Acessibilidade / Reportar erro

Eneida Maria de Souza e o hic et nunc de suas Narrativas impuras

Eneida Maria de Souza and the hic et nunc of her Impure narratives

Resenha de: SOUZA, Eneida Maria de. (org.). Narrativas impuras . Recife: Cepe Editora, 2021.

Alguns meses após a morte de nossa vibrante crítica literária e professora Eneida Maria de Souza (1943-2022), pego para ler o seu Narrativas impuras (2021) e a encontro ali, mais viva do que nunca. É como se pudéssemos escutá-la em uma de suas palestras e depois vê-la acolhedora, contando os bastidores dos achados da pesquisa como quem oferece segredos aos ouvidos mais atentos, entre um apurado sorriso de satisfação e um levantar de sobrancelhas que lhe eram peculiares.

Em meio a sua “Babel multiculturalista”, como ela nomeia um de seus textos, verificamos como o erudito torna-se popular, pois era em busca desses gestos que suas análises se voltavam sempre, meio que perfazendo o caminho que ela aponta para Mário de Andrade, “pela abertura da perspectiva da crítica literária nas últimas décadas, pela ampliação do campo de atuação para a literatura comparada e a cultural [...]” ( SOUZA, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe Editora, 2021., p. 16). Esse caminho é o tracejado que ganharão seus textos e sua vida, continuamente em defesa do “[...]deslocamento do lugar hegemônico que sempre ocupou a literatura frente a outras práticas culturais [...]” ( SOUZA, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe Editora, 2021., p. 111).

Mas Eneida nem sempre fora assim, como ela mesma pontua em entrevista sobre o Narrativas impuras - em conversa com Heloísa Buarque de Hollanda e com Schneider Carpeggiani, quando do lançamento desta obra, em outubro de 2021 -, ao pensar sobre o Mário de Andrade de sua tese, A pedra mágica do discurso, defendida em 1982, e o Mário que ocupará a primeira parte da publicação feita pela Cepe Editora. Ao retornar do doutorado na Europa no começo dos anos 1980, com uma pesquisa mais voltada às práticas da linguagem e à análise do discurso, entende que a crítica literária havia se transfigurado de forma particular no Brasil e na América Latina, oferecendo espaço à “singularização do novo, sem correr o risco de continuar reproduzindo conhecimentos” ( SOUZA, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe Editora, 2021., p. 87). Em seu ensaio “Autocrítica da crítica”, ela pontuaria:

Considero, do ponto de vista de minha atuação acadêmica, que as pesquisas realizadas a partir dos anos 1980 distanciavam-se das anteriores, por me dedicar à revalorização do estudo sobre biografias, arquivos e memória cultural. Nesse particular, a produção dos escritores exigia distinta reflexão de noções como as de autor, de intelectual, de vida pública, de relações de amizade entre os pares, de história literária e assim por diante. ( SOUZA, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe Editora, 2021., p. 347).

Narrativas impuras é não somente resultado das transformações pelas quais passara o campo literário, como é um compilado de textos apresentados nos últimos anos pela crítica e professora de Literatura nascida em Manhuaçu/MG, cuja casa da família ela lutou para preservar da maneira como fora feita no século passado, em meio às especulações imobiliárias crescentes que preferem ou demolir ou transformar construções históricas em clínicas de diagnóstico de imagens e afins. Tal como Tarsila do Amaral no “dia seguinte” à Semana de Arte Moderna de 1922 - em que a artista, metaforicamente, vai de Ouro Preto à Europa estudar técnicas de preservação de monumentos históricos -, os estudos do pós-moderno, do cult, do pop, nos textos escritos por Eneida Souza, revelam a consciência doubrovskiana de que o passado se vive no corpo e no texto, importando muito as formas como o transmitimos ao presente. Preservar a casa da família aos moldes das construções de 1918, quando fora construída, é seguir o tracejado explicitado por Jacques Derrida, que ela recupera em seu artigo “Ficções impuras”, no qual o pensador franco-argelino diz que “toda cultura é como um imenso testamento [...]” (DERRIDA apud SOUZA, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe Editora, 2021., p. 211). Assumindo seu lugar na trama da história, ela toma a posição de herdeira, contribuindo para a sobrevivência das formas. 1 1 O conceito é utilizado por Souza, em referência a Aby Warburg.

A autora perfaz caminhos singulares ao pousar seu olhar sobre alta costura, Mário de Andrade, charutos, cinema contemporâneo, fotografia, a cidade letrada, Roland Barthes, crítica genética, Derrida, autoficção, Coetzee - a lista de temas é vastíssima. Narrativas impuras é, assim, um remix do retrato pintado daquilo que Eneida Souza fora desde a explosão do seu Crítica cult, em 2002, quando, de forma despretensiosa, ela capturou o espírito de nosso tempo, executando o melhor que a crítica biográfica nacional experienciou à época. Na variedade dos temas pesquisados, com o olhar atento ao detalhe que alguns de seus interlocutores lhe ofereceram, ela realizou o que Marília Rothier Cardoso cunhou como “crítica elegante” e sem desejos de esgotamento dos objetos e dos sujeitos abordados ao longo dos trabalhos. A mensagem que permanece na obra de 2021 é a de se continuar ensinando suas leitoras e seus leitores a irmos atrás de imagens que o próprio texto/objeto/sujeito de pesquisa fornecem para lhes darmos rendimento metafórico e, ainda, a percepção delicada das datas na abordagem de uma vida e dos modos como a crítica biográfica se desapega da rigidez dos fatos, ainda que forme constelações ao lado deles. Em seu “mineirês” cosmopolita, Eneida Souza compreendeu a impureza e a contaminação de áreas e de discursos como virtude; executou a crítica como metaforização do real; praticou o ensaio biográfico como direito ao experimental e à reutilização do resíduo.

As análises desses ensaios publicados pela Cepe Editora ganham força se forem lidos em perspectiva benjaminiana: à primeira vista podem parecer simples, mas basta metermos “mais dentro a faca do raciocínio”, como escreveria Machado de Assis em seu Memórias póstumas de Brás Cubas, para encontrarmos “um miolo gaiato, fino, e até profundo” ( ASSIS, 1994ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994., p. 77): a autora manuseia conceitos, épocas, autorias, obras, sem perder o fio da meada e praticando o anacronismo à moda de Aby Warburg e de Didi-Huberman (presentes nos ensaios publicados em 2021), que ganharam ainda maior visibilidade quando foram traduzidos para o português, e por quem, certa vez, Eneida declarou estar teoricamente fascinada em um dos encontros acadêmico-afetivos do GT de Literatura Comparada da Anpoll, no ano de 2013.

Importante notar em boa parte dos artigos de Narrativas impuras o diálogo que a autora estabelece com o pensamento de Silviano Santiago - tanto de forma tangencial quanto direta, como é o caso de “Silviano Santiago, autor de Derrida”. Sendo parceiros teóricos e amigos geracionais, as ideias de Silviano surgem como partícula constante e diluída ao longo das análises, seja pela aplicação do conceito de suplemento, seja pela noção de entre-lugar latino-americano, seja pela sua vasta produção romancista. Eneida reconhece o lugar do crítico e escritor como divulgador da teoria de Derrida no Brasil dos anos 1970, e valoriza no intelectual brasileiro o modo como, afetado pela teoria derridiana, borgiana e benjaminiana, coloca em fluxo o descentramento, o reconhecimento da alteridade, a encenação, a “miscigenação entre autores, narrativas e tempos distintos de suas realizações” ( SOUZA, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe Editora, 2021., p. 216). A afeição pelo legado gerado por Silviano é demonstrada em inúmeras passagens, e o valor da amizade cede lugar à ética de se distinguir a relevância do escritor na crítica cultural brasileira das últimas décadas.

Além das análises críticas, constam textos de homenagens e até um depoimento, como no artigo “Janelas”, cuja tônica parte da última novela de E. T. A. Hoffmann para desaguar na pandemia de COVID-19, que assolou o mundo a partir de 2020. Os efeitos descritos pelas formas como a cidade se redesenhou, os modos como a contaminação do vírus fora democratizada e os níveis em que a fome e a pobreza urbanas invadiram a vida nas cidades são descritos do ponto de vista da reclusão e da necessidade que a autora tinha de analisar as formas de produção seja no convívio social, seja no “convívio do sujeito consigo próprio; no ordenamento obsessivo das tarefas diárias; no alinhamento compulsivo com os espaços rarefeitos da casa; no reconhecimento de cada canto, antes ausente pelo olhar apressado e alheio à morada” ( SOUZA, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe Editora, 2021., p. 382). E se o ambiente doméstico gesta um tipo de literatura, Souza não desvia o olhar das ruas vazias, de onde se entrevê a fome e a precariedade de algumas existências: “triste época em que se banalizam e se barateiam vidas perdidas, cortadas em pleno voo, tanto nas residências quanto nos hospitais, nas ruas, favelas e aldeias indígenas” ( SOUZA, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe Editora, 2021., p. 385). Em seu depoimento sobre a pandemia ao final da obra, a autora denuncia as contradições de nosso tempo em reclusão e compreende que a “privacidade só tem lugar quando se associa ao público” ( SOUZA, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe Editora, 2021., p. 386), de forma que, pandemicamente, estaríamos, todas e todos, completamente expostas e expostos à urgente necessidade de revisão dos nossos modos relacionais em sentido lato.

Em um texto como “Literatura Comparada, indisciplina”, de 2012, Eneida demonstraria certo enfado ante às incessantes necessidades de uma conceituação formal para uma disciplina em um campo extremamente movente. Ela teria escrito, em defesa do desconhecimento das barreiras e dos limites disciplinares rígidos, que “o estatuto pós-moderno da disciplina, inscrito na condição de uma fragilidade conceitual e na quebra de fronteiras de área, na temática pós-colonial, étnica, de gênero e na variedade metodológica, culmina com o teor transnacionalista de seus objetos” ( SOUZA, 2021SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe Editora, 2021., p.303). Defendendo a neblina entre as fronteiras culturais, os ensaios reunidos nos dão exemplos do como fazer, mais do que a prescrição crítica que prima pelo juízo, seja ele qual for.

Tive a oportunidade de estar ao lado de Eneida em diferentes momentos, tendo a maior parte deles ocorrido durante eventos acadêmicos nos quais, ao final de um dia de trabalho, literatura e vida ganhavam ares ainda mais envolventes. Mas foi certamente em 2004, ao chegar à Bahia para o mestrado, quando me deparei com um curso sobre crítica biográfica, ministrado por ela, e acessei imediatamente o seu belíssimo e contundente livro Pedro Nava, o risco da memória (2004SOUZA, Eneida Maria de. Pedro Nava, o risco da memória. Juiz de Fora: Funalfa Edições, 2004.), que compreendi que estava diante de uma dicção única no trato com as práticas literárias. Ali entendi a “lição” do exercício necessário de desapego às verdades e visualizei um exercício analítico admirável, sem celebrismos ou extenuações. Narrativas impuras, o último livro de ensaios publicado por Eneida Maria de Souza, passou-me a sensação estranha de terminar seu livro como se algo ainda estivesse por vir. Diferentemente de como ela narrou Barthes sendo capturado por Compagnon em seu ensaio “Poéticas do inacabado”, não há traço que me indique que ela soubesse que fazia sua escrita derradeira. Rumo aos 80 anos de vida, continuou no ritmo da escrita como prazer e na alegria da partilha. Com o prazer do texto, ela abriria a discussão em Narrativas impuras, e, assim, inacabadamente, ela nos deixaria, se despedindo sem se despedir.

Referências

  • ASSIS, Machado de. Obra Completa Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Pedro Nava, o risco da memória Juiz de Fora: Funalfa Edições, 2004.
  • SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras Recife: Cepe Editora, 2021.
  • 1
    O conceito é utilizado por Souza, em referência a Aby Warburg.
  • 2
    Resenha de: SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras. Recife: Cepe Editora, 2021.

Editado por

editor-chefe: Rachel Esteves Lima
editor executivo: Cássia Lopes Jorge Hernán Yerro

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2022
  • Aceito
    15 Dez 2022
Associação Brasileira de Literatura Comparada Rua Barão de Jeremoabo, 147, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, BA, Brasil, CEP: 40170-115, Telefones: (+55 71) 3283-6207; (+55 71) 3283-6256, E-mail: abralic.revista@abralic.org.br - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: abralic.revista@abralic.org.br