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Eneida Maria de Souza: uma visitante-presente na UFSJ

Eneida Maria de Souza: A visitor present at UFSJ

RESUMO

Neste texto, gostaria de registrar minha experiência e convívio com a professora Eneida durante sua estada na UFSJ, mais especificamente no Programa de Pós-Graduação em Letras. Falar da experiência e da sua importância da perspectiva de minha formação como linguista e de minhas inquietações diante da minha atuação, um linguista, em uma linha de pesquisa cujo foco seria a questão da cultura e dos estudos culturais em um programa de pós-graduação em letras. Este texto pretende ser um testemunho da importância da trajetória da professora Eneida, falando de seu trabalho tanto como parceira na construção e consolidação de um programa e como orientadora de um professor de linguística em um estágio pós-doutoral e, assim, marcar a sua importância para minha formação ainda na minha maturidade e para minha atuação nas minhas pesquisas e trabalhos de orientação.

PALAVRAS-CHAVE:
crítica literária; Eneida Maria de Souza; relato de experiência

ABSTRACT

In this text, I would like to register my experience and interaction with Professor Eneida during her stay at UFSJ, more specifically in the Postgraduate Program in Literature. I aim to talk about this experience and its importance from the perspective of my training as a linguist and my concerns about my work, a linguist, in a line of research that focuses on the issue of culture and cultural studies in a postgraduate program in Portuguese. This text aims to be a testimony on the importance of the intellectual trajectory of Professor Eneida Maria de Souza, highlighting her work both as a partner in the construction and consolidation of the program and as an advisor to a linguist professor in a post-doctoral internship and, thus, highlighting her importance for my training, my maturity, and also my performance in my research and guidance work.

KEYWORDS:
literary criticism; Eneida Maria de Souza; experience writing

Meus primeiros contatos com a professora Eneida Maria de Souza ocorreram durante a minha formação em linguística. Cursava o mestrado, focado nos estudos gerativistas, chomskianos, quando, nos corredores do quarto andar da Fale/UFMG, cruzava com a professora Eneida no final dos anos 1980 e início dos 1990. Sabia quem era Eneida, ainda que fôssemos desconhecidos. Naqueles tempos, pareceu-me que havia uma barreira entre os mestrandos de literatura e os de linguística.

Anos se passaram e voltei a encontrar com a professora Eneida quando me tornei professor e Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação. Naquela época, tive a incumbência de organizar o Programa Professor Visitante Nacional Sênior (PVNS) da UFSJ e, consequentemente, o PVNS do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSJ. Naquela oportunidade pude, finalmente, conhecer a professora Eneida de Souza. Parecia-me, no entanto, que estávamos fadados aos corredores, tendo em vista que, estando na área da linguística, não podia compartilhar de suas aulas: às vezes, por coincidência de horários; outras, por desconhecimento de minha parte. Encontrava, todavia, com a professora Eneida na sala de reuniões do nosso Programa de Pós-Graduação ou quando nos reuníamos para promover os eventos acadêmicos que realizávamos.

Sorriso calmo, olhar atento, sua atuação crítica era mansa e firme. Estas foram minhas primeiras impressões. Impressões de uma Eneida que encontrei na minha maturidade, que marcou minha experiência e forjou-me um outro aprendizado. Nossa aproximação se deu de forma lenta e gradual, entre um linguista e uma teórica da literatura e dos estudos culturais. Um linguista formado em um curso de Letras cuja base teórica no campo da literatura foi a análise estrutural dos romances, a abordagem fenomenológica e algumas pontuações da semiótica greimasiana.

Com o passar do tempo, este linguista se une a um professor de jornalismo e a duas professoras de literaturas de língua inglesa para criarem o Programa de Pós-Graduação em Letras: Teoria Literária e Crítica da Cultura. Sob a consultoria do professor Wander Melo Miranda, sete professores pensavam a construção do programa: um linguista e um professor de jornalismo, que atuava no curso de Letras, associados a cinco professores da área de literatura e crítica da cultura.

Diante do sonho começado, iniciava-se a inquietação do que criáramos. Ainda no início, com a chegada de mais um linguista, nos tornamos dois professores de linguística e um de jornalismo que se acolhiam sob o guarda-chuva de parte da área de concentração, mais especificamente, Crítica da Cultura. A crítica da cultura chegava como uma posição pensada para acomodar essa pluralidade e o desejo de se criar um programa de pós-graduação em Letras por quatro professores recém-doutores. O professor Wander Melo Miranda, pode-se dizer, foi um regente entusiasmado e competente e, de sua maestria, nasceu o Programa Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei.

Ao me situar, desse modo, busco as condições para refletir sobre a experiência e o aprendizado na convivência curta, mas densa, com a professora Eneida Maria de Souza nesses quatro anos de convívio no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Ainda que o tempo tenha sido curto, o aprendizado foi longo e persistente. Falar de seu empenho na consolidação do Programa seria um olhar sobre sua atuação institucional ou atentar para mais um legado de sua crítica? Longe de ser uma pergunta, proponho-me afirmar o valor da experiência vertical e, assim, apontar o empenho e a importância da professora Eneida não só para a consolidação do Programa de Pós-Graduação, como também para o fortalecimento de seus docentes. E mais, diante do crescimento obtido pelo Programa, pode-se afirmar que seu olhar e sua atuação institucional é mais uma faceta do legado de sua crítica.

A atuação da professora Eneida inicia-se a partir da aprovação de um projeto submetido ao edital de 2009, como já observado, o Programa Professor Visitante Nacional Sênior (PVNS) da CAPES. Com a aprovação do projeto, a professora Eneida Maria de Souza começa a atuar no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSJ. Inicia seus trabalhos com o projeto “A biografia nasce dos arquivos”. Nessa participação, ministra disciplinas, orienta alunos e contribui muito também nas reuniões do Programa. Sua experiência foi fundamental para o avanço dos trabalhos do grupo, promovendo debates temáticos e buscando estimular e fomentar, com sua atuação teórica, as produções do corpo docente. Estes debates levaram à promoção de vários eventos acadêmicos importantes para o programa. Sua experiência levou-nos a adquirir a competência necessária na confecção e execução de projetos financiados e com consequente produção acadêmica. Podemos citar, por exemplo, a promoção do I Colóquio de Crítica da Cultura, com o tema “O futuro do presente”. Sob a coordenação da professora Eneida, trabalharam todos os professores nessa produção, cujos trabalhos foram publicados na coletânea O futuro do presente: arquivo, gênero e discursoSOUZA, Eneida Maria de; TOLENTINO, Eliana da Conceição; MARTINS, Anderson Bastos (org.). O futuro do presente. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2012., lançada pela Editora da UFMG no ano de 2012.

No ano seguinte, em 2013, novamente a ação da professora Eneida se fez presente quando da organização da Jornada “Figurações do ÍntimoSOUZA, Eneida Maria de; LaGUARDIA, Adelaine; MARTINS, Anderson Bastos (org.). Figurações do íntimo: ensaios. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013.”, que também culminou com a publicação do livro de mesmo título pela Editora Autêntica, de Belo Horizonte. Sua experiência nos orientou, então, a organizar nossos eventos obedecendo a uma sistemática bem específica que atendesse às duas linhas de pesquisa do Programa. Sua atuação institucional, associada à forte posição teórica, tinha como objetivo a coesão e, consequentemente, o fortalecimento de um programa de natureza híbrida. A orientação de Eneida foi que promovêssemos um colóquio mais abrangente que congregasse todos os professores e, assim, pudesse contemplar em um mesmo evento tanto a linha de pesquisa “Literatura e Memória Cultural” quanto a linha de pesquisa “Discurso e Representação Social”. Em sua proposta, esse colóquio seria bienal e, entre um colóquio e outro, cada linha de pesquisa promoveria uma jornada de estudos. Com essa dinâmica, o Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSJ passou a realizar um evento a cada ano.

A primeira jornada ficaria sob a responsabilidade dos docentes da área da literatura, ao passo que a próxima jornada ficaria sob os cuidados dos docentes da área da linguística, mais especificamente, análise do discurso, e a área do jornalismo. Seguiriam a esse colóquio, revezando, como propôs a professora Eneida, as jornadas, eventos que eram específicos de cada linha. Mas a visão da professora Eneida recomendava que a especificidade não poderia fechar as portas para a outra área.

Tivemos, assim, sob a batuta crítica de Eneida Souza, debates produzidos na Jornada “Sobrevivência e Devir da LeituraSOUZA, Eneida Maria de; LYSARDO-DIAS, Dylia; BRAGANÇA, Gustavo Moura (org.). Sobrevivência e devir da leitura. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2014.”, cujos trabalhos apareceram em uma coletânea homônima, publicada pela editora Autêntica, em 2014. Pudemos promover, ainda, o II Colóquio de Crítica da Cultura, com o tema “Corpo, Arte e Tecnologia”, cujos trabalhos foram revisados, ampliados e publicados no livro Corpo, arte e tecnologiaSOUZA, Eneida Maria de; ASSUNÇÃO, Antônio Luiz; BOËCHAT, Melissa Gonçalves (org.). Corpo, arte e tecnologia. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2015. pela Editora da UFMG no ano de 2015. Pode-se perceber, nestes exemplos e nestas ações, uma amostragem do trabalho desenvolvido no Programa de Pós-Graduação pela professora Eneida Souza, que, com olhar crítico e atento, debruçava-se sobre temas da atualidade.

Voltamos, assim, à questão posta e que nos é bastante clara: a inseparabilidade da Eneida Souza crítica literária, da professora Eneida e da escritora Eneida, mas, principalmente, podemos falar da professora Eneida parceira, que nos deu quatro anos de experiência e incentivo, nos ajudando a traçar os rumos do nosso programa. Afinal, não seria o fortalecimento de um programa de letras de uma pequena universidade do interior uma ação crítica de quem reconhece a relevância deste espaço para a construção do saber? Mais ainda, não seria também esse empenho em uma universidade do interior a ciência da necessidade de se pensar o saber que se produz, numa asserção insistente e crítica do conhecimento? Pudemos testemunhar esse movimento teórico-crítico nas temáticas propostas pelos eventos promovidos. No Programa de Letras da UFSJ, Eneida, teórica e crítica, convidava-nos a olhar atentos para a atualidade do mundo que fervilhava, um olhar necessário que mirava a partir de uma pequena cidade do interior de Minas. Falar de Eneida e de seu papel nessa construção da universidade pública, portanto, é falar da Eneida crítica literária que nunca separou a crítica da vida, afirmando a urgência de unir as duas pontas de seu fazer crítico: vida e teoria comungadas na práxis. Com Eneida, aprendíamos com as leituras, com as conversas nos bares de São João del-Rei... não havia lugar nem hora para o aprendizado. Eneida não se furtava a falar de literatura, de teoria, de política, do PT, de Lula, da Dilma. Éramos felizes e sabíamos.

Nossa universidade crescia com o investimento público que nos presenteava com um convívio complementar e dialético entre docência e pesquisa personalizada na figura ímpar da professora Eneida. Foi um privilégio que, se pudéssemos, em nosso egoísmo dócil, duraria mais tempo.

Com a chegada da professora Eneida Souza, contudo, meu incômodo e minha inquietação me vieram sob a possibilidade de um estágio pós-doutoral. Terminados meus trabalhos na Pró-reitora de Pesquisa e Pós-Graduação, meus encontros com a professora Eneida acenaram com um projeto de pesquisa em que buscaria pensar os estudos linguísticos para além das disciplinas. Esta era a proposta, este era o projeto. Afinal, não poderia ser diferente. Após os eventos e os debates compartilhados com Eneida, não havia como continuar preso aos limites e liames das disciplinas. Se consegui realizar esse intento, antes que me perguntem, não sei se posso garantir essa realização, mas foram alguns meses de grande ambição e muito aprendizado.

Como pensar um saber tão disciplinar como a linguística, para um linguista formado no gerativismo e no funcionalismo no final da década de 1980 e início dos anos 1990, sob uma perspectiva para além da disciplinaridade? Um dos primeiros textos que eu me lembre que Eneida me convidou a ler falava sobre a morte de uma disciplina, numa reflexão acerca da assunção de uma nova literatura comparada, o que na sua emergência implicaria a sua morte. Ler Spivak parecia-me um leve sorriso e uma fina ironia da professora Eneida: debruçava-me, agora, sobre a incerteza do campo teórico que me era tão certo, tão delimitado, tão preciso, com seu objeto comportado sob os grandes e repetidos cortes epistemológicos - expressão confortável que me explicava a necessidade da delimitação diante da improvável certeza das coisas.

As conversas com a professora Eneida, as leituras possíveis, facilitadas pelos comentários, os eventos em que pude participar foram aprendizados instigantes que valiam, assim, o tempo, o esforço e a tentativa de uma busca longa em um espaço de tempo curto. Afinal, foram apenas seis meses.

Mas gostaria de voltar a falar do linguista que ficou perdido nesta narrativa. Em minha atuação no Programa de Pós-Graduação em Letras: Teoria Literária e Crítica da Cultura, coube-me, em que pese minha formação em estudos linguísticos, produzir um dizer no domínio da crítica da cultura para o desenvolvimento de trabalhos na linha de pesquisa “Discurso e Representação Social”. Assim, o problema que se colocou se originava do primado da estrutura que fundara a linguística como disciplina e a língua, enquanto sistema, como seu objeto. Meu projeto, sob a supervisão de Eneida Souza, resultou dessa necessidade de deslocamento da perspectiva limitada, por ser disciplinar, dos estudos linguísticos, para que pudesse desenvolver as atividades acadêmicas, seja de ensino ou de pesquisa.

Dentro do quadro do Programa, no entanto, na linha de pesquisa em que atuava, a definição da língua como objeto de estudo colocava duas posições: primeiro, considerar que estudar a língua, ainda que sob uma visada estrutural, seria estudar a cultura, ou ainda fazer crítica da cultura e, em uma segunda posição, aceitar e considerar o desafio de repensar esse lugar disciplinar da linguística. Necessariamente, isso implicava pensar o seu objeto de estudo é promover, no seu interior, esse deslocamento em um dos primeiros consensos fundadores, a questão do sentido, no interior da linguística.

Coube à nova disciplina da Análise do Discurso responder a essa demanda. Fora desse lugar confortável que estruturava a visão sistêmica fundadora dos estudos linguísticos, o sentido reclamava sua exclusão. Posição confortável, por que a nova ciência se perguntava como dar conta daquilo que não pode ser estruturado? Como organizar o saber a partir daquilo que é dinâmico? Portanto, submeter o sentido ao poder estruturante tornou-se um problema.

Estimulado pelas conversas com Eneida, sempre me vinha a ideia de pensar para a linguística uma desterritorialização, uma des-disciplinarização para que se pudesse pensar a língua como objeto de estudo, na medida em que o foco deveria ser sempre o problema da significação. Pareceu-nos importante que o funcionamento do signo linguístico nunca estivesse fechado, na sua dinamicidade sempre buscasse sua inconstância, funcionando como se operasse pelo adiamento da significação. Mas também nos pareceu importante assegurar que, diante da instabilidade do signo, houvesse momentos em que ocorresse a sua regulação, ainda que temporariamente, para que os discursos pudessem operar.

Diante dessas preocupações, a professora Eneida me apresentou Giorgio Agamben (2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.) que, em O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha, expunha a ideia de superação da linguística de Saussure em Benveniste por uma semântica da enunciação.

Se a enunciação não se refere, conforme sabemos, ao texto do enunciado, mas ao fato de ele ter lugar, se ela não é senão o puro autorreferir-se da linguagem à instância de discurso em ato, em que sentido se poderá falar em uma “semântica” da enunciação? Certamente - conclui ele - o isolamento da esfera da enunciação permite distinguir pela primeira vez, em um enunciado, o que é dito do fato de ele ter lugar; mas não é, precisamente por isso, que a enunciação representará a identificação, na linguagem de uma dimensão não semântica? (Agamben, 2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 139-140).

Desse modo, ao intervir no sistema para fazer discurso, na apropriação da língua para seu uso, o indivíduo não apenas se posiciona como sujeito de fala, como institui o outro, submete-o ao seu dizer e constitui o objeto a ser dito. Segue a observação de Foucault (2006FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Aula inagural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2006.), quando atenta para o fato de que o que está em jogo não são os objetos que esse discurso produz, mas o próprio discurso. Para Agamben, “um fio secreto une o programa foucaultiano àquele delineado pelo linguista” (Agamben, 2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 140).

Parece-nos que, neste mesmo sentido, Barthes, ao tomar a língua como fascista, afirmava: “ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (Barthes, 1977BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Cultrix, 1977., p. 14). Fascista porque em seu papel performático situa os sujeitos, categoriza, segrega, define o que deve ou não ter a pretensão da verdade. Uma metafísica da presença na ausência que todo signo carrega por insistir na pretensão de presentificar o ausente. Em seu bojo, o signo carrega a história de sua significação e essa história não se apaga mesmo na relação com novos dizeres e na ocorrência em novas situações impostas ao enunciado de que faz parte. Essa história o acompanha e constitui o sentido por vir.

Afinal, tomar a palavra é significar o mundo, o que implica poder e, portanto, implica não representar, pois esse gesto requer o reconhecimento de algum traço que pudesse fixar a referência entre um dizer e seu significado. Nisso consiste o poder: na possibilidade de marcar a diferença, na possibilidade da nomeação, de dizer o que é. É o privilégio da transparência da linguagem, do sentido pretendido como universal, que institui os discursos. Novamente, a professora Eneida me vem em auxílio, e ouço a voz de Spivak (2010SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.) a perguntar se o subalterno pode falar, ou ainda a fala de Spivak (2003SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Death of a discipline. New York: Columbia University Press, 2003.), ao observar que a noção de “Oriente” é uma produção do Ocidente.

Pode-se, assim, perguntar que identidade um determinado sujeito, grupo de indivíduos ou nações possuem senão aquela que se articula pela linguagem a partir de um lugar de poder? De que lugar essa nomeação opera sua subjetivação? De que lugar ela agencia seus sujeitos? Essas são questões que se tornaram possíveis a mim devido ao aporte dos pensadores do pós-estruturalismo para a inquietação com que pensava a linguagem e o processo de produção de sentido, diante das colocações que minha atuação no programa de pós-graduação postulava.

Lembro-me da leitura de seu livro Janelas Indiscretas, uma publicação de 2011. Parei em um dos primeiros ensaios: “Janelas Indiscretas”. Nessa leitura, o linguista, acostumado com a espessura do tramado textual, se via convidado a espreitar o texto e observar o pequeno comentário que ela fazia do texto de Paulo Francis sobre a vitória tardia do socialismo na França, modo como Eneida se referia à eleição de François Mitterrand.

Essa leitura lembrou-me de Pêcheux em seu O discurso: estrutura ou acontecimento. Refletia Pêcheux sobre a vitória de Mitterrand a partir do enunciado “On a gagné”, que, segundo o autor, atravessava a França naquele dia 10 de maio de 1981. O acontecimento, observava, “no ponto de encontro de uma atualidade e uma memória”. E Pêcheux dizia, referindo-se aos comentaristas políticos, que eles iriam “‘fazer trabalhar’ o acontecimento em seu contexto de atualidade e no espaço de memória” (Pêcheux, 2008PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes Editores, 2008, p. 19).

E percebo este “fazer trabalhar” o acontecimento quando Eneida, indignada, comenta o texto de Paulo Francis. Eneida observa atenta que o articulista insistia nos segredos amorosos do presidente diante do acontecimento de sua eleição. E não nos deixa esquecer que, pautado pelo estilo do jornalismo americano, Paulo Francis, naquele movimento, banalizava a vitória do socialismo e despolitizava o acontecimento. A atuação crítica de Eneida não separava a teoria crítica e cultural do engajamento político, da crítica da vida, enfim, e afirmava, desse modo, a urgência de unir essas duas pontas do fazer teórico.

Colocar-se à espreita, gesto teórico diante do que se percebe como a interferência na vida privada do presidente como um fazer político - bem pesada indiscrição, que descreve o outro nos bastidores da sua vida privada. Como uma poética da crítica, Janelas Indiscretas constrói-se como uma metonímia robusta desse modo de se colocar a ouvir, em que o lugar se ocupa do olhar, que se esconde - aquele da leitura. Paulo Francis, apanhado sob essas janelas, como esse fazer político que se avizinha para trabalhar o acontecimento, divertindo-se com a intimidade alheia para esquivar-se do acontecimento que o atropela.

No trabalho discursivo, portanto, a desconstrução poderia ser vista como um movimento estratégico de escuta, de acordo com o qual a leitura dos movimentos dentro do texto seria possível. Uma estratégia, enfim, que acompanhasse os movimentos dos recursos linguísticos escolhidos, organizados, combinados para constituir um todo de sentido, produzidos a partir de escolhas e apagamentos. Mas também, um gesto de leitura em que se pudesse observar o funcionamento do texto na imposição de um sentido, dentro do regime de verdade a que esse texto está sujeito. Mas são esses recursos de indecidibilidade, pois o sentido não se define como um calculável, mas impõe-se sob um regime de verdade, que orientam o modo de fazer sentido no/do texto. Cabe aos sujeitos tomarem decisões acerca da verdade que se pretende, ainda que entretecido nessa ambiguidade e possibilidade sem fim.

Ninguém mais que Eneida Souza para olhar dessa janela indiscreta os acontecimentos desses tempos em que vivemos. Fazer sentido dessa burguesia que, mais que Paulo Francis, não só interfere como fabrica vidas privadas para evitar o exercício da crítica no debate político. A isso, Eneida se referia, indignada, logo na primeira página de seu ensaio, como o modus operandi dessa política moderna de “desestabilizar personalidades, valendo-se de detalhes pessoais e pelo endosso de uma ética de fachada” (Souza, 2011SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011., p. 27). Nada tão atual como essa crítica. Nessa poética do teorizar, Eneida rompe a trama da fala minúscula e nos atenta a cada dizer na observância de sua (in)consistência.

Para mim, pareceu-me que o fazer teórico pode-se definir como esse gesto de suspeição e de indiscrição. A metonímia da janela indiscreta me dizia que era preciso teorizar para além da leitura. Lembrar essa passagem de meu aprendizado, fez-me revisitar uma entrevista, concedida por Didi-Huberman, ao blog Fuera de Lugar, a que tive acesso naqueles momentos, neologismo justo, eneidianos. Naquela entrevista, Didi-Huberman (2010DIDI-HUBERMAN, Georges. Las imagines son un espacio de lucha. Fuera de Lugar, 2010. Disponível em http://blogs.publico.es/fueradelugar/183/las-imagenes-son-un-espacio-de-lucha. Acesso em: 06 jul. 2022.
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) caracterizava as imagens como espaços de luta, ao falar sobre as duas formas contemporâneas de cegueira e invisibilidade.

Para Didi-Huberman, a cegueira pode ocorrer pela falta de luz diante de uma subexposição de imagens: não vemos porque a luz é pouca; e essa se contrapõe à invisibilidade, em que há o excesso de luz e, em uma sobre-exposição, as imagens de tão expostas se tornam invisíveis. Como Eneida observa, em Janelas Indiscretas, a luz que se joga sobre a intimidade do outro, bem como a sobre-exposição das realidades fabricadas de hoje que inundam as redes sociais, desestabiliza a ordem na imposição do caos. A censura imposta ao negar ao acontecimento sua natureza política, em que não se mostra a vitória do socialismo ainda que tardia; e o exagero insistente na intimidade do outro que, por chamar tanta a atenção, silencia, não se deixa ver mais nada.

Em minhas conversas com Eneida, o excesso das grandes mídias sobre os governos petistas funcionava como a censura, cegueira que se impõe, pela sobre-exposição de imagens que se produzia. Não se enxergava sob a conjunção entre cegueira e invisibilidade. Com Eneida, podemos pensar essa poética que se mostra nos versos cotidianos falados a todo momento: “deixa eu olhar, para eu ver” ou “você me ouve, mas não me escuta”.

E podemos concluir, com Didi-Huberman (2010DIDI-HUBERMAN, Georges. Las imagines son un espacio de lucha. Fuera de Lugar, 2010. Disponível em http://blogs.publico.es/fueradelugar/183/las-imagenes-son-un-espacio-de-lucha. Acesso em: 06 jul. 2022.
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): “E cada imagem nos exige ser vista, não apenas contemplada uma e outra vez”. Fala-se da saturação de imagens que impede de ver e que, conjugada com uma subexposição forjada pela censura produzia a um tempo a invisibilidade e a cegueira. Esses dois procedimentos caracterizariam uma ação de poder: mostrar até saturar, saturar até cegar. Tornar invisível por ver demais.

Mas essa ordem do material surge como a sobre-exposição da intimidade, objetivando, como atenta Eneida, ao deslocamento e à impossibilidade do sentido. Cisão entre ver e contemplar e entre ver e olhar. E é essa cisão - olhar e ver - que nos leva a pensar a teoria, como nos ensinou, e ainda nos ensina Eneida, como um estar à escuta, para que não se incorra nesse cisma do “você escutou, mas não ouviu”. A um linguista, Eneida pareceu ensinar que não se pode estar exposto por demais ao linguístico, ao espetáculo das imagens, nem estar alheio, enfim, diante daquilo que é da ordem da materialidade, pois pode tornar-se invisível o sentido que se inscreve no texto que se mostra.

REFERÊNCIAS

  • AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.
  • BARTHES, Roland. Aula Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Cultrix, 1977.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Las imagines son un espacio de lucha. Fuera de Lugar, 2010. Disponível em http://blogs.publico.es/fueradelugar/183/las-imagenes-son-un-espacio-de-lucha Acesso em: 06 jul. 2022.
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  • FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso Aula inagural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
  • PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes Editores, 2008
  • SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.
  • SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Death of a discipline New York: Columbia University Press, 2003.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.
  • SOUZA, Eneida Maria de; TOLENTINO, Eliana da Conceição; MARTINS, Anderson Bastos (org.). O futuro do presente Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2012.
  • SOUZA, Eneida Maria de; LaGUARDIA, Adelaine; MARTINS, Anderson Bastos (org.). Figurações do íntimo: ensaios. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013.
  • SOUZA, Eneida Maria de; LYSARDO-DIAS, Dylia; BRAGANÇA, Gustavo Moura (org.). Sobrevivência e devir da leitura Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2014.
  • SOUZA, Eneida Maria de; ASSUNÇÃO, Antônio Luiz; BOËCHAT, Melissa Gonçalves (org.). Corpo, arte e tecnologia Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2023
  • Aceito
    14 Out 2023
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