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A escrita em medicina veterinária

Writing in Veterinary Medicine

RESUMO

Apoiando-me no paradigma indiciário, nos estudos de letramentos acadêmicos, na retomada da distinção entre sujeito empírico e discursivo proposta por Corrêa (2011CORRÊA, M. L. G. As perspectivas etnográfica e discursiva no ensino da escrita: o exemplo de textos de pré-universitários. Revista da ABRALIN, Sergipe, v. 10, n. 4, p. 333-356, 2011.) e nas noções de modo de enunciação de escrita e de gêneros textuais, procuro discutir e exemplificar gestos do escrevente em três artigos científicos de periódicos - estratos B1 e B3 (área Medicina Veterinária [MV], subárea Reprodução Bovina) - a fim de analisar se e como um processo de adscrição se evidencia na escrita acadêmica nessa disciplina. Concluo que o escrevente se distancia da noção de estabilidade do gênero do discurso e se insere, numa tensão produtiva, no jogo discursivo da área, desvelando, de certa forma, dimensões ocultas das práticas de letramento(s) da esfera discursiva em que o gênero circula. Réplicas e alusões ou remissões a outros trabalhos são estratégias para validação da própria pesquisa e insumo para promover o próprio trabalho e proporcionar que ele seja futuramente citado.

PALAVRAS-CHAVE:
letramentos acadêmicos; gêneros textuais; enunciação

ABSTRACT

Supporting myself in the evidential paradigm, in the studies of academic literacies, in the resumption of the distinction between empirical and discursive subject proposed by Corrêa (2011CORRÊA, M. L. G. As perspectivas etnográfica e discursiva no ensino da escrita: o exemplo de textos de pré-universitários. Revista da ABRALIN, Sergipe, v. 10, n. 4, p. 333-356, 2011.), and in the notions of the way of enunciation of writing and of textual genres, I try to discuss and exemplify the gestures of the writer in three scientific articles from journals - stratum B1 and B3 (Veterinary Medicine (VM) area, Bovine Reproduction sub-area) in order to analyze whether and how an additive process is evident in academic writing in this discipline. I conclude that the writer distances himself from the notion of stability of the discourse genre and inserts himself, in a productive tension, in the discursive game of the area, revealing, in a way, hidden dimensions of literacy practices of the discursive sphere in which the genre circulates. Replicas and allusions or references to other works are strategies for validating the research itself and input to promote the work itself and its future citation.

KEYWORDS:
academic literacies; textual genres; enunciation

1 Introdução

Modelos representativos da escrita acadêmica ideal1 1 Compreendo que inexiste uma produção escrita “ideal” visto que a percepção do que seja “ideal” para um sujeito pode variar em relação a outro. A escrita ideal para publicação de artigos domina o imaginário de muitos escreventes, pesquisadores e avaliadores a partir das representações construídas em torno da escrita acadêmica. Ressalvam-se, nesse caso, aspectos menos conflitantes como o uso da norma padrão e a pertinência do tema em relação à área, que, a meu ver, são requisitos mínimos para a publicação em um periódico. Aspectos como estilo, ponto de vista e referencial teórico, dentre outros, inserem-se numa zona tensa e movediça, pois envolvem inclusive, mas não só, relações de poder. (STREET, 2010; 2007) criam raízes e cristalizam-se nas expectativas de professores universitários promovendo a crença de que universitários estão aptos para a produção de gêneros textuais acadêmicos pela experiência anterior na educação básica e outros espaços sociais. A percepção de que o contato de graduandos com modelos de letramento acadêmico representativos de uma área seria suficiente para a compreensão de práticas de letramento(s) acadêmico(s), por sua vez, leva docentes a exigirem do universitário a produção de diferentes gêneros acadêmicos, tais como: resumos, resenhas, artigos, monografias e ensaios, dentre outros.

Essas premissas, fossilizadas na academia, situam um saber,2 2 Referência às representações da escrita acadêmica numa determinada área. Envolve o conhecimento do objeto de estudo, o conhecimento/domínio da escrita e representações que os avaliadores - e mesmo os escreventes - têm sobre esse modo de enunciação. observável também nas avaliações de artigos acadêmicos feitas por professores. (STREET, 2010STREET, B. V. Dimensões “Escondidas” na Escrita de Artigos Acadêmicos. Perspectiva, Florianópolis, v. 28, n. 2, p. 541-567, 2010.) No Brasil, disciplinas sobre escrita acadêmica são incomuns na graduação ou pós-graduação, mas a produção de gêneros acadêmicos é solicitada já no início do curso. Essa prática se relaciona a uma perspectiva de letramento que envolve “discursos e gêneros institucionais mais amplos”.3 3 Traduções da autora. (LEA; STREET, 2006LEA, M. R.; STREET, B. V. The “academic literacies” model: theory and applications. Theory into Practice, London, v. 45, n. 4, p. 368-377, 2006., p. 368)

Como os enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada esfera discursiva, perceptíveis pelo conteúdo temático, estilo e construção composicional (BAKHTIN, 2011BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.), assumo, de antemão, que professores universitários e avaliadores de periódicos apoiam-se nos modelos de letramento das habilidades cognitivas e da socialização acadêmica. (LEA; STREET, 2006LEA, M. R.; STREET, B. V. The “academic literacies” model: theory and applications. Theory into Practice, London, v. 45, n. 4, p. 368-377, 2006.) Nesses modelos, a escrita como tecnologia, o letramento como habilidade individual e cognitiva - ou ainda como aculturação dos estudantes nos discursos e gêneros de diferentes disciplinas, num processo de socialização em relação à área - seriam aspectos suficientes para a produção de gêneros acadêmicos. Tal perspectiva assenta tais práticas numa zona ilusoriamente transparente, no equívoco da homogeneidade da escrita e numa suposta e permanente estabilidade dos gêneros textuais.

Elencando, como corpus, três artigos acadêmicos na área de Medicina Veterinária (doravante MV), assumo que o escrevente mobiliza conhecimentos sobre a escrita e o letramento em contextos de socialização de pesquisas em MV, tentando se apropriar de um conjunto de características da escrita nessa área. Essas práticas, em certo sentido, sempre se repetem. Contudo, atualizam-se continuamente em réplicas, pois se relacionam a um já-dito-escrito-lido.

Dessa forma, o escrevente busca ancorar sua escrita por meio de réplicas para constituir seu texto e validar seu dizer numa relação de alteridade com o(s) destinatário(s). Para tanto, de maneira singular, usa determinadas estratégias inserindo no texto diversos interlocutores. Essa inserção, aqui entendida como estratégia, contribui para o alçamento do escrevente à área, mas, ao mesmo tempo, ao dialogar com interlocutores, ainda que à revelia deles,4 4 À revelia porque, uma vez citado, um pesquisador só irá discordar se publicar um novo artigo em resposta. promove a validação de sua pesquisa num movimento distinto do que ocorre na área de Letras ou de Ciências Humanas, em que citações ou autores não são usados para validar pesquisa.5 5 Em Letras e Ciências Humanas, citações e autores, num processo dialógico, são utilizados pelo(s) escrevente(s) para refutar ou apoiar um argumento ou conceito teórico no interior do texto, mas não para validar o resultado ou uma metodologia. Em MV, o escrevente dialoga com outro(s) autor(es) com o objetivo de validar a própria pesquisa no que se refere a análises, a resultados ou a metodologias. São comuns, em MV, sentenças como: “Nossos resultados estão de acordo com os de Fulano et al.”, “A metodologia adotada é a mesma de Beltrano et al.” Gestos de alçamento do escrevente ao letramento acadêmico da disciplina são, então, marcados explicitamente: faz remissões/alusões a outras pesquisas, concordando com elas ou discordando delas com vistas à validação de sua pesquisa. Desse modo, historicamente define não apenas o lugar de onde fala, mas situa esse seu lugar e busca validá-lo nesse diálogo com outras pesquisas e outros pesquisadores, como explicito mais adiante.

Assumo, ainda, que aspectos econômicos e linguísticos influenciam a escrita em MV dando sustentação para pesquisadores, em Ciências Agrárias,6 6 Devido ao objetivo proposto, não aprofundarei na influência do inglês na escrita em MV. organizarem muito sucintamente seu texto. A concisão como característica de um bom texto, nessas áreas, não se constitui em apenas um recurso estilístico, mas estratégia do escrevente que a vê como gesto típico da escrita em MV. Como exemplo, cito que praticamente inexistem referências ao próprio texto, objeto de escrita, como “o objetivo deste trabalho”.

Na escrita no âmbito das disciplinas,7 7 Escrita no âmbito das Disciplinas (Writing in the Disciplines, WiD) constitui-se em uma corrente teórica. Aqui se refere ao letramento acadêmico em MV. questões econômicas exigem concisão. Se “tempo é dinheiro”, deve-se considerar: (1) o tempo dispendido pelo produtor ou leitor do texto; (2) o espaço físico (papel) em periódicos impressos; e (3) a gestão do conhecimento e de informações novas empreendida por pesquisadores e editores da área que, diante de grande número de dados disponíveis inclusive na web, definem parâmetros para seleção, publicação ou exclusão de trabalhos. Em vista desse propósito comunicativo, alcance e influência de pesquisas publicadas, a escrita nessas áreas se delineia, em especial, a partir da concisão.

A possibilidade de aceite de artigo em periódico bem qualificado envolve aplicabilidade e viabilidade econômica da pesquisa relatada e validação e confiabilidade do material e dos métodos empregados. Assim, revisões bibliográficas são incomuns, porque, desprovidas do caráter de novidade, não têm aceitabilidade em periódicos.

Na questão linguística, é importante considerar o uso de sujeito explícito, sentenças curtas e na ordem direta, por exemplo.

O contributo deste trabalho está em analisar se e como um processo de adscrição8 8 sf (lat adscriptione) 1 Aditamento ao que já foi escrito. 2 Registro, inscrição, transcrição. 3 Condição, qualidade de adscritício. (Michaelis, online) se evidencia na escrita acadêmica em MV. Sustento que há um esforço do escrevente em adscrever sua escrita, alinhando-a ao que já foi escrito/lido/falado, mas sempre tentando introduzir uma novidade na área, sob pena de não se circunscrever, com a publicação, no campo de investigação pretendido. Vejo o escrevente como sujeito adscrito,9 9 adj (lat adscriptu) Acrescentado, aditado, aumentado, registrado. sm 1 Colono sujeito ao regime da adscrição. 2 Servo de criação. (Michaelis, online) que, em dialogia com outros, busca ser um “colono sujeito ao regime da adscrição”. Em outras palavras, o esforço em se inserir no discurso da área, por meio da escrita e com a publicação de artigos em periódicos qualificados, traduz-se numa tentativa de alçamento à suposta e genuína (no sentido de homogeneidade) escrita ideal em MV. Obter sucesso nesse cenário pode corresponder ao reconhecimento como pesquisador da área.

Essa contextualização encaminha para a hipótese de que o escrevente de MV, com base no imaginário sobre a escrita da área, regula a produção do gênero acadêmico - artigo científico, nosso objeto de análise - buscando atender ao imaginário de escrita ideal em MV. Aproprio-me da noção de “imaginário” que corresponde à “representação social (da escrita)”, proposta por Corrêa (2004CORRÊA, M. L. G. O modo heterogêneo de constituição da escrita. São Paulo: Martins Fontes , 2004., p. xix-xx), que a percebe não só como “o produto das imagens socialmente construídas sobre ela […], mas também o processo de sua constituição no interior das mais diversas práticas sociais”.

Escrever não é um processo solitário, pois “os outros aos quais o sujeito-escrevente direta ou indiretamente retoma e/ou se dirige também tomam parte no trabalho incessante de re-produção/re-criação dessas representações como participantes” dos acontecimentos discursivos. (CORRÊA, 2004CORRÊA, M. L. G. O modo heterogêneo de constituição da escrita. São Paulo: Martins Fontes , 2004., p. XX) Nesse sentido, percebe-se que um processo dialógico perpassa o texto do escrevente que, com réplicas e remissões, mobiliza estratégias na escrita buscando a adscrição à área.

Feitas essas considerações, pretendemos analisar se e de que forma tentativas de alçamento ao discurso da área e a esse modo de enunciação da escrita podem ser definidas como atributos representativos de um letramento contextual, isto é, características de uma prática situada de letramento considerada dentro de uma esfera discursiva, a disciplinar, mais especificamente, a da MV.

2 Aspectos metodológicos

Objetivando analisar a escrita acadêmica em MV, inicialmente selecionei dez artigos10 10 Posteriormente, esse número foi reduzido para três artigos, como explicito adiante. Optei por manter o percurso realizado para chegar ao número de três artigos, pois o primeiro critério era que o artigo fosse de revista com estrato A. científicos em 2019, obedecendo aos critérios:

Gráfico 1
Número de periódicos na área de Medicina Veterinária

Foram desconsiderados os periódicos A1 (todos em inglês) e A2, pois havia apenas dois periódicos com versões impressa e online em português e inglês, um dos quais se insere na área de Parasitologia.

Com esse resultado, revi os critérios iniciais, pois inexistiam artigos, em português, em periódicos A1. A Revista Veterinária Brasileira, bilíngue (inglês/português), A2, não tinha a subárea RB. A nova coleta se deu, portanto, em revistas com estrato de B1 a B5. Os dados coletados constam na Tabela 1:

Tabela 1
Distribuição de periódicos em MV conforme estratos e idioma de publicação

Inicialmente, selecionei dez artigos sobre RB (concepção, prenhez, fertilização in vitro e transferência de embriões) em periódicos B1, B2 e B3. Na sequência, excluí artigos da mesma revista para obter textos avaliados por diferentes conselhos editoriais; então, restaram três com estratos B1 e B3, sendo este o corpus analisado.

Esta pesquisa decorreu das revisões linguísticas feitas pela pesquisadora de artigos científicos de um mestrando da área de Ciência Animal, linha de pesquisa RB, em 2013. Nos momentos de revisão, não raro debatíamos sobre a reescrita do texto. Graduado em Medicina Veterinária (2005-2009), não cursou disciplina sobre escrita acadêmica, não fez iniciação científica e teve os primeiros rudimentos sobre escrita acadêmica em MV pela leitura de periódicos e em disciplinas do mestrado.

O pós-graduando, ao escrever um artigo, buscava inserir ou excluir determinadas escolhas lexicais, mobilizava a ideia de haver uma sintaxe de colocação de palavras típica da área e um padrão de escrita, em veterinária, constituído, principalmente, de sentenças simples.12 12 Para o mestrando, sentenças simples são as curtas em que “não aparecem coisas como: ‘ao passo que, visto que, dito de outra forma’”, pois são desnecessárias e observa que “quanto menos escrever, melhor fica” (informação verbal). Autorregulava-se continuamente, verificando aspectos13 13 Trata-se de aspectos citados pelo pós-graduando numa interação face a face, que contribuíram para a seleção de pistas singulares. identificados como traços singulares da área, tais como:

Figura 1
Critérios para escrita em MV expostos pelo pós-graduando

Ressalta-se o fato de o escrevente buscar outros textos objetivando “ver como outros escrevem”. Suas observações levaram-me a supor que gestos, na materialidade linguística de artigos em MV, seriam “pistas linguísticas” indicativas das tentativas de alçamento do escrevente ao discurso da disciplina.

Entendendo autoria, nesta pesquisa, somente como a ação de alguém produzir um texto, destaco que a autoria, em MV, é quase sempre de dois a dez autores, em média.14 14 Há indícios da recorrência de duplas ou grupos de autores na escrita de artigos em MV no próprio corpus analisado: (1) no artigo 1 (8 autores), das 23 referências elencadas pelos autores, há apenas um artigo de autoria individual. Referências de autoria individual citadas pelos autores são de dissertação, tese, livro ou manual; (2) no artigo 2 (6 autores), das 31 referências, há apenas dois artigos de autoria individual. Consta mais um autor individual, mas se trata de tese; e (3) no artigo 3 (2 autores), das 40 referências, apenas 6 são artigos de autoria individual. Todos os artigos de autoria individual referenciados nos três artigos do corpus são da década de 1980 ou de 1990. Em pesquisa em andamento (não publicada) pela pesquisadora acerca do número de autores em artigos na área da MV, a análise inicial aponta que a publicação de artigos em coautoria e a formação de “redes de publicação” têm crescido no Brasil na última década, motivadas, talvez, pela exigência de altos índices de produtividade expressos em número de artigos publicados e número de citações. Aparentemente, isso seria um problema, visto que trato do escrevente no singular. Entretanto, segundo o mestrando, na produção coletiva, um pesquisador elabora o texto-base e os outros atuam como leitores/revisores críticos. Tal prática, em si, carrega uma característica da escrita da disciplina: uma produção coletiva em que a comunicação com o outro se dá já no interior da própria situação de elaboração do texto. Mesmo assim, entendo que a marca do escrevente, o responsável pelo texto-base, está presente na materialidade linguística dos artigos, corpus desta pesquisa, como procuro mostrar mais adiante.

Dessa forma, tendo como objeto de estudo a singularidade da escrita acadêmica em MV, apoio-me no paradigma indiciário para análise do corpus. A identificação e a análise de pistas linguísticas, a exemplo de Morelli (GINZBURG, 1990GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.), podem ser indicativas de possíveis regularidades na escrita de escreventes em MV. O método interpretativo proposto por Ginzburg pauta-se pelo tratamento dado a detalhes/pistas para compreensão das percepções de indivíduos ou grupos sociais. (SUASSUNA, 2008SUASSUNA, L. Pesquisa qualitativa em Educação e Linguagem: histórico e validação do paradigma indiciário. Perspectiva, Florianópolis, v. 26, n. 1, p. 341-377, 2008.) Com base nesses vestígios na materialidade linguística, o pesquisador consegue remontar “uma realidade complexa, não experimentável diretamente”, pois, como a realidade é opaca, “alguns de seus sinais e indícios permitiriam ‘decifrá-la’, no sentido de que indícios mínimos podem ser reveladores de fenômenos mais gerais”. (p. 364)

Suassuna (2008SUASSUNA, L. Pesquisa qualitativa em Educação e Linguagem: histórico e validação do paradigma indiciário. Perspectiva, Florianópolis, v. 26, n. 1, p. 341-377, 2008.) explicita que o pesquisador contrapõe dados à hipótese inicial buscando explicações possíveis para fenômenos observados. Assim, uma marca linguística recorrente pode ser um fato singular indicativo de uma regularidade presente na escrita acadêmica em MV, se considerarmos a hipótese de que há um pareamento, uma tentativa de adequação ao modelo representativo da área. Para tanto, o escrevente dialoga com outros pesquisadores e discursos por meio de réplicas. Conforme Corrêa (2006CORRÊA, M. L. G. Relações intergenéricas na análise indiciária de textos escritos. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 45, n. 2, p. 205-224, 2006., p. 210), “a força motivadora de réplica nem sempre nasce de uma enunciação facilmente localizável, porque anterior à própria réplica” e “são as representações que fazemos dos dizeres potencialmente passados, presentes e futuros que modulam a sua proximidade e a sua distância”. Essas representações vão “facultar, portanto, o estabelecimento de uma relação explicativa entre um determinado dizer e um certo fato textual-discursivo”. (p. 211)

Interessa, portanto, não a frequência de réplicas, mas o modo como o escrevente se utiliza delas como estratégia para o alçamento ao discurso da disciplina. Dessa forma, a partir dos aspectos mencionados pelo escrevente, defendo haver um processo de tentativa de regulação da escrita que pode conduzi-lo à adscrição à área.

Dado esse contexto de pesquisa, justifico a escolha de um corpus constituído apenas por três artigos científicos e não pela produção do pós-graduando que apresentou aspectos indicativos da escrita em MV, visto que, a partir desse gênero acadêmico, o modelo de escrita ideal se apresenta para os escreventes se considerarmos as premissas apontadas na introdução deste trabalho, quais sejam: o professor universitário crê que a vivência com outros gêneros acadêmicos e que a socialização do escrevente com gêneros típicos do letramento acadêmico são suficientes para a produção de bons textos. O artigo científico, por sua ampla circulação, constitui um modelo representativo para a área, pois, embora dialogue com outras pesquisas, condensa os resultados de uma única.

Quanto ao número de páginas, em MV, o artigo constitui-se de 3 a 6 páginas, em média. Resumo expandido tem de 2 a 3 páginas e dissertação ou tese, cerca de 50 páginas, incluindo elementos pré e pós-textuais. Variam a temática, a profundidade no trato do tema, o material e os métodos, dentre outros aspectos.

As seções Introdução, Material e métodos, Discussão e resultados e Conclusão constituem a composição organizacional prototípica do artigo. A ancoragem teórica - na verdade, os resultados de outras pesquisas - encontra-se na Introdução para justificar a publicação e na Discussão e resultados para a validação da própria pesquisa e de seus resultados.

Considerando que o escrevente, num processo dialógico, perpassa seu dizer, propus as categorias para análise dos artigos:

Figura 2
Categorias de análise

3 Pressupostos teóricos

A escrita como tecnologia, associada ao modelo de letramento autônomo (SOARES, 2004SOARES, M. Alfabetização e letramento. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004.), está, a meu ver, na base do modelo das habilidades cognitivas. (LEA; STREET, 2006LEA, M. R.; STREET, B. V. The “academic literacies” model: theory and applications. Theory into Practice, London, v. 45, n. 4, p. 368-377, 2006.) Nesse modelo, escrita e letramento são percebidos como habilidade individual e cognitiva e recaem nos aspectos superficiais das formas linguísticas. Em contexto de ensino, abordar esses aspectos seria suficiente para o escrevente transpor, a partir da vivência com práticas de letramento, o conhecimento do código de escrita e do letramento para outros contextos, dentre eles, o acadêmico. Conhecer o sistema linguístico é essencial na produção escrita, porém a complexidade que envolve a escrita implica reconhecer também o trabalho do sujeito com ela, a historicidade do seu dizer e as agências de letramento também constitutivas de seu dizer.

O modelo da socialização acadêmica (LEA; STREET, 2006LEA, M. R.; STREET, B. V. The “academic literacies” model: theory and applications. Theory into Practice, London, v. 45, n. 4, p. 368-377, 2006.), por sua vez, pressupõe a inserção do escrevente na agência de letramento universidade. Parte do princípio de que ocorre uma tipificação dos membros de uma comunidade ou área disciplinar e que o contato com gêneros textuais induz ao conhecimento (e apropriação) das regras determinantes do discurso de uma área. O resultado seria a reprodução de modelos representativos do letramento acadêmico contextual, isto é, de uma disciplina/área de investigação.

Pensar o ensino da escrita dessa forma conduz à representação da escrita em sua suposta gênese, ainda que num sentido um pouco diferente do proposto por Corrêa (2004CORRÊA, M. L. G. O modo heterogêneo de constituição da escrita. São Paulo: Martins Fontes , 2004.), e do texto como uma estrutura dotada de estabilidade. Contrária a essas noções, defendo, apoiando-me em Corrêa, que, na escrita, “materializam-se, linguisticamente, as relações reais entre os agentes sociais e a escrita, consideradas as práticas sociais de que, direta ou indiretamente, a escrita faz parte”. (2004, p. 9)

Já a pretensa estabilidade do gênero, ligada à socialização do escrevente com práticas de letramentos de uma disciplina, parece reforçar a representação do escrevente sobre a escrita em MV. Contudo, como procuro demonstrar mais adiante, gestos do escrevente para tentar seguir esse modelo refletem dimensões envolvidas na escrita em MV. Dito de outra forma: a mobilização de conhecimentos linguísticos e de discursos da área sinaliza a noção da complexidade do seu dizer materializado na escrita, ou seja, a relação do sujeito com a linguagem é opaca. Daí decorrem, na escritura do artigo, os gestos do escrevente para corresponder à imagem de escrita acadêmica ideal, tendo em vista seus pares.

Não defendo, entretanto, que a inserção do universitário em práticas de letramento acadêmico, seguindo o modelo de socialização acadêmica, seja suficiente para o ensino de escrita em MV. Ao contrário, tomando gestos do escrevente como objeto de investigação, percebo-os como indicativos da relação sujeito-linguagem que não se dá apenas pela simples adequação ao modelo, à composição organizacional do gênero, mas pela tensão e produtividade dessa relação, por meio da qual esse sujeito joga o jogo discursivo no processo de escrita.

Lea e Street (2006LEA, M. R.; STREET, B. V. The “academic literacies” model: theory and applications. Theory into Practice, London, v. 45, n. 4, p. 368-377, 2006.) elegem a sobreposição dos modelos das habilidades cognitivas, da socialização acadêmica e dos letramentos acadêmicos. A terceira abordagem não desconsidera os dois primeiros modelos, pois abarca “processos na aquisição e os usos eficazes do letramento como mais complexos, dinâmicos, diferenciados, situados” e “envolve as questões epistemológicas e os processos sociais, incluindo as relações de poder entre as pessoas, as instituições e identidades sociais”. (LEA; STREET, 2006LEA, M. R.; STREET, B. V. The “academic literacies” model: theory and applications. Theory into Practice, London, v. 45, n. 4, p. 368-377, 2006., p. 369) Essa sobreposição pode contribuir para que o professor, no ensino de escrita, considere, além dos aspectos linguísticos da superfície do texto, uma análise da trajetória de aproximação do escrevente com novos gêneros em novos e situados contextos. Se por um lado há o posicionamento dos autores em relação à necessária discussão com acadêmicos sobre o processo de escrita e oferta de feedback pelo professor, por outro lado, intrínseco está o risco do retorno da proposta como um fim nela mesmo, pois busca torná-los competentes dentro dos parâmetros indicados, explícita ou implicitamente, pela instituição de ensino em que estudam ou pretendem estudar.

Embora tais posturas sejam necessárias, a complexidade que envolve o ensino de língua(gem) precisa estar na base de toda prática de ensino de escrita. Dessa forma, parece-me que as noções de sujeito, de destinatário presumido e de enunciado concreto15 15 Conceitos apresentados mais adiante. são essenciais para que a terceira abordagem, o modelo de letramento acadêmico, seja considerada na sua complexidade. Significa dizer que a escrita envolve um processo histórico, social e ideológico que constitui (e atualiza) a produção de um gênero do discurso e as práticas de letramento(s) em que circula. Não basta, como parecem propor os autores, uma técnica, um procedimento. Do ponto de vista da linguagem, faz-se necessário compreender que ensinar língua(gem) configura um processo opaco em decorrência da própria natureza da linguagem, dos discursos e do sujeito em interação com outro(s) sujeito(s) e discurso(s).

A partir da retomada que Corrêa (2011CORRÊA, M. L. G. As perspectivas etnográfica e discursiva no ensino da escrita: o exemplo de textos de pré-universitários. Revista da ABRALIN, Sergipe, v. 10, n. 4, p. 333-356, 2011.) faz da noção de sujeito discursivo em contraposição ao sujeito empírico, porque é constituído na e pela linguagem em relação de alteridade com o outro, defendo que apesar de a escola muitas vezes pressupor (ou pelo menos privilegiar) a noção de sujeito empírico nas aulas de português, o escrevente faz emergir o sujeito do discurso quando está diante de uma situação real de prática de escrita - em especial aquela que, de alguma forma, resvala por um processo de avaliação. Tal defesa se apoia no fato de que o enunciador (representação textual do escrevente) se constrói a partir do possível destinatário dos enunciados concretos que constituem, por sua vez, o seu texto (artigo científico).

Assim, a produção textual ultrapassa a noção de letramento escolar ou mesmo os três modelos apontados por Lea e Street (2006LEA, M. R.; STREET, B. V. The “academic literacies” model: theory and applications. Theory into Practice, London, v. 45, n. 4, p. 368-377, 2006.) visto que, por ter como ponto de apoio a noção de sujeito do discurso, o dizer do escrevente está imbricado na relação deste com a linguagem, o que faz emergir a alteridade. Na escrita, “a alteridade se manifesta por uma circulação dialógica que o escrevente estabelece por certos eixos que organizam um imaginário, socialmente partilhado, sobre a escrita”. (CORRÊA, 1997CORRÊA, M. L. G. A heterogeneidade na constituição da escrita: complexidade enunciativa e paradigma indiciário. Cadernos da F.F.C., Marília, v. 6, n. 2, p. 165-185, 1997., p. 173)

Com isso, os interlocutores, parte constitutiva do texto produzido, direcionam o dizer do escrevente para o já-dito, para uma resposta, no sentido de que todo enunciado é apenas uma réplica a um outro enunciado também à espera de uma réplica. Bakhtin (2011BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.) tipifica os destinatários como: o destinatário concreto, o interlocutor imediato; o destinatário presumido, aquele a quem se dirige ajustando e reajustando seu enunciado; e o sobredestinatário, um terceiro não visível (Deus, ciência, universidade…).

Interessa-me a noção de destinatário presumido, pois compreendo que o sujeito discursivo escreve baseando-se na imagem que faz de seus pares em MV, também representados pelos diferentes conselhos editoriais de revistas com estratos altos. A meu ver, essa noção dialoga com a distinção proposta por Corrêa (2011CORRÊA, M. L. G. As perspectivas etnográfica e discursiva no ensino da escrita: o exemplo de textos de pré-universitários. Revista da ABRALIN, Sergipe, v. 10, n. 4, p. 333-356, 2011., p.l340-341) quando estabelece que:

as semelhanças e diferenças entre uma perspectiva interacional - restrita ao encontro presencial de dois interlocutores (onde falam sujeitos empíricos) - e uma perspectiva dialógica - marcada tanto pelo encontro presencial quanto pelos encontros em ausência (onde falam sujeitos do discurso). […] no primeiro caso, temos um encontro caracterizado pelo ato de enunciação presencial; no segundo, temos encontros dialógicos caracterizados tanto pelos atos de enunciação presenciais quanto pelos não-presenciais, mas ambos marcados pelo papel fundamental das réplicas ao já-enunciado, que, situado no processo discursivo, historiciza a ocupação do lugar de sujeito.

Nesse sentido, se as pessoas “se fazem sujeitos no processo discursivo” (CORRÊA, 2011CORRÊA, M. L. G. As perspectivas etnográfica e discursiva no ensino da escrita: o exemplo de textos de pré-universitários. Revista da ABRALIN, Sergipe, v. 10, n. 4, p. 333-356, 2011., p. 340), o escrevente, apesar de parecer crer na homogeneidade da escrita e na estabilidade do gênero, assume-se como sujeito discursivo e parece compreender que essa estabilidade é relativa exatamente porque, ao produzir um artigo científico, faz o jogo que se lhe apresenta, ou seja, joga o jogo de “como escrever um artigo científico em MV”. Para corroborar essa hipótese, elenco a reflexão de Corrêa (2011CORRÊA, M. L. G. As perspectivas etnográfica e discursiva no ensino da escrita: o exemplo de textos de pré-universitários. Revista da ABRALIN, Sergipe, v. 10, n. 4, p. 333-356, 2011., p. 344) sobre a noção de “presumido dos gêneros do discurso”, cunhada a partir da condição: “se o presumido social acompanha toda produção de sentido, é de esperar que haja, também, algo próximo do que se poderia chamar “presumido dos gêneros do discurso”. Assim, “a temática em que o gênero se inclui, o quadro institucional em que é produzido e as perspectivas que, de fora do texto, o orientam são fatores que podem, em parte, estar presumidos no gênero”. (CORRÊA, 2011CORRÊA, M. L. G. As perspectivas etnográfica e discursiva no ensino da escrita: o exemplo de textos de pré-universitários. Revista da ABRALIN, Sergipe, v. 10, n. 4, p. 333-356, 2011., p. 344)

Compreendo que a construção de sentido de um enunciado envolve um trabalho complexo e elaborado do sujeito e da relação estabelecida com o próprio texto e destinatários presumidos. Essa construção decorre inclusive do contato do escrevente com diferentes agências de letramento acadêmico. Apoiando-me em Bakhtin, defendo que a escolha de um determinado gênero textual pelo escrevente “é determinada pela especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por considerações semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta da comunicação discursiva […]”. (BAKHTIN, 2011BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. 282) Esse sujeito, ainda que siga um modelo representativo de escrita em MV, não abandona a noção de sujeito discursivo e não se insere no texto como se fosse apenas um sujeito empírico, pois mantém em vista seu destinatário presumido. Como disse, gestos de alçamento ao letramento acadêmico na área de MV evidenciam a “intenção discursiva do falante, com toda a sua individualidade e subjetividade”. (p. 282) Se o enunciado é “um elo na cadeia de comunicação discursiva de um determinado campo”, é também “pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva”. (p. 283) O enunciado concreto constitui, portanto, uma unidade real de comunicação em que ocorre a alternância dos sujeitos, o acabamento do enunciado e a expressividade do enunciador. O dizer é sempre orientado em função do outro.

Para o acabamento do enunciado, necessita-se do tratamento exaustivo do tema; do intuito discursivo do enunciador; e das formas composicionais relativamente estáveis do gênero textual. O escrevente, conforme seu intuito discursivo, trata de forma irrepetível o tema que já foi, evidentemente, tema de outros enunciados. A valoração mantida pelo enunciador se dá com o objeto de sentido e os destinatários de seu texto, seus parceiros da comunicação. (BAKHTIN, 2011BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.) Para tanto, estilo, conteúdo temático e construção composicional são constitutivos do gênero e devem ser considerados pelo escrevente na escrita do artigo.

Dessa forma, na composição do enunciado, a relação do enunciador com os destinatários do seu texto e com outros enunciados nesse processo dialógico decorre também da manifestação da presença do outro. A alteridade no interior do enunciado é a base para a constituição de si e do outro por meio da linguagem dentro dos limites da esfera discursiva e do próprio gênero textual. (TODOROV, 1981TODOROV, T. Mikhail Bakhtine, le principe dialogique suivi de Ecrits du Cercle de Bakhtine. Paris: Seuil, 1981.) Em vista do imaginário de escrita ideal e da sua representação da escrita em MV, o sujeito se constitui numa relação de alteridade com os destinatários de seu texto, concretos ou não.

A constituição do sujeito ocorre, discursivamente, nas relações dialógicas com o outro. (BAKHTIN, 2011BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.) Tendo em vista a imagem do outro (o destinatário presumido), a interação se dá por meio do diálogo com o discurso do outro (já conhecido) ou mesmo com novas vozes sociais com que o escrevente se defronta em diferentes atividades humanas, num contínuo processo de atualização de qualquer gênero textual. A alteridade se constitui, portanto, na relação entre o enunciador e seu interlocutor. Nesse sentido, as réplicas, como estratégias para o alçamento ao discurso em MV, são construídas numa relação de alteridade com possíveis interlocutores com quem o escrevente busca dialogar: seus destinatários presumidos.

Quanto à imagem do escrevente acerca da escrita em MV, considero relevante a pesquisa de Lea e Street (2006LEA, M. R.; STREET, B. V. The “academic literacies” model: theory and applications. Theory into Practice, London, v. 45, n. 4, p. 368-377, 2006.) sobre letramento acadêmico no contexto das disciplinas relatada por Street (2007STREET, B. V. “Hidden” features of academic paper writing. Working Papers in Educational Linguistics, Philadelphia, v. 24, n. 1, p. 1-17, 2007.; 2010STREET, B. V. Dimensões “Escondidas” na Escrita de Artigos Acadêmicos. Perspectiva, Florianópolis, v. 28, n. 2, p. 541-567, 2010.). Embora o antropólogo não apresente explicitamente o conceito de dimensões escondidas, depreende-se que se trata dos critérios de avaliação de gêneros acadêmicos por professores universitários que nem sempre são explícitos para o escrevente, ou seja, “os requisitos da produção textual, […] indícios, não no nível da habilidade técnica, da superfície da competência linguística e da assimilação cultural, mas no nível da epistemologia, da autoridade e da contestação do conhecimento. (STREET, 2010STREET, B. V. Dimensões “Escondidas” na Escrita de Artigos Acadêmicos. Perspectiva, Florianópolis, v. 28, n. 2, p. 541-567, 2010., p. 545)

A partir dessa pesquisa, Lea e Street (2006LEA, M. R.; STREET, B. V. The “academic literacies” model: theory and applications. Theory into Practice, London, v. 45, n. 4, p. 368-377, 2006.) propõem três modelos de letramento, enfatizando o da socialização acadêmica. Pretendo, contudo, defender que esses modelos e o conceito de dimensões escondidas (STREET, 2007STREET, B. V. “Hidden” features of academic paper writing. Working Papers in Educational Linguistics, Philadelphia, v. 24, n. 1, p. 1-17, 2007.; 2010), se tomados isoladamente e sem inseri-los no campo das Ciências da Linguagem, podem levar à ilusão de que a escrita, o texto, o discurso e o próprio escrevente seriam heterogêneos do ponto de vista dos eventos (situados) e práticas (sociais) de que participam, mas seriam, ainda assim, “domáveis” do ponto de vista da linguagem. Isso resultaria numa concepção homogênea de toda essa série de fatos discursivos e poderia induzir, no limite, a uma concepção da própria linguagem como homogênea. Se concebidos desse modo, também o ensino de gêneros se limitaria à transparência do que neles é repetível, destituindo-os da opacidade que os caracteriza, o que não é possível.

Em vista desses pressupostos, o ponto de apoio que norteia este trabalho reside na percepção de que o escrevente, como sujeito histórico, ao fazer o jogo do letramento acadêmico e se inserir nesse campo disciplinar, tenta seguir o suposto modo de escrita da área e se mostra como sujeito discursivo em dialogia com um (ou mais) destinatário(s) presumido(s) e enunciados outros, com vistas à adscrição. Aparentemente, numa versão mais forte da noção de estabilidade do gênero, o escrevente se atém à composição organizacional do gênero textual - artigo científico. Os gestos de alçamento ao discurso em MV, porém são indicativos da interação desse sujeito com outro(s) destinatário(s) e discurso(s). Considerando a heterogeneidade da linguagem, compreender esse processo dialógico, que é contínuo, significa perceber a composição organizacional do gênero apenas como pano de fundo, pois a estabilidade desse gênero é relativa frente à constante atualização de todo enunciado. A partir desses fundamentos teóricos, entendo que a tentativa de apropriação da forma de escrever da disciplina constitui um gesto do escrevente para adscrever seu trabalho e, consequentemente, a si mesmo à área de MV, conforme pretendo demonstrar adiante.

4 Análise e discussão dos dados

Para a análise, os artigos foram nomeados como A, B e C como sumariza a Tabela 2.

Tabela 2
Corpus analisado

4.1 Organização composicional e escolhas léxico-gramaticais

Os três artigos apresentam composição organizacional prototípica, por exemplo, as seções: Resumo/Abstract, Introdução, Material e métodos, Resultados e discussão, Conclusão e Referências bibliográficas. Na Introdução, encontram-se a justificativa e a relevância da pesquisa. Um gesto inicial do escrevente de adesão ao discurso da disciplina se mostra ao situar a própria pesquisa, teórica ou metodologicamente, dentre 9 a 11 trabalhos que abordam o mesmo tema. A maioria das pesquisas citadas são produções coletivas dos últimos 10 anos.

A tipologia textual predominante é descritiva. Na seção Material e métodos, a sequência discursiva é unicamente descritiva. Nas outras seções, é típico o uso da voz ativa e de sentenças curtas. Na seção Material e métodos, a construção sintática mais comum é a voz passiva, especialmente a analítica, no tempo passado.

Cada artigo tem apenas um objetivo indicado no final da Introdução. A inserção do objetivo na seção introdutória foi observada também em cada artigo que compôs inicialmente o corpus, o que parece ser característico da escrita em MV.

Em toda seção dos três artigos, exceto na Conclusão, há alusão a outros pesquisadores. Ora o escrevente alude aos resultados de suas pesquisas, ora aos materiais e métodos utilizados por outros pesquisadores, sempre estabelecendo uma ligação (aproximação ou distanciamento) entre eles e a própria pesquisa.

Todos os artigos foram produzidos coletivamente, por 2 a 8 autores. As referências bibliográficas são majoritariamente em inglês e de periódicos internacionais de alto impacto.

As escolhas léxico-gramaticais do escrevente são vocábulos típicos da área que expressam conceitos, técnicas e métodos. Os operadores discursivos mais usados introduzem ideia de explicação ou de finalidade, tais como pois e para, respectivamente.

Inexistem citações diretas. O diálogo com o outro (seus pares, os destinatários presumidos) se dá pela citação indireta. Há pouca ocorrência de operadores marcando a voz do outro, como “segundo Fulano”. Aderindo a uma escrita mais concisa, parece haver uma preferência pela voz ativa e indicação direta da voz do outro no texto. Assim, ocorre “Curran et al. informam” (C, p. 74) em vez de “Segundo Curran et al.,”.

A análise evidencia ainda uma preferência do escrevente do artigo C por essa forma de interagir com o texto de seus pares. A estrutura “(SREENAN; DISKIN, 1987)” (B, p. 462) inexiste no artigo C, porém é a mais utilizada pelos escreventes dos artigos A e B. Essa estratégia será retomada na análise mais adiante.

A forma composicional do artigo e as escolhas lexicais para situar (e dialogar com) a voz do outro são gestos do escrevente para constituir seu texto com base na imagem de escrita em MV e nas representações de seus interlocutores. Até este ponto, a noção de estabilidade do gênero textual parece ser norteadora da forma de escrever. Contudo, a escolha por um e não outro modo de dialogar com outras vozes sociais, mostra o intuito do escrevente, no artigo C, que se insere no texto adotando um estilo diverso do dos outros escreventes. A partir desse gesto, a atualização do gênero pelo escrevente representa um fato singular no diálogo com o outro. Todo escrevente busca se alinhar ao que seria o modelo de escrita em MV. Contudo, o escrevente do artigo C, pela noção de acabamento dada ao enunciado com o estilo adotado, atualiza seu texto de forma diversa da usada nos artigos A e B.

Um primeiro resultado se configura: a noção de estabilidade do gênero é ponto de partida para o escrevente nos três artigos, porém a forma de lidar com o enunciado demonstra que essa estabilidade não é o fim, mas apenas um meio para que, de forma singular, imprima sua forma de dizer, ainda que essa forma de dizer, ou melhor, a sua voz, seja carregada das vozes dos outros.

4.2 A orientação do dizer para o já-dito

Seguindo a forma composicional prototípica, observa-se que o escrevente faz remissões ao já-dito evidenciadas nas seções, com exceção da Conclusão, na qual não há referência a outro pesquisador. Quanto à Conclusão, recupero e aprofundo essa análise na quarta categoria por considerar que é nela que o escrevente lança insumos para ser referenciado por outros pesquisadores e manter a interlocução com a área.

Retomando o aspecto central desta categoria de análise, observa-se que o dizer do escrevente entra em diálogo constante com outros pesquisadores na Introdução e em Resultados e discussão. Tal estratégia parece ser um processo de validação do seu dizer. Dito de outra forma: orienta o seu dizer para o já-dito, porque deseja validar a sua pesquisa e se inserir na área, porque esse modo de dizer lhe parece característico dela. Essa remissão não é gratuita e se dá de forma diversa em momentos/seções distintos(as). A segunda forma encontra-se na Conclusão do artigo científico, aspecto abordado na quarta categoria.

A remissão é uma estratégia do escrevente que a assume como característica da escrita em MV, para tratar do conteúdo temático e da organização do artigo científico segundo as sequências tipológicas que usa. Contudo, a não gratuidade desse uso está no fato de que utilizar citações indiretas de pesquisas dos últimos 10 anos, extraídas de periódicos internacionais de alto impacto, também configura um gesto do escrevente que cria um insumo, isto é, uma espécie de investimento para a obtenção de resultado futuro. Essa dinâmica pode, então, levar um outro pesquisador a citar o texto do escrevente, o que já denotaria uma noção maior de pertença dele ao discurso da disciplina, na medida em que fez uso de periódicos de alto impacto que também retomam trabalhos de outros pesquisadores. Ao citá-los, ampliam-se as chances de um outro pesquisador chegar a seu trabalho.

A remissão, no caso, constitui um recurso muito produtivo: retoma um já-dito e cria as condições para que o seu dizer também se torne um já-dito na produção de um outro escrevente.

Analisando preliminarmente outros artigos, deparei-me com a autocitação. Contudo, no corpus selecionado, essa estratégia não ocorre. Pela filiação institucional em cada artigo, depreende-se que o primeiro autor é um pós-graduando. Esse dado nos três artigos se torna singular na medida em que parece sinalizar que o escrevente está, de certa forma, galgando os primeiros passos para sua inserção na disciplina.

Outra tentativa de provocar a interlocução está nas remissões a resultados, material e métodos usados por outros pesquisadores. Essa remissão implica, de certa forma, observar a questão da validade e confiabilidade da metodologia usada, como se observa nos excertos da Figura 3:

Figura 3
Excertos dos artigos A, B e C, com grifos nossos

Pelos elementos destacados, em cada excerto o escrevente orienta seu dizer buscando mostrar que os resultados são os mesmos de um outro pesquisador. No excerto 1, o escrevente mostra que “Dias et al. (2006) […] obtiveram resultados semelhantes” e que a variável “[influência da sincronia embrião-receptora na taxa de prenhez] é um dos parâmetros mais importantes ” para a seleção de receptoras num programa PIV. O excerto 2 apresenta o período ideal para diagnosticar o sexo dos fetos, concordando com Curran et al. Por fim, o excerto 3 indica que foi utilizada a mesma dose que Hasler et al. usaram em sua pesquisa e relata que esses pesquisadores obtiveram um mesmo resultado.

Dessa forma, em decorrência do material e métodos, por exemplo, os resultados obtidos, além de validarem a própria pesquisa, sinalizam a viabilidade econômica do experimento, na medida em que o escrevente apresenta os resultados positivos (sucesso) e negativos (insucesso), como se vê nos excertos da Figura 4:

Figura 4
Excertos dos artigos A, B e C, com grifos nossos

Os termos destacados evidenciam quais aspectos podem contribuir para uma maior eficácia para o produtor rural (excertos 7 e 8, elevar, melhorar). Mostram também casos de insucesso, no sentido de que não foram, necessariamente, os resultados esperados. As ressalvas orientam o dizer do escrevente no sentido de que impõem a necessidade de apresentá-los, buscando, ao mesmo tempo e sobretudo, uma conclusão desses resultados. No excerto 6, dizer que a raça do embrião não interfere na taxa de gestação significa informar ao produtor a inviabilidade econômica desse tipo de investimento. No excerto 4, a ressalva de que o diagnóstico precoce deve ser usado com critério implica sinalizar ao produtor a possibilidade de perdas econômicas e de insucesso no procedimento adotado. No excerto 5, ao apontar as taxas de sexagem, o escrevente atende, por exemplo, ao produtor de leite, para quem um maior número de bezerras é mais viável economicamente, ao contrário do caso de um pecuarista ou produtor de carne, para quem os machos são mais interessantes.

Esses gestos do escrevente se coadunam com o aspecto indicado pelo mestrando que motivou esta pesquisa: a ênfase nos resultados de significância estatística, ainda que inviavelmente econômicos, para definição das melhores ou piores técnicas. Infere-se que a questão econômica, nesse campo de atividade humana, interfere fortemente na escrita dos gêneros acadêmicos, além de orientar o dizer do escrevente.

Esses resultados evidenciam como a réplica se constitui na escrita em MV: a orientação do dizer do escrevente para o já-dito se apresenta na materialidade linguística pela referenciação, por meio de citações indiretas ou da referência explícita a resultados, material e métodos já citados em outras pesquisas, num processo de validação do próprio dizer a partir do dizer de outros.

4.3 A orientação do dizer para a resposta a destinatário(s) presumido(s)

A alternância dos sujeitos da comunicação não se limita às réplicas do diálogo entre os pesquisadores em MV. O dizer do escrevente é orientado também para a possível e desejável resposta de destinatário(s) presumido(s). A relação de alteridade se faz presente na medida em que o escrevente dá o acabamento necessário ao seu texto manifestando a presença do outro em seu dizer, visto que já cria a possibilidade de seu texto (enunciado) ser respondido.

As marcas linguísticas que denotam essa orientação se materializam nos insumos, no sentido de investimentos futuros, que são deixados no seu texto para criar a possibilidade de o escrevente ser citado e, portanto, de seu artigo ter/ser uma resposta, uma réplica a outros. Na escrita em MV, como já disse, um pesquisador cita outro como forma de validar os resultados (positivos ou negativos) obtidos na pesquisa ou procedimentos replicáveis. Na Introdução, o escrevente faz, por exemplo, a justificativa de sua pesquisa, situando-a a partir da alusão a outras. Essa alusão se dá somente por meio do referente, identificado como o resultado (ou o material e métodos usados) alcançado ou não por outros pesquisadores. Essa é uma estratégia do escrevente para dialogar com o já-dito, mas não é apenas isso visto que, inserido na esfera discursiva em questão, procura se aproximar do modo de produção escrita de outros pesquisadores por meio de retomadas constantes de outros enunciados e vozes. Com isso, atualiza seu dizer ao inserir, por exemplo, a novidade, a contribuição ou a relevância econômica de sua pesquisa, porém o faz em função da representação do destinatário presumido de seu texto. Essa representação contribui, em certa medida, para seu texto ser uma resposta a outros ditos. Dito de outro modo: o imaginário do escrevente acerca da escrita em MV faz com que procure aderir seu texto ao discurso da área. Constituem-se gestos do alçamento a esse discurso: a obediência à organização composicional do artigo, as citações indiretas, a concisão, o uso preferencial da voz ativa e da ordem direta, o destaque dado aos resultados, a descrição minuciosa da seção material e métodos e a utilização de fontes bibliográficas provenientes de periódicos de alto impacto.

A opção por esse estilo de escrita, vamos assim dizer, constitui uma forma de resposta aos seus interlocutores. Dessa feita, parear seu texto observando a forma de enunciar da disciplina significa alçar-se a esse discurso, usando estratégias já citadas. Com isso, há um processo dialógico em todo o texto, em que as réplicas constantes atualizam o discurso que inserem o escrevente na área. A resposta dada pelo escrevente se configura não apenas como as contribuições advindas de sua pesquisa, mas também as possibilidades de diálogos que ele cria ao jogar o produtivo jogo discursivo da disciplina.

Mantém-se a tensão produtiva do dizer do escrevente, pois a heterogeneidade do sujeito e da linguagem não é desconsiderada. A forma distinta como cada escrevente do corpus selecionado trata, por exemplo, a citação indireta, exemplifica a impossibilidade de haver a homogeneidade do texto e da linguagem. Assim, a forma composicional do gênero não é simplesmente seguida, pois o sujeito imprime, em seu texto, seu estilo e sua forma de tratar o conteúdo temático.

Essa distinção se dá também em função da relação de alteridade com o outro. Cada escrevente manifesta o outro no seu dizer conforme a expressividade que deseja dar ao seu enunciado. No artigo C, por exemplo, o escrevente não faz uso de marcadores como “também, já, porém” na referência a trabalhos de outros pesquisadores. No artigo A, contudo, a relação de alteridade com o outro se dá com o uso de marcadores como “porém” e “já”, como se observa nos excertos da Figura 5:

Figura 5
Excertos do artigo A, com grifos nossos

Observa-se que o escrevente usa uma tipologia argumentativa para dialogar com outras pesquisas, situando-as a partir do seu dizer, ou melhor, do lugar de onde enuncia - sua pesquisa.

Estratégia diversa de argumentação é usada pelo escrevente do artigo C, que busca, na sequência de descrições de resultados de outras pesquisas, argumentar que a ultrassonografia, como método diagnóstico, não é causa de perda gestacional, como se observa no excerto da Figura 6.

Figura 6
Excerto do artigo C, com grifos nossos

A tipologia é descritiva, porém tem forte apelo argumentativo na forma como foi usada, visto que busca convencer possíveis destinatários de que a ultrassonografia não ocasiona perdas gestacionais. Essa provocação argumentativa pode ser uma resposta para os críticos ao uso dessa tecnologia na detecção de prenhez: um gesto que volta o olhar do escrevente e de seu interlocutor para o passado, mas também para o futuro e o presente, pois antecipa possíveis críticas já se ancorando, teoricamente, em outras pesquisas. Novamente, a interlocução com possíveis destinatários constitui uma estratégia produtiva e, ao que parece, constitutiva da escrita em MV.

Os resultados apontam, portanto, que a interlocução orienta o dizer do escrevente na relação com seu(s) destinatário(s) presumido(s). Essa interlocução se dá pelas inserções do dizer do outro, ora apenas as descrevendo, ora se apoiando nelas para lançar uma argumentação contrária, ora fazendo ressalvas a partir delas em relação ao próprio texto ou ao texto do outro.

4.4 A heterogeneidade do dizer articulada interna e dialogicamente num processo de alteridade

Esta categoria dialoga com as outras. Nos três artigos, inexistem citações diretas e o uso de aspas. Contudo, há remissões linguisticamente marcadas em relação ao próprio texto. Dessa forma, a estratégia do escrevente para situar a própria pesquisa se revela em remissões explícitas, claramente marcadas na sua escrita. Como exemplo, vejamos os excertos da Figura 7:

Figura 7
Excertos dos artigos A, B e C, com grifos nossos

Os elementos em negrito na Figura 7 evidenciam gestos do escrevente que busca marcar, linguisticamente, a relação do seu dizer com dizeres de outros. Esses indícios singularizam a escrita do escrevente da área de MV. Porém, pela forma e pela regularidade com que ocorrem em outros artigos da disciplina, configura-se, a meu ver, um gesto típico dessa prática de letramento(s).

A marcação explícita organiza o texto do escrevente, ora fazendo remissões ao que já disse (a outras vozes citadas no texto), ora fazendo a progressão temática no seu texto. Como exemplo dessa análise, tomemos o excerto “Entretanto, esses autores utilizaram somente novilhas, em vez de diferentes categorias como neste estudo” (Artigo B, p. 464). Nele o escrevente retoma o texto do outro (Fonseca et al. (2001b), isso é, “esses autores”) para, em seguida, acrescentar três novas informações: “o que, de acordo com Lucy et al. (1994), pode interferir na concentração de P4 [informação 01], uma vez que novilhas apresentam concentrações endógenas de IGF-I superiores às de vacas em lactação [informação 02] (Gallo & Block, 1991), pois a capacidade esteroidogênica de seus ovários é comprometida pela lactação [informação 03] (Lucy et al., 1995)”.

Como se vê, a relação de alteridade com o outro se dá não apenas para marcar a presença desse outro em seu texto, mas também para, usando essa relação, aderir ao discurso da disciplina, dialogando interna e externamente com outros interlocutores e outros já-ditos-escritos-lidos. Tem-se, pois, a noção de heterogeneidade como constitutiva do sujeito e de sua escrita.

Quanto à seção Conclusão, vale observar os excertos da Figura 8:

Figura 8
Excertos dos artigos A, B e C

A concisão é típica dessa seção. Contudo, a opção por um texto conciso pode ser explicada em termos de pistas evidentes inseridas no texto como um investimento futuro. Dito de outra forma: a interlocução entre os pares é marcada pelas remissões a vozes/discursos. Essas, por sua vez, são tomadas dos textos de outros pesquisadores. O referente dessas remissões é selecionado das seções: (1) Material e métodos; (2) Discussão e resultados; e (3) Conclusão/Conclusões.

Dessa forma, nessas três seções estão as possibilidades de o texto do escrevente ser a resposta ou o tema de interlocução com outros pesquisadores. Nas duas primeiras, a interlocução pode se dar, por exemplo, pela determinação da validação de um método ou um procedimento ou, ainda, nos resultados obtidos a partir desse método ou procedimento. A Conclusão, contudo, pode conformar o enunciado concreto a ser tomado por um outro pesquisador que, a partir do contato com ele, dá-lhe o acabamento necessário para constituir o seu dizer por meio de réplicas.

Vale observar que, nas outras seções, há uma interlocução, de certa forma direta, com outros interlocutores. Na Conclusão, contudo, o escrevente parece dizer que o(s) referente(s) ali apresentado(s) pode(m) ou deve(m) ser retomado(s) dialogicamente por outros pesquisadores.

Se uma pesquisa é um produto (ou um processo) sempre inacabado e novas descobertas estão sempre por vir, a não remissão a outros pesquisadores na conclusão pode indicar a mobilização dos conhecimentos do escrevente sobre a dinâmica da área para instaurar uma nova interlocução a partir de seu artigo.

Esses resultados dialogam com os resultados obtidos nas categorias 1, 2 e 3. Mostram, enfim, que as incursões do escrevente se dão em função do imaginário acerca da escrita ideal e das representações de seu interlocutor, que não é imediato. A presença do outro na escrita em MV é marcada recorrentemente no texto. Linguisticamente marca a si e ao outro, deixando pistas evidentes, em especial na Conclusão, que é onde, ilusoriamente, crê que seu dizer é único e carregado de novidade. Essas pistas em seu texto poderiam, portanto, ser retomadas por seus interlocutores em outros textos, o que daria ao escrevente maior noção de pertença à disciplina.

Tornar essas pistas, de certa forma, evidentes parece ser uma das regras do jogo a ser jogado pelo escrevente que deseja se adscrever à área de MV. Entenda-se, contudo, que a expressão “pistas evidentes” está sendo usada para significar atrativos ou indícios deixados no artigo pelo escrevente a fim de que outros interlocutores facilmente as encontrem e as usem.

5 Considerações finais

Aparentemente, a representação de escrita do escrevente da área de MV se dá pela noção de homogeneidade do texto, no sentido de que busca, por exemplo, obedecer a determinadas estruturas sintáticas (uso preferencial da voz ativa e da ordem direta). Contudo, essa noção se esfacela com gestos do escrevente para aderir ao discurso da disciplina. A não gratuidade desses gestos se evidencia no distanciamento da noção de estabilidade e de homogeneidade do texto/da escrita nos momentos em que o escrevente busca jogar o jogo discursivo da área. Um exemplo desse movimento é o uso de citações indiretas para dialogar com o outro, recurso também usado para provocar o diálogo de outros com o próprio texto em situações (futuras) de comunicação.

Assim, citações indiretas e a alusão direta a resultados, material e métodos citados em outras pesquisas constituem uma estratégia bastante produtiva que motiva o diálogo contínuo com outros interlocutores. Essa interlocução orienta o dizer do escrevente tendo em vista seu(s) destinatário(s) presumido(s). Dessa forma, inserções no discurso do outro no próprio texto são também estratégias do sujeito para tratar, por meio de réplicas, o referente com que trabalha no próprio texto ou o referente do texto do outro.

Na Introdução, a voz do outro é o recurso usado para justificar a relevância ou a novidade da pesquisa. Na seção Material e métodos, a interlocução pode se dar, por exemplo, pela determinação da validação de um método ou de um procedimento. Na seção Resultados, essa validação, ou mesmo a confiabilidade da pesquisa, pode ocorrer pela análise dos resultados obtidos a partir de certo método ou procedimento. A Conclusão, contudo, mas em especial, pode constituir o enunciado com mais chances de ser tomado por seus pares.

Vale observar que, em todas as outras seções, há uma interlocução, de certa forma direta, com outros autores. Na Conclusão, contudo, o escrevente parece dizer que o(s) referente(s) ali apresentado(s) pode(m) ou deve(m) ser retomado(s) dialogicamente por outros pesquisadores. Esse gesto do escrevente implica a possibilidade de, na alteridade, ser ele (o escrevente) o outro com o qual um outro (novo) irá dialogar. Talvez, por isso, não haja qualquer referência a outras pesquisas na Conclusão, quando a voz do escrevente se torna mais evidente, mesmo carregada de outras vozes.

O princípio dialógico é constitutivo do gênero. Desconsiderá-lo é crer na transparência da linguagem. Os gestos do escrevente são indicativos da percepção da linguagem como interação social e verbal. Como ser de linguagem, histórico e socialmente constituído na e pela linguagem, ele busca a sua adscrição à disciplina.

A questão econômica, indiciada na validação de resultados e metodologias replicadas e replicáveis com pesquisas voltadas para o setor produtivo, influencia a escrita do escrevente, o imaginário de escrita em MV e as representações de seus interlocutores. Porém, considerando o gênero textual - o artigo científico - um enunciado em constante processo de atualização e acabamento, depreendo que esse aspecto se materializa na escrita pela relação de alteridade do escrevente com o outro e pela interlocução por meio de réplicas, que são, pois, constitutivas da escrita acadêmica em MV.

Referências

  • BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
  • CORRÊA, M. L. G. As perspectivas etnográfica e discursiva no ensino da escrita: o exemplo de textos de pré-universitários. Revista da ABRALIN, Sergipe, v. 10, n. 4, p. 333-356, 2011.
  • CORRÊA, M. L. G. A heterogeneidade na constituição da escrita: complexidade enunciativa e paradigma indiciário. Cadernos da F.F.C., Marília, v. 6, n. 2, p. 165-185, 1997.
  • CORRÊA, M. L. G. O modo heterogêneo de constituição da escrita. São Paulo: Martins Fontes , 2004.
  • CORRÊA, M. L. G. Relações intergenéricas na análise indiciária de textos escritos. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 45, n. 2, p. 205-224, 2006.
  • GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
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  • SOARES, M. Alfabetização e letramento. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004.
  • STREET, B. V. “Hidden” features of academic paper writing. Working Papers in Educational Linguistics, Philadelphia, v. 24, n. 1, p. 1-17, 2007.
  • STREET, B. V. Dimensões “Escondidas” na Escrita de Artigos Acadêmicos. Perspectiva, Florianópolis, v. 28, n. 2, p. 541-567, 2010.
  • SUASSUNA, L. Pesquisa qualitativa em Educação e Linguagem: histórico e validação do paradigma indiciário. Perspectiva, Florianópolis, v. 26, n. 1, p. 341-377, 2008.
  • TODOROV, T. Mikhail Bakhtine, le principe dialogique suivi de Ecrits du Cercle de Bakhtine. Paris: Seuil, 1981.
  • 1
    Compreendo que inexiste uma produção escrita “ideal” visto que a percepção do que seja “ideal” para um sujeito pode variar em relação a outro. A escrita ideal para publicação de artigos domina o imaginário de muitos escreventes, pesquisadores e avaliadores a partir das representações construídas em torno da escrita acadêmica. Ressalvam-se, nesse caso, aspectos menos conflitantes como o uso da norma padrão e a pertinência do tema em relação à área, que, a meu ver, são requisitos mínimos para a publicação em um periódico. Aspectos como estilo, ponto de vista e referencial teórico, dentre outros, inserem-se numa zona tensa e movediça, pois envolvem inclusive, mas não só, relações de poder. (STREET, 2010STREET, B. V. Dimensões “Escondidas” na Escrita de Artigos Acadêmicos. Perspectiva, Florianópolis, v. 28, n. 2, p. 541-567, 2010.; 2007STREET, B. V. “Hidden” features of academic paper writing. Working Papers in Educational Linguistics, Philadelphia, v. 24, n. 1, p. 1-17, 2007.)
  • 2
    Referência às representações da escrita acadêmica numa determinada área. Envolve o conhecimento do objeto de estudo, o conhecimento/domínio da escrita e representações que os avaliadores - e mesmo os escreventes - têm sobre esse modo de enunciação.
  • 3
    Traduções da autora.
  • 4
    À revelia porque, uma vez citado, um pesquisador só irá discordar se publicar um novo artigo em resposta.
  • 5
    Em Letras e Ciências Humanas, citações e autores, num processo dialógico, são utilizados pelo(s) escrevente(s) para refutar ou apoiar um argumento ou conceito teórico no interior do texto, mas não para validar o resultado ou uma metodologia. Em MV, o escrevente dialoga com outro(s) autor(es) com o objetivo de validar a própria pesquisa no que se refere a análises, a resultados ou a metodologias. São comuns, em MV, sentenças como: “Nossos resultados estão de acordo com os de Fulano et al.”, “A metodologia adotada é a mesma de Beltrano et al.”
  • 6
    Devido ao objetivo proposto, não aprofundarei na influência do inglês na escrita em MV.
  • 7
    Escrita no âmbito das Disciplinas (Writing in the Disciplines, WiD) constitui-se em uma corrente teórica. Aqui se refere ao letramento acadêmico em MV.
  • 8
    sf (lat adscriptione) 1 Aditamento ao que já foi escrito. 2 Registro, inscrição, transcrição. 3 Condição, qualidade de adscritício. (Michaelis, online)
  • 9
    adj (lat adscriptu) Acrescentado, aditado, aumentado, registrado. sm 1 Colono sujeito ao regime da adscrição. 2 Servo de criação. (Michaelis, online)
  • 10
    Posteriormente, esse número foi reduzido para três artigos, como explicito adiante. Optei por manter o percurso realizado para chegar ao número de três artigos, pois o primeiro critério era que o artigo fosse de revista com estrato A.
  • 11
  • 12
    Para o mestrando, sentenças simples são as curtas em que “não aparecem coisas como: ‘ao passo que, visto que, dito de outra forma’”, pois são desnecessárias e observa que “quanto menos escrever, melhor fica” (informação verbal).
  • 13
    Trata-se de aspectos citados pelo pós-graduando numa interação face a face, que contribuíram para a seleção de pistas singulares.
  • 14
    Há indícios da recorrência de duplas ou grupos de autores na escrita de artigos em MV no próprio corpus analisado: (1) no artigo 1 (8 autores), das 23 referências elencadas pelos autores, há apenas um artigo de autoria individual. Referências de autoria individual citadas pelos autores são de dissertação, tese, livro ou manual; (2) no artigo 2 (6 autores), das 31 referências, há apenas dois artigos de autoria individual. Consta mais um autor individual, mas se trata de tese; e (3) no artigo 3 (2 autores), das 40 referências, apenas 6 são artigos de autoria individual. Todos os artigos de autoria individual referenciados nos três artigos do corpus são da década de 1980 ou de 1990. Em pesquisa em andamento (não publicada) pela pesquisadora acerca do número de autores em artigos na área da MV, a análise inicial aponta que a publicação de artigos em coautoria e a formação de “redes de publicação” têm crescido no Brasil na última década, motivadas, talvez, pela exigência de altos índices de produtividade expressos em número de artigos publicados e número de citações.
  • 15
    Conceitos apresentados mais adiante.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2021
  • Aceito
    30 Maio 2021
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