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Úlcera de córnea: estudo retrospectivo de casos atendidos no Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Espírito Santo

Resumos

Objetivo:

Identificar os principais agentes etiológicos das úlceras de córnea atendidas no principal centro de referência para esta moléstia no estado do Espírito Santo (Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes – HUCAM).

Métodos:

Estudo retrospectivo de prontuários, identificados por meio dos registros do laboratório de microbiologia do HUCAM, dos casos de úlcera de córnea submetidos à coleta de material para análise microbiológica no período de janeiro de 2009 a junho de 2013.

Resultados:

Dos 398 casos foram estudados e o resultado da cultura foi positivo em 60% e negativo em 40% dos casos. A bacterioscopia foi positiva em 28%, negativa em 61% e não foi realizada em 11%. Dentre o total de exames, 16,3% foram classificados como material insuficiente para análise. O exame microbiológico, incluindo bacterioscopia e cultura, foi positivo em 250 exames (62,8%), sendo identificado bactérias em 48% dos casos, fungos em 17,6% e protozoários em 0,8%.

Conclusão:

Este trabalho identificou os principais agentes etiológicos envolvidos na UC atendidas no HUCAM. Desta forma, fornecemos subsídios para um melhor o diagnóstico presuntivo e condução mais apropriada do tratamento empírico inicial, quando indicado. As bactérias Gram-positivas e fungos filamentosos apresentam papel de destaque na etiologia das UC no ES.

Úlcera da córnea; infecções oculares


Purpose:

To identify the major etiological agents of UC in the main referral center for this disease in the state of Espírito Santo (Hospital Universitario Cassiano Antonio de Moraes – HUCAM).

Methods:

This is a retrospective study of UC cases that underwent microbiological analysis from january 2009 to june 2013 at HUCAM.

Results:

Three hundred ninety-eight cases were studied. Microbiological cultures were positive in 60% and negative in 40% of cases. The Gram stain was positive in 28%, negative in 61% and was not performed in 11%.Among the total number of tests, 16.3% were classified as insufficient material for analysis.The microbiological examination, including gram stain and culture, was positive in 250 tests (62.8%). It was identified bacteria in 48%, fungi in 17.6% and protozoa in 0,8% of cases.

Conclusions:

The study identified the main etiological agents involved in the UC at HUCAM. Hence, it provides data that can help physicians to do a better presumptive diagnosis and a more appropirate initial empirical treatment when indicated. Gram positive bacteria and filamentous fungi have a prominent role in the etiology of UC in ES.

Corneal ulcer; Eye infections


INTRODUÇÃO

Úlcera de córnea (UC), ou ceratite infecciosa, é uma urgência oftalmológica. Pode ser compreendida pela perda da integridade do epitélio da córnea, com infiltração do estroma subjacente por leucócitos, associados a sinais inflamatórios. A lesão corneana ocorre tanto por mecanismos relacionados ao agente etiológico (fungos, bactérias, vírus ou protozoários) quanto por mecanismos imunológicos.

Estudos comparando a etiologia e incidência das UC ainda são limitados, mas sabe-se que há importante variação de acordo com o continente, país e região(11 Leck AK, Thomas PA, Hagan M, Kaliamurthy J, Ackuaku E, John M, et al. Aetiology of suppurative corneal ulcers in Ghana and south India, and epidemiology of fungal keratitis. Br J Ophthalmol. 2002;86(11):1211-5.

2 Karsten E, Watson SL, Foster LJ. Diversity of Microbial Species Implicated in Keratitis: A Review. Open Ophthalmol J. 2012;6: 110-24.
-33 Shah A, Sachdev A, Coggon D, Hossain P. Geographic Variations in Microbial Keratitis: An analysis of the Peer-Reviewed Literature. Br J Ophthalmol. 2011;95(6):762-7.). A epidemiologia das UC não é bem definida em virtude da maioria dos dados advirem de hospitais de referência, limitando o conhecimento de sua real representatividade na população geral. Estima-se que em países em desenvolvimento ocorram 1,5 a 2 milhões de úlceras de córnea por ano(22 Karsten E, Watson SL, Foster LJ. Diversity of Microbial Species Implicated in Keratitis: A Review. Open Ophthalmol J. 2012;6: 110-24.), levando a um grande número de casos de opacidades corneanas que, por sua vez, chegam a representar a segunda causa de cegueira prevenível em certos países tropicais(11 Leck AK, Thomas PA, Hagan M, Kaliamurthy J, Ackuaku E, John M, et al. Aetiology of suppurative corneal ulcers in Ghana and south India, and epidemiology of fungal keratitis. Br J Ophthalmol. 2002;86(11):1211-5.).

O agente infeccioso é identificado por meio de análise microbiológica do raspado da lesão(11 Leck AK, Thomas PA, Hagan M, Kaliamurthy J, Ackuaku E, John M, et al. Aetiology of suppurative corneal ulcers in Ghana and south India, and epidemiology of fungal keratitis. Br J Ophthalmol. 2002;86(11):1211-5.), devendo sempre ser feito cultura com antibiograma. No entanto, muitas vezes o tratamento empírico com antibióticos de amplo espectro tópicos, baseado na anamnese e nas características clínicas da lesão, deve ser iniciado para não atrasar o controle do processo infeccioso. O prévio conhecimento do perfil epidemiológico das úlceras infecciosas na região pode auxiliar bastante na escolha deste tratamento empírico. Em todo o mundo foram identificados 232 espécies de micro-organismos responsáveis por UC(22 Karsten E, Watson SL, Foster LJ. Diversity of Microbial Species Implicated in Keratitis: A Review. Open Ophthalmol J. 2012;6: 110-24.). Portanto, a análise microbiológica em hospitais de referência é de suma importância para o conhecimento dos agentes etiológicos mais prevalentes da região, além de fornecer importantes informações quanto às sensibilidades desses patógenos aos antiobióticos existentes(44 CBO - Conselho Brasileiro de Oftalmologia; Coleção CBO: Série Oftalmologia Brasileira. São Paulo:Guanabara; 2013.).

O presente estudo tem como objetivo estudar a epidemiologia da úlcera de córnea no Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes (HUCAM) a fim de fornecer subsídios para facilitar a condução clínica pelos médicos assistentes na região.

MÉTODOS

O HUCAM é considerado referência no estado do Espírito Santo para diagnóstico etiológico e tratamento de úlceras corneanas. Muitos pacientes atendidos nesse serviço são provenientes do interior do Espírito Santo e até mesmo de estados vizinhos como Bahia e Minas Gerais. No HUCAM, além de equipe com grande experiência no tratamento da UC, contamos com laboratório microbiológico e banco de olhos, permitindo a condução de casos complicados que evoluem para transplante de córnea.

Foi realizado um estudo retrospectivo de todos os casos de úlcera de córnea que foram submetidos à coleta de material para análise microbiológica no HUCAM, no período de janeiro de 2009 a junho de 2013. Os dados analisados foram obtidos a partir do livro de registro do setor de microbiologia no período em questão. Foram incluídos todos os casos que continham úlcera de córnea em sua descrição, totalizando 398 pacientes. A coleta de material foi realizada segundo a rotina do serviço de oftalmologia do referido hospital, que inclui: interrupção do uso de ar condicionado na sala de atendimento, anestesia tópica com instilação de colírio cloridrato de benoxinato a 0,4%, colocação de blefarostato, coleta de material dos bordos e do fundo da lesão ulcerosa com espátula de Kimura utilizando lâmpada de fenda, preparação de duas lâminas para realização de pesquisa direta e coloração pelo método de Gram, semeadura em BHI (Brain Heart Infusion), meio de ágar-sangue, ágar-chocolate e Sabouraud.

RESULTADOS

Dos 398 pacientes estudados, 66,4% (264) eram do sexo masculino e 33,6% (134) do sexo feminino. O resultado da cultura foi positivo em 60% e negativo em 40% dos casos.A bacterioscopia foi positiva em 28%, negativa em 61% e não foi realizada em 11%. Dentre o total de exames, 16,3% foram classificados como material insuficiente para análise. Este percentual de 16,3% no grupo em que a bacterioscopia não foi feita, justifica parcialmente o motivo do exame não ter sido realizado.

Os exame microbiológicos, incluindo bacterioscopia e cultura, foram positivos em 250 exames (62,8%), sendo identificado bactérias em 48% dos casos, fungos em 17,6% e protozoários em 0,8%. A distribuição dos resultados finais está resumido na tabela 1.

Tabela 1
Resultado da análise microbiológica dos raspados das úlceras de córneas infecciosas

Com relação às úlceras fúngicas, foram identificadas um número maior de casos nos meses de junho (nove casos) e dezembro (dez casos). Os demais meses variaram de dois a seis casos no total, conforme mostrado no gráfico 1.

Gráfico 1
Distribuição dos casos de úlcera fúngica segundo meses do ano, período de janeiro de 2009 a dezembro de 2012

A tabela 2 demonstra as espécies de micro-organismos encontradas neste estudo.

Tabela 2
Micro-organismos identificados na análise microbiológica dos raspados das úlceras de córneas infecciosas

DISCUSSÃO

Em todo o mundo, a ceratite infecciosa é causa de grande morbidade e baixa acuidade visual por opacidade corneana, perfuração ocular e endoftalmite(11 Leck AK, Thomas PA, Hagan M, Kaliamurthy J, Ackuaku E, John M, et al. Aetiology of suppurative corneal ulcers in Ghana and south India, and epidemiology of fungal keratitis. Br J Ophthalmol. 2002;86(11):1211-5.

2 Karsten E, Watson SL, Foster LJ. Diversity of Microbial Species Implicated in Keratitis: A Review. Open Ophthalmol J. 2012;6: 110-24.
-33 Shah A, Sachdev A, Coggon D, Hossain P. Geographic Variations in Microbial Keratitis: An analysis of the Peer-Reviewed Literature. Br J Ophthalmol. 2011;95(6):762-7.,55 Mattos FB, Agostini FS, Mattos MB, Batista DMP. Úlcera de córnea por Pseudomonas stutzeri. Rev Bras Oftalmol. 2012;71(2):111-4.,66 Zeschau A, Balestrin IG, Stock RA, Bonamigo EL. Indicações de ceratoplastia: estudo retrospectivo em um Hospital Universitário. Rev Bras Oftalmol. 2013;72(5):316-20.). A gravidade da doença está relacionada à agressividade do agente, à adesão do paciente ao tratamento e à demora no início do tratamento. Esta última geralmente associada à dificuldade de acesso a serviços de saúde especializados, comuns em países menos desenvolvidos(22 Karsten E, Watson SL, Foster LJ. Diversity of Microbial Species Implicated in Keratitis: A Review. Open Ophthalmol J. 2012;6: 110-24.,77 Kara-Junior N, Zanato MC, Vilaca V, Kara-José N. Aspectos médicos e sociais no atendimento oftalmológico de urgência. Arq Bras Oftalmol. 2001; 64(1):39-43.).

O atraso no início do tratamento específico de uma UC pode acarretar em complicações oculares graves como descemetocele, perfuração e endoftalmite. A identificação correta do agente etiológico é de suma importância para a escolha do tratamento específico de cada caso. Dessa forma, a análise da epidemiologia e periodicidade dos casos de UC auxilia o oftalmologista a definir qual o agente mais provável e a escolher a terapia inicial quando a análise microbiológica não está disponível no momento do atendimento ou enquanto aguarda-se o resultado da cultura.

Nesse trabalho foi encontrado uma média de atendimento de portadores de úlcera de córnea de 7,5 por mês, com uma predominância do sexo masculino em relação ao feminino (66,3% contra 33,7%) conforme outros estudos na literatura(88 Sacramento RS, Castro L, Freitas D, Branco BC, Lima ALH, Vieira L, et al. Estudo dos fatores epidemiológicos e influentes na ceratite microbiana em serviço universitário. Rev Bras Oftalmol. 2005;64(1):7-13.,99 Saha S, Banerjee D, Khetan A, Sengupta J. Epidemiological profile of fungal keratitis in urban population of West Bengal, India. Oman J Ophthalmol. 2009;2(3):114-8.). Sacramento RS e cols., por exemplo, receberam 132 pacientes com UC, sendo 59,1% homens e 40,9% mulheres; enquanto que, dos 74 pacientes de Saha e cols., 65% eram homens e 35% mulheres(88 Sacramento RS, Castro L, Freitas D, Branco BC, Lima ALH, Vieira L, et al. Estudo dos fatores epidemiológicos e influentes na ceratite microbiana em serviço universitário. Rev Bras Oftalmol. 2005;64(1):7-13.,99 Saha S, Banerjee D, Khetan A, Sengupta J. Epidemiological profile of fungal keratitis in urban population of West Bengal, India. Oman J Ophthalmol. 2009;2(3):114-8.). Essa diferença deve-se, provavelmente, pelo fato de os homens estarem mais expostos a traumas oculares que as mulheres, principalmente entre trabalhadores rurais(99 Saha S, Banerjee D, Khetan A, Sengupta J. Epidemiological profile of fungal keratitis in urban population of West Bengal, India. Oman J Ophthalmol. 2009;2(3):114-8.). Um estudo na Filadélfia, nordeste dos Estados Unidos, apresentou proporção maior de mulheres (58.3%), porém com um número de casos pequeno (24 no total)(1010 Tanure MA, Cohen EJ, Sudesh S, Rapuano CJ, Laibson PR. Spectrum of fungal keratitis at Wills Eye Hospital, Philadelphia, Pennsylvania. Cornea. 2000;19(3):307-12.). No Nepal, a proporção entre homens e mulheres foi igual(1111 Upadhyay MP, Karmacharya PC, Koirala S, Tuladhar NR, Bryan LE, Smolin G, et al. Epidemiologic characteristics, predisposing factors, and etiologic diagnosis of corneal ulceration in Nepal. Am J Ophthalmol. 1991;111(1):92-9.).

Este estudo registrou uma positividade de análise microbiológica de 62,8% que, em que pese não ser o ideal, encontra-se em um patamar alto considerando os resultados de outros estudos brasileiros publicados (positividade de 28,86 a 65%)(88 Sacramento RS, Castro L, Freitas D, Branco BC, Lima ALH, Vieira L, et al. Estudo dos fatores epidemiológicos e influentes na ceratite microbiana em serviço universitário. Rev Bras Oftalmol. 2005;64(1):7-13.,1212 Rocha GAN, Silva RF, Lopes MF, Pereira NC, Sousa LB. Principais patógenos e susceptibilidade in vitro antimicrobiana em ceratites bacterianas: Revisão de cinco anos, 2005 a 2009. Arq Bras Oftalmol. 2011;74(1):28-32.) e estrangeiros (positividade de 40 a 80%)(1111 Upadhyay MP, Karmacharya PC, Koirala S, Tuladhar NR, Bryan LE, Smolin G, et al. Epidemiologic characteristics, predisposing factors, and etiologic diagnosis of corneal ulceration in Nepal. Am J Ophthalmol. 1991;111(1):92-9.

12 Rocha GAN, Silva RF, Lopes MF, Pereira NC, Sousa LB. Principais patógenos e susceptibilidade in vitro antimicrobiana em ceratites bacterianas: Revisão de cinco anos, 2005 a 2009. Arq Bras Oftalmol. 2011;74(1):28-32.

13 McLeod SD, Kolahdouz-Isfahani A, Rostamian K, Flowers CW, Lee PP, McDonnell PJ. The role of smears, cultures, and antibiotic sensitivity testing in the management of suspected infectious keratitis. Ophthalmology. 1996;103(1):23-8.

14 Rautaraya B, Sharma S, Kar S, Das S, Sahu SK. Diagnosis and treatment outcome of mycotic keratitis at a tertiary eye care center in eastern India. BMC Ophthalmol. 2011;11:39.

15 Levey SB, Katz HR, Abrams DA, Hirschbein MJ, Marsh MJ. The role of cultures in the management of ulcerative keratitis. Cornea. 1997;16(4):383-6.
-1616 Bharathi MJ, Ramakrishnan R, Meenakshi R, Padmavathy S, Shivakumar C, Srinivasan M. Microbial keratitis in South India: influence of risk factors, climate, and geographical variation. Ophthalmic Epidemiol. 2007;14(2):61-9.). A distribuição dos agentes etiológicos encontrados neste trabalho difere de outros já publicados. Por exemplo, dentre os exames positivos do ES, identificamos bactérias em 191 (76,4%) casos (104 Gram-positivas e 87 Gram-negativas), fungos em 70 (28%) (apenas 3 delas leveduras) e por protozoário com bactéria em dois (0,8%). Por outro lado, em Sorocaba, Rocha e cols. observaram bactérias em 95,33% (73,23% Gram-positivas e 26,77% Gram-negativas) e fungos em apenas 4,67% dos exames(1212 Rocha GAN, Silva RF, Lopes MF, Pereira NC, Sousa LB. Principais patógenos e susceptibilidade in vitro antimicrobiana em ceratites bacterianas: Revisão de cinco anos, 2005 a 2009. Arq Bras Oftalmol. 2011;74(1):28-32.). Já Sacramento RS e cols., em São Paulo, registraram 70,9% de bactérias (coco gram-positivo em 51,1%, bacilo gram-negativo em 34,9% e bacilo gram-positivo em 6,9%), 16,3% por protozoários e 12,8 por fungos(88 Sacramento RS, Castro L, Freitas D, Branco BC, Lima ALH, Vieira L, et al. Estudo dos fatores epidemiológicos e influentes na ceratite microbiana em serviço universitário. Rev Bras Oftalmol. 2005;64(1):7-13.). Na Índia, apenas 23,4 a 32,77% das UC são por bactérias exclusivamente, 26,4 a 34,4% por fungos e 1,04 a 1,4% por protozoário com ou sem bactéria e 23,4% por microsporídio com ou sem bactérias(1414 Rautaraya B, Sharma S, Kar S, Das S, Sahu SK. Diagnosis and treatment outcome of mycotic keratitis at a tertiary eye care center in eastern India. BMC Ophthalmol. 2011;11:39.,1616 Bharathi MJ, Ramakrishnan R, Meenakshi R, Padmavathy S, Shivakumar C, Srinivasan M. Microbial keratitis in South India: influence of risk factors, climate, and geographical variation. Ophthalmic Epidemiol. 2007;14(2):61-9.). No Nepal, bactérias correspondem a 63,2% e fungos, 6,7%(1111 Upadhyay MP, Karmacharya PC, Koirala S, Tuladhar NR, Bryan LE, Smolin G, et al. Epidemiologic characteristics, predisposing factors, and etiologic diagnosis of corneal ulceration in Nepal. Am J Ophthalmol. 1991;111(1):92-9.).

Na literatura nacional e internacional são observadas diferenças na distribuição das espécies mais frequentes, tanto entre o observado no Espírito Santo em comparação a outros lugares, quanto entre os estudos entre si. Essas diferenças se devem, provavelmente, ao clima, meio ambiente, atividade econômica predominante e exposição a fatores de risco, principalmente trauma e uso de lentes de contato (LC)(11 Leck AK, Thomas PA, Hagan M, Kaliamurthy J, Ackuaku E, John M, et al. Aetiology of suppurative corneal ulcers in Ghana and south India, and epidemiology of fungal keratitis. Br J Ophthalmol. 2002;86(11):1211-5.

2 Karsten E, Watson SL, Foster LJ. Diversity of Microbial Species Implicated in Keratitis: A Review. Open Ophthalmol J. 2012;6: 110-24.
-33 Shah A, Sachdev A, Coggon D, Hossain P. Geographic Variations in Microbial Keratitis: An analysis of the Peer-Reviewed Literature. Br J Ophthalmol. 2011;95(6):762-7.,1212 Rocha GAN, Silva RF, Lopes MF, Pereira NC, Sousa LB. Principais patógenos e susceptibilidade in vitro antimicrobiana em ceratites bacterianas: Revisão de cinco anos, 2005 a 2009. Arq Bras Oftalmol. 2011;74(1):28-32.). Esses fatores explicam o motivo de os países em desenvolvimento, muitos de clima tropical e economia de base agrícola, apresentarem maior proporção de úlceras fúngicas, contrastanto com os países desenvolvidos, onde úlceras relacionadas ao uso de LC são mais comuns(1313 McLeod SD, Kolahdouz-Isfahani A, Rostamian K, Flowers CW, Lee PP, McDonnell PJ. The role of smears, cultures, and antibiotic sensitivity testing in the management of suspected infectious keratitis. Ophthalmology. 1996;103(1):23-8.). Acredita-se que o clima e a localização geográfica podem, inclusive, estarem relacionados à apresentação clínica e evolução da úlcera, principalmente a de etiologia fúngica(22 Karsten E, Watson SL, Foster LJ. Diversity of Microbial Species Implicated in Keratitis: A Review. Open Ophthalmol J. 2012;6: 110-24.). As espécies mais isoladas em nosso estado foram: Pseudomonas aeruginosa, 18%; Fusarium spp, 17,2%; Staphylococcus epidermidis, 9,6%; Staphylococcus aureus, 8,4%; Streptococcus pneumoniae, 7,2% e Serratia marcescens, 3,6%. As principais espécies isoladas em Sorocaba, por exemplo, foram S. aureus e S. epidermidis com 30,56% cada um, Streptococcus sp e Pseudomonas sp com 9,43% cada(1212 Rocha GAN, Silva RF, Lopes MF, Pereira NC, Sousa LB. Principais patógenos e susceptibilidade in vitro antimicrobiana em ceratites bacterianas: Revisão de cinco anos, 2005 a 2009. Arq Bras Oftalmol. 2011;74(1):28-32.). Na cidade de São Paulo, as bactérias mais frequentes foram Staphylococcus coagulase negativa em 30,2% das amostras, Acanthamoeba sp em 16,3%, Pseudomonas sp e S. pneumoniae em 11,6% cada(88 Sacramento RS, Castro L, Freitas D, Branco BC, Lima ALH, Vieira L, et al. Estudo dos fatores epidemiológicos e influentes na ceratite microbiana em serviço universitário. Rev Bras Oftalmol. 2005;64(1):7-13.). Ressalta-se, dessa forma, a significativa variação entre os estudos nacionais.

A literatura internacional também apresenta grandes diferenças na etiologia das UC, sendo S. epidermidis, S. pneumoniae e P. aeruginosa as bactérias mais frequentemente isoladas em olhos com UC(22 Karsten E, Watson SL, Foster LJ. Diversity of Microbial Species Implicated in Keratitis: A Review. Open Ophthalmol J. 2012;6: 110-24.). No Nepal, por exemplo, as bactérias representaram 63.2% e fungos, 6.7% dos pacientes. Nesse país, Upadhyay MP e cols encontraram S. pneumoniae em 31.1% das culturas positivas, além de S. epidermidis, S. aureus e Pseudomonas sp como as principais bactérias envolvidas na etiologia da UC(1111 Upadhyay MP, Karmacharya PC, Koirala S, Tuladhar NR, Bryan LE, Smolin G, et al. Epidemiologic characteristics, predisposing factors, and etiologic diagnosis of corneal ulceration in Nepal. Am J Ophthalmol. 1991;111(1):92-9.). Nos Estados Unidos, Wahl JC e cols. encontraram como principais agentes isolados, as bactérias S. epidermidis e S. aureus, com 28% e 16%, respectivamente(1717 Wahl JC, Katz HR, Abrams DA. Infectious keratitis in Baltimore. Ann Ophthalmol. 1991;23(6):234-7.).

As úlceras fúngicas atendidas no HUCAM representaram 17,6% (70) dos casos, sendo as espécies mais isoladas Fusarium spp e Aspergillus spp, com 17,2 e 1,6% dos exames positivos, respectivamente. Em Sorocaba, o Fusarium solani é o fungo mais comum(88 Sacramento RS, Castro L, Freitas D, Branco BC, Lima ALH, Vieira L, et al. Estudo dos fatores epidemiológicos e influentes na ceratite microbiana em serviço universitário. Rev Bras Oftalmol. 2005;64(1):7-13.). Apesar de relativamente alta, a incidência de úlcera fúngica no Espírito Santo ainda não atinge os números da Índia (38,06% a 44%), Bangladesh (36%), Gana (37,6%) ou do sul da Flórida (35%)(11 Leck AK, Thomas PA, Hagan M, Kaliamurthy J, Ackuaku E, John M, et al. Aetiology of suppurative corneal ulcers in Ghana and south India, and epidemiology of fungal keratitis. Br J Ophthalmol. 2002;86(11):1211-5.,99 Saha S, Banerjee D, Khetan A, Sengupta J. Epidemiological profile of fungal keratitis in urban population of West Bengal, India. Oman J Ophthalmol. 2009;2(3):114-8.). Em relação às espécies de fungo isoladas, o resultado do presente estudo vai ao encontro da literatura internacional, que aponta os filamentosos como os mais frequentemente isolados de olhos com úlcera fúngica, em especial Fusarium spp e Aspergillus spp(11 Leck AK, Thomas PA, Hagan M, Kaliamurthy J, Ackuaku E, John M, et al. Aetiology of suppurative corneal ulcers in Ghana and south India, and epidemiology of fungal keratitis. Br J Ophthalmol. 2002;86(11):1211-5.,22 Karsten E, Watson SL, Foster LJ. Diversity of Microbial Species Implicated in Keratitis: A Review. Open Ophthalmol J. 2012;6: 110-24.,1414 Rautaraya B, Sharma S, Kar S, Das S, Sahu SK. Diagnosis and treatment outcome of mycotic keratitis at a tertiary eye care center in eastern India. BMC Ophthalmol. 2011;11:39.,1818 Thomas PA. Fungal infections of the cornea. Eye. 2003;17(8):852-62.). Na Índia e no Nepal, a distribuição entre as espécies de fungos causadores de UC mostraram-se díspares: Aspergillus spp foi o principal, seguido por C. albicans com Fusarium sp em terceiro lugar apenas(99 Saha S, Banerjee D, Khetan A, Sengupta J. Epidemiological profile of fungal keratitis in urban population of West Bengal, India. Oman J Ophthalmol. 2009;2(3):114-8.,1111 Upadhyay MP, Karmacharya PC, Koirala S, Tuladhar NR, Bryan LE, Smolin G, et al. Epidemiologic characteristics, predisposing factors, and etiologic diagnosis of corneal ulceration in Nepal. Am J Ophthalmol. 1991;111(1):92-9.). Gopinathan e cols. identificaram predomínio de Curvularia, também na Índia(1919 Gopinathan U, Garg P, Fernandes M, Sharma S, Athmanathan S, Rao GN. The epidemiological features and laboratory results of fungal keratitis: a 10-year review at a referral eye care center in South India. Cornea. 2002;21(6):555-9.). Apesar de serem tidos como menos frequentes, em certos países, as leveduras são responsáveis pelo maior número de casos de UC fúngicas. Por exemplo, em Victoria, na Austrália, a C. albicans foi o agente mais isolado (com 37,2%), seguido por Aspergillus fumigatus (17,1%) e Fusarium sp (14.3%)(2020 Bhartiya P, Daniell M, Constantinou M, Islam FM, Taylor HR. Fungal keratitis in Melbourne. Clin Experiment Ophthalmol. 2007;35(2):124-30.). Na Pensilvânia, EUA, também encontramos a C. albicans (45.8%) como agente mais frequente que o Fusarium sp (25%)(1010 Tanure MA, Cohen EJ, Sudesh S, Rapuano CJ, Laibson PR. Spectrum of fungal keratitis at Wills Eye Hospital, Philadelphia, Pennsylvania. Cornea. 2000;19(3):307-12.).

No ES, houve predominância das úlceras fúngicas nos meses de junho e dezembro. A maior incidência no mês de junho pode se dever ao fato desse estado ser um grande produtor de café, cujo período de colheita inicia-se no referido mês, expondo os trabalhadores rurais, em sua maioria homens, a trauma ocular com partes desse vegetal nesse período do ano(99 Saha S, Banerjee D, Khetan A, Sengupta J. Epidemiological profile of fungal keratitis in urban population of West Bengal, India. Oman J Ophthalmol. 2009;2(3):114-8.). O mês de dezembro tem uma incidência de UC aumentada em nosso serviço, possivelmente, decorrente da transferência de pacientes de consultórios e outros municípios que deixam de atender ou diminuem o número de atendimentos durante o recesso de final do ano. A diferença na incidência de úlcera fúngica também foi relatada na Índia, onde predomina na época de monção e inverno se comparado ao verão(1919 Gopinathan U, Garg P, Fernandes M, Sharma S, Athmanathan S, Rao GN. The epidemiological features and laboratory results of fungal keratitis: a 10-year review at a referral eye care center in South India. Cornea. 2002;21(6):555-9.).

CONCLUSÃO

Este trabalho identificou os principais agentes etiológicos envolvidos na UC atendidas no HUCAM, que é o hospital de referência do Espírito Santo para condução desta moléstia. Desta forma, fornecemos subsídios para um melhor diagnóstico presuntivo e condução mais apropriada do tratamento empírico inicial, quando indicado, determinado pelo oftalmologista.As bactérias Gram-positivas e fungos filamentosos apresentam papel de destaque na etiologia das úlceras de córnea no Espírito Santo.

  • Trabalho realizado no Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Espírito Santo – Vitória (ES), Brasil
  • 1
    Leck AK, Thomas PA, Hagan M, Kaliamurthy J, Ackuaku E, John M, et al. Aetiology of suppurative corneal ulcers in Ghana and south India, and epidemiology of fungal keratitis. Br J Ophthalmol. 2002;86(11):1211-5.
  • 2
    Karsten E, Watson SL, Foster LJ. Diversity of Microbial Species Implicated in Keratitis: A Review. Open Ophthalmol J. 2012;6: 110-24.
  • 3
    Shah A, Sachdev A, Coggon D, Hossain P. Geographic Variations in Microbial Keratitis: An analysis of the Peer-Reviewed Literature. Br J Ophthalmol. 2011;95(6):762-7.
  • 4
    CBO - Conselho Brasileiro de Oftalmologia; Coleção CBO: Série Oftalmologia Brasileira. São Paulo:Guanabara; 2013.
  • 5
    Mattos FB, Agostini FS, Mattos MB, Batista DMP. Úlcera de córnea por Pseudomonas stutzeri. Rev Bras Oftalmol. 2012;71(2):111-4.
  • 6
    Zeschau A, Balestrin IG, Stock RA, Bonamigo EL. Indicações de ceratoplastia: estudo retrospectivo em um Hospital Universitário. Rev Bras Oftalmol. 2013;72(5):316-20.
  • 7
    Kara-Junior N, Zanato MC, Vilaca V, Kara-José N. Aspectos médicos e sociais no atendimento oftalmológico de urgência. Arq Bras Oftalmol. 2001; 64(1):39-43.
  • 8
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2014
  • Aceito
    04 Nov 2014
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