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A vida do texto e o leitor comum

The life of the text and the common reader

RESUMO

Esta homenagem a Eneida de Souza busca abrir uma janela de seu livro sobre biografia e arquivo para ligar os escritos de Osman Lins às ideias de estetizar o pacto do escritor com o destino literário e com a autobiografia ficcional. Dessa forma, a morte anunciada pela ficção transforma o sujeito em personagem e o texto passa a ter vida a partir do gesto do escritor. Em Os gestos (1957), tanto o quarto quanto a moldura de uma janela enquadram simbolicamente o espaço íntimo do gesto que se amplia e se transforma na passagem ao mundo exterior, na busca alargada do corpo/casa que se escreve através da memória. Em Domingo de Páscoa (2013), assim como em seus últimos textos (1978), destaca-se esse gesto da morada originária ao se cruzar no análogo espaço dentro/fora da janela através do quarto do doente. A leitura teórico-crítica autobiográfica busca assim atualizar o gesto poético para o leitor comum e para o sentido de doença.

PALAVRAS-CHAVE:
autobiografia ficcional; gesto de escritor; janelas textuais

ABSTRACT

This homage to Eneida de Souza tries to open a window within her book on biography and archives so that it may connect Osman Lins’s writings to the ideas of anesthetizing the writer’s pact with literary destination and fictional autobiography. While death, announced by fiction, can change the subject into a character, the text is brought to life through the writer’s gesture. In Os gestos, the room, as well as the window frame, are then symbolic passageways to the exterior world in the expanded search of the body/house which are written through memory. In Domingo de Páscoa (2013), as well as in his last writings (1978), there is this original sheltering gesture while it is being crossed by an analogous space turned inside out, as seen by a patient’s sickroom perspective. Thus, this theoretical/critical autobiographical reading seeks to update both the poetical gesture to the common reader and to the feeling of sickness.

KEYWORDS:
autobiographical fiction; writer’s gesture; textual windows

“A crítica biográfica é sempre uma transposição metafórica do texto.”

(Eneida Maria de Souza, Janelas Indiscretas, 2011SOUZA, Eneida de. Janelas Indiscretas. Ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.).

“Me alegro em concordar com o leitor comum; pois através do senso comum dos leitores, incorrompido por preconceitos literários, após todos os refinamentos de sutileza e os dogmatismos de aprendizagem; é a ele que finalmente cabe em geral decidir sobre o acesso às honras poéticas.”

(Virginia Woolf, The Common Reader, 1925WOOLF, Virginia. The Common Reader: first series. New York: Harcourt, Brace and Company, 1925, tradução minha).

Recentemente escutei Eneida de Souza falar sobre a biografia como palestrante no Quinto dos Encontros Literários de Osman Lins (Souza, 2020SOUZA, Eneida de. Dizem que a vida começou no mar: voltemos à origem. In: ELO (Encontro de Literatura Osmaniana), 5., set./out. 2020, evento virtual. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=c8VzBjGQRfk . Acesso em: 6/8/2023.
https://www.youtube.com/watch?v=c8VzBjGQ...
, em V ELO, organizado por Elizabeth Hazin), que tanto gosto. Impressionou-me quando ela, de saída, declarou: “Eu mudei”. Hoje, diante de sua partida recente, ainda fico perplexa, justamente por ela ter dito isso pouco antes de sua morte, sem ideia de que partiria tão logo. Por isso, num primeiro momento, tal mudança de que Eneida fala chega a intrigar; mas, em um segundo momento, ela já não surpreende tanto. Eneida de Souza sempre exigiu escuta fina e atenta. Pesquisadora muito rigorosa, quem a conheceu e a ouve falar sobre sua própria mudança, sabe que não foi da noite para o dia, mas o resultado de muita reflexão.

Parafraseando-a nesta ocasião, ao dizer que no passado tinha sido mais acadêmica e mais teórica, apegada aos fatos dos biografados e dos textos, buscando “indícios” ou “comprovantes” científicos de um “real” ou de uma realidade histórica que se pretendia muito mais objetiva do que hoje, entendo-a melhor, e principalmente depois que ela própria faz uma retrospectiva de seus trabalhos, pensando em tantos deles, mas principalmente em Mario de Andrade, Pedro Nava e em Borges. Essa mudança não vem de agora, ela vem de um tempo considerável, um tempo de pesquisa que, em si, conforme às inúmeras leituras e achados ao longo de seu rico percurso, já significa uma mudança de postura. E mesmo esta de que fala, é bem provável que desde então já pudesse ter sido prevista.

Também no sentido de autocrítica, Eneida (1999aSOUZA, Eneida de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999a.) disse ainda que, apesar de lhe interessar “a vida do texto” antes de qualquer outra coisa, “ficava mais ligada à construção da obra (como a da construção do Macunaíma) e não tanto à vida cultural e literária do escritor” (palavras de Eneida no V ELO); este passava a ter uma “dimensão maior” que antes. Daí que, com relação ao caráter biográfico, declara: “interessa-me outra dicção”. E reitera, em tom de autocrítica, que acredita agora, quanto ao saber narrativo do “eu”, que antes era “muito concisa” e que “precisava mudar”. Transcrevo suas palavras: “Tenho que mudar minha maneira de escrever. A teoria me ajuda, continuo a gostar dela, mas tenho que pensar agora o próprio autor como um personagem” (palavras de Eneida no V ELO). Mostra, neste ponto, e muito didaticamente, que a teoria a quem deve esta mudança de pensamento vem de RolandBarthes por Roland Barthes (2003BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação da Liberdade, 2003.).

Desta leitura crítica, o sujeito e o autor, mas principalmente o que se entende como uma “dramatização do sujeito”, abre-se através dele um “cenário de escrita” que é importante justamente pela enunciação crítica deste autor, que passa a ser mais ensaística, trazendo consigo também um caráter ficcional. E sobre esta separação entre o autor e o sujeito em um texto de caráter autobiográfico, acrescenta a si mesma:

Assumo uma outra forma de dicção - uma outra forma de saber narrativo: passo a interpretar minha posição com relação à narrativa atribuindo uma dimensão maior ao texto, em relação à crítica: incluo a minha própria mudança, ou seja, a autobiográfica, em relação a ela. Passo, inclusive, a interpretar o próprio autor como personagem. Tomando Barthes por Barthes como parâmetro, escrevo como se fosse uma personagem. (palavras transcritas da gravação do V ELO).

De modo que esta será a base de um pensamento teórico-crítico que, partindo de uma mudança relativa tanto à leitura do texto quanto à do autor, leva Eneida a colocar a si mesma como sujeito de sua própria enunciação, ilustrando-se neste que seria o “saber dramático” relativo ao afastamento do sujeito com o qual se trabalha dentro desta sua preocupação de ampliar o texto e pensar a “vida do texto”. Pois, reitera, o autor e ela, ou ainda, o sujeito da enunciação junto com ela como autora, está todo o tempo encenando dentro de um “cenário de escrita”. De acordo com a postura dupla assumida por Barthes, e agora por Eneida, há, em primeiro lugar, um afastamento com relação ao sujeito, e, em segundo lugar, uma proximidade entre sujeito/autor e, portanto, um duplo movimento tanto de distanciamento como de aproximação entre ambos.

Ora, essa enunciação crítica, comenta Eneida, teria uma conotação menos acadêmica, como a que teve nos anos 1970. Esta passa, agora, com o acréscimo do caráter ficcional nessa ampliação do cenário da escrita, a ter uma conotação, ao invés, mais ensaística, trazendo consigo, inclusive, um caráter ficcional. Não há mais, como havia então, a separação rígida entre ficção e realidade. Continuando a parafrasear Eneida, nessa retomada do texto crítico entra em jogo a capacidade do sujeito de inventar junto com o autor e, o que é muito importante para a crítica ensaística, em que se é capaz de criar: não há mais nem o surgimento exacerbado do sujeito, à la Barthes, como nos anos 1980; há, agora, uma libertação desse sujeito, que dantes aprisionado, como exemplifica a teoria de Lejeune (2014LEJEUNE, Philippe.O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Jovita Maria Gerheim Noronha (Org.). Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.), ficava dentro de um pacto autobiográfico.

Então Eneida (2011KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moises. Prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., p. 38) cita Doubrovsky em seu pacto auto ficcional, ao sair da literatura de memórias como uma cópia fiel da realidade. Autor de quem ela própria se utiliza em seu Janelas Indiscretas, livro que tem o dom de abrir janelas literárias, seu título com um sabor do olhar cinemático, atendendo, embora distante, ao apelo de um olhar hitchcockiano. Principalmente a partir desse livro de Eneida parece vir a sua definição de crítica biográfica, como na epígrafe: “A crítica é sempre uma transposição metafórica do fato”. E então, a interpretação “contextual teórica” libera-se do “apego ao fato” baseado exclusivamente na busca de fontes historicamente comprovadas. Ou até, como é o caso de muitos jornalistas, em casos passageiros ou “fofocas” de época. Ao contrário disso, ao citar como exemplo a sua própria interpretação, na biografia de Pedro Nava, do fato decisivo que é o suicídio dele, justifica-se quando se transpõe à sua biografia da maneira como ela vê o fato1 1 Lembra-se aqui que um assunto da pesquisa de Eneida de Souza no CNPq foi “Biografias e arquivo”. ao perceber neste “algo que o ultrapassa” dentro das circunstâncias pesquisadas: só então ela se permite interpretar esse “algo” a ponto de considerá-lo a seu modo.

É assim que vê representativo este “algo mais”, em Barthes, de acordo com o que enumera na sua fala: (1) a relação comum entre Roland Barthes e o personagem de A montanha mágica; o fato em comum de terem sofrido de tuberculose como um encontro decisivo para a interpretação do fato biográfico. (2) A relação distanciada, no tempo, de Barthes com Proust, quando Barthes diz “Eu começava a andar e Proust ainda vivia e terminava a Busca”; daí se poder concluir com Barthes, na primeira pessoa, que o “meu destino de escritor está vinculado a Proust, de que participo desta linhagem de escritores...” (Souza, 2011SOUZA, Eneida de. Janelas Indiscretas. Ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011., p. 18). Sobretudo, nessa relação da memória estabelecida entre os tempos divergentes de dois escritores e o fato biográfico, há um anacronismo. O tempo que se insere no presente de forma distanciada rompe com uma relação cronológica para dar mais valor ao “outro que o constitui” como sujeito.

Nesse ponto de sua palestra, Eneida acrescenta, ainda dentro das autoficções, o livro de Michel Schneider, Mortes imaginárias, quando este se preocupa com as últimas palavras ou os últimos dias de escritores que se alinham entre si através da morte, e dá como exemplos, dentre muitos, conforme a feição e o ritual assumidos na hora da morte, escritores como Stefan Zweig, Immanuel Kant, Truman Capote, Walter Benjamin e Freud, além do filósofo Richard Rorty, falecido em 2007, este último chegando a confessar, em entrevista à Folha de São Paulo, que sofria do mesmo mal que Derrida - câncer no pâncreas -, mal atribuído à coincidência tributária de excessiva leitura de Hegel, “vicio intelectual como causa do mal, mostrando o comum de dois perfis de escritores para quem não havia separação entre vida e trabalho” (Souza, 2011SOUZA, Eneida de. Janelas Indiscretas. Ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011., p. 17). Outro exemplo eloquente do que ela chama de “morte plagiaria” é o de Borges, que, em 14 de junho de 1986, na iminência de sua morte, se hospeda, em Genebra, num hotel que acaba transformado num espaço simbólico por Borges, tanto por sua arquitetura espiralada como por lá ter morrido um escritor que admirava: Oscar Wilde. O hotel em Paris em que morreu Oscar Wilde, “revisto e recriado pelo viés da ficção”, serve “para mitificá-lo e sacralizá-lo”. Eneida escreve que Borges, “ao escolher um quarto de hotel para reencenar o gesto de seu precursor Oscar Wilde, estaria cumprindo, ao pé da letra, esse destino literário. De forma irônica, interpreta a morte como ato literário que se repete, assim como o caráter ficcional da própria vida” (2011, p. 115).

Borges, certo de sua fama para os argentinos após sua própria morte, procura convencer o dono do hotel em Genebra que seria vantagem que ele morresse lá, pois poderia, por causa disso, passar a cobrar mais caro. Daí a se concluir que Borges inventar a sua própria morte de acordo com a de seu “escolhido” precursor Oscar Wilde é uma clara certeza, e Eneida ainda cita Raul Antelo, que já declara a produção da biografia borgiana como jogo, pondo em prática uma sorte de “pierremenardismo histórico” (2011, p. 114-116).

Mais definitivo é que nessas potentes andanças em seus jogos citacionais, no limiar entre mortes ficcionais de escritores e vida de textos, entre autor, texto e leitor, biografia e ficção, ensaio e contexto histórico, teatro enunciativo subjetivo e diário íntimo, não só dramatizado como “espetacularizado”, e entrando mesmo pelos híbridos entrelugares da literatura e da cultura de massa, as aberturas das “janelas indiscretas” de Eneida desencadeiam “autobiografias em rede” extremamente ricas, pois, além de fugirem aos lugares mais frequentados, tanto os literários quanto os de cultura de massa, mais repetitivos e sem interesse, efetivam deslocamentos teórico-críticos imaginativos e extremamente enriquecedores para a literatura comparada e a atualização da crítica literária.

Ora, esta presente e antiga leitora de Eneida de Souza que aqui se escreve, confessadamente sua admiradora, sente-se convocada pelas palavras da autora de Janelas indiscretas quando ela mesma declara que a morte é apenas a do corpo histórico. A vida, esta que se vive no corpo, agora é outra: a do texto (Souza, 2011KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moises. Prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.). Assim, como ouvinte e participante do V ELO, em que seu corpo ficou gravado na memória deste público osmaniano ao qual me integro, da janela virtual da internet, ela não só traz à vida todos esses textos, mas, inclusive, a meu ver, pode relacionar-se ao que já escutei como introdução ao que veio a calhar para ampliar uma certa leitura autobiográfica de Osman Lins, cujo centenário, aliás, se anuncia.

De fato, essa leitura não é sem razão, pois como tantos escritores citados por Eneida, e como pretendo esclarecer aqui, Osman Lins estetiza o pacto do escritor com o destino literário - a morte anunciada pela via da ficção - e o teor citacional da decisão transforma o sujeito em ator no discurso da ficção (itálicos meus).2 2 Parafraseio livremente as palavras de Eneida ao comentar uma conferência de Borges sobre o Livro VI da Eneida de Virgílio. Cito de seu livro: “A estetização do ato (do suicídio) reforça o pacto do escritor com o destino literário- a morte anunciada pela via da ficção - através dos versos latinos” (1999b, p. 120).

Peço a permissão do leitor para abrir aqui mais uma janela indiscreta, dando continuidade ao que pretendo desenvolver com relação às cenas de dramatização entre o “eu” do autor Osman Lins e o do seu personagem da narrativa Os gestos3 3 Ver minha leitura crítica atualizada em V ELO, Org. Elizabeth Hazin. Ana Luiza Andrade, “A casa do gesto íntimo: crítica e clínica” (2020), Busco aqui atualizar o gesto poético e o sentido de doença, já com a leitura dos textos do arquivo, antecipando o cruzamento do espaço dentro/fora da janela do escritor ao do personagem de Os gestos. , para, em seus deslocamentos, abrir uma brecha no pensamento crítico-teórico osmaniano e ligar esse velho André inventado, posicionando-o no beiral das “janelas” aqui entendidas não só como lugar simbólico entre dentro e fora do texto, mas também coincidentes com o limiar entre morte e vida do autor. De saída, aproveito-me do Barthes incorporado por Eneida, que, ao montar o seu perfil de escritor, de teórico e de crítico, vai relacionar -se com o personagem (de Thomas Mann) pela doença.

Melhor ainda, a doença, no caso do filósofo Rorty, trazido por Eneida tanto na sua palestra como em seu livro, o faz identificar-se com Derrida, mais especificamente, a partir do câncer de pâncreas, atribuído à excessiva leitura de Hegel. Sem querer entrar na questão da origem da dialética hegeliana, muitíssimo discutida entre os filósofos da época, porém já entendida aqui como a questão conceitual de différance na posição limiar, das margens ou do “entrelugar” atribuídos a Derrida em seu pensamento desconstrutivo, apenas menciono que este seria equivalente à barra entre o significante e o significado, sem meio termo, como seria o caso da dialética hegeliana.

E aqui, sem os preconceitos mencionados na epígrafe de Virginia Woolf, permito-me entrar um pouco na teoria literária moderna da qual Osman Lins parece partir em sua ficção. Essa mesma moeda de pensamento derrideano em suas duas faces, ou bifronte “dentro/fora”, também poderia ser entendida como entrelugar dialético em Barthes, Walter Benjamin, e Agamben. Além de explicar como pretendo desenvolver o lugar da moldura da janela de Osman Lins a partir de Eneida de Souza. De início, considero alguns textos teóricos que remetem ao autor - “A morte do autor”, de Barthes; “O contador de histórias” (2018aBENJAMIN, Walter. O contador de histórias. In: BENJAMIN, Walter. Linguagem, Tradução, Literatura. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2018a.), “O que é o teatro épico” (2018b) e, principalmente, “O autor-produtor”, de Benjamin; e “O autor como gesto” (2007AGAMBEN, Giorgio. O autor como gesto. In: AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.), de Agamben - por estes entenderem o apagamento do autor no pensamento moderno, cada um destacando diferentes questões. No primeiro texto, a questão do leitor se destaca a ponto de substituir o autor (parecendo antecipar este “outro” na cena dramática autor/sujeito), enquanto nos próximos textos teóricos de Benjamin, há tanto a ameaça de desaparecimento do narrador oral pelos meios de comunicação de massa, como a questão mais abrangente do meio de produção (a mudança para o fazer industrial, a técnica, e como isso vai afetar nos novos modos de produção, diferentes dos artesanais) e, por último, há um destaque na cena dramatizada desse “eu” artístico que, ao se interromper, abre uma brecha entre tempos e lugares. No texto do Agamben, precisamente, essa brecha pode ser brechtiana (no caso de distância crítica) ou freudiana (como uma interrupção no andamento da análise). Essas questões mereceriam muito mais debate, mas, mesmo que apenas esboçadas aqui, importam no caso de Osman Lins porque, como escritor, ele vai problematizar a questão do autor e do narrador ao unir e confundir as pontas entre o teórico-crítico, e também entre o ensaísta-ficcionista, para início de conversa...

De fato, Osman Lins tem um trajeto definido neste sentido que problematiza as teorias modernas sobre a autoria de diferentes modos, a partir das memórias4 4 Um dos livros pioneiros da fortuna crítica de Osman Lins, de autoria de Regina Igel, Osman Lins: uma biografia literária já observa paralelos muito fortes entre a vida e a obra ficcional do escritor. e dos territórios textuais. Pois, se em seus textos, além das janelas ficcionais assumirem dimensão simbólica, como divisórias entre o dentro e o fora, também as construções da casa, como se pode ler em “A Casa” (2019),5 5 Texto ficcional inédito em coletânea, publicado pela primeira vez em Imprevistos de Arribaçãopublicações de Osman Lins em jornais recifenses. habitação ou morada do escritor, e do quarto, como seu espaço íntimo (“Diário Íntimo”), tornam-se três lugares simbólicos e recorrentes na memória de Osman Lins, ampliando-se numa dimensão simbólico-autobiográfica e estetizando “o pacto do escritor e seu destino literário” (nas palavras de Eneida). Daí que, ao funcionarem como pano de fundo (“cenário da escrita”) para a encenação dramática do “eu” quando dramatizado, refiro-me, de início, aos textos já mencionados “A Casa” (1951), Os gestos (1957) e “Diário Íntimo”, ou “Últimas Anotações” ou “Diário da Doença” (1978LINS, Osman. “Diário Íntimo” ou “Últimas anotações” ou “Diário da Doença”. Transcrição do último texto em manuscrito original por Ângela Pedroso da Costa Lins, filha do autor e por ela cedido muito gentilmente para fins de pesquisa. 10 fev. 2014. Disponível no arquivo do ICOL (Instituto Cultural Osman Lins-PE) e no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros da USP). ).6 6 Os três títulos para esses escritos em manuscrito (transcritos por Ângela Lins, filha do escritor) - “Diário Íntimo ou “Últimas anotações” ou “Diário da doença” - obedecem a diferentes motivos: o primeiro se justifica pelo próprio Osman Lins, com as seguintes palavras: “sempre que tentei escrever um diário, falhei. Bem ou mal, consigo manter, em viagem, anotações sumárias sem o que as coisas vistas e as cidades visitadas se misturarão numa desordem irremediável em minha mente.” Em seguida, justificando em parte o “Diário de Doença”, escreve que a própria razão do diário seria a de “tomar a temperatura de seu corpo” pois sua “única ocupação” naqueles dias de doença em que, fechado “em si mesmo”, era “como um bicho que se enfurna pelo mato, à sombra, longe de todos.” Já o título “Últimas anotações” foi atribuído ao texto por ter sido escrito antes de sua morte (no entanto ele também se deve a uma certa premonição do fim da vida, por Osman Lins); finalmente o título “Diário da doença” (em que se pode detectar a caligrafia de Julieta de Godoy Ladeira, escritora e companheira de Osman Lins) entendo -o por um desejo de recuperação que ela esperava do doente naquele. Disponível no Acervo Osman Lins do Instituto de Estudos Brasileiros (USP) e no Instituto Osman Lins em Pernambuco. É preciso, no entanto, destacar que os mencionados “A Casa” e “Diário Íntimo”, ou “Últimas Anotações” ou “Diário da Doença”, só foram divulgados mais recentemente.

Inclusive, são exatamente as “Últimas anotações” (refiro-me ao mesmo texto de três títulos), escritas antes de sua morte, ocorrida a 5 de julho de 1978, de autoria do próprio Osman Lins, que vão esclarecer uma volta à origem autobiográfica ficcional no fim da vida de modo a integrar a construção da última janela simbólica desta série dramática de autobiografia ficcional. Isto porque, desculpando-me aqui sem querer repetir pela redundância dos títulos, neste último texto, o próprio Osman Lins se vê, anacronicamente, mas como num espelho, nos inícios de seu percurso de ficcionista, como a encarnação do seu personagem velho, André (inclusive citado neste último texto), ao olhar pela janela de seu quarto buscando fugir, pela imaginação, à dupla forma de prisão: a do quarto do doente cujo corpo se constitui irônica e anacronicamente em forma-prisão das palavras. Pois o velho André, em Os gestos, estava na cama incomunicável, havia perdido o poder das palavras, só lhe restava os gestos. Osman Lins, em suas “Últimas Anotações”, sofria de câncer (estômago, pâncreas, intestino são possíveis tipos, de acordo com essas anotações que também constituem seu “Diário da Doença”), mas ele próprio não sabia disso. Pensava que era “hepatite” e só sabia mesmo que não estava bem, que havia uma coisa errada em seu corpo.

Mas o fato é que ambos, o personagem e seu autor, olham pela janela de seus quartos com o olhar em busca de liberdade, ou de quem foge de uma prisão. Mas também, e principalmente, olham um ao outro como num espelho. A morte das palavras, de um lado, e os gestos como “possíveis” meios para se comunicar, unidos no gesto do escritor, de outro lado, fogem da ameaça de corte ou supressão (tal como sofre também de ameaça de morte o narrador oral pela interferência da mídia na modernidade, segundo o texto sobre o contador de histórias de Walter Benjamin) através do texto híbrido, que é, de uma só vez, autobiografia ficcional, ensaístico e teórico-crítico. E, portanto, se de um lado a morte das palavras tem no gesto do escritor a potência de vida do texto, do outro lado, a morte da voz significa apenas a morte do corpo histórico. Mais precisamente, o texto vive quando o velho André, personagem-narrador, se transforma em escritor ao descrever uma cena bem trivial, os gestos da filha no espelho:

Ela moveu a cabeça em direção à luz, lenta, com um suspiro ansioso. O rosto era belo e se renovava, como um ser adormecido que enriquecesse no deslumbramento de um sonho. O pai não se enganara, aquele era um momento único, ela cruzava um limite quando se afastasse, os últimos gestos da infância estariam mortos. (Lins, 1957LINS, Osman. Os Gestos. São Paulo: Melhoramentos,1957., p. 17).

O velho, então, vê o pai e seu gesto silencioso de reconhecimento do momento da filha passa a ser potência de vida. Um gesto vivo (de despertar, no sentido de experiência e reconhecibilidade) que, ao se inscrever no texto, consegue enfim perceber-se. Ou seja: se até então o personagem narrador considera os gestos como resíduos diante da morte das palavras - “Minhas palavras morreram, só os gestos sobrevivem”, ele exclama em seguida: “Pobres gestos!” (Lins, 1957LINS, Osman. Os Gestos. São Paulo: Melhoramentos,1957., p. 5). Seu poder gestual se desperta agora ao comunicar a leitura de outros gestos através do texto escrito. O personagem André agora passa de fato a escrever depois de incorporar este gesto do leitor (do outro), e consegue ampliar o gesto de um cotidiano trivial dantes tedioso em palavras silenciosas no papel: suas gestografias gravam microgestos daquela que deixou de ser menina neste momento dramatizado, entre um “eu” impotente, e seu gesto de vida do texto. Em outras palavras, esse é o gesto de outrar-se, cujo valor poético, acessível ao leitor comum ao captar o minigesto de um ritual diário,7 7 Ver, em Janelas indiscretas, Eneida cita Cauquelin: “Assim, os ritos diários são acompanhados de minigestos: tomar um sorvete, acender uma lâmpada, se olhar no espelho do banheiro” (2011, p. 33). se amplia simbolicamente no gesto escritor.

Consequentemente, no texto que Osman Lins escreve à beira da morte e que é também diário íntimo e diário da doença, o escritor se torna personagem de si mesmo ao evocar, na cena a partir da janela de seu quarto, bem similar à do velho André (em quem ele, inclusive, se espelha), um exílio do mundo. Sua habitação simbólica passa a ser seu texto novamente, quando interior e exterior se ligam pela janela, a abertura de comunicação com o exterior, ao posicionar-se neste entrelugar. Só que ele dá forma simbólica ao que vê através da memória, esta que foge a partir do emoldurado da janela, sua imaginação voando pelas nuvens que tanto o transportam à sua casa de infância em sua forma doméstica mais íntima, indo até seu diário “secreto” de adolescente (para o menino, as nuvens podem assumir a forma “guerreira” da planta baioneta, como em “A Casa”8 8 Em “A Casa”, lê-se: na “belicosidade de meus cinco anos, utilizava como espada contra imaginários rivais” uma planta chamada “baioneta” por sua forma guerreira. (1951, p. 31) Começa o seu “Diário íntimo” mostrando o que vê através da janela: “Tudo o que vejo da janela é um pedaço de céu. Há também os altos de um edifício de apartamentos e duas antenas de televisão. A que fica na parte mais elevada, tem a forma de uma grelha; a outra, longa e pontuda, lembra uma lança. Ou seja: uma é doméstica, a outra; guerreira. “Mas depois pensa melhor e vê que a antena longa tinha a forma de um “mastro de navio” (1978, p. 1). Aqui já se pode perceber o modo de ler osmaniano, que já vai atribuir o valor simbólico às formas. ); quanto, ao assumirem ora formas domésticas, ora guerreiras no “Diário Íntimo”, elas traduzem as oscilações de seu temperamento.

No entanto, agora, na luta pela vida do corpo doente, sente-se em desequilíbrio com o mundo: “Eu sei que não estou bem”. Então ele vê as nuvens sob perspectiva dupla: do interior através da janela do seu quarto na forma do diário pode vê-las “quando um avião passou voando baixo, eram quase nuvens de chuva”; e, ao mesmo tempo, ao ser visto por elas (de fora) quando, em sua viagem para Natal, pensa numa possível leitura de outrem, que, ao pairar sobre sua imagem doente que olha da janela (seu “posto de observação”), de cima para baixo, voando num avião que passa. Registra no diário: “22 de maio. Viagem de avião para Natal. Se, há dias, estava na cama olhando o céu, hoje estava no alto, entre as nuvens. E talvez alguém doente, da sua janela, tenha visto passar meu avião” (Lins, 1978LINS, Osman. Exercícios de imaginação. In: LINS, Osman. Lições de Casa. São Paulo: Editora Cultura, 1979., p. 1).

Há um imenso poder de síntese nessa frase, cujo registro do fato, aparentemente corriqueiro, mostra um inusitado espelhamento do alto no baixo, e vice-versa, unindo em si os sentidos da forma do diário às últimas anotações, e fazendo o mesmo ao gesto do escritor e suas memórias, amarrando duas pontas, a do início e a do fim da vida.

As nuvens citadas das leituras de Osman Lins sobre aquelas de O jogo das nuvens, de Goethe, autor citado muitas vezes nestas anotações, relacionam-se às condições climático-biológicas que o possibilitariam sonhar desde que seu corpo pudesse sentir-se melhor. Se, por um lado, as nuvens lhe são familiares também como resíduos de outros percursos textuais na memória do escritor, tais como em seus voos imaginários registrados em antigo texto infantil como Exercícios de imaginação (1979); por outro, seu percurso de escritor, em seus múltiplos voos ficcionais, chegam ao romance através de nuvens alegóricas de pássaros (Avalovara, 1973LINS, Osman. Avalovara. São Paulo: Melhoramentos, 1973.) já no escritor adulto. Recortadas de Goethe, precursor escolhido, essas nuvens antigas voltam a encantar como a prenunciar o fim, podendo ameaçar “em momentos baixos” (1978, p. 2) assim como nas mudanças climático-biológica através dos cumulus nimbus. Com efeito, se as citadas “nuvens baixas” podem trazer tempestades no exterior, agora elas passam ao interior do corpo que se escreve.

Em síntese, pode-se ler o texto em suas variações - “Diário Íntimo”, “Últimas Anotações”, ou “Diário da Doença” -, que não se furtam a um senso de humor característico (como é o caso das lembranças de nomes de remédios antigos em conversas com o Dr. Drauzio Varella, seu oncologista),9 9 Vide a alusão, neste texto manuscrito que também é o “Diário da doença”, a velhos remédios chamados de “arqueológicos” em conversa com o Dr. Dráuzio Varella (iniciais D.V. no manuscrito, decifradas por Ângela Lins, a filha de Osman Lins). Refere-se a remédios tais como “gotas Binelli”, “Bromil”, “Xarope São João”, e a outros, em tom de galhofa. em que o escritor se refere a um processo mais frugal de uma escrita cotidiana de “diário”. Do mesmo modo, porém, pode-se ler esse texto em outra dimensão, como ocorre muito nos textos ficcionais de Osman Lins, uma tentativa de ligar a doença íntima (o mal-estar do câncer, e quem sabe seria de pâncreas, como o de Derrida, dado que certamente o relacionaria ao gesto de trabalho do escritor) à dimensão maior: à doença humana do desconcerto com o mundo. De novo, permito-me essa leitura ampliada, um tanto quanto anacrônica, baseada na importância dada ao equilíbrio por Osman Lins.

Enquanto ambas as doenças, a do corpo e a do ser humano, parecem ser vistas em estado de desequilíbrio, ou em descompasso com o mundo ao redor, o fundo ameaçador de uma tempestade (cumulus-nimbus) que parte do corpo íntimo do escritor pode ser estendido simbolicamente a um perigo que paira sobre um corpo cultural histórico-político e ao território sociocultural. Por isso, esse “Diário da Doença”, como o chamou, pela letra detectável nos originais, Julieta de Godoy Ladeira, poderia, assim, não somente ser lido no sentido da busca pela cura, sentido crítico sempre manifesto em Osman Lins, em sua preocupação de harmonia com o mundo através dos seus escritos, mas também no sentido dessa descompensação, pois a doença o desarma, o faz perder o lado guerreiro, sensação desconfortável que o coloca em um mundo em franco desequilíbrio.

Daí a minha leitura buscar uma atualidade que ele talvez não alcançasse em termos históricos (morreu em 1978), diante de um período extenso depois de sua morte, e tão catastrófico em nossos recentes dias de doença (a pandemia de Covid). Sem embargo, para esse efeito concorre, para além do dia a dia de oscilações de saúde registradas nessas passagens do inconformismo à forma-prisão do quarto e aos abatimentos corpóreos desse “Diário Íntimo”, a última frase, quando ele resume tudo o que escreveu: “Do mundo da doença tudo é alijado: só resta a vontade de cura”.

Restou-lhe, enfim, um mundo de doença e a vontade da cura. Por isso, a modo de (in)conclusão, mesmo que anacronicamente, não posso deixar de observar aqui a chocante atualidade dessas palavras, o próprio sentido deleuziano de uma crítica clínica, refiro-me ao sentido de Deleuze, delas, quando a humanidade hoje se viu abatida pelo desequilíbrio catastrófico causado pelo tal coronavirus que não foi reconhecido como tal (assim como um câncer) durante um bom tempo, em sua distância da cura (pela vacina). Doença que fez parar a economia “progressista”, que movia todos os seres humanos do mundo em sua coletividade pandêmica, provocando desconcertos de todos os tipos, inclusive os de políticas públicas e sociais. Doença que se manifesta em seu peso infamiliar de desbalanço em nossa casa, o planeta terra. Daí as nuvens ameaçadoras premonitórias de Osman Lins aqui se avolumarem de tal forma a pressionar um céu prestes a desabar sobre a terra, como prognostica Davi Kopenawa em A queda do céu (2010KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moises. Prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.); peso que se deve, de fato, à ação predatória dos seres humanos ao próprio ecossistema terrestre, em suas relações cosmológicas.

Nesse último texto de Osman Lins, pode-se ler, enfim, para além do sonho do escritor e bem mais do que a intimidade do diário: uma ligação entre o dentro e o fora desde a moldura de uma janela que, em meu ver indiscreto, mostra a intuição de uma desordem, de um distúrbio, de que a nossa casa se encontra em perigo. Esse prenuncio já era notável em Domingo de Páscoa (2013LINS, Osman. Domingo de Páscoa. Organização de Ana Luiza Andrade. Traduções de Ana Luiza Andrade, Fred. P. Ellison, Graciela Cariello, Marta Ines Arabia e Silviana Deluchi. Florianópolis: Editora da UFSC, 2013.), texto-novela que ficcionaliza a viagem do escritor com Julieta de Godoy Ladeira às praias do Espírito Santo. Esse texto ficcional gira em torno do assassinato de um judeu russo na véspera da Páscoa em um hotel de turismo em Guarapari. Com efeito, esse crime violento desencadeia um caos neste ambiente e se passa durante o macrocósmico rito pascal de sacrifício cristão. Não surpreende, então, que ele se amplie simbolicamente como a ameaça de morte à própria função simbólica da arte e seu difícil emergir em um meio consumista causador da perda de memória generalizada na contemporaneidade. Assim, a Páscoa, enquanto renascimento, sinal de vida que se marca no texto, contrapõe-se às premonições de morte advindas desse mundo narcotizado de consumo, vulcão de falsos espetáculos.

Assim como se pode detectar em Osman Lins essa postura dupla do escritor e do personagem, desdobrando-se no crítico-teórico e no ensaísta-ficcionista, há muitos outros indícios simbólicos, tais como sinais, premonições, sonhos e fantasias, através dos quais o leitor comum pode vislumbrar um mundo de literatura ampliado pelas molduras simbólicas móveis que se abrem das janelas indiscretas construídas a partir do arquivo na leitura pioneira de Eneida de Souza. Mesmo que não se possa esquecer essa ameaça incultural, na forte crítica à nossa casa de cultura, sentida e exercida por Osman Lins, e dentro da qual a gente se protege em quarentenas, torna-se por isso mesmo mais que nunca urgente abrir janelas de leituras criativas para avistar Eneida lá fora, possibilitando outros gestos, desdobrando e ampliando universos literários. Da janela de uma despretensiosa casinha de Manhuaçu (MG), ela atuou através de enfoques de pesquisa minuciosamente emoldurados, e daí suas janelas de biografias literárias se abrirem ao mundo, possibilitando leituras autobiográficas ficcionais de tantos outros, inclusive a do texto de Osman Lins em suas ligações simbólicas entre terra e nuvens, desde uma postura limítrofe, crítica/criativa, buscando, em suma, inspirar no leitor comum o seu amor à literatura.

Com o açúcar e o afeto que ela nos ofereceu generosamente, e em nome deste amor incondicional pela literatura, fica essa homenagem à querida colega e inesquecível parceira Eneida de Souza, que, corajosa e nada indiscreta, abriu primeiro a sua janela, e, com seu olhar arejado, corajoso, aberto, permite que a gente possa abrir muitas outras. Obrigada Eneida.

REFERÊNCIAS

  • ANDRADE, Ana Luiza. Escrituras aladas/imagens fugazes: gestos miméticos/devires. Quaestio, Sorocaba, v. 18, n. 2, 2014. Disponível em: https://periodicos.uniso.br/quaestio/article/view/2692/2305
    » https://periodicos.uniso.br/quaestio/article/view/2692/2305
  • ANDRADE, Ana Luiza. A casa do gesto íntimo: crítica e clínica. In: ANDRADE, Ana Luiza. Encontro de Literatura Osmaniana - Veloz é o instante do salto: Literatura e Biografia em Osman Lins. 2020, evento online.
  • AGAMBEN, Giorgio. O autor como gesto. In: AGAMBEN, Giorgio. Profanações Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.
  • BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação da Liberdade, 2003.
  • BENJAMIN, Walter. O contador de histórias. In: BENJAMIN, Walter. Linguagem, Tradução, Literatura Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2018a.
  • KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu Palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moises. Prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  • LEJEUNE, Philippe.O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Jovita Maria Gerheim Noronha (Org.). Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
  • LINS, Osman. Os Gestos São Paulo: Melhoramentos,1957.
  • LINS, Osman. Avalovara São Paulo: Melhoramentos, 1973.
  • LINS, Osman. Exercícios de imaginação. In: LINS, Osman. Lições de Casa São Paulo: Editora Cultura, 1979.
  • LINS, Osman. Domingo de Páscoa Organização de Ana Luiza Andrade. Traduções de Ana Luiza Andrade, Fred. P. Ellison, Graciela Cariello, Marta Ines Arabia e Silviana Deluchi. Florianópolis: Editora da UFSC, 2013.
  • LINS, Osman. A Casa. In: LINS, Osman. Imprevistos de Arribação Publicações de Osman Lins nos jornais recifenses. Organização de Ana Luiza Andrade, Cristiano Moreira e Rafael Dias. Navegantes: Papaterra, 2019.
  • LINS, Osman. “Diário Íntimo” ou “Últimas anotações” ou “Diário da Doença”. Transcrição do último texto em manuscrito original por Ângela Pedroso da Costa Lins, filha do autor e por ela cedido muito gentilmente para fins de pesquisa. 10 fev. 2014. Disponível no arquivo do ICOL (Instituto Cultural Osman Lins-PE) e no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros da USP).
  • SOUZA, Eneida de. A pedra mágica do discurso Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999a.
  • SOUZA, Eneida de. Dizem que a vida começou no mar: voltemos à origem. In: ELO (Encontro de Literatura Osmaniana), 5., set./out. 2020, evento virtual. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=c8VzBjGQRfk Acesso em: 6/8/2023.
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  • SOUZA, Eneida de. Janelas Indiscretas Ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.
  • SOUZA, Eneida de. O século de Borges Belo Horizonte: Autêntica, 1999b.
  • WOOLF, Virginia. The Common Reader: first series. New York: Harcourt, Brace and Company, 1925
  • 1
    Lembra-se aqui que um assunto da pesquisa de Eneida de Souza no CNPq foi “Biografias e arquivo”.
  • 2
    Parafraseio livremente as palavras de Eneida ao comentar uma conferência de Borges sobre o Livro VI da Eneida de Virgílio. Cito de seu livro: “A estetização do ato (do suicídio) reforça o pacto do escritor com o destino literário- a morte anunciada pela via da ficção - através dos versos latinos” (1999bSOUZA, Eneida de. O século de Borges. Belo Horizonte: Autêntica, 1999b., p. 120).
  • 3
    Ver minha leitura crítica atualizada em V ELO, Org. Elizabeth Hazin. Ana Luiza Andrade, “A casa do gesto íntimo: crítica e clínica”ANDRADE, Ana Luiza. A casa do gesto íntimo: crítica e clínica. In: ANDRADE, Ana Luiza. Encontro de Literatura Osmaniana - Veloz é o instante do salto: Literatura e Biografia em Osman Lins. 2020, evento online. (2020SOUZA, Eneida de. Dizem que a vida começou no mar: voltemos à origem. In: ELO (Encontro de Literatura Osmaniana), 5., set./out. 2020, evento virtual. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=c8VzBjGQRfk . Acesso em: 6/8/2023.
    https://www.youtube.com/watch?v=c8VzBjGQ...
    ), Busco aqui atualizar o gesto poético e o sentido de doença, já com a leitura dos textos do arquivo, antecipando o cruzamento do espaço dentro/fora da janela do escritor ao do personagem de Os gestos.
  • 4
    Um dos livros pioneiros da fortuna crítica de Osman Lins, de autoria de Regina Igel, Osman Lins: uma biografia literária já observa paralelos muito fortes entre a vida e a obra ficcional do escritor.
  • 5
    Texto ficcional inédito em coletânea, publicado pela primeira vez em Imprevistos de ArribaçãoLINS, Osman. A Casa. In: LINS, Osman. Imprevistos de Arribação. Publicações de Osman Lins nos jornais recifenses. Organização de Ana Luiza Andrade, Cristiano Moreira e Rafael Dias. Navegantes: Papaterra, 2019.publicações de Osman Lins em jornais recifenses.
  • 6
    Os três títulos para esses escritos em manuscrito (transcritos por Ângela Lins, filha do escritor) - “Diário Íntimo ou “Últimas anotações” ou “Diário da doença” - obedecem a diferentes motivos: o primeiro se justifica pelo próprio Osman Lins, com as seguintes palavras: “sempre que tentei escrever um diário, falhei. Bem ou mal, consigo manter, em viagem, anotações sumárias sem o que as coisas vistas e as cidades visitadas se misturarão numa desordem irremediável em minha mente.” Em seguida, justificando em parte o “Diário de Doença”, escreve que a própria razão do diário seria a de “tomar a temperatura de seu corpo” pois sua “única ocupação” naqueles dias de doença em que, fechado “em si mesmo”, era “como um bicho que se enfurna pelo mato, à sombra, longe de todos.” Já o título “Últimas anotações” foi atribuído ao texto por ter sido escrito antes de sua morte (no entanto ele também se deve a uma certa premonição do fim da vida, por Osman Lins); finalmente o título “Diário da doença” (em que se pode detectar a caligrafia de Julieta de Godoy Ladeira, escritora e companheira de Osman Lins) entendo -o por um desejo de recuperação que ela esperava do doente naquele. Disponível no Acervo Osman Lins do Instituto de Estudos Brasileiros (USP) e no Instituto Osman Lins em Pernambuco.
  • 7
    Ver, em Janelas indiscretas, Eneida cita Cauquelin: “Assim, os ritos diários são acompanhados de minigestos: tomar um sorvete, acender uma lâmpada, se olhar no espelho do banheiro” (2011SOUZA, Eneida de. Janelas Indiscretas. Ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011., p. 33).
  • 8
    Em “A Casa”, lê-se: na “belicosidade de meus cinco anos, utilizava como espada contra imaginários rivais” uma planta chamada “baioneta” por sua forma guerreira. (1951, p. 31) Começa o seu “Diário íntimo” mostrando o que vê através da janela: “Tudo o que vejo da janela é um pedaço de céu. Há também os altos de um edifício de apartamentos e duas antenas de televisão. A que fica na parte mais elevada, tem a forma de uma grelha; a outra, longa e pontuda, lembra uma lança. Ou seja: uma é doméstica, a outra; guerreira. “Mas depois pensa melhor e vê que a antena longa tinha a forma de um “mastro de navio” (1978, p. 1). Aqui já se pode perceber o modo de ler osmaniano, que já vai atribuir o valor simbólico às formas.
  • 9
    Vide a alusão, neste texto manuscrito que também é o “Diário da doença”, a velhos remédios chamados de “arqueológicos” em conversa com o Dr. Dráuzio Varella (iniciais D.V. no manuscrito, decifradas por Ângela Lins, a filha de Osman Lins). Refere-se a remédios tais como “gotas Binelli”, “Bromil”, “Xarope São João”, e a outros, em tom de galhofa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Out 2023
  • Aceito
    26 Out 2023
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