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Entre modernismos e descolonialidades: desafios para uma teorização outra

Between modernism and decoloniality: Challenges for another theorization

RESUMO

A ideia basilar deste ensaio resume-se, grosso modo, em comparar uma perspectiva teórica modernista (moderna) com uma perspectiva de ordem descolonial ou fronteiriça. Considerando, a priori, que em tal relação de proposição pode haver aproximação que não seja exclusivamente de contrastes entre ambas as perspectivas, vamos procurar estabelecer uma discussão declinada em uma teorização de base descolonial ou fronteiriça que, a seu modo, além de pontuar suas diferenças em sua visada teórica, também pontue as especificidades de uma discussão teórica presa aos postulados de um olhar que priorize os modernismos. Para alcançar o cerne da discussão proposta aqui vamos nos valer, a princípio, de duas abordagens específicas, ou pontos de vistas teóricos diferentes entre si. Refiro-me aos textos “Teorizar é metaforizar”, de Eneida Maria de Souza, presente em seu recente livro Narrativas impuras (2021), e “Desafios decoloniais hoje” (2017), de Walter Mignolo. Além desses dois textos, será de valia para a proposta o livro Fisiologia da composição (2020), de Silviano Santiago, e meu texto intitulado “Podemos fazer teori(a)zação da fronteira-sul”, entre outros que se fizerem necessários no decorrer da reflexão aqui proposta.

PALAVRAS-CHAVE:
modernismos; descolonialidade; teorias; teorização

ABSTRACT

The basic idea of this essay is basically to compare a modernist (modern) theoretical perspective with a decolonial or frontier perspective. Considering, a priori, that in such relation of proposition there may be a proximity which is not exclusively made of contrasts between both perspectives, we will seek to establish a discussion tending to a decolonial or frontier-based theorization that, in its way, in addition to punctuating its differences in its theoretical aim, also points out the specificities of a theoretical discussion attached to postulates of a point of view that prioritizes modernism. To reach the core of the discussion proposed here, we will use, at first, two specific approaches, or different theoretical points of view. I refer to the texts “Teorizar é metaforizar” (Theorizing equals metaphorizing), by Eneida Maria de Souza, included in her recent book Narrativas impuras (Impure narratives) (2021), and “Desafios decoloniais hoje” (Decolonial challenges today) (2017), by Walter Mignolo. In addition to these two texts, the book Filosofia da Composição (Physiology of composition) (2020), by Silviano Santiago, and my own text, entitled “Podemos fazer teori(a)zação da fronteira-sul” (Can one turn the southern frontier into theory/theorization?) will be of value to the proposal, among others that are necessary during the reflection proposed here.

KEYWORDS:
modernism; decoloniality; theories; theorization

Teorizar é metaforizar: teorias modernistas

A intelectual brasileira e teórica Eneida Maria de Souza não pode ser considerada uma teorizadora descolonial, é verdade, mas o seu modo político de desconstruir as teorias faz com que ela flerte com a teorização descolonial. Motivos e posicionamentos teóricos críticos não faltam dentro da escritura teórica realizada por Eneida, que endossam tal abertura teórica, como, por exemplo, esta passagem inicial do ensaio “Teorizar é metaforizar”:

Na condição de professora de Teoria da Literatura há muitos anos, tomo a liberdade de iniciar este ensaio afirmando que o lugar (não lugar) da disciplina no meio acadêmico continua como sempre esteve: paradoxal, combativo, ousado, vanguardista e aberto às transformações e mudanças históricas. (Souza, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe, 2021. , p. 363).

Na mesma direção, e para ficar preso ao traço biográfico de Eneida, busco transcrever outra passagem do mesmo livro que, de meu ponto de vista, deixa entrever sua abertura teórica:

Pretendo, neste breve comentário sobre Literatura Comparada, demonstrar minha constante intolerância quanto às críticas dirigidas aos rumos e desvios que, nos últimos tempos, tem sofrido a disciplina. A razão das controvérsias reside na concepção ainda moderna e pré-globalizada, que impera nos departamentos de letras, impedindo o avanço da discussão em torno da Literatura Comparada. (Souza, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe, 2021. , p. 301).

Vê-se que, seja pela abordagem feita em torno da Teoria da Literatura, seja pela da literatura comparada, Eneida não mede esforços para abrir o leque de possibilidades de um diálogo mais aberto e produtivo entre as teorias literária, comparatista e cultural.

Pontuada e exemplificada a sua abertura teórica à guisa de começo de conversa, transcrevo uma outra passagem que, em meu entender, além de somar todas as vertentes teóricas por ela priorizadas ao longo de sua vida teórica, traz a presença do bios, que foi recorrente na discussão presa à crítica biográfica e que se abre para uma visada epistemológica de ordem subalternista que beira a descolonialidade:

Tanto a literatura comparada quanto os estudos culturais - e mais especificamente a crítica cultural - não se definem mais como campos disciplinares definidos e estáveis. “Teorias sin disciplina”, título referente ao projeto apresentado pelo “Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos”, tendo Santiago Castro-Gomez como um dos membros, poderia ser uma das saídas para a complexa discussão sobre o campo disciplinar contemporâneo. O trânsito das teorias, a contaminação salutar de conceitos de várias disciplinas, a elasticidade e tolerância das fronteiras textuais, seria ilusório e impossível se pensar numa situação epistemológica dessa natureza? (Souza , 2007SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica: ensaios. São Paulo: Linear B; Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2007., p. 151).

A referida passagem aparece em subtítulo intitulado justamente de “teorias sem disciplina”, presente no livro Tempo de pós-crítica (2007), e em cujo momento de sua discussão crítica Eneida aborda sobre a importância do sistema pós-disciplinar, no qual se podem conviver a diluição dos campos de saber e a abertura que justificaria a rubrica teoria sem disciplina: “a abertura do campo disciplinário autorizou o questionamento e a desconstrução do saber moderno, pautado por classificações hierárquicas, por seleções excludentes dos saberes considerados ‘menores’, além da desconfiança diante de rótulos disciplinares, dotados de rigor e estabilidade conceitual” (Souza , 2007SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica: ensaios. São Paulo: Linear B; Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2007., p. 148). A passagem, de meu ponto de vista, sintetiza o grau de abertura teórica empreendida por Eneida, por toda sua vida crítica, e ao mesmo tempo (e em parte) sinaliza até onde ela chega com sua reflexão teórica modernista. A pergunta que ela termina por fazer, de que se seria ilusório e impossível se pensar numa situação epistemológica, cuja natureza contemplasse o trânsito das teorias, a contaminação salutar de conceitos de várias disciplinas e a elasticidade e tolerância das fronteiras textuais vinha sendo respondida por meio de sua visada teórica pós-disciplinar que amalgamava a abertura transdisciplinar da reflexão empreendida vida afora. Sobressai até a impressão de que o desejo de abertura modernista transdisciplinar da autora avança inclusive para além do que de fato as disciplinas como a literatura comparada, os estudos culturais e a própria crítica cultural conseguem chegar de fato. Endossa o que estamos dizendo esta opção deliberadamente pensada pela autora:

O desejo de tornar o campo teórico da literatura um discurso sem fronteiras, me fez optar pela abertura interdisciplinar e pela transformação desse discurso numa forma de intervenção cultural, com vistas a contribuir para a compreensão dos acontecimentos que ocupam a nossa vida contemporânea. (Souza, 2007SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica: ensaios. São Paulo: Linear B; Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2007., p. 129).

Teorias sem disciplina e discurso sem fronteiras contorna a paisagem transdisciplinar que medeia a proposta de desconstrução teórica levada a cabo por Eneida, reiterando, por conseguinte, o quanto que sua proposta teórica, crítica e cultural contribuiu para a desconstrução do campo disciplinar contemporâneo e quaisquer purismos e conservadorismos teóricos. Se, por um lado, a proposta teórica do pensamento dela roça, inclusive, até uma visada, ou opção, de ordem descolonial, por outro, não há dúvida de que a reflexão feita por ela nos trópicos avançou para além da política da desconstrução derridaiana, e isso se deu graças sobretudo aos postulados teóricos e biográficos da crítica biográfica fundada no país pela intelectual.

Assim, tomado desse espírito transdisciplinar e pós-disciplinar defendido e partilhado pela intelectual, quero me deter agora em seu ensaio “teorizar é metaforizar”, presente em seu último livro Narrativas impuras (2021), por entender que a teorização metafórica feita ali me permite, às vezes, pontuar as aproximações e os devidos distanciamentos que a autora manteria com a teorização descolonial. Também o ensaio “ficções impuras”, do mesmo livro, pode me ajudar na ilustração da discussão que proponho. Grosso modo, minha intenção aqui resume-se em mostrar que a proposta teórica de Eneida, por estar assentada em uma política da metáfora, privilegia mais a ficcionalização da teoria, e, ao voltar-se mais para tal prática, reforça e endossa os postulados modernistas que não se desvincularam do projeto da modernidade. É escusado dizer que esse não foi mesmo o propósito da teorização pós-disciplinar defendida por Eneida; todavia tal constatação, por sua vez, afasta em parte sua reflexão da teorização de ordem descolonial.

Vejamos, então, como se daria essa questão tendo por base os dois ensaios mencionados. Longe de uma visada teórica binária, o exercício teórico de Eneida se vale de uma prática teórica que se alimenta da aproximação estabelecida entre ficcionalização e vivência, por exemplo, relação esta atravessada pelo processo de metaforizarão. Nesse ensaio em particular, Eneida se pergunta “como se poderia admitir que o pensamento teórico compõe com os demais um amálgama compósito?”(Souza, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe, 2021. , p. 364, grifos meus). Sublinho a expressão amálgama compósito porque em ensaio bastante anterior, intitulado “Notas sobre a crítica biográfica”, ao tratar especificamente deste tipo de crítica, já afirmara: “a crítica biográfica, por sua natureza compósita, englobando a relação complexa entre obra e autor, possibilita a interpretação da literatura além de seus limites intrínsecos e exclusivos, por meio da construção de pontes metafóricas entre o fato e a ficção” (Souza, 2002SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo horizonte: Editora da UFMG, 2002. , p. 112, grifos meus). Nesse ensaio em particular, a autora se debruçava sobre a tendência da crítica literária brasileira, naquele momento histórico, que se voltava para a relação entre os estudos literários, a crítica biográfica e sobretudo os estudos culturais. Pontuando a abertura teórica propiciada pelas abordagens contemporâneas, reiterava o enfraquecimento do campo disciplinar e, ao contornar o lugar e as notas específicas do pensamento teórico que resultava no que ela vinha chamando de crítica biográfica, já insistia na importância e em favor do exercício da ficcionalização da crítica, por meio do qual o sujeito teórico já se inscrevia como persona da narrativa teórica construída. Talvez esteja aí a possibilidade de primeira aproximação entre o proposto e defendido por Eneida, sobretudo no tocante às notas de crítica biográfica, e o defendido pelo pensamento descolonial, uma vez que neste caso também é imprescindível a presença e inscrição corpo-bio-política do crítico. Nesse sentido, Walter Mignolo, ao tratar da formação da razão subalterna e da teorização descolonial, chama a atenção para a questão crucial da presença da inscrição da experiência colonial/subalterna do crítico em suas práticas teóricas [...] (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo horizonte: Editora da UFMG, 2003. , p. 156). Essa questão da presença do crítico em sua teorização, que é constante na fundamentação dos postulados da crítica biográfica de Eneida, é determinante para a teorização bárbara descolonial, daí eu insistir um pouco nessa questão neste momento. Na sequência de sua discussão, Mignolo nomina a teorização descolonial de uma espécie de “teorização bárbara”:

Uma prática teórica daqueles que se opõem ao conceito nacional e asséptico de teoria e conhecimento, teorizando, precisamente, a partir da situação na qual foram colocados, sejam eles judeus, muçulmanos, ameríndios, africanos ou outros povos do “Terceiro Mundo” como os hispânicos nos Estados Unidos de hoje. (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo horizonte: Editora da UFMG, 2003. , p. 156).

Curioso observar que ao mesmo tempo em que vejo e pontuo uma aproximação inconteste entre os postulados da crítica biográfica e os da teorização descolonial, vejo também esboçar-se uma diferença. Enquanto para a crítica biográfica, grosso modo, a ficcionalização do crítico se daria pela junção entre teoria e ficção, obra e vida etc., em que seu lugar se resolveria por meio de uma inscrição de ordem puramente textual, no caso da teorização descolonial é preciso a presença, ou consciência crítica, de um “a partir de”, ou “lócus filosófico” (KUSCH), como postula Mignolo, ou ainda, e mais apropriado para nosso caso, um lócus teórico, o qual não se restringe apenas ao espaço textual/ficcional, posto que tal localização/presença do crítico não seria apenas geográfica (nem muito menos textual), mas histórica, política e epistemológica (Cf. Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo horizonte: Editora da UFMG, 2003. ). Se, dentro da discussão empreendida por Eneida, como podemos constatar, o conceito de teoria não se desvincula totalmente da razão moderna, por mais que sua proposta teórica leve às últimas consequências o projeto da desconstrução derridaiana e a uma abertura máxima exigida pela transdisciplinaridade (pós-disciplinar), ainda ocorre um diálogo, mais do que uma ruptura, com a visada teórica moderna e pós-moderna. Já na discussão de ordem descolonial, Mignolo defende a teorização que se formula a partir da fronteira e sob a perspectiva da subalternidade. A expressão “a partir da fronteira” faz toda a diferença na articulação teórica descolonial, porque tal expressão significa pensar teoricamente a partir do conceito moderno de teoria e daquelas formas anônimas de pensamento silenciadas pelo moderno conceito de teoria: “pensar teoricamente é dom e competência de seres humanos, não apenas de seres humanos que vivam em um certo período, em certos locais geográficos do planeta e falem um pequeno número de línguas específicas” (MIGNOLO, 2003MIGNOLO, Walter. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo horizonte: Editora da UFMG, 2003. , p. 159).

O título do ensaio, “Teorizar é metaforizar”, de forma especular, reflete e contempla a abertura teórica levada a cabo por Eneida por toda a vida, uma vez que é recorrente na discussão teórica proposta e defendida por ela uma visada que sempre se pautou fora de quaisquer binarismos. Quero entender que o grau máximo de tal abertura teórica e conceitual chega ao seu auge quando Eneida propõe e adentra o campo minado da crítica biográfica, aproximando, por conseguinte, as esferas entre teoria e ficção e vice-versa. Vejamos, nesse sentido, a justificativa que a autora mesma dá ao título do ensaio:

Teorizar é metaforizar, enunciado apresentado no título deste texto, corresponde à dobra dos discursos, à substituição de princípios rígidos pela maleabilidade e justaposição de valores os quais se pautam pela ausência de apego à teoria, considerada de forma rígida e absoluta. No processo de metaforização, ocorre tanto a condensação quanto o deslocamento de lugares discursivos, a interpenetração ficcional da literatura no teórico, sem que cada segmento conserve a rigidez e separação disciplinares. No gesto metafórico desse procedimento, a cena literária passa a ser entendida na vertente teórica, pelo exercício da experimentação e do movimento sempre contínuo do pensamento. Interpretar fatos e acontecimentos no interior da literatura exige o acurado e livre trabalho de associações e deslocamentos metafóricos. (Souza, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe, 2021. , p. 364).

A passagem é extensa, mas com o propósito de pontuar que metaforicamente ela também serve para ilustrar o próprio procedimento teórico defendido por Eneida ao valer-se de um modo de pensar teoricamente que se estabelece, grosso modo, preso às associações e deslocamentos e voltado para as aberturas interpretativas. O título do ensaio também trata, sobretudo quando se considera o campo minado da crítica biográfica compósita proposta pela autora, do avanço que a discussão teórica permite com relação aos postulados da disciplina teoria da literatura e, por extensão, da própria literatura comparada (ainda mais quando nós lembramos que a crítica biográfica não se desvincula de uma prática comparatista), lugares disciplinares esses ocupados pela visitação da autora por toda sua longa vida profissional como intelectual. O avanço teórico que ambas as disciplinas sofrem, como consequência e desdobramento da abertura teórica empreendida, não por acaso parece encontrar ressonância em afirmativas feitas por Silviano Santiago em seu recente livro Fisiologia da composição (2020SANTIAGO, Silviano. Fisiologia da composição: gênese da obra literária e criação em Graciliano Ramos e Machado de Assis. Recife: Cepe, 2020.). Mas aqui, com a pequena inversão diferencial de que se trata, neste caso, de Silviano relendo Eneida, e não o contrário como tão comumente acontecia na prática de leitura teórica e crítica entre ambos.

Vou ilustrar o que quero pontuar com duas passagens transcritas do livro Fisiologia da composição, sendo uma voltada para, mais especificamente, a teoria da literatura e a outra para a literatura comparada, disciplinas essas que sempre atravessaram e fomentaram a discussão teórica e crítica de Eneida. A primeira passagem na verdade é a nota de número 35 do referido livro. Lê-se nela:

Há todo um trabalho a ser feito sobre o modo como, desde o formalismo russo, a teoria literária recalca a questão da grafia-de-vida do autor na leitura do texto. Este ensaio é um esforço para retirar, na teoria e na prática da leitura, a mordaça de sua boca. O importante seria começar por desconstruir, pela fisiologia da composição, o conceito de literaturnost (literariedade). Retirar também o ponto de vista da leitura da obra a partir do texto (na maioria das vezes, já impresso) e alocá-lo ao momento em que o escritor compõe sua obra. Em outras e mais singelas palavras: a leitura da obra literária pode se dar ao final do túnel da criação, ou à porta do túnel da criação. Ler um texto como acabado é bem diverso de ler um texto como em construção. (Santiago, 2020SANTIAGO, Silviano. Fisiologia da composição: gênese da obra literária e criação em Graciliano Ramos e Machado de Assis. Recife: Cepe, 2020., p. 88, nota 35).

A partir da passagem de Silviano, no meu entender, Eneida vinha nessas duas últimas décadas, e mais precisamente com a formulação teórica do que ela mesma cunhou de “crítica biográfica” e tendo agora a expressão “teorizar é metaforizar” como máxima teórica, propondo uma revisão/atualização crítica dos postulados da teoria da literatura por priorizar, em sua abertura teórica, a presença da vida do autor e do crítico (Eneida não fala em corpo) na leitura do texto literário ou teórico. Ensaios anteriores, como “Notas sobre a crítica biográfica”, Teoria em crise”, “O não-lugar da literatura” e “Madame Bovary somos nós”, todos presentes em Crítica cult (2002), já antecipavam a seu modo o que em “Teorizar é metaforizar” se enuncia deste o título. Também a partir da passagem de Silviano, vejo que Eneida, se, por um lado, a teoria literária recalcou a presença biográfica do autor na leitura e prática de leitura, como diz Silviano, por outro teorizou no sentido de que o autor e o crítico sempre se inscrevessem na composição teórica e ficcional. A abertura teórica trabalhada e defendida por Eneida contribuiu para que todas as mordaças fossem desconstruídas, como as fronteiras disciplinares, dando lugar a um gesto metafórico crítico e inventivo por excelência. Ainda com relação à passagem de Silviano, parece que este está relendo-a, sobretudo quando ela conclui:

A retomada da prática do conceito de literariedade, inaugurada com o Formalismo Russo no início do século XX, embora seja reconhecido até hoje como inaugural, confirma o isolamento de teorias literárias e comparadas no seu campo específico de ação, sem a oportunidade de conviver com outras áreas do saber. Torna-se importante circunscrever princípios metodológicos para as pesquisas de literatura comparada, uma vez que as entradas interpretativas se sujeitam a múltiplas tendências, tal a fertilidade e heterogeneidade das propostas analíticas. [...] Tanto os discursos literários quanto os métodos comparativos sofreram transformações ao longo dos anos, notadamente em virtude das mudanças culturais e geopolíticas da atualidade. As disciplinas são pautadas pelo decurso da história, com suas variações e movimentos contínuos, não tendo mais prerrogativas de ordem essencial e absoluta. A mutabilidade e o espaço nômade dos conceitos e reflexões só tendem a ampliar o horizonte nem tão sombrios da disciplina/indisciplina literatura comparada. (Souza, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe, 2021. , p. 312).

Em suas respectivas passagens aqui transcritas, o que tanto Silviano quanto Eneida parecem deixar evidente é que ao invés de se fechar no campo metodológico da literariedade, deve-se abrir para o campo epistemológico da geopolítica (e acrescentaria eu da corpo-política) da teoria e da produção dos saberes em geral. A proposta de teorização metafórica de Eneida se pautou nessa defesa e se encaminhou nessa direção de um modo de pensar outro cuja abertura transdisciplinar se lançava para fora do texto. No meu entender, o que se sobressai em filigrana na discussão teórica realizada por ela é um avanço pensado e elaborado no sentido de reatualizar continuamente o papel e lugar da teoria da literatura em específico, sobretudo quando propõe uma abertura teórica para a qual, ou a partir da qual, convergem a teoria da literatura, a literatura comparada e os estudos culturais.

Ainda aludindo uma última vez à passagem transcrita de Silviano, a partir da qual procuro pontuar que ele estaria relendo Eneida, uma vez que o diálogo crítico entre ambos sempre fora evidente, pontuo que a leitura teórica praticada por ela, sobretudo quando se leva em conta a política da crítica biográfica, sempre se pautou pela composição da obra, seu projeto de composição textual, até porque sempre esteve na agenda biográfica dela a inter-relação entre vida e obra do escritor estudado. Para me valer das palavras finais de Silviano, diria que Eneida sempre privilegiou a porta de entrada da criação do texto, tomando-o em estado de des-construção, para aludir à discussão conceitual acerca da desconstrução proposta por Derrida e empreendida por Eneida por toda sua vida teórica. Quero entender que esta passagem ilustra o que acabo de dizer:

Embora a proposta literária do escritor-crítico tenha se voltado para a indagação sobre o ato de escrever e dos encontros ficcionais entre escritores e, por esses motivos, seja criticado pelos adeptos da literatura como dotada de poder de fruição, é ainda por essa via que grande parte dos argumentos teóricos contemporâneos encontram a fonte conceitual. Em lugar de discutir, por exemplo, no espaço da crítica acadêmica, as diferenças entre gêneros narrativos tão explorados pela literatura atual, tais como os de biografia, autobiografia, autoficção ou memória, talvez se torne mais producente recorrer a obras em que são embaralhados e questionados tais procedimentos. (Souza, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe, 2021. , p. 368).

Metaforicamente, a passagem acima não deixa de nos falar da própria prática teórica executada por Eneida vida afora, na medida em que a reflexão mesma parece acontecer no ato de pensar, de teorizar, ao valer-se da estratégia da criação de metáforas para o ato de pensar teórico, deixando-nos entrever a inscrição de um corpo do sujeito teórico (Eneida) que poderia ser nominado de escritor-teórico. Ou seja, ao metaforizar as teorias e as vidas de outrem, Eneida metaforiza sua própria vida em seu discurso crítico.

Chego, agora, à segunda passagem antes referida por mim do livro Fisiologia da composição. E me detenho nela para pontuar que, se, por um lado, podemos entrever Silviano relendo Eneida, por outro, podemos pontuar que a discussão teórica proposta e defendida por ela acaba reatualizando o lugar não lugar mesmo da teoria da literatura e da crítica comparada, atravessadas ambas pelo olhar da crítica biográfica em particular. Transcrevo a passagem de Silviano:

Uma nova metodologia de leitura da literatura brasileira teria necessariamente de desconstruir a metodologia de leitura dominante na literatura comparada a fim de dar conta dos valores de cópia e de contribuição, reconhecendo, ainda, os princípios de originalidade em cópia inevitável. A desconstrução teria de recondicionar a cronologia histórica, acreditando que a dita evolução literária se dá em movimento para a frente e também para trás. Há um novo valor, o anacronismo criativo e periférico, que é impossível de ser compreendido na radicalidade evolutiva da historiografia iluminista, a não ser pela retomada do exigente conceito de suplementariedade (a não ser confundido com complementariedade) exposto por Jacques Derrida na crítica aos efeitos da autocentragem europeia na constituição e análise dos objetos do saber. (Santiago, 2020SANTIAGO, Silviano. Fisiologia da composição: gênese da obra literária e criação em Graciliano Ramos e Machado de Assis. Recife: Cepe, 2020., p. 35).

A passagem é longa porque sumamente importante no seu todo. Todavia, vou me valer tão somente destas duas questões em específico: quando Silviano fala de desconstruir a metodologia de leitura dominante da literatura comparada e em anacronismo criativo periférico. Espero justificar a contento o meu recorte. Trata-se, na verdade, de querer mostrar que Eneida endossa (ou já endossava), por meio de sua teorização, tanto uma revisita crítica da metodologia da teoria da literatura (incluindo aí a literatura comparada, a crítica biográfica e até mesmo a crítica cultural), quanto estava operando um novo valor assentado num anacronismo criativo biográfico e teórico. Antes de me deter em minha reflexão visando justificar meu recorte, transcrevo uma passagem de Eneida, do livro Janelas indiscretas (2011), primeiro e único que leva o subtítulo de “ensaios de crítica biográfica”, por entender que ali ela dialoga diretamente com a passagem transcrita de Silviano:

A crítica biográfica se apropria da metodologia comparativa ao processar a relação entre obra e vida dos escritores pela mediação de temas comuns, como a morte, a doença, o amor, o suicídio, a traição, o ódio, as relações familiares, como o tema dos irmãos inimigos, da busca do pai, da bastardia, do filho pródigo e assim por diante. [...] A diferença quanto à crítica biográfica praticada durante esses últimos anos consiste na possibilidade de reunir teoria e ficção, considerando que os laços biográficos são criados a partir da relação metafórica existente entre obra e vida. (Souza, 2011SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo horizonte: Editora da UFMG, 2011. , p. 20-21).

Lendo ambas as passagens de forma complementar e suplementar, quer me parecer que Eneida, ao atravessar a crítica biográfica pelos postulados metodológicos da literatura comparada (e vice-versa), acaba por nos propor uma nova metodologia de leitura teórica que desconstrói leituras binárias e fechadas, inicialmente presas tão somente ao objeto-texto e não abertas ao ato de criar, ou de compor, como defendido por Silviano em Fisiologia da composição. Se não há a presença de um corpo, como ocorre na discussão convocada por Silviano em Fisiologia da composição e em uma leitura descolonial como condição política dela, há uma vida material que ali se inscreve na forma de pensar teórica de Eneida. E seria o acréscimo desse bios que vai minar suplementariamente a teorização metafórica realizada por ela.

Para deter-me a partir de agora no recorte por mim privilegiado, volto ao ensaio “teorizar é metaforizar”, em parágrafo conclusivo do texto:

Gostaria de concluir esta breve incursão sobre os lugares não lugares da teoria da literatura reafirmando a necessidade de ser incentivado o desejo de se criar, quando se trata do gesto crítico, aceitando os desafios impostos pela atualização e experimentação de determinados caminhos teóricos. (Souza, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe, 2021. , p. 371, grifo meu).

Quando a autora conclui dizendo que fez uma incursão sobre os lugares não lugares da teoria da literatura, quero entender que, na verdade, ao descentralizar à exaustão, e metaforicamente, o lugar não lugar da teoria, ela instaura, paradoxalmente, a criação de um lugar novo para a própria teoria da literatura, lugar este envolto a um anacronismo criativo teórico. No meu entender, o desejo-proposta de criar/propor um novo lugar para a teoria, por parte de Eneida, advém, inicialmente, de sua teorização biográfica de atar as pontas entre ficção e teoria, vida e obra, como tão comumente fez em seus ensaios teóricos. Ressalvadas as quase inexistentes diferenças, a proposta literária que move o escritor-crítico acerca de seu ato de criar é correlata à proposta teórica que move a discussão crítica de Eneida, na medida em que ambas estão atravessadas por um espaço biográfico. Valendo-se, como sempre fizera, aliás, de uma visada assentada na desconstrução derridaiana, Eneida é categórica ao afirmar: “desconstruir os lugares-comuns da crítica não significa negá-los, mas apontar os riscos de exaustão interpretativa e da sujeição às vezes ingênua quanto a regras e métodos” (Souza, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe, 2021. , p. 368). A saída, segundo ela, seria o descentramento interpretativo, em todos os sentidos possíveis. Não é de se estranhar que, qualquer descrédito pela teorização enquanto um ato de conhecer e revitalizar o saber passa, necessariamente para ela, por ignorar que o exercício interpretativo independe da natureza de cada obra e que, por conseguinte, se prende tanto à razão quanto à emoção, e que, por isso mesmo, incita o debate acerca dos lugares e não lugares ocupados pela teoria.

Diante do exposto, não me curvo em dizer que os “não lugares” teóricos descentralizados pelo discurso crítico de Eneida escavam um lugar-teórico em sua reflexão. Ao partilhar dos teóricos dos quais se vale, a intelectual funda o discurso teórico do passado no presente da história e, ao fazer isso, revista os lugares teóricos, descentralizando-os, posto que também obedece a critérios de simultaneidade temporal no modo de teorizar. Ao agir assim, endossa o anacronismo criativo periférico proposto por Silviano, ou melhor, mostra-nos que, de alguma forma, Silviano também vinha lendo-a. Conceitos como os de sobrevida e sobrevivência servem como passaporte para essa política de um anacronismo criativo teórico trabalhado por ela. Defendendo sempre o estado paradoxal da teoria, constata: “a sobrevivência das formas artísticas e das construções teóricas justifica-se pela convivência entre experiências por meio das quais se ignora o culto de valores ultrapassados e o desprezo pelo passado como indigno de ser evocado” (Souza, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe, 2021. , p. 372).

Se, por meio de seu anacronismo criativo periférico, Silviano ficcionaliza os conceitos, a exemplo do de “entrelugar”, Eneida, esboçando gesto semelhante, ao metaforizar os conceitos do passado, os reinventa no presente, permitindo que, assim, a lição canônica da teoria da literatura seja refundada no presente. Nesse contexto, palavras ou conceitos como descentramento, sobrevivência, sobrevida e entrelugar constituem tanto uma ficção impura quanto uma teorização impura, para aludir ao título do último livro de Eneida, Narrativas impuras (2021), de onde leio o ensaio “Ficções impuras”, antes aqui mencionado. E nada mais oportuno do que eu transcrever partes do parágrafo conclusivo desse ensaio:

Ficções impuras conservam, como tentei demonstrar, alto grau de miscigenação entre autores, narrativas e tempos distintos de suas realizações. A inusitada comparação entre teorias e conceitos os quais, a princípio, não representariam matéria de aproximação comparativa, encontra eco na conjunção heteróclita de princípios defendidos por filósofos, escritores e historiadores de arte.[...] O procedimento de montagem ilustra e incentiva o teor impuro das manifestações artísticas, pela liberdade experimentada nas associações, no diálogo entre formas e autores, em que são respeitadas tanto as diferenças quanto as semelhanças entre os objetos. (Souza, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe, 2021. , p. 216).

Teorias impuras pode metaforizar a proposta teórica paradoxal, descentralizada e transdisciplinar executada por Eneida e que, não menos metafórica, pontua o lugar não lugar do novo valor que podemos encontrar na teorização anacrônica criativa efetuada por ela, num crescendo, ao longo da vida. A política das teorias impuras propostas permite aproximações e distanciamentos teóricos conceituais no presente da reflexão crítica, sejam de ordem comparatista, biográfica ou cultural, desde que contribuam com a quebra de paradigmas teóricos conceituais, bem como com meros gêneros narrativos como biografia, autoficção, autobiografia etc. O livre arbítrio teórico permite a construção de um lugar-teórico que se constrói para além de qualquer visada disciplinar. As teorias impuras propostas por Eneida dialogam com todas as demais teorias e, por assumirem esse lugar de impuras, mas não incertas, roçam-se até com teorizações que necessariamente não partilham da política da desmetaforização, a exemplo da teorização descolonial pensada a partir da América Latina. 1 1 Numa segunda parte deste texto, intitulada de “Teorizar é desmetaforizar”, pretendo me deter na teorização descolonial, visando estabelecer um contraponto com o discutido até aqui.

REFERÊNCIAS

  • MIGNOLO, Walter. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo horizonte: Editora da UFMG, 2003.
  • SANTIAGO, Silviano. Fisiologia da composição: gênese da obra literária e criação em Graciliano Ramos e Machado de Assis. Recife: Cepe, 2020.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras Recife: Cepe, 2021.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo horizonte: Editora da UFMG, 2011.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica: ensaios. São Paulo: Linear B; Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2007.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult Belo horizonte: Editora da UFMG, 2002.
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    Numa segunda parte deste texto, intitulada de “Teorizar é desmetaforizar”, pretendo me deter na teorização descolonial, visando estabelecer um contraponto com o discutido até aqui.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2023
  • Aceito
    07 Nov 2023
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