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Por que as pessoas ainda ficam cegas pelo glaucoma. A metáfora do rinoceronte cinza

Why do people still go blind from glaucoma. The Gray Rhino Metaphor

O rinoceronte cinzento é uma metáfora para as ameaças que podemos ver e reconhecer, mas contra as quais não fazemos nada. Por que, afinal, continuamos ignorando as ameaças mais óbvias?

Em 2003, existiam mais de 23 sinais oftalmoscópicos de neuropatia óptica glaucomatosa descritos, o que dificultava muito a identificação deles durante um exame de fundo de olho. Também não havia uma diferenciação entre os sinais que eram importantes e os que não eram, gerando muita discrepância para o diagnóstico e na metodologia das pesquisas sobre a doença. Criei, então, o programa Early Diagnostic Program (EDP), que ficou conhecido como “as cinco regras para o diagnóstico do glaucoma”. Nesse programa, selecionei os seis mais importantes sinais oftalmoscópicos de lesão glaucomatosa dos 23 sinais existentes, o que tornou os outros 17 sinais desnecessários, pois nada acrescentavam, além de serem fatores de confusão para o diagnóstico e as pesquisas no glaucoma. Esses seis sinais são frequentemente referidos nas publicações como típicos de neuropatia óptica glaucomatosa, ou “a glaucomatous appearing optic disc”. Apresentado inicialmente na França, o programa tornou-se mundialmente conhecido e reconhecido como um dos meios mais importantes de diagnosticar o glaucoma, sendo utilizado em vários países, como pode se observar na figura 1. A figura 2 mostra esses seis sinais de lesão glaucomatosa. Devido a esse programa e por outras ações, recebi o prêmio da World Glaucoma Association (WGA), em Paris, e da American Glaucoma Society (AGS), em Nova Iorque.

Figura 1
Alguns países em que o Early Diagnostic Program foi implantado.

Figura 2
Sinais oftalmoscópicos de lesão glaucomatosa mais importantes para o diagnóstico de glaucoma selecionados dos 23 existentes na época e usados mundialmente.

Digno de nota é que o defeito localizado na camada de fibras nervosas, um dos sinais, foi por mim nominado de sinal de Hoyt, em homenagem a William F. Hoyt, que o descreveu. Esse fato consta em sua biografia.(11. Fletcher WA, Imes RK. Acute idiopathic blind spot enlargement and acute zonal occult outer retinopathy: Potential Mimics of neuro-ophthalmic disease. J Neuroophthalmol. 2020;40 Suppl 1:S43-S50.)

Contudo, a incidência de cegueira causada pelo glaucoma, por meio da detecção mais precoce da doença a partir do EDP e mesmo por meio dos novos equipamentos de última geração, como a tomografia de coerência óptica (OCT), não resultou em diminuição significativa da cegueira causada pela doença. Na realidade, desde 2001, 15% dos pacientes com glaucoma evoluem para a cegueira em um período de 7 a 15 anos.(22. Kwon YH, Kim CS, Zimmerman MB, Alward WL, Hayreh SS. Rate of visual field loss and long-term visual outcome in primary open-angle glaucoma. Am J Ophthalmol. 2001;132(1):47-56.

3. Chen PP. Blindness in patients with treated open-angle glaucoma. Ophthalmology. 2003;110(4):726-33.
-44. Malihi M, Moura Filho ER, Hodge DO, Sit AJ. Long-term trends in glaucoma-related blindness in Olmsted County, Minnesota. Ophthalmology. 2014;121(1):134-41.)

Em 2014, na Mayo Clinic, 15% dos pacientes dos pacientes com glaucoma tratados ficaram cegos de um olho em 7 anos e 27% em 20 anos de seguimento.

Apesar de décadas de pesquisa sobre o tratamento do glaucoma, a história natural da progressão do campo visual glaucomatoso em pacientes não tratados e tratados permanece incerta:

  • - Hospital John Hopkins (2018): olhando para estatísticas, cerca de 15% (um em seis ou sete) dos pacientes tratados com glaucoma ficarão cegos de pelo menos um olho. Isso é uma tragédia. Sem dúvida, as chances de um paciente ficar cego é a mesma de uma pessoa morrer praticando a roleta russa com uma arma cujo carregador tem sete lugares para balas em uma arma com uma única bala. Essa comparação nos dá a percepção do pouco controle que temos sobre a evolução da doença e de sua gravidade.

  • - Glaucoma Foundation (29 de outubro de 2017): infelizmente, não é possível estimar as chances de manter a visão de uma pessoa depois de ter sido diagnosticada com glaucoma.

  • - Robert Fechner, Professor e Chairman da Glaucoma University Syracuse, em Nova Iorque, maio de 2018: “uma das maiores lacunas na compreensão do glaucoma é que realmente não sabemos o que está acontecendo em termos de pressão intraocular (PIO) durante o dia.”

A diretriz da European Glaucoma Society estipula que o objetivo do tratamento do glaucoma é manter a qualidade de vida do paciente durante toda sua vida a um custo sustentável e que determinar a taxa de progressão do campo visual é o novo padrão no tratamento do glaucoma.(55. . European Glaucoma Society Terminology and Guidelines for Glaucoma. 4th ed. Chapter 3: Treatment principles and option sSupported by the EGS Foundation. Br J Ophthalmol. 2017; 101(6):130–95.)

Apesar de ser uma orientação teoricamente válida, na prática, é possível prever com a precisão necessária a qualidade de vida que o paciente desejará ter no futuro (por exemplo, jogar tênis ou esquiar ou jogar cartas etc.) e o tempo de vida do paciente?

A afirmação de que determinar a taxa de progressão do campo visual é o novo padrão no tratamento do glaucoma deve ser questionada. O glaucoma pré-perimétrico, no qual há perda média de aproximadamente 224 mil fibras nervosas de 973 mil de uma pessoa normal, não é levado em consideração nessa diretriz, visto que não há defeito de campo visual nesses pacientes a despeito de uma perda significativa de células ganglionares.

Além do mais, as células ganglionares da retina transmitem imensa quantidade de informação visual da retina para o cérebro e possuem um metabolismo extremamente ativo.

O processamento visual é responsável por 44% do consumo de energia do cérebro. Por exemplo, ao abrir os olhos para uma cena visual complexa, o consumo de glicose no córtex visual aumenta em até 50%.(66. Press LJ. Energy efficiency and the visual system. The Visionhelp Blog. [cited 2022 Jul 8]. Available from: https://visionhelp.wordpress.com/2016/02/10/energy-efficiency-and-the-visual-system/
https://visionhelp.wordpress.com/2016/02...
)

É razoável aceitar a perda de centenas de milhares de células ganglionares baseada apenas no campo visual que é usado para testar uma função visual rudimentar como branco sobre branco?

Existe, no glaucoma, importante atrofia do corpo geniculado lateral, responsável por determinar a posição de objetos em relação ao plano principal, direcionar a atenção para informações mais importantes fornecidas pela visão e refinar os campos receptivos.(77. Yücel YH, Zhang Q, Gupta N, Kaufman PL, Weinreb RN. Loss of neurons in magnocellular and parvocellular layers of the lateral geniculate nucleus in glaucoma. Arch Ophthalmol. 2000;118(3):378-84.)

Essa perda não deveria ser evitada e, para tanto, levada em consideração na indicação do tratamento do paciente?

Há inúmeras dificuldades nas atividades dos pacientes associados ao glaucoma. A leitura é uma das queixas mais frequentes entre os pacientes com glaucoma; na marcha, a base de apoio é mais ampla; no equilíbrio, ocorrem pior estabilidade postural e maior oscilação; no reconhecimento facial, o que pode ser responsável pela diminuição do engajamento social e redução da qualidade de vida; na condução, pois os pacientes com glaucoma têm maior movimento da cabeça e maior varredura visual. Há também um aumento na frequência de acidentes de carro e no número de quedas e fraturas. Também, são mais frequentes a depressão e a ansiedade.

Possivelmente, existem inúmeras outras dificuldades ou deficiências desconhecidas.

Infelizmente, a métrica para avaliar a progressão da doença, com a OCT e o campo visual, instrumentos mais usados para esse fim, não tem a precisão adequada para o seguimento da doença, que é a principal causa de cegueira irreversível no mundo.

A espessura da camada de fibras nervosas peripapilar na OCT varia de 80 a 100μm, com efeito floor (a partir desse valor, as alterações estruturais não são mais detectadas) de aproximadamente 50μm em indivíduos saudáveis. A variabilidade entre visitas de 5μm representa mais de 10% da faixa da camada de fibras nervosas mensurável, o que poderia reduzir consideravelmente o valor da OCT para detectar mudanças.(88. Tatham AJ, Medeiros FA. Detecting structural progression in glaucoma with optical coherence tomography. Ophthalmology. 2017;124(12S):S57-S65.)

Para se detectar uma pequena piora no campo visual (1/4 do SD da variabilidade MD) com 80% de poder são necessários 19 exames de campos visuais.(99. Chauhan BC, Garway-Heath DF, Goñi FJ, Rossetti L, Bengtsson B, Viswanathan AC, et al. Practical recommendations for measuring rates of visual field change in glaucoma. Br J Ophthalmol. 2008;92(4):569-73.)

A avaliação da progressão do glaucoma pelos meios disponíveis atuais é imprecisa, bem como o controle da PIO, fator mais importante e o único modificável no tratamento da doença.

Inúmeras publicações mostram que o pico pressórico, a pressão ocular mais elevada do dia, é o parâmetro de pressão ocular mais importante na progressão da doença. Em 14% dos pacientes, ele é 12mmHg mais elevado que a pressão mais alta medida no consultório. Também 52% dos picos pressóricos ocorrem fora do horário de consultas.(1010. Hughes E, Spry P, Diamond J. 24-hour monitoring of intraocular pressure in glaucoma management: a retrospective review. J Glaucoma. 2003;12(3):232-6.) Portanto, a tentativa de detecção do pico pressórico por várias medidas de PIO durante o dia ou em dias alternados tem pouca chance de detectar a pressão mais elevada do paciente. Por esse motivo, o Professor Robert Weinreb, durante o congresso da WGA em 2021, alertou que tentar controlar o glaucoma com medidas isoladas de pressão é um absurdo.

Apesar de existirem inúmeras publicações mostrando que o teste de sobrecarga hídrica (TSH) é o mais barato e fácil de ser realizado para estimar o pico pressórico e de ter sido aprovado pelo serviço de saúde publica da Inglaterra (Figura 3) com as finalidades de avaliar a necessidade de se iniciar o tratamento, de mudá-lo se for o caso, ou mesmo para indicar cirurgias, esse teste, por diversa razões, não é utilizado rotineiramente por vários oftalmologistas.

Figura 3
Recomendações do National Health System da Inglaterra.

Uma razão referida com frequência é a falta de tempo do médico em sua prática clínica.

A falta de fidelidade ao tratamento, apesar de contribuir para a cegueira, poderia ser minimizada pela melhor orientação dada ao paciente; pelo uso de colírios mais baratos e com menos efeitos colaterais; pela realização da trabeculoplastia, ou ainda, se necessário, com cirurgias.

As novas cirurgias, chamadas minimally invasive glaucoma surgery (MIGS), embora possam trazer benefício para o paciente, dificilmente terão papel significativo na prevenção da cegueira pelo glaucoma, devido à baixa redução pressórica que a maioria delas proporcionam, que é inferior a da trabeculectomia.

Deve-se tratar a doença sabendo de sua gravidade e das perdas associadas que ela pode acarretar, não somente no campo visual, mas em todas as funções do corpo humano associadas à visão. Tem-se que controlar melhor a pressão ocular, diminuindo intensidade, frequência e duração dos picos pressóricos, e mantê-los dentro dos limites da pressão alvo do paciente. Deve-se monitorar o glaucoma eficientemente.

Devido à irreversibilidade da lesão glaucomatosa, é importante mudar o paradigma do tratamento da doença, procurando evitar sua progressão, ao invés de somente se intensificar o tratamento quando esta já ocorreu.(1111. Susanna R Jr, De Moraes CG, Cioffi GA, Ritch R. Why do people (Still) go blind from glaucoma? Transl Vis Sci Technol. 2015;4(2):1.)Se a progressão ocorrer, a redução da pressão ocular deve ser mais intensa e maior será a possibilidade de o paciente evoluir para a cegueira ou com piora da qualidade de vida.

Gostaria de terminar com o prefácio de meu livro Simplificando o Diagnóstico e Tratamento do Glaucoma, escrito pelo Professor Ivan Goldberg(1212. Goldberg I. Prefácio. In: Susanna Junior R. Simplificando o glaucoma. Simplificando o diagnóstico e tratamento do glaucoma. São Paulo; Cultura Médica; 2019.), da Universidade de Sidney, na Austrália: “É perturbador que metade (ou mais) das pessoas do mundo que têm glaucoma nunca sejam diagnosticadas; é trágico que o glaucoma seja a principal causa de cegueira irreversível no mundo, quando a maior parte dessa miséria poderia ter sido evitada por diagnóstico e tratamento adequados. Não estamos fazendo bem nosso trabalho; há claramente muito a aprender e muito a fazer”.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Fletcher WA, Imes RK. Acute idiopathic blind spot enlargement and acute zonal occult outer retinopathy: Potential Mimics of neuro-ophthalmic disease. J Neuroophthalmol. 2020;40 Suppl 1:S43-S50.
  • 2
    Kwon YH, Kim CS, Zimmerman MB, Alward WL, Hayreh SS. Rate of visual field loss and long-term visual outcome in primary open-angle glaucoma. Am J Ophthalmol. 2001;132(1):47-56.
  • 3
    Chen PP. Blindness in patients with treated open-angle glaucoma. Ophthalmology. 2003;110(4):726-33.
  • 4
    Malihi M, Moura Filho ER, Hodge DO, Sit AJ. Long-term trends in glaucoma-related blindness in Olmsted County, Minnesota. Ophthalmology. 2014;121(1):134-41.
  • 5
    . European Glaucoma Society Terminology and Guidelines for Glaucoma. 4th ed. Chapter 3: Treatment principles and option sSupported by the EGS Foundation. Br J Ophthalmol. 2017; 101(6):130–95.
  • 6
    Press LJ. Energy efficiency and the visual system. The Visionhelp Blog. [cited 2022 Jul 8]. Available from: https://visionhelp.wordpress.com/2016/02/10/energy-efficiency-and-the-visual-system/
    » https://visionhelp.wordpress.com/2016/02/10/energy-efficiency-and-the-visual-system/
  • 7
    Yücel YH, Zhang Q, Gupta N, Kaufman PL, Weinreb RN. Loss of neurons in magnocellular and parvocellular layers of the lateral geniculate nucleus in glaucoma. Arch Ophthalmol. 2000;118(3):378-84.
  • 8
    Tatham AJ, Medeiros FA. Detecting structural progression in glaucoma with optical coherence tomography. Ophthalmology. 2017;124(12S):S57-S65.
  • 9
    Chauhan BC, Garway-Heath DF, Goñi FJ, Rossetti L, Bengtsson B, Viswanathan AC, et al. Practical recommendations for measuring rates of visual field change in glaucoma. Br J Ophthalmol. 2008;92(4):569-73.
  • 10
    Hughes E, Spry P, Diamond J. 24-hour monitoring of intraocular pressure in glaucoma management: a retrospective review. J Glaucoma. 2003;12(3):232-6.
  • 11
    Susanna R Jr, De Moraes CG, Cioffi GA, Ritch R. Why do people (Still) go blind from glaucoma? Transl Vis Sci Technol. 2015;4(2):1.
  • 12
    Goldberg I. Prefácio. In: Susanna Junior R. Simplificando o glaucoma. Simplificando o diagnóstico e tratamento do glaucoma. São Paulo; Cultura Médica; 2019.
  • Fonte de auxílio à pesquisa: trabalho não financiado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    6 Jul 2022
  • Aceito
    8 Jul 2022
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