLUSÃO

O conhecimento dos dados dos transplantes é importante para considerar que o perfil clínico e cirúrgico dos pacientes do hospital estudado aproxima-se da realidade nacional, sobretudo na indicação clínica, sugerindo uma transição desse perfil de indicação por causas infecciosas para indicação por causas crônicas distróficas.

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• Instituição de realização do trabalho: Hospital Universitário Bettina Ferro de Souza, da Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil.

• Fonte de auxílio à pesquisa: trabalho não financiado.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  24 Out 2022
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  13 Abr 2022
• Aceito
  12 Ago 2022