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Pelos caminhos borgianos de Eneida Maria de Souza

Down the Borgian Paths of Eneida Maria de Souza

Resumo

Este ensaio aproxima o nome de Eneida Maria de Souza ao de Jorge Luis Borges com o propósito de evidenciar a presença do escritor argentino na trajetória da autora mineira, em um jogo de duplos que afirma o projeto teórico-crítico de Eneida de Souza. Para tanto, este texto faz uma leitura de um livro, O século de Borges, e dois artigos dessa autora, “Biografar é metaforizar o real” e “Madame Bovary somos nós”. Como forma de construção argumentativa, será usada a imagem do Aleph como prisma imagético através do qual se pode atravessar o vasto campo crítico e ensaístico de Eneida de Souza, não só pelo modo como se apropriava de detalhes vividos, de pequenos acontecimentos e conseguia fazer grandes conexões interpretativas e ficções teóricas. Também se propõe a estabelecer relações entre dois personagens Funes, el memorioso e Santiago, o primeiro extraído de um conto de Jorge Luis Borges e o segundo do filme-documentário de João Moreira Salles, numa problematização sobre o campo da memória, desenvolvido por Eneida Maria de Souza.

Palavras-chave:
Eneida de Souza; Borges; Aleph; intertextualidade; duplo

Abstract

The present essay connects the name of Eneida Maria de Souza to Jorge Luis Borges while focusing on evidence of the presence of the Argentinean writer in her history, in a game of doubles that affirms the theoretical-critical project made by Eneida de Souza. For the previously mentioned reason, the text analyzes a book, The Borges’ century, and two articles, “Biographing is metaphorizing the real” and “Madame Bovary is us”, written by the Brazilian author. As a form of argumentative construction, the image of Aleph shall be used as an imagetic prism that can be used to pass through the vast critical and essayistic field of Eneida de Souza because of the way that she appropriated details of her life, of small incidents, and was able to create interpretative connections and theoretical fictions. It also aims to establish a relation between two characters: Funes, el memorioso and Santiago, the first coming from a short story written by Jorge Luis Borges and the second, from a documentary by João Moreira Salles, discussing the field of memory, which was developed by Eneida Maria de Souza.

Keywords:
Eneida de Souza; Borges; Aleph; intertextuality; double

Introdução

Para abrir os caminhos que se bifurcam neste ensaio, retome-se uma cena vivida em uma biblioteca, imagem tão cara à pesquisadora Eneida Maria de Souza, para quem “tecer considerações sobre a biblioteca é constatar a escolha de um saber resultante da prática infinita da citação, do gesto intencional de se eleger este ou aquele autor e inseri-lo no universo pessoal de artifícios e de ficções” (Souza, 1999SOUZA, Eneida Maria de. O século de Borges. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Autêntica, 2009., p. 42). Assim, em 2023, em visita ao Museu Fellini, em Rimini, inaugurado por ocasião do centenário de nascimento do artista italiano, numa ala destinada à biblioteca felliniana, com as obras importantes que marcaram a vida e a arte do cineasta, estavam vários livros virtuais que, ao serem colocados no painel eletrônico, permitiam adentrar os labirintos de Fellini com a sua Torre de Babel encantada. A cena já permitia recordar de Jorge Luis Borges e de Eneida Maria Souza, que, em um dos seus textos sobre o escritor argentino, afirmou que “o tempo simultaneamente vivido pela imaginação tem o dom de transportar imagens ao longo das caminhadas e de se livrar da cronologia cerrada imposta pelo relógio e pela rigidez dos horários” (Souza, 1999SOUZA, Eneida Maria de. O século de Borges. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Autêntica, 2009., p. 65). Conhecer os rastros da biblioteca de Fellini era penetrar em sonhos e na arte secreta da crítica.

Tudo não passaria de conexões com base nos vestígios da memória de quem leu a obra de Eneida de Souza, mas eis que, dentre os livros constituintes da biblioteca virtual no museu dedicado ao cineasta, encontrava-se a referência explícita à literatura de Jorge Luis Borges como autor relevante na construção poética e filosófica da arte felliniana. Não só se ressaltava a importância da literatura borgiana para Fellini, com os livros materializados na biblioteca pessoal do cineasta italiano, como se destacou um encontro entre os dois artistas, ocasião na qual Borges teria presenteado Fellini com um singular objeto geométrico, misterioso, uma espécie de holograma. Para quem conhece minimamente a obra de Jorge Luis Borges, o artefato seria a materialização do Aleph, numa alusão que remete à Divina Comédia, de Dante, signo emblemático da cultura italiana: “apresenta um momento como cifra de uma vida e que tem o mérito de construir personagens cuja vida pode ser a de uns tercetos, mas que se reveste de eternidade, eles vivem o espaço de uma palavra ou de um ato, e não é preciso mais” (Souza, 1999SOUZA, Eneida Maria de. O século de Borges. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Autêntica, 2009., p. 71). O presente dado por Borges trazia um recado para Fellini que ecoava em muitas cenas de seus filmes, repercutiu por todo o museu e trouxe a presença de Eneida Maria de Souza.

Se biografar é metaforizar uma vida, o Aleph foi o objeto dado por Borges a Fellini que passa também a ser simbolizado pelos amantes da arte felliniana e que desagua neste ensaio como prisma imagético através do qual se pode atravessar o vasto campo crítico e ensaístico de Eneida de Souza. Não só pelo modo como essa se apropriava de detalhes vividos, de pequenos acontecimentos e conseguia fazer grandes conexões interpretativas e ficções teóricas. Naquele ambiente dedicado a Fellini, havia não apenas um lugar de memória consagrado ao cineasta, pois, como na superfície caleidoscópica do Aleph, sugerido no presente dado por Borges, apareciam os ecos dos leitores do escritor argentino, dos amantes dos filmes fellinianos, como, também, nasceu o nome de Eneida Maria de Souza neste ensaio. Realmente, tudo leva a crer que o sentido de uma obra não está atrás, mas à frente, em um jogo de duplos entre o autor e seus precursores. Então, o gesto borgiano de presentear Fellini acabava por simbolizar uma sina felliniana, mas também um pedido de leitura da escritora mineira neste texto, uma das maiores intérpretes da poética borgiana:

A esfera luminosa que dá nome ao conto “O Aleph”, cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma, é o ponto de encontro imaginário, eterno e fugaz do infinito. A vivência desse instante, revelador e de extrema luminosidade para o narrador, tem a dimensão paradoxal da plenitude e do vazio, por se tratar de um acontecimento, destituído de sucessão temporal e da tridimensionalidade do espaço. (Souza, 1999SOUZA, Eneida Maria de. O século de Borges. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Autêntica, 2009., p. 74-75).

A visita ao Museu Fellini, em Rimini, trouxe ao campo imaginário do cineasta, sua cidade de nascimento, sua cosmologia poética, mas transportou também a trama dos acasos e possíveis conexões que podem ser realizadas pela escrita, como um campo de forças e de afetos. É nessa aventura, na qual se forjam bibliotecas fantásticas, visíveis e invisíveis, que se exerce a arte da crítica e uma estranha forma de eternizar os rostos amigos. Aproximar o nome de Jorge Luis Borges ao de Eneida Maria de Souza pode parecer, à primeira vista, um procedimento arbitrário. No entanto, o motivo da escrita deste ensaio é exatamente evidenciar a presença do escritor argentino na trajetória da autora mineira, em um jogo de duplos que afirma o projeto teórico-crítico de Eneida de Souza. Para tanto, este ensaio faz uma leitura de um livro e dois artigos dessa autora: O século de Borges, “Biografar é metaforizar o real e “Madame Bovary somos nós”, respectivamente.

A linha tênue entre ficção e realidade: um percurso pelo cinema

Os leitores dos ensaios de Eneida Maria de Souza sabem como era vasto o seu campo de interesse investigativo. Poderia partir de uma fotografia, de uma cena vista em telenovela, numa obra literária, em um poema, numa entrevista de jornal ou revista, em um filme ou mesmo em um quadro visto em museu quando viajava. Nesse Aleph de materialidade crítica, no qual se encontram tantas vozes e ecos de tantas experiências, tudo se torna fragmento de uma vida que se quis intensa e, ao mesmo tempo, habitou o fio tênue entre a ficção e a realidade. O trabalho dessa investigadora ensinou a toda a sua geração a arte da urdidura teórica com a forma ensaística, carregada de criatividade e destreza argumentativa. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que ela se mirava nos labirintos borgianos e se encontrava nos duplos do seu artesanato literário: duas existências que se constituíram inseparáveis da escrita, dos planos ficcionais, de suas bibliotecas e viagens imaginárias e pelo mundo.

A propósito desses jogos de espelhos e no desenho dos duplos na jornada investigativa da escritora mineira, retome-se o seu ensaio “Biografar é metaforizar o real”, dedicado ao filme-documentário Santiago, de 2007, de João Moreira Salles. Evidentemente, o filme provoca interesse na pesquisadora, primeiramente, pelo seu viés biográfico sobre o personagem-mordomo, que prestou serviço à família Moreira Salles por 30 anos e utilizava recortes de jornal e de revista para montagem de sua escrita como forma de costurar uma memória cultural de uma época e também de si, pois, ao falar de outras pessoas importantes, de celebridades do cinema, da vida burguesa brasileira, acabava dando testemunho à sua voz, ausente e presente nas cenas emendadas pela memória como forma de se dar existência e de se constituir como personagem importante daquela história familiar. Ele era um mordomo solitário, mas habitado por vasto campo de sonhos e de fantasia; fazia da arte de cortar os jornais e revistas uma estranha forma de crítica, onde seu rosto ecoava como duplo fantasmagórico da mansão familiar, eco crítico de um padrão de ordem posto na mesa do jantar, de uma conduta cotidiana que parecia caber sempre em um filme ou num texto de ficção.

Se retomarmos a etimologia do nome do personagem, Santiago traz forte conotação religiosa, uma vez que nasce associado ao nome de São Tiago, um dos reconhecidos apóstolos de Cristo, sendo um nome reverenciado no plano religioso. O personagem Santiago, presente no documentário, no entanto, parece participar de outra lógica, muito bem trabalhada, “na linha tênue entre a realidade e a ficção, entre autobiografia e autoficção, ao se considerar o grau de tradução de uma vida em obra de arte” (Souza, 2011SOUZA, Eneida Maria de. Biografar é metaforizar o real. In: SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 53-62., p. 53). No seu labor usual, o mundo do mordomo se revestia de um juízo estético que norteou a sua vida para além de uma moralidade, de um plano restrito entre o certo e o errado. Nesse caso, a ordem estética era menos um legado religioso, inscrito no seu nome, e mais uma prática estética capaz de justificar e fundar uma conduta de vida. É como se o princípio estético determinasse não apenas as escolhas certas das flores para ornamentar a casa, a louça para os jantares, os guardanapos postos sobre a mesa, mas esse rumo se estendesse para além da casa da família nobre e se inscrevesse nos sonhos e no cotidiano do mordomo, no pequeno apartamento que habitava solitariamente:

Ao morrer, deixou para Joãozinho um conjunto de 30.000 fichas, enfaixadas em maços com fitas vermelhas, contendo anotações sobre todas as dinastias da nobreza de todas as épocas e regiões do mundo, acrescidas da vida dos papas, de estrelas de cinema e de tribos indígenas. Uma cornucópia borgiana, que acabou se transformando no grande comentário paralelo ao filme. (Souza, 2011SOUZA, Eneida Maria de. Biografar é metaforizar o real. In: SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 53-62., p. 54).

Evidentemente, o depoimento de Carlos Alberto Mattos, apresentado acima e comentado por Eneida, em seu ensaio, já traz uma poética da citação. Nesse trecho, há uma nítida referência ao universo borgiano, estabelecida entre o personagem-mordomo e o campo poético do autor argentino, que é retomado por Eneida em seu ensaio. Com a mais absoluta pertinência, ela seleciona o conto Funes, El memorioso, de Jorge Luis Borges, cujo personagem principal era movido por uma vontade de arquivo, pois era guiado pelo imperativo da memória, diante da angústia do esquecimento. Segundo Eneida, “como Funes, ele não se esquecia de nada, sofria de insônia e no lugar de selecionar, acumulava registros, transformando-se num depósito infinito de objetos, em réplica naturalista do universo” (Souza, 2011SOUZA, Eneida Maria de. Biografar é metaforizar o real. In: SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 53-62., p. 54). Não surpreende que Eneida de Souza faça a nítida relação entre Jorge Luis Borges e Santiago, pois para ela, “metaforizar o real significa considerar tanto os fatos quanto as ações praticadas pela pessoa biografada como possibilidade de inserção na esfera ficcional” (Souza, 2011SOUZA, Eneida Maria de. Biografar é metaforizar o real. In: SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 53-62., p. 54). Nesse arco de reflexão, Borges foi mais do que um escritor sobre o qual Eneida de Souza se debruçou, ele acaba sendo também um teórico, uma via de condução interpretativa para outros livros e outros personagens sobre os quais ela se dedicou. É o que acontece na leitura de Santiago:

A predileção do escritor argentino por personagens consideradas simples e comuns, como Bouvard e Pécuchet, como Bartleby, o escriturário de Melville, ou pelos criadores de textos, como os copistas das Mil e uma noites, os tradutores que sempre traíram os textos originais, justifica seu ofício de escritor, assumido como compilador e tradutor de textos alheios. Essa predileção por essas figuras literárias comprova, portanto, o fato de ser Santiago umas das inúmeras personagens borgianas. (Souza, 2011SOUZA, Eneida Maria de. Biografar é metaforizar o real. In: SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 53-62., p. 59).

Como o fragmento de texto expõe, a escritora mineira exerce a arte da crítica da forma mais inventiva ao estilo de Borges, mostrando que o ato da leitura é um gesto de criação, de montagem, numa convivência imaginária com vários escritores e poetas que movimentam os livros e os verbetes da biblioteca. Se Funes, el memorioso possuía uma memória funesta, porque não esquecia nada, retinha tudo que lia e guardava, tornando sua vida absolutamente cheia de informação e, paradoxalmente, repleta de impossibilidade de reinvenção, o que levou o personagem à morte; com Santiago, o cineasta trata de evidenciar o quanto o gesto do mordomo, por mais que desejasse, não conseguia guardar os dias e os fatos da família Salles. Pelo contrário, o gesto de guardar todos os recortes abre fendas para que o cineasta também siga o caminho de Borges e mostre o mais elegante personagem das festas como o outro não cartografado nos labirintos das celebridades. Santiago fica, portanto, como um fantasma que paira no jogo de signos e de luzes, sempre a trazer o silêncio para a sala, uma sombra de solidão na casa, um pedido de memória e, talvez, um grito abafado de quem sabe colher o tempo depois das luzes apagadas da mansão dos Moreira Salles. Segundo a análise de Eneida sobre a prática do mordomo, “persiste o desejo de conservar verdades já inoperantes e desaparecidas, ao lado do fervor de preservar, pelo registro escrito, um mundo em crise, a burguesia em extinção, o tempo passado” (Souza, 2011SOUZA, Eneida Maria de. Biografar é metaforizar o real. In: SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 53-62., p. 58). É como se Santiago denunciasse uma arte contemporânea que deverá lidar com restos, com vestígios da festa da modernidade, de uma língua que sobra depois de tudo.

Nesse contexto argumentativo, diferentemente de Funes, Santiago não consegue guardar tudo por saber da impossibilidade de fazê-lo, mas exercita uma linguagem do resto tão marcante na artesania artística na atualidade. Será que realmente a única coisa que se possui é o passado? Ou ainda se vive a angústia do efêmero que elege a arte como a estranha forma de inventar os dias com aquilo que resta? Será que apenas o mordomo tinha a consciência de que pensar o Brasil do futuro teria sido uma estratégia que sequestrou o presente? Bem, seria necessário captar a potência dos restos, um certo segredo em tantos papeis guardados, uma revista do que restou de tudo isso. O filme de João Moreira Salles contempla muito bem essa perspectiva de abordagem.

Tanto Jorge Luis Borges e Santiago quanto Eneida Maria de Souza não tiveram filhos biológicos. Tudo poderia parecer melancólico, não fosse a força de expressão que os três personagens conquistaram na história deles e de quem conviveu com suas vidas. Se Santiago e Borges cultuavam a repetição, Eneida parece fazer disso também uma poética em seus textos. Ao inscrever seu nome feminino entre outros escribas, ela que já trazia, no seu nome de batismo, a alusão ao grande poema épico de Horácio, escrito no século I a.C. Nesse caso, o juízo estético foi um signo lido desde o nascimento, tomou corpo na vocação da professora de letras na Universidade Federal de Minas Gerais, mas ganhou o mundo com sua capacidade de produzir e espalhar tantos textos por onde ensinou, proferiu palestras e divulgou suas experiências de leitura. Sim, a estética, tanto para Santiago, como para Borges, assim como para Eneida, não foi um fim em si mesmo; mas a estética passa a ser uma atividade, uma conduta, um modus operandi que mantém o desejo em alta, em fogo. Se Santiago ficcionalizou sua existência como forma de “superar a solidão com a ajuda desse trabalho de criação/cópia de livros escritos em línguas diversas” (Souza, 2011, p. 58), ele se aproximou, dessa forma, de Funes, o memorioso. No entanto, mais ainda, segue outros rastros borgianos, fazendo da repetição um gesto de afirmação da diferença. Eneida de Souza foi uma grande pensadora das diferenças. Há uma fidelidade e, ao mesmo tempo, uma infidelidade imaginária a Borges em Eneida. Do contrário ela seria mais um personagem borgiano, mas ela trazia o grão da própria voz em cada texto, em cada leitura realizada:

Escreve Barthes (ainda falando da conversa entre namorados): “Na minha voz, diga o que disser, reconhecerá o outro que tenho qualquer coisa” A sintaxe e o significado são infiltrados por um grão de impureza que não pertence ao mundo dito da linguagem, mas sim ao mundo dito do corpo. A voz exprime uma linguagem impura e por isso, nesse sentido, mais humana. Como se o homem, ao falar, dissesse tenho linguagem, mas também tenho corpo. (Souza, 2011SOUZA, Eneida Maria de. Biografar é metaforizar o real. In: SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 53-62., p. 58).

Como no poema de Virgílio, o nome de Eneida já presumia uma voz que se reconhecia em um poeta, sempre em outros poetas e palavras alheias, numa poética da citação que fez dela mesma uma força, uma escritora. Uma voz que treme no ritmo da página, na linha de cada ensaio que escreveu, em cada livro que leu. Voz viva, eterna, que se repete em seus orientandos, amigos, colegas e leitores; voz que eleva e baixa o timbre para dar passagem a inúmeros significados; um emaranhado de rumores em sua voz, uma voz letrada e iletrada que sempre se pediu em liberdade, que proporcionou a entrada em todos os cantos e casas do Brasil e buscou tantos rostos anônimos escondidos em salas e quintais, em esquinas e morros desse país.

Entrecruzamentos textuais no laboratório da escrita de Eneida Maria de Souza

Em seu ensaio “Madame Bovary somos nós”, Eneida Maria de Souza desenvolve reflexões sobre o escritor Ricardo Piglia e elabora uma afirmação sobre a crítica que entrelaça essa atividade a uma forma atual de autobiografia: “a atividade crítica seria uma das formas modernas de autobiografia, considerando-se que o sujeito escreve a sua vida quando pensa estar narrando suas leituras” (Souza, 2002SOUZA, Eneida Maria de. Madame Bovary somos nós. In: SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 121-135., p. 128). Na faca só lâmina da linguagem, o corte sobre os textos e as palavras sempre pode ferir e mostrar a mão de quem manuseia o objeto cortante, isto é, é muito difícil falar de um texto ou de alguém sem que algo se revele no jogo de linguagem sobre o sujeito que escreve, mesmo diante de todos os artifícios de imparcialidade e do suposto divórcio entre o sujeito e o objeto da investigação que tanto norteou o aparato cientificista no mundo acadêmico.

No terreno do literário, o bovarismo sempre foi visto como o fenômeno que traduz exatamente uma ponderação sobre a força e o lugar que a literatura ocupa na vida de seus leitores, se invade o cotidiano das pessoas e as leva a tomar atitudes, no entrecruzamento de cenas textuais e a vida do leitor. Menos uma questão de fonte e de influência, o tema emerge no horizonte teórico que permite ampliar a noção de texto, não mais visto pela moldura restrita da palavra escrita, mas se dirige a outros eventos, envolvendo tudo como pedra do jogo simbólico: “Nesse sentido, a intertextualidade, conceito amplamente empregado pela crítica literária contemporânea, além de se referir ao diálogo entre textos, desloca o texto ficcional para o texto da vida” (Souza, 2002SOUZA, Eneida Maria de. Madame Bovary somos nós. In: SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 121-135., p. 122).

A discussão travada por Eneida Maria de Souza faz uma genealogia do conceito de intertextualidade sistematizado por Julia Kristeva, nos anos de 1960, a partir do campo teórico de Mikhail Bakhtin, para enfatizar um importante momento no qual o texto perde sua aura de originalidade para se afirmar como palimpsesto de muitas assinaturas, um coro de diferentes vozes, de muitos traçados poéticos, nos quais vários autores vão se reinventando, se repetindo em diferença. Evidentemente, exige-se outra economia ótica não mais regulada pelo eixo da verticalidade interpretativa, mas que pede a amplitude da horizontalidade quando também podem ser conjugados diversos ritmos temporais em processos simultâneos, deixando em declínio as hierarquias cronológicas, as literárias com seus princípios de silenciamento de vozes decorrentes de subordinações textuais. É nessa trama comparativa que Eneida Maria de Souza recorre mais uma vez a Jorge Luis Borges para rever as limitações de territórios:

Jorge Luis Borges, dotado de extrema sensibilidade para com a verdade literária, escapa das limitações territoriais, da divisão dos impérios, da cartografia positivista dos mapas, escolhendo a literatura como pátria, na qual são adotados regimes distintos de nacionalidade. A Inglaterra não é apenas o país de seus antepassados, mas o lugar de Shakespeare e de tantos escritores que se ligam ao escritor argentino de forma afetiva e sob o signo da literatura. (Souza, 2002SOUZA, Eneida Maria de. Madame Bovary somos nós. In: SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 121-135., p. 125).

Mas se Jorge Luis Borges modifica a noção de pátria, na escolha de suas construções de linguagem e nas tramas das repetições, coube rever também os processos de urdidura dos textos. Para tanto, ela retoma o conto “A memória de Shakespeare”, quando o escritor argentino enfatiza o cruzamento entre a teoria e a ficção ao construir uma narrativa na qual ocorrem artifícios de migração de lembranças e de construção de memória através do encontro com a literatura de Shakespeare e das aventuras dos personagens, “doação da memória ao narrador, ao qual não irá se incorporar nem da fama, nem da glória do escritor, mas de sua memória pessoal. Este processo de transmutação subjetiva provoca o esquecimento da língua ou das lembranças de quem recebe a doação” (Souza, 2002SOUZA, Eneida Maria de. Madame Bovary somos nós. In: SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 121-135., p. 130). Assim, nesse contexto, seria possível trazer novamente os dois personagens Funes, el memorioso, e Santiago, dois entes borgianos para outros contextos, segundo a leitura comparada de Souza, agora atinentes à questão da memória que precisa ser doada, não apenas para não ser esquecida, mas para construir textos, para ampliar forças de vida, quando o escriba se defronta com a face desconhecida de outrem no jogo de espelhos.

Na argumentação do texto de Eneida de Souza, seguindo as trilhas abertas por Borges, é possível também que haja o problema do roubo da memória, quando o narrador confessa o vazio de suas próprias experiências e, para dar consecução à invenção de sua narrativa, precisa “imitar e inventar as aventuras de outrem, por meio da técnica do voyeurismo e do roubo” (Souza, 2002SOUZA, Eneida Maria de. Madame Bovary somos nós. In: SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 121-135., p. 132); a emulação como um dado do escriba contemporâneo revira a seta do tempo e amplia a rede de comunicação e de trocas. Trata-se da escrita enquanto possibilidade de também experimentar outras vidas. Nesse caso, a escrita não se dá mais no eixo da pura contemplação do mundo, como já se acreditou, mas numa zona de experimentação, baseada na ciranda do encontro. Nesse caso, o escritor nunca está sozinho, pois não há possibilidade nem de texto isolado, nem se imagina a ínsula da subjetividade; tudo se movimenta no jogo de relações, num feixe de conexões discursivas.

Nessa dinâmica de palavras e de signos, na leitura entre as narrativas, entre personagens e diferentes autores, o texto desenvolve uma musculatura, uma espécie de hieróglifos de acontecimentos que convida o leitor a exercitar a sua vida numa atividade que excede o sedentarismo intelectual. Nesse caso, a postura do intelectual muda: de seu corpo exige-se uma memória muscular não apenas diagramada pela carga física de sua biblioteca pessoal, mas convida a rever experiências vividas, sugestionadas, além de vontade de construir experimentações que envolvem outros campos de atuação e de investigação.

Talvez seja nesse aspecto que a própria Eneida Maria de Souza entenda que a memória de Shakespeare, descrita por Borges, traz o desafio de ampliar territórios com a possibilidade de cartografar outros rostos e vozes além do literário, distante da geografia europeia e pede para que ela seja traçada com tantos outros rostos anônimos, como o do mordomo Santiago, mas também dos retratos pintados no Ceará, que aparecem em outro ensaio da Eneida Maria de Souza, intitulado Retratos pintados: por uma estética da domesticação. Nesse texto, a escritora mineira volta-se para o acervo de retratos elaborados por bonequeiros do Ceará, o qual ela teve acesso através do livro organizado pelo sociólogo alemão Titus Riedl.

A vida muda quando mudamos a posição e o modo de olhar os corpos no Aleph da existência. Aqui, a Eneida movimenta sua força crítica para pensar a cultura popular e refletir sobre a arte da modelagem ou ficcionalização dos rostos e corpos de tantos nordestinos brasileiros. O mundo está cheio de faces anônimas, de Marias e de Josés; modulam-se outras respirações, são exigidas outras percepções atentas ao modo como o outro sente a si mesmo no jogo de pinturas de seus rostos. Aqui, Eneida investe sua força na crítica cultural para valorizar a arte dos fotógrafos e pintores ambulantes por feiras e esquinas do Ceará, no Sertão de tantos brasileiros desconhecidos, mas que vêm para afirmar o múltiplo e o heterogêneo:

A função desses artistas é a de incrementar sonhos individuais com promessas de estetização e rejuvenescimento das imagens pelo retoque e o acabamento colorido das roupas, adereços e feições. A reintegração da família se processa, muitas vezes, pela inclusão da foto dramática do marido no leito da morte, permitindo-lhe ganhar sobrevida imaginária no retrato. Ou recuperá-lo por meio de uma foto –, tirada no passado, com o objetivo de trazê-lo à vida familiar com os traços da mocidade perdida, supostamente reconquistada. A relativização dos valores instituídos pelo cânone artístico abre espaço para a produção de textos e obras sem a aura da autoria, por se tratar de anônimos que não assumem sua assinatura nos objetos. (Souza, 2015SOUZA, Eneida Maria de. Retratos pintados: por uma estética da domesticação. In SOUZA, Eneida Maria de. Corpo, arte e tecnologia. Belo Horizonte: UFMG, 2015. p. 55-76., p. 56).

Bem, cada um coloca na fotografia o rosto que tem, com o corpo vestido com as roupas que lhe cabem de acordo com seu contexto social. O bonequeiro enfeita, põe flores nos tecidos dos vestidos, um brilho no olhar, uma pele lisa que parece sair das nuvens, mas os rostos dizem uma linguagem corporal e que se identifica dessa forma. Aqui é a necessidade de se reconhecer, é preciso se ver e se deixar ver; é necessário dizer para si e para alguém: - nós estamos aqui. Assim, o corpo pintado é um ponto de partida para Eneida não apenas desenvolver uma teoria da crítica cultural na contemporaneidade, mas para falar da dor e do prazer de sentir, de expressar estados de percepção da realidade brasileira, de ponderar como, nas entranhas do Brasil, já se instalava, artesanalmente, a tecnologia do manuseio e de invenção da imagem de si, um corpo movido por vontade de reconhecimento, que tem valor expressivo e que se comunica para além das palavras.

Nesse ângulo, o corpo pintado apresenta também não apenas um volume no espaço, mas também no tempo, misturando o passado e o presente tecnológico, pois é um corpo carregado de história e de memória. Sim, há muitas formas de construir uma memória, não só a de Funes, nem a de Santiago, mas há aquelas quando recortamos rostos anônimos e mostramos uma intensidade multiplicada em muitas faces. Assim, defrontamo-nos com outro Aleph, o de Eneida Maria de Souza, presente que ela soube receber de Borges e doar para seus leitores.

Referências

  • SOUZA, Eneida Maria de. Biografar é metaforizar o real. In: SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 53-62.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Retratos pintados: por uma estética da domesticação. In SOUZA, Eneida Maria de. Corpo, arte e tecnologia Belo Horizonte: UFMG, 2015. p. 55-76.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Madame Bovary somos nós. In: SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 121-135.
  • SOUZA, Eneida Maria de. O século de Borges Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Autêntica, 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2023
  • Aceito
    26 Out 2023
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