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Eneida Souza: um ato crítico para universidade pública

Eneida Souza: A critical act for public university

RESUMO

Neste texto, gostaríamos de registrar e refletir sobre a experiência e o aprendizado de uma vida com a professora Eneida Souza nos poucos anos de convívio no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Falar de seu empenho na consolidação do Programa seria um olhar sobre sua atuação institucional ou atentar para mais um legado de sua crítica? No Programa de Letras da UFSJ, Eneida, com seu cosmopolitismo e sua leitura, convidava à crítica e ao afeto em uma cidade do interior de Minas que teimava em construir uma pós-graduação. Falar da Eneida e de seu papel nesta construção da universidade pública é falar da Eneida crítica literária que nunca separou a crítica da vida, afirmando a urgência de unir estas duas pontas de seu fazer crítico.

PALAVRAS-CHAVE:
crítica literária; Eneida Maria de Souza; UFSJ

ABSTRACT

In this text, we would like to register and reflect on the experience and learning of a lifetime with Professor Eneida Souza in our few years together in the Postgraduate Program in Literature at the Federal University of São João del-Rei (UFSJ). Would talking about her commitment to consolidating the Program be a look at her institutional performance or paying attention to yet another legacy of her criticism? In the UFSJ Literature Program, Eneida, with her cosmopolitanism and her reading, invited criticism and affection in a city in the interior of Minas Gerais that insisted on building a postgraduate course. Talking about Eneida and her role in this construction of the public university is talking about the literary critic Eneida, who never separated criticism from life, affirming the urgency of uniting these two ends of her critical work.

KEYWORDS:
literary criticism; Eneida Maria de Souza; UFSJ

Cada escritor, portanto, constrói sua biografia com base na rede imaginária tecida em favor de um lugar a ser ocupado na posteridade: ou o do ausente ou o do morto e o do dandy, pois também a morte cultiva seus teatros, como o palhaço e o dandy.

Souza, “Notas sobre a crítica biográfica” em Crítica cult, 2002SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

Este texto, despretensiosamente, é um testemunho bastante emocionado da estada de Eneida Maria de Souza na Universidade Federal de São João del-Rei. Não se pretende aqui um perfil da crítica literária, da importância que é Eneida Maria de Souza pelo que atuou na universidade pública brasileira e pela sua produção crítica, mas apenas um breve esboço fragmentário como é mesmo o processo da lembrança e escrita da memória.

O que se intenta é mesmo registrar e refletir sobre a experiência e o aprendizado em espaços privilegiados de convívio com a professora Eneida de Souza nos poucos anos que esteve junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Impossível separar a Eneida crítica literária, professora e escritora da Eneida parceira de tantas instituições no seu ato crítico de afirmação da universidade pública no contexto brasileiro. No Programa de Letras da UFSJ, com seu cosmopolitismo e sua leitura desconstrutivista, Eneida Maria de Souza convidava à crítica e ao afeto em uma cidade do interior de Minas que teimava em construir uma pós-graduação. Falar da Eneida e de seu papel nessa construção da universidade pública é falar da Eneida crítica literária que nunca separou a crítica da vida, afirmando a urgência de unir estas duas pontas de seu fazer intelectual.

Situamo-nos, assim, para que possamos refletir sobre a experiência e o aprendizado de uma vida com a professora Eneida Maria de Souza nos poucos anos de convívio no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). É preciso registrar: o tempo foi curto, o aprendizado longo. Falar de seu empenho na consolidação do Programa seria um olhar sobre sua atuação institucional ou atentar para mais um legado de sua crítica? Longe de ser uma pergunta, na proposta deste registro, gostaria de afirmar o valor dessa experiência e, assim, apontar o empenho e a importância da professora Eneida para a consolidação do Programa de Pós-Graduação. E mais, diante do crescimento obtido pelo Programa, pode-se afirmar que seu olhar e sua atuação institucional é mais uma faceta do legado de sua crítica.

Num tempo em que o Brasil crescia, nos idos dos anos dois mil, em que as universidades estavam nos planos do governo não só para a ampliação de seus espaços físicos, criação de novos cursos, mas também de seu quadro acadêmico, o contato com Eneida se estreitava. O Programa de Pós-Graduação em Letras (PROMEL) da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), com o desejo de que o curso de Mestrado em Letras pudesse consolidar em um futuro próximo suas pesquisas, incentivado pelo professor Wander Melo Miranda (UFMG), primeiro consultor do Programa, procurou a professora Eneida Maria de Souza. Esse Programa acabara de ser contemplado no Edital Professor Visitante Nacional Sênior, o PVNS - Edital da CAPES. Assim se inicia a atuação de Eneida Souza, professora emérita da UFMG, como pesquisadora nacional sênior na Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Evidentemente, as qualidades acadêmicas de Eneida Souza foram essenciais para que se pudesse concorrer ao edital PVNS. Eneida Souza passou os anos de 2010 a 2014 junto ao grupo de professores e alunos da Pós-Graduação em Letras da UFSJ. Seu projeto intitulou-se “Biografias saem dos arquivos-II”, a ser desenvolvido inicialmente de março de 2010 a fevereiro de 2012. Era, segundo Eneida Souza, uma continuidade do projeto “Biografias saem dos arquivos”, que desenvolvia como pesquisadora bolsista 1A do CNPq junto à equipe de pesquisadores que atuava no “Acervo de Escritores Mineiros”, na UFMG, então sob a coordenação de Wander Melo Miranda. Há que se destacar que o projeto foi posteriormente renovado e durou até 2014.

Uma crítica literária que, como o anjo da história, olha para o passado impelida constantemente para o futuro. Em um constante movimento de olhar para futuro do presente, relia conosco, nas vivências cotidianas e nos trabalhos que orientava, o passado a partir do presente. Essa visada para o passado a partir desse futuro do presente, desse contemporâneo, já vinha sendo construída pelos recortes teóricos que empreendera no decorrer de sua carreira com produções, apenas para citar algumas, como Crítica cult (2002SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.), Janelas indiscretas (2011SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.), Tempo de pós-crítica (2007SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica. Belo Horizonte, Editora Veredas & Cenários, 2007.), e que culmina com Narrativas impuras (2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe Editora, 2021.), seu último livro publicado em vida pelo selo Cepe Editora.

Suas posturas e prática críticas instigavam ao desafio de toda a equipe da Pós-Graduação em Letras na UFSJ, pós-graduação esta composta por dois grupos de professores que atuam em duas linhas de pesquisa: a de Literatura e Memória Cultural e a de Discurso e Representação Social. Esta última contava, naquele momento, com professores com formação em linguística e em jornalismo.

Entre as atividades que exercia, constavam cursos oferecidos à pós-graduação, palestras na graduação, orientações de dissertações, organização de eventos científicos e até mesmo participação em processos seletivos de novos alunos. Há que se registrar “o espaço movente do saber” na prática crítica de Eneida Souza quando no presente, sempre vislumbrando o futuro desse presente e com os olhos voltados para a releitura e mesmo para a atualização do passado, propunha temas para os eventos que deslocavam de lugares críticos.

Nos eventos que organizava, a perspectiva inter e transdisciplinar sempre esteve presente como cerne do caminho crítico. No projeto para a realização do I COLÓQUIO CRÍTICA DA CULTURA - O FUTURO DO PRESENTE, submetido à agência de fomento CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior), em 29 de junho de 2010, Eneida Souza escreveu:

Dentro desse contexto, pretende-se estimular a reflexão teórica sobre pesquisas desenvolvidas no Programa de Pós-Graduação em Letras PROMEL, Literatura e memória cultural e Discurso e representação social, convidando pesquisadores de várias instituições brasileiras e estrangeiras a discutir um tema de grande ressonância na cultura atual, qual seja O futuro do presente. Entende-se por futuro do presente a sinalização do fim das utopias revolucionárias e o predomínio do instante, em que se rompe com a concepção do tempo como longa duração, por este se privar da visão de futuro. Diante do excesso de velocidade exigido pela simultaneidade dos meios de comunicação e da ubiquidade imposta pela dissolução de espaços fixos, o atual mundo globalizado parece ter levado ao extremo o programa modernizante do movimento futurista do início do século passado. Com o declínio gradativo das vanguardas radicais, das utopias revolucionárias e da modernidade hegemônica europeia, as noções de tempo e espaço são colocadas em xeque, assim como a dimensão progressista de cultura e civilização. A hora dos manifestos não conta mais no relógio do presente e os movimentos criados por interesses coletivos cedem lugar a manifestações artísticas isoladas e sem programa definido. ( Souza, 2010SOUZA, Eneida Maria de. Edital PAEP (Programa de Apoio a Eventos no País). Brasília: CAPES, 26 out. 2010. , p. 3).

Nessa construção do seu trajeto intelectual em que os caminhos se entrecruzam, em “O futurismo do presente”, texto em que lê, a partir do século XXI, as revoluções artísticas, põe em diálogo o Manifesto do Futurismo, de Marinetti, com O que é o contemporâneo?, de Giorgio Agamben, e com El recuerdo del presente- ensayo sobre el tempo histórico, de Paolo Virno e também com os modernistas brasileiros Oswald de Andrade e Mário de Andrade tanto na realização da Semana de Arte Moderna de 1922 quanto na produção literária que resulta dessa movimentação, como Pauliceia Desvairada, de Mario de Andrade, Poesia Pau-brasil, de Oswald de Andrade, entre outros. Eneida Souza afirma:

Repensar momentos artísticos do passado como contemporâneos os movimentos de vanguarda do presente e das revoluções culturais que tiveram lugar neste século permite estabelecer uma relação particular com o passado ao reatualizar momentos esquecidos e recalcados da história. Constata-se, dessa forma, a copresença de passado e de presente, que exclui, segundo o pensador italiano Mario Perniola, “a possibilidade de provar o momento vivido e de remontar a uma arché, a uma origem: o presente se tornou um passado que retorna subitamente, e o passado um presente potencial que pode se tornar atual em qualquer momento.” ( Souza, 2012SOUZA, Eneida Maria de; TOLENTINO, Eliana da Conceição; MARTINS, Anderson Bastos (org.). O futuro do presente. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2012., p. 38). 1 1 Mário Perniola. Enigmas: egípcio, barroco e neobarroco na sociedade e na arte. Tradução de Carolina Pizzolo. Chapecó: Argos, 2009. p. 17-31

Nesse sentido, sua visão e sua prática cotidiana diante dos tempos que se interligam e interpenetram embasam as propostas e temáticas inovadoras para os eventos que então organizava na pós-graduação e fundamentam as leituras que indicava para seus orientandos de mestrado. Afinal, a potencialidade do tempo presente irá romper barreiras diacrônicas, promovendo um tempo não unitário e único, como afirma Eneida Souza (2012SOUZA, Eneida Maria de; TOLENTINO, Eliana da Conceição; MARTINS, Anderson Bastos (org.). O futuro do presente. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2012., p. 38).

Os projetos que redigia para submeter às agências de fomento e as propostas e temáticas sempre inovadoras para aqueles eventos nos impulsionavam a sair do lugar, a mover-nos criticamente para um espaço do deslizamento, da inventividade e da incerteza. Afinal, não é esse o espaço do fazer crítico na universidade pública brasileira, o espaço do dissenso por excelência, das incertezas, da pesquisa, das buscas e das indagações?

Além desses projetos para as realizações de eventos, a presença de figuras do cenário cultural brasileiro e mesmo internacional contribuíam para a provocação de um pensar crítico. Dessa agitação crítica um pouco está registrada nas publicações de livros que Eneida organizou junto aos professores do PROMEL, como Futuro do presente: o arquivo, gênero e discurso (2012), Figurações do íntimo (2013), Sobrevivência e devir da leitura (2014), Corpo, arte e tecnologia (2015).

E como um dos resultados de sua estada na PPG-Letras, o programa recebeu a nota 4 no triênio 2010-2012. Além de contar com a pesquisadora, Edital Professor Visitante Nacional Sênior, o PVNS - Edital da CAPES - também possibilitava a atuação de orientando de pós-doutorado do programa de recém-doutores da CAPES (PRODOC). E como midas, aqueles que tocou, aqueles que passaram pela orientação da Eneida nessa convivência durante esses quatro anos estão hoje atuando em universidades como pesquisadores, como professores.

É sabido que professora Eneida Souza teve uma trajetória junto ao estudo dos acervos de escritores, especificamente no Acervo de Escritores Mineiros da UFMG. Em 2012, a professora Myriam Ávila (UFMG) doa a biblioteca da escritora e atriz Maria Lysia Corrêa de Araújo para o PPG-Letras, e diante do material que chegou, pudemos testemunhar in loco as reflexões de Eneida Souza sobre a biografia que nasce nos arquivos, referência aqui ao seu texto “A biografia, um bem de arquivo”, que está em Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica (2011).

Nesse texto, em que aponta as relações e as redes entre escritores a partir do que se encontram nos acervos como correspondências, documentos pessoais, objetos e papeis mesmo sem aparente classificação, pode-se traçar “Um esboço de biografia intelectual” que remete tanto para o processo da leitura quanto o da escrita.

Para Eneida Souza, a biografia intelectual seria, pois,

[...] resultado de experiências do escritor não só no âmbito familiar e pessoal, mas na condensação entre privado e público. As datas recebem tratamento alegórico e a história pessoal se converte em ficção, pela intromissão do outro na narrativa. É importante, enfim, assinalar a contribuição de teóricos latino-americanos para a leitura pós-colonial do gênero autobiográfico, na qual são introduzidas cenas que remetem ao ato de leitura dos escritores. O livro, a leitura, a pose do leitor assumem significado semelhante à iniciação do sujeito na escrita, gesto não apenas individual e particular, mas cultural. ( Souza, 2011SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011., p. 18-19).

Assim como o texto de Eneida Souza aponta para as possíveis redes literárias entre os escritores, pudemos ler o que de Maria Lysia Corrêa de Araújo chegara então naqueles idos de 2012 para o futuro CEDOC (Centro de Referência de Pesquisa Documental), que seria inaugurado em primeiro de junho do mesmo ano. Perguntas eram feitas a partir do que já tínhamos discutido, do que a crítica literária escrevia e do que em conversas sempre pontuava. Que objetos biográficos poderíamos encontrar naquelas caixas que chegaram? Sabíamos de antemão que eram livros, mas como supúnhamos, dentro dos livros havia algo mais, como recortes de jornais, postais, bilhetes etc. Que “bastidores da criação literária” de Maria Lysia Corrêa de Araújo poderíamos vislumbrar? Que relações intelectuais ali encontraríamos naquele labirinto que se apresentaria? Que deslocamentos teríamos que nos deparar para então empreender uma pesquisa?

Na abertura das caixas com o material de Maria Lysia, pudemos testemunhar, de forma privilegiada, junto a orientandos, um momento ímpar, em que professora Eneida dissertava sobre o esboço da biografia intelectual da escritora que ali encontraríamos, os objetos que ali estavam, os recortes de jornais dentro dos livros, os bilhetes e pequenos pedaços de papéis, biografemas. À medida que abríamos as caixas e íamos separando previamente os livros, Eneida Maria de Souza nos apresentava a história coletiva de Minas Gerais, ultrapassando os limites dos textos, dos recortes de jornais, de nomes que surgiam como o marido de Maria Lysia Corrêa de Araújo, Pedro Aguinaldo Fulgênio, diretor dos órgãos associados de Belo Horizonte, a poeta Yeda Prates Bernis e tantos outros. Era uma aula de literatura e cultura de Minas e do Brasil a cada livro retirado da caixa e a cada livro aberto.

Tínhamos, portanto, na abertura daquelas caixas, uma aula sobre a história da literatura e da cultura mineiras em que a história das mulheres da família Corrêa de Araújo ajudou a construir, segundo Souza. Há que se destacar o desdobramento dessa visada de Eneida para a literatura de Minas quando no projeto “Minas Mundo”, com a proposta Coleção de cacos: objetos biográficos na literatura mineira. Nessa, propõe um estudo da literatura de Minas em diálogo e na relação entre tradição e modernidade. Eneida não era dada a arraigamentos localistas e sua visada contemporânea sempre em movimento jogava um farol para a cultura e para o futuro do presente.

Além da biblioteca de Maria Lysia Corrêa de Araújo, com intervenção da professora Eneida, após o falecimento de professora Vera Andrade, também foram doados os livros dessa professora à biblioteca para a UFSJ. Momento este também ímpar e que muito emocionou alguns professores da PPG-Letras ou por terem sido alunos da professora Vera Andrade ou por ter com ela trabalhado. Afinal, vivemos, nos anos de 2020 a 2021 principalmente, um momento de extrema instabilidade diante da epidemia do Coronavírus, a COVID-19, e a professora Vera Andrade foi uma das muitas vítimas desse vírus. Não podemos deixar de registar este momento tão difícil, o qual vivenciamos todos nós. E registramos aqui o papel de Eneida Maria de Souza nesse diálogo e reforço das relações entre a UFMG e a UFSJ, afinal, se a vida acadêmica de professora Vera Andrade se deu em grande parte na UFMG, a sua biblioteca, que certamente traz muito de seu perfil de professora universitária, está hoje na UFSJ.

Nesse sentido, a participação de Eneida Souza para a consolidação das pesquisas em acervos junto ao acervo de escritores e acervos culturais que se encontram no CEDOC da UFSJ, sob a responsabilidade da PPG-Letras, principalmente, é de extrema importância. Ela nos apresentava o seu projeto teórico nada totalizador e destacava o fragmento, as lacunas e a diferença e nos encaminhava para as minúcias do arquivo, apontando-nos o caminho do colecionar e do pensar.

Dentre os trabalhos todos que Eneida Souza produziu não se pode deixar de mencionar a influência do pensamento e da obra de Mário de Andrade em sua prática crítica. Em seu perfil na revista Diversa da UFMG, o texto se abre com o seguinte dizer, citando pois o professor Wander Melo Miranda:

Se Mário de Andrade vestisse saias, ele seria a professora Eneida Maria de Souza. Pelo menos é assim que o diretor da Editora UFMG e professor da Faculdade de Letras, Wander Melo Miranda, a define: “É uma intelectual que se inspira no Mário de Andrade, mas claro que em outro tempo, outra situação e na condição de mulher, o que é uma questão muito importante. Apesar de Eneida não fazer uma crítica feminista, toda a análise dela é perpassada pela questão do gênero”. ( Alkmim, 2013 ALKMIM, Paula. Na carruagem com Eneida. Revista Diversa - Revista da Universidade Federal de Minas Gerais, ano 12, n. 20, abril de 2013. Disponível em: https://www.ufmg.br/diversa/20/perfil-eneida.html.
https://www.ufmg.br/diversa/20/perfil-en...
).

Sobre Mário de Andrade Eneida produziu a tese de doutorado a respeito de Macunaíma que se transforma no livro A pedra mágica do discurso (1988SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1988.), Mário de Andrade: carta aos mineiros, organização de Eneida Maria de Souza e Paulo Schmidt (1997SCHMIDT, Paulo; SOUZA, Eneida Maria de (org.). Mário de Andrade - Carta aos Mineiros. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1997.), Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa (2010SOUZA, Eneida Maria de. Correspondência: Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo: Editora Peirópolis: Edusp, 2010.), obra essa premiada - foi segundo lugar no Prêmio Jabuti 2011, na categoria Biografia -, “Mário de Andrade e o exercício da preguiça” (2006SOUZA, Eneida Maria de. Mário de Andrade e o exercício da preguiça. In: CASTRO, Marcílio França (coord.). Ficções do Brasil: conferências sobre literatura e identidade nacional. Belo Horizonte: Assembleia Legislativa de Minas Gerais, 2006, v. , p. 103-129), entre outros publicados no Brasil e no exterior.

E são sem dúvida os trabalhos que realizou com as correspondências a partir da pesquisa em acervos que reforçam e consolidam as futuras investigações em acervos de escritores. A leitura e a importância das correspondências na construção da literatura brasileira devem-se às pesquisas que Eneida Souza desenvolveu quando se voltou para a troca de cartas entre Mário de Andrade e o grupo modernista de A Revista e de Mário de Andrade com Henriqueta Lisboa. Trabalho esse que desencadeou pesquisas posteriores tanto em nível de mestrado quanto de doutorado e mesmo em grupos de pesquisas em outras universidades. Nesse sentido, merece destaque o caminho que Eneida Souza abre em direção às correspondências entre escritores e intelectuais.

Gostaríamos de destacar o papel da crítica literária Eneida Maria de Souza pelo que provocava em desafios que nos propunha. Ficava sempre me perguntando o que levava uma professora emérita da estirpe de Eneida atuar numa universidade ainda pequena, do interior, num programa de mestrado ainda iniciante, e seus vários gestos de extrema generosidade, pois atuava em sala, ministrando aulas semanalmente, atuava com os colegas em reuniões, em atividades burocráticas. A resposta talvez esteja em várias das suas posições críticas, na sua prática crítica cotidiana. Professora Eneida, que vem de uma tradição estruturalista, tem, por exemplo, em seu texto “Saudades de Lévi-Strauss”, uma leitura em que traça o percurso do Estruturalismo no Brasil, destacando a importância desse movimento para as ciências humanas. Na fotografia de Lévi-Strauss com a macaquinha Lucinda agarrada à sua perna, nas fotos que o antropólogo publica no livro Saudades do Brasil em 1994, Eneida lê a proximidade da relação do crítico com seu objeto. Ela afirma: “a lembrança de Lucinda agarrada a uma de suas pernas reforça a ligação entre o sujeito e o objeto, não mais sob a forma distanciada e fria do método, mas como prova da interação entre passado e presente, revitalizados pela magia e memória” ( Souza, 2002SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., p, 30).

Essa leitura descontrói possíveis visões equivocadas sobre o movimento estruturalista, sobre o seu binarismo, sobre o seu anti-humanismo, agora partindo da relação do antropólogo com o Brasil, e abre para a crítica cultural tão cara à atuação crítica de Eneida. Abre para o olhar enviesado para a crítica da cultura, para o comparativismo e a transdisciplinaridade. Abre, ainda, para a subjetividade e inserção do crítico literário na sua produção. Nesse sentido, também podemos ler a inserção da foto de Eneida em seu ensaio “Assis horta-fotógrafo de um Brasil moderno”, presente em Narrativas impuras, em que sua fotografia figura junto às fotos reproduzidas de Assis Horta, portando uma plaquinha verde em que se lê: “Expo Assis Horta 07 jun 2015 3X4” (2021, p. 281).

E era assim que ela atuava cotidianamente na interação que tinha conosco na UFSJ, aproximava-nos dos objetos de pesquisa, aproximava-nos do passado num presente que se apresentava desafiador e nos punha em contato com grandes pesquisadores quando aqui organizou eventos como os colóquios de crítica da cultura: O futuro do presente, em 2010SOUZA, Eneida Maria de; TOLENTINO, Eliana da Conceição; MARTINS, Anderson Bastos (org.). O futuro do presente. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2012. e Corpo arte tecnologia, em 2012. Foi ela quem possibilitou que para a cidade de São João del-Rei viessem interagir intelectuais de renome, os quais me permito aqui não citar porque a lista é grande, além de escritores como Beatriz Bracher, Cristóvão Tezza, Luiz Rufatto, Maria Esther Maciel.

Quando trazia intelectuais para aqui dialogar com os professores da UFSJ, estava promovendo uma rede de colaboração acadêmica que prossegue e prosseguirá. Estava ela firmando amizades intelectuais pautadas pelo afeto e regidas pela sua fala que punha a interagir nos eventos, nos jantares, nos passeios com os grupos que vinham de várias partes do país.

A sua passagem pelo PPG-Letras da UFSJ deixou heranças, desconforto crítico-teórico e, para além do deslumbre diante da teórica que tínhamos diante de nós, havia uma pessoa que nos dava coragem para realizar, nos deslocava de lugares, nos sacudia diante do presente, trazia em sua atividade crítica, teórica, cultural e política uma atuação que, tenho certeza, levou-nos para um caminho da deriva, para um labirinto de onde não se busca sair, porque o deslocamento já faz o caminhar, afinal, para Eneida, “Teorizar é metaforizar”, como ela afirma em seu último livro, Narrativas impuras.

REFERÊNCIAS

  • ALKMIM, Paula. Na carruagem com Eneida. Revista Diversa - Revista da Universidade Federal de Minas Gerais, ano 12, n. 20, abril de 2013. Disponível em: https://www.ufmg.br/diversa/20/perfil-eneida.html
    » https://www.ufmg.br/diversa/20/perfil-eneida.html
  • SCHMIDT, Paulo; SOUZA, Eneida Maria de (org.). Mário de Andrade - Carta aos Mineiros Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1997.
  • SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1988.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Mário de Andrade e o exercício da preguiça. In: CASTRO, Marcílio França (coord.). Ficções do Brasil: conferências sobre literatura e identidade nacional. Belo Horizonte: Assembleia Legislativa de Minas Gerais, 2006, v. , p. 103-129
  • SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica Belo Horizonte, Editora Veredas & Cenários, 2007.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Correspondência: Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo: Editora Peirópolis: Edusp, 2010.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Edital PAEP (Programa de Apoio a Eventos no País). Brasília: CAPES, 26 out. 2010.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.
  • SOUZA, Eneida Maria de; TOLENTINO, Eliana da Conceição; MARTINS, Anderson Bastos (org.). O futuro do presente Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2012.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras Recife: Cepe Editora, 2021.
  • 1
    Mário Perniola. Enigmas: egípcio, barroco e neobarroco na sociedade e na arte. Tradução de Carolina Pizzolo. Chapecó: Argos, 2009. p. 17-31

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2023
  • Aceito
    16 Out 2023
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