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Cinema e linguagem(ns): o ambíguo e o equívoco como o fundamento da comunicação humana em Being There, de Hal Ashby

Film and Language(s): the Ambiguous and the Misunderstanding as the Foundation of Human Communication in Being There, by Hal Ashby

RESUMO

Ao se considerar as componentes do cinema, pode-se dizer que ele é, talvez, a forma artística mais completa de comunicação, uma vez que alia, essencialmente, as componentes imagem, música e linguística. O filme Being There - Muito Além do Jardim, no Brasil, e Bem-Vindo Mr. Chance, em Portugal -, de Hal Ashby, de 1979, aborda precisamente a dimensão linguística, questionando: em que medida as nossas interações linguísticas não se baseiam em equívocos de interpretação? O filme, que é baseado no romance homônimo de Jerzy Kosiński, assenta-se em uma estrutura diegética que evidencia questões relativas aos equívocos no uso da linguagem verbal e ao papel de fenômenos como a polissemia e a metáfora nesses equívocos e nas interações linguísticas. Este texto procura analisar, através do jardineiro Chance e das suas interações com as demais personagens, sobretudo no nível da comunicação linguística, como o filme apresenta a relação entre os quadros cognitivos pessoais que nos constroem enquanto indivíduos humanos e a forma como eles são expressos pela linguagem verbal, principalmente no processo metafórico. Além disso, o artigo examina como é possível que quadros de descodificação completamente díspares e equivocados funcionem em universos paralelos de interpretação.

PALAVRAS-CHAVE:
Cinema; Metáfora; Ambiguidade; Filme Being There; Muito Além do Jardim; Bem-Vindo Mr. Chance

ABSTRACT

Considering all its elements, cinema is perhaps the most complete artistic form of communication since it simultaneously encapsulates visual, musical, and linguistic components. Hal Ashby’s film, Being there, precisely addresses this linguistic dimension by asking: to which extent are our linguistic interactions grounded upon misunderstandings? The film, based on the novel of the same title by Jerzy Kosiński, is grounded in a diegetic structure that addresses issues of misinterpretation in verbal language and the role of phenomena such as polysemy and metaphor in these misunderstandings and various linguistic interactions. This text attempts to analyze, by following the character of Chance (the gardener) and his interactions with the remaining characters, especially on a linguistic level, how the film introduces the relationship of personal cognitive frameworks that construct us as human individuals and how these are expressed by the verbal language, especially by the metaphorical process. Finally, the study examined how utterly unequal and misleading frameworks may still work in parallel universes of interpretation.

KEYWORDS:
Cinema; Metaphor; Ambiguity; Being There film; Muito Além do Jardim; Bem-Vindo Mr. Chance

1 Cinema, linguagem(ns) e polissemias

Referido e tido como a última arte a aparecer - a sétima -, o cinema adquiriu visibilidade e importância notáveis na cultura ocidental, fato que os cânones dos clássicos sobre o que é arte ainda custam a aceitar. Normalmente, o cinema é visto entre as artes narrativas como uma arte popular que ainda não tem a dimensão acadêmica da grande literatura. No entanto, seja na dimensão da popularidade, seja na de importância social, o cinema é, indubitavelmente, a forma de ficção mais poderosa das sociedades atuais.

Mas deteria o cinema apenas um poder econômico e social, sendo assim carente do “poder artístico” que milhares de anos de tradição dão ao cânone literário?

Talvez não seja adequado colocar assim a questão, cinema versus literatura, visto que esta era tida como a forma artística e sublime de exercer o poder da linguagem verbal, de transformar a comunicação linguística em arte. O que o cinema faz é ainda mais englobante: ele toma a linguagem verbal - dentro e fora do âmbito literário - e faz dela um dos módulos do seu funcionamento. Assim, a obra de arte literária, que assenta-se na “matéria” da linguagem verbal, é uma das matérias com que se faz o cinema - multimodal por natureza - e, aliada à música e à plasticidade das imagens, completa o todo.

Dessa forma, não é de se estranhar que, no domínio da representação do processo comunicativo, o cinema seja mais completo e complexo do que qualquer outra das artes anteriores: ele pode envolver - e normalmente envolve - todas as formas tradicionais de comunicação, desde a linguagem verbal até a linguagem dos sons e das imagens. Isso implica que os seus processos comunicativos exponenciam - porque múltiplos - os de qualquer outra forma de comunicação.1 1 Sobre como o cinema transforma a multiplicidade dos meios que dispõem de uma pluralidade de códigos simbólicos, ver Teixeira (2013b). E se admitirmos que tanto a linguagem verbal quanto a dos sons ou a das imagens são plurissignificativas ou polissêmicas, a do cinema pode incluir e juntar todas as polissemias.

2 Polissemias ou ambiguidades na comunicação?

A comunicação linguística é, sem dúvida, a forma de comunicação mais usual entre os seres humanos e a que tem uma maior tradição de estudos e reflexão. Sobre a temática da plurissignificação que uma forma de comunicação pode ter, a tradição dos estudos linguísticos costuma apresentá-la às vezes de forma positiva, designando-a como “polissemia”, outras vezes de forma menos positiva, denominando-a “ambiguidade”.

Costuma-se falar em polissemia quando se pretende argumentar que as palavras, as expressões e os enunciados são dotados de múltiplos sentidos e possibilitam múltiplas interpretações, refreadas pelos contextos, pelas intencionalidades de quem comunica, pelo jogo de inferências e de cooperação - que os estudos da linguagem desde Grice2 2 Ver Grice (1989). põem em relevo - e pelas implicações do falar. Mas como esta possibilidade pluri-interpretativa pode levar a equívocos na comunicação, refere-se então a este aspecto como a “ambiguidade” que as mesmas palavras, expressões ou enunciados podem ter. Esta multiplicidade de interpretações é considerada um dos problemas da comunicação e um dos designados “vícios da linguagem”.

Tal maneira de ver a questão da comunicação - verbal e não verbal - é contraditória, porque se por um lado se aceita que as mensagens são plurissignificativas, por outro se classifica as plurissignificações como “vícios” ou defeitos por meio da expressão “ambiguidade”.

No entanto, a ambiguidade é uma consequência inevitável da polissemia e da capacidade de abrangência semântica das palavras e dos enunciados.3 3 Ver Taylor (1992, 2003). Fenômenos como a metáfora e a metonímia, que a retórica tradicional vê como “figuras de estilo”, formas de “embelezamento” e portadoras da poeticidade e literariedade das línguas, são marcas e fontes de ambiguidade, voluntária ou involuntariamente.4 4 Sobre como o processo metafórico pode ser usado como multiplicador de sentidos e intenções, ver Teixeira (2013a, 2015, 2017). Esta é uma caraterística básica, essencial e necessária para toda comunicação humana, pois sem ela a comunicação seria monolítica, muitíssimo limitada e fechada para divergências interpretativas e, portanto, também criativas. Definitivamente, não seria humana.

3 Being there: as metáforas e os equívocos na comunicação

É a temática dos equívocos na comunicação linguística que estrutura o filme de 1979 de Hal Ashby, Being there - Bem-Vindo Mr. Chance, em Portugal, e Muito Além do Jardim, no Brasil. A proposta do filme não é a de que os equívocos são maus ou bons. Podem ser muito bons ou podem levar um pobre e quase-idiota analfabeto a ser tido como um sábio. Por isso, a tese do filme é que toda comunicação está aberta a inúmeras possibilidades de interpretação e é passível de interpretações completamente díspares, de tal forma que locutor/emissor e alocutário/receptor podem se situar em esferas interpretativas radicalmente diferentes. Para tal, o filme foca as situações de linguagem em que isso pode ocorrer, sobretudo no funcionamento do processo metafórico.

A personagem central é Chance, um homem de meia-idade que viveu toda a vida em uma casa onde trabalhava como jardineiro. A única forma de contato com o mundo exterior que tinha era vendo televisão. Não sabe ler nem escrever, e não tem qualquer tipo de identificação. Quando o seu patrão morre, Chance é obrigado a deixar a casa onde sempre viveu e trabalhou. É, então, atropelado pelo motorista de um magnata das finanças e tratado na casa deste, quando se tornou amigo da família. A partir daí, as palavras do jardineiro, que tem a idade mental de uma criança, passam a ser interpretadas como detentoras de sentidos metafóricos e profundos, e Chance se torna, assim, conselheiro de magnatas da alta finança e do Presidente dos Estados Unidos. O filme acaba mostrando um acordo entre os manobradores da política estadunidense para propor Chance como candidato à presidência do país.

3.1 O simbolismo da personagem Chance: comunicação e racionalidade lógica

Não deixa de ser curioso que o filme, cujo tema central é a interpretação metafórica de expressões banais sobre jardinagem, tenha sido lançado quase simultaneamente à obra que iria revolucionar a visão do fenômeno metafórico e faria surgir a Teoria da Metáfora Conceitual. Trata-se da obra de Lakoff e Johnson (1980LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago Press, 1980.), “Metaphors we live by”. A relação se dá pelo fato de esta obra se basear precisamente no pressuposto de que a metáfora é uma questão central da cognição humana e que o fenômeno metafórico é genérico, onipresente na comunicação - não apenas linguística - e não se reduz a um artifício decorativo (“figura”), como era visto pela retórica clássica.

No fundo, a personagem central, Chance, vive de metáforas, mas, tal como o esclarecedor título de Lakoff e Johnson (1980LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago Press, 1980.), indica, todos nós também vivemos. A diferença está no fato de que as metáforas de Chance não são, para ele, metáforas, mas elementos tomados equivocadamente como metáforas pelos seus interlocutores.

Chance não tem sequer a capacidade de construir metáforas, por não passar de um corpo adulto com uma mentalidade de criança. Por exemplo, ele vê televisão como uma criança: está sempre a mudar de canal, vê muitos desenhos animados e programas infantis e se comporta imitando os gestos das personagens a que assiste. Esta caraterização da personagem é carimbada pela cozinheira, Louise, quando se despede dele, dizendo “Nunca vais deixar de ser um rapazinho, não é?”. (BEING…, 1979BEING There. Direção: Hal Ashby. Produção: Andrew Braunsberg. Los Angeles: Warner Bros., 1979. 1 fita de video (130 min), VHS, son., color., 00:10:03)5 5 Indicaremos os tempos das sequências do filme no formato: (horas:minutos:segundos).

A caraterização da personagem como uma criança em um corpo de adulto é essencial para a estratégia do filme e para o equívoco da comunicação ser percetível: as palavras que Chance usa são de criança, portanto, não metafóricas, mas ainda assim são entendidas por quem o vê como um adulto como se metafóricas fossem. Chance é, portanto, a personagem adulto-criança, o adulto que não usa a linguagem “normal”, que é entendida por muitos conceitos como só podendo ser a metafórica.

3.2 A construção de Chance, personagem “de outro mundo”

Por tudo o que foi dito, Chance é apresentado como alguém “de outro mundo”, que sempre viveu em um mundo só seu, um mundo que ele construiu a partir do que via na televisão, em que as coisas são somente o que delas podemos ver, isto é, são como (a)parecem. Nesse sentido, é interessante notar as técnicas que o filme usa para caraterizar a personagem.

Chance, depois da morte do patrão, deve abandonar a casa em que sempre viveu. A sua saída da casa representa a saída de um mundo para entrar em outro. Vemos a casa e Chance a olhar fixamente, em modo de despedida, para o jardim. O vidro da porta por onde ele irá sair é o único ponto de luz entre o interior e o exterior da casa, demarcando um espaço de luz e um de escuridão. Chance hesita muito perante a luz que passa pelos vidros da porta fechada - que também tem cortinas para impedir uma visão mais correta do exterior -, evidenciando o seu medo de sair da casa, de abandonar o espaço protetor e enfrentar o espaço de luz que é, para ele, um outro mundo até então desconhecido. Quando sai, olha fixamente para a porta da casa que fechou. Está agora no exterior e ouve-se a música tema do filme de Stanley Kubrick, “2001: Uma Odisseia no Espaço”.

A intertextualidade da música evoca necessariamente o confronto entre mundos. É a representação da odisseia do contato com novos mundos, essência do filme de Kubrick que agora se aplica à personagem de Chance. É mostrada uma longa cena para retratar a odisseia da inserção de Chance neste novo mundo: um subúrbio da cidade com sujidade, caos, lixo - muito lixo -, um grande grupo de desabrigados remexendo no lixo e fazendo uma fogueira em um bidão, carros destruídos e abandonados etc. Chance interrompe o seu andar e cumprimenta, levantando o chapéu, os desabrigados, que nem o olham. (BEING…, 1979BEING There. Direção: Hal Ashby. Produção: Andrew Braunsberg. Los Angeles: Warner Bros., 1979. 1 fita de video (130 min), VHS, son., color., 00:21:27) A cena simboliza a desadequação das percepções da personagem sobre o mundo real e o seu despreparo para não só perceber isso, como também se comunicar com esse mundo em que terá que se inserir.

A caracterização da sua odisseia neste novo mundo continua nas cenas seguintes, em que pede a uma senhora para lhe dar o que comer, pergunta a uma gangue de adolescentes se sabem de um jardim em que ele possa trabalhar, contata um policial para o informar que há uma árvore doente e que ela precisa ser tratada, caminha não pelos passeios, mas pelo meio do separador central que fica entre as quatro faixas de carros, tenta usar o velho comando da sua televisão para mudar os canais das televisões modernas que vê nas vitrines etc. Durante este tempo, continua-se ouvindo a música de “2001: Uma Odisseia na Espaço”.

A existência dual de nomes para a personagem retrata igualmente a oposição entre os dois mundos em que ela se situa. A mulher do magnata financeiro pergunta-lhe o nome, ao que ele responde “Chance”, mas se engasga, tosse e, querendo melhor se identificar, acrescenta “gardener” (jardineiro). No entanto, a mulher entende Chauncey Gardiner, por associação a amigos que têm o sobrenome Gardiner. Tem-se, assim, duas vertentes da mesma personagem: Chance, um jardineiro analfabeto, intelectualmente muito limitado, que apenas sabe sobre a vida o que viu na televisão, e Chauncey Gardiner, supostamente um guru que fala por metáforas sibilinas.

3.3 A faceta essencialmente ambígua e plurissignificativa da comunicação

No filme, a construção da tese sobre a essencialidade do caráter ambíguo e plurissignificativo da linguagem tem como ponto fulcral a sequência em que Chance é tratado pelo médico, logo quando chega à mansão do magnata. O médico, preocupado que Chance pedisse uma indenização, já que foi atropelado pelo motorista do magnata, coloca-lhe uma questão muito direta: se ele pretende “apresentar algum tipo de reclamação/queixa” (“claim”). Chance lhe diz que o advogado do antigo patrão, quando Chance foi expulso da casa onde servia, perguntou-lhe o mesmo. O médico infere, erradamente, que Chance percebe do que se trata, que tem advogados e que serão eles a tratar da questão da reclamação. No entanto, Chance, obviamente, nada sabe sobre tribunais, apresentação de queixas ou indenizações e nada percebe do que o médico lhe perguntou. Não sabe a que “coisas” o médico se refere e por isso só diz que “não há necessidade de nenhuma reclamação” (“There’s no need for claim”) (BEING…, 1979BEING There. Direção: Hal Ashby. Produção: Andrew Braunsberg. Los Angeles: Warner Bros., 1979. 1 fita de video (130 min), VHS, son., color., 00:36:15) e acrescenta: “Nem sequer sei com que coisas é que elas são parecidas/qual o aspecto delas!”. O médico, depois de meditar, num primeiro instante, por se surpreender com a resposta, interpreta a frase de Chance como irônica, não literal. Ri-se e diz: “Oh! Com essa apanhou-me desprevenido!”.

O médico interpreta a resposta de Chance como se ela se baseasse na metáfora conceitual reclamações são objetos (desconhecidos),6 6 No âmbito da Teoria da Metáfora Conceitual, distinguem-se as metáforas conceituais das expressões metafóricas dessas metáforas. Assim, a mesma metáfora conceitual, por exemplo, reclamações são objetos, pode ser expressa por várias expressões metafóricas, como “o aspecto de uma reclamação”, “tropeçar numa reclamação”, “pegar numa reclamação”, “olhar para uma reclamação”, etc. uma metáfora ontológica na Teoria da Metáfora Conceitual, já que nos permite perceber entidades abstratas como se fossem entidades concretas. Quando Chance usa a expressão “não sei qual o aspecto delas”, usa uma metáfora. Não há outra forma de nos referirmos a entidades abstratas, como as reclamações, sem ser através da sua “coisificação” em metáfora, como se as coisas abstratas fossem coisas concretas que vemos, pegamos, atiramos para trás das costas, enfrentamos, etc. Chance não poderia ter usado uma destas metáforas ontológicas para se referir a uma coisa que não sabia o que era, ele quis mesmo dizer que não sabia o que eram claims. O médico interpreta que Chance estava a ironizar o fato de nós considerarmos as reclamações como “coisas-coisas”, que têm existência real e aspecto físico, e que não dava importância às reclamações porque nem sequer lhes conhecia o aspeto físico, (a “cara”, “how they look like”, no original em inglês).

Chance usa frases que parecem possuir uma base metafórica carregada de ironia, como quando é levado em uma cadeira de rodas para o elevador e diz: “É um quarto muito pequeno”. (BEING…, 1979BEING There. Direção: Hal Ashby. Produção: Andrew Braunsberg. Los Angeles: Warner Bros., 1979. 1 fita de video (130 min), VHS, son., color., 00:39:42) Chance, que nunca tinha estado em um elevador, pensava que realmente estava em um quarto, mas o empregado de Ben, o magnata financeiro muito doente, interpreta como ironia. Assim, Chance vai construindo para os outros uma imagem de si como alguém que possui um discurso essencialmente metafórico e irônico. Por isso, quando Ben, em cuja casa Chance foi acolhido, conversa com ele, pressupõe que o discurso de Chance é metafórico e nunca referente à objetividade básica das coisas reais, que é a única dimensão existente na mente infantilizada de Chance.

[Chance] A minha casa (house) foi fechada.

[Ben] Quer dizer que fecharam o seu negócio?

[Chance] Sim, foram os advogados. (BEING…, 1979BEING There. Direção: Hal Ashby. Produção: Andrew Braunsberg. Los Angeles: Warner Bros., 1979. 1 fita de video (130 min), VHS, son., color., 00:43:30)7 7 Todas as traduções dos diálogos do filme são da nossa responsabilidade.

Chance está simplesmente a dizer que a casa em que trabalhava - “a minha casa” - foi fechada, ou seja, o dono, seu patrão, falecera e os advogados expulsaram Chance e os demais empregados. No entanto, o magnata entende “a minha casa” como “o meu negócio”, devido à polissemia da expressão, e interpreta que Chance - para ele Chauncey Gardiner - é um homem de negócios que viu a sua atividade encerrada por uma equipe de advogados. “Que planos tem?”, pergunta Ben. “Gostaria de trabalhar no seu jardim” (BEING…, 1979BEING There. Direção: Hal Ashby. Produção: Andrew Braunsberg. Los Angeles: Warner Bros., 1979. 1 fita de video (130 min), VHS, son., color., 00:44:33), responde Chance. “Eu sou um jardineiro muito bom”.

É neste equívoco de interpretação que acontece a metáfora conceitual que suporta a maior parte da dualidade interpretativa do filme: estrutura econômica é jardim. A estrutura econômica pode ser percebida como uma empresa, como no caso de Ben, ou a própria nação, como quando Chance fala com o Presidente dos Estados Unidos e é entrevistado na televisão.

A Figura 1 representa a referida dualidade interpretativa: Chance não passa do domínio conceitual “jardim”, mas todos os outros supõem que esse domínio concetual é apenas a fonte, que tem como alvo8 8 Na concepção da Teoria da Metáfora Conceitual, há sempre um domínio alvo, isto é, o que se quer metaforizar, e um domínio fonte, que serve de modelo. Assim, na metáfora conceitual estrutura econômica é jardim, o alvo é estrutura econômica e a fonte é jardim. uma realidade que se constitui como estrutura econômica, seja uma empresa seja a própria nação.

Figura 1
Dualidade interpretativa

Ben explicita essa dinâmica de equivalências por julgar que era a ela que Chance se refere, quando, na verdade, a mente infantil do jardineiro não pode passar do domínio dos elementos físicos que conhece:

[Ben] Todo o empresário é isso, um jardineiro. Trabalha o solo árido, para o tornar produtivo, com o trabalho das próprias mãos. E rega-o com o suor do próprio rosto. Faz coisas de valor para a família e a comunidade. Realmente, Chauncey, um empresário produtivo é um trabalhador de jardim.

[Chance] Entendo o que está a dizer, Ben. O jardim que deixei era um lugar assim. (BEING…, 1979BEING There. Direção: Hal Ashby. Produção: Andrew Braunsberg. Los Angeles: Warner Bros., 1979. 1 fita de video (130 min), VHS, son., color., 00:45:49)

Ben e Eve, sua esposa, sorriem, porque interpretam que Chance está a falar de empresas, mas o jardineiro não o consegue fazer porque não atinge o domínio alvo, atinge apenas o que para os outros é o domínio base, ou seja, o domínio fonte.

Seria fastidioso indicar todas as situações de comunicação equivocada no filme que assentam na metáfora estrutura econômica é jardim - que todos os intervenientes pensam que o jardineiro está constantemente a usar. Cabe, no entanto, realçar uma que pode ser considerada nuclear pela importância que tem na estrutura diegética do roteiro. Trata-se de quando o Presidente dos Estados Unidos vai oficialmente, com toda a sua comitiva, à casa do magnata para conversar sobre política econômica e acaba, aconselhado por Ben, por ouvir o jardineiro. “Sr. Gardiner, concorda que podemos aumentar o crescimento com incentivos temporários?”. (BEING…, 1979BEING There. Direção: Hal Ashby. Produção: Andrew Braunsberg. Los Angeles: Warner Bros., 1979. 1 fita de video (130 min), VHS, son., color., 01:01:56) Chance fica longos segundos sem saber o que deve dizer, pois não percebe o âmbito macro-econômico da questão, evidentemente. Mas depois - talvez por causa da expressão “aumentar o crescimento” -, começa a falar do que sabe, isto é, jardinagem:

[Chance] Desde que não sejam cortadas as raízes, tudo está bem e ficará bem no jardim.

[Presidente] No jardim?

[Chance] Sim. No jardim, o crescimento tem a sua estação. Primeiro vem a primavera e o verão. Depois temos o outono e o inverno. E depois, novamente primavera e verão. (BEING…, 1979BEING There. Direção: Hal Ashby. Produção: Andrew Braunsberg. Los Angeles: Warner Bros., 1979. 1 fita de video (130 min), VHS, son., color.)

Nota-se que o Presidente não sabe bem como interpretar as palavras de Chance, pois pergunta:

[Presidente] Primavera e verão?…

[Chance] Sim.

[Presidente] E outono e inverno?…

[Chance] Sim. (BEING…, 1979BEING There. Direção: Hal Ashby. Produção: Andrew Braunsberg. Los Angeles: Warner Bros., 1979. 1 fita de video (130 min), VHS, son., color.)

Ben volta-se para o Presidente e diz:

[Ben] Eu penso que o que nosso perspicaz amigo diz é que damos as boas-vindas às inevitáveis estações da natureza, mas ficamos aborrecidos com as estações da nossa economia. (BEING…, 1979BEING There. Direção: Hal Ashby. Produção: Andrew Braunsberg. Los Angeles: Warner Bros., 1979. 1 fita de video (130 min), VHS, son., color.)

“Sim”, intervém o jardineiro, “haverá crescimento na primavera”.

Como o interpretam sempre metaforicamente, o Presidente pensa que Chance está a dizer que a economia irá crescer. “Devo admitir que é otimismo como há muito tempo não ouvia. Admiro o seu bom senso. É o que falta no Congresso”. Então se despede com “foi uma visita bem esclarecedora!”. Depois, em um discurso à nação vai “parafrasear Mr. Gardiner”:

Se as raízes da indústria permanecerem firmes neste país, as perspetivas econômicas serão luminosas (ensolaradas). Senhores, não temam as inevitáveis tormentas de outono e inverno; esperemos pelos rápidos crescimentos da primavera e as recompensas do verão. Como num jardim, vamos aceitar o calor do verão, assim como a hora de colher os frutos. (BEING…, 1979BEING There. Direção: Hal Ashby. Produção: Andrew Braunsberg. Los Angeles: Warner Bros., 1979. 1 fita de video (130 min), VHS, son., color., 01:10:00)

Mas os equívocos na comunicação não resultam apenas da metáfora estrutura econômica é jardim. Depois de Chance dizer que “o jardim que deixei era um lugar assim” (BEING…, 1979BEING There. Direção: Hal Ashby. Produção: Andrew Braunsberg. Los Angeles: Warner Bros., 1979. 1 fita de video (130 min), VHS, son., color., 00:45:49), acrescenta: “Mas já não o tenho mais. Agora só tenho o quarto lá em cima”, e olha para o teto.

Chance refere-se ao fato de ter perdido o jardim em que trabalhava e que não tem nada, exceto o quarto no piso de cima que o magnata lhe cedeu temporariamente. Mas Ben e Eve interpretam a expressão “quarto lá em cima”, reforçada pelo olhar dirigido para o alto, como um “lugar no céu”, um lugar no além, depois da morte:

[Ben] Espera aí, Chauncey! Tens saúde. Pelo amor de Deus, homem, não te deixes abater! Tens de lutar! Não quero ouvir mais essa conversa de “quarto lá em cima”. (BEING…, 1979BEING There. Direção: Hal Ashby. Produção: Andrew Braunsberg. Los Angeles: Warner Bros., 1979. 1 fita de video (130 min), VHS, son., color., 00:46:15)

Pode dizer-se que, aqui, o que permite o equívoco de interpretação é igualmente a bivalência de uma estrutura metafórica: quarto lá em cima é lugar no céu. Mas não é assim tão simples. Há um equívoco pragmático na apreensão da referencialidade de “lá em cima”. Pelo fato de Ben e Eve partirem sempre do pressuposto de que Chance se refere habitualmente a realidades mais imateriais e abstratas do que as suas palavras parecem indicar, interpretam “lá em cima” como céu, paraíso, vida depois da morte. Mas Chance quer de fato se referir ao lugar “lá em cima” da casa, onde fica o seu quarto. Mostra-se, assim, que devido ao fato da linguagem fazer referências com alto grau de vaguidade, os equívocos na comunicação também podem partir de equívocos na referenciação contextual.9 9 Outros equívocos de referenciação equivalentes acontecem, por exemplo, quando lhe perguntam (BEING…, 1979, 01:36:00) que jornais lê e ele, por não saber ler, diz: “Não leio jornais, eu vejo televisão”. O jornalista comenta que poucos homens públicos têm a coragem de Chance de dizer que preferem a cobertura da televisão à dos jornais. Ou ainda, quando o embaixador russo sentado ao seu lado - estamos no contexto da guerra fria - lhe diz que Chance “vai descobrir que não estamos assim tão longe um do outro” e Chance lhe responde: “Não estamos muito longe um do outro; as nossas cadeiras quase se tocam”. “Bravo! Bravo!”, ri o embaixador, supondo a ironia do jogo de linguagem, que Chance não usou. Dessa forma, é o equívoco relativo a “lá em cima” que aciona o sentido atribuído ao núcleo nominal “quarto” como apenas “lugar” e bloqueia o sentido habitual da palavra quarto - lugar físico de uma casa onde se costuma passar as noites. Assim, quarto passa a valer por lugar, pois possui uma relação não metafórica, mas sim metonímica, que pode se expressar como característica pelo todo. O mesmo se pode dizer da equivalência atribuída entre lá em cima e céu/paraíso. Em vez de se referir ao todo - céu/paraíso -, refere-se a uma caraterística específica desse todo, ao situar-se lá em cima, nas alturas. São, portanto, duas metonímias que constituem aquilo que também pode ser visto como a metáfora conceitual quarto lá em cima é lugar no céu.10 10 Não sendo aqui o lugar para desenvolver as relações entre a metáfora e a metonímia, este exemplo permite verificar como ambos os fenômenos se interligam e contribuem para a plurissignificação, polissemia e possibilidades de múltiplas interpretações das construções linguísticas. O conceito de metaftonímia pretende, precisamente, descrever este funcionamento. Sobre o conceito de metaftonímia, ver Goossens (1990) e Barcelona (2000). Sobre metaftonímia e cinema, ver Teixeira (2012).

A cena prossegue reforçando a evidência de que o caráter ambíguo da comunicação pode não ser apenas uma situação pontual, mas sim duradoura. Ben, que está prestes a morrer, diz, depois da referência de Chance ao “quarto lá de cima”: “É para onde eu, em breve, irei…”. Chance deixa passar alguns segundos depois dessa frase de Ben e comenta (00:46:33): “É um lugar muito agradável, Ben”. “Tenho a certeza que sim. Afinal é o que todos dizem”, responde o magnata financeiro.

3.4 Dois planos de interpretação?

A última sequência referida de diálogo entre Ben e Chance evidencia como em uma situação de comunicação linguística é possível funcionarem dois planos de significado completamente diferentes, mas onde locutor/emissor e alocutário/receptor se situam e se sentem confortáveis e, não encontrando sinais de desconformidade, não procuram qualquer passagem de um plano para outro.

O universo semântico-discursivo de Chance origina estruturas de significado em que, por exemplo, jardineiro, jardim e quarto lá em cima possuem os valores tidos como, tradicionalmente, referenciais ou denotativos. Para as outras personagens, as mesmas palavras são interpretadas com os valores que têm enquanto fontes metafóricas para os alvos economista, empresa e lugar no céu/pós-morte (Figura 2). Como os discursos continuam coerentes dentro de cada universo discursivo, as personagens não precisam sair do universo em que estão durante todo o filme.

Figura 2
Estruturas de significado

É a esta dualidade de interpretação semântica que a designação “ambiguidade” (de ambos = dois) usualmente se refere. Por isso, é habitual pensar neste tipo de situação discursiva como uma situação de dois universos discursivos ou duas estruturas de interpretação semântica. Isso será verdade se nos limitarmos aos falantes em interação direta, mas em situações como o discurso relatado, por exemplo, nas anedotas, que se baseiam muitas vezes em ambiguidades linguísticas, não se pode falar apenas nas personagens em interação direta. Ora, o universo do discurso linguístico em um filme não é apenas o das personagens, mas também o da interação do universo delas com o do espectador. Este, embora não interaja diretamente no discurso das personagens, interage indiretamente, porque processa e decodifica os discursos que entre elas se produzem. Nesse sentido, é precisamente para este fim que o filme é construído; não para a interação discursiva entre as personagens, mas para a interação entre essa interação discursiva e o seu processamento linguístico-perceptivo pelo espectador. Tal processo permite que o espectador domine não só a estrutura semântico-interpretativa de Chance, mas também a que as outras personagens constroem paralelamente, que somam-se, evidentemente, à sua própria estrutura semântica-interpretativa, a única que compreende as duas anteriores e que pode explicar os seus funcionamentos. São dois equívocos que ele, espectador, é o único a ter o prazer de descobrir e perceber (Figura 3).

Figura 3
Estruturas semânticas compreendidas pelo espectador

4 Filme versus romance: a ambiguidade na construção de uma obra “nova”

Também é interessante utilizar Being There para abordar a recorrente questão da relação entre dois tipos de narrativa, o romance e o cinema, sobretudo quando este último é construído a partir do primeiro. O autor do romance, Jerzy Kosiński, é também o roteirista do filme. Se, como sempre, romance e filme não podem ser confundidos, aqui algumas diferenças entre as obras são ressaltadas. Segundo Lazar (2004LAZAR, M. Jerzy Kosinski’s Being There, novel and film: changes not by chance. College Literature, Baltimore, v. 31, n. 2, p. 99-116, 2004.):

Ao contrário da maioria das adaptações cinematográficas de romances, Being there nos permite testemunhar e julgar a reconcepção original do escritor da sua própria obra para um gênero diferente. Embora as duas peças artísticas sejam globalmente consistentes, três mudanças temáticas revelam a evolução da posição de Kosiński em relação à cultura americana e às mídias visuais: as tensões raciais recebem mais atenção do que a política da Guerra Fria; um personagem secundário, Benjamin Rand, ganha importância como o símbolo do capitalismo americano; e a parte final alterada implica que o Louco pode realmente ser um santo. (LAZAR, 2004LAZAR, M. Jerzy Kosinski’s Being There, novel and film: changes not by chance. College Literature, Baltimore, v. 31, n. 2, p. 99-116, 2004., p. 99-100, tradução nossa)11 11 “Unlike most cinematic adaptations of novels, Being there allows us to witness and judge the original writer’s reconception of his own work for a different genre, and although the two pieces are consistent in tone, three thematic shifts reveal Kosinski’s evolving attitude toward American culture and visual media: racial tensions receive more attention than Cold War politics; a minor character, Benjamin Rand, gains importance as a symbol of American capitalism; and the revised ending implies that the Fool may actually be a saint”. (LAZAR, 2004, p. 99-100)

A cena final, referida por Lazar (2004LAZAR, M. Jerzy Kosinski’s Being There, novel and film: changes not by chance. College Literature, Baltimore, v. 31, n. 2, p. 99-116, 2004.), que não aparece no romance, possibilita dizer que a versão cinematográfica de Being There é outra obra (quase) independente da obra literária que lhe deu origem. Enquanto Ben, o seu milionário protetor, está a ser enterrado e os influentes da política combinam propor que o jardineiro seja candidato à presidência dos Estados Unidos, Chance afasta-se do local do enterro, passeia por entre as árvores, levanta uma pequena árvore vergada e começa a caminhar sobre a água de um lago. Faz uma pausa no seu caminhar sobre o lago para confirmar se este tem uma altura de água assinalável: afunda no lago o guarda-chuva que leva na mão, confirmando a altura da água sobre a qual caminha. É a única cena “irrealista” que o filme contém. Então, como interpretá-la?

Antes de tudo, esta cena, com que o filme termina - exclusiva do filme, não presente no romance -, implica necessariamente que o realizador do filme e o autor do romance e roteiro quiseram propor explicitamente que ele possibilita leituras diferentes das que o romance suscita. E que leituras se podem fazer? Pode haver a tentação de dizer que todas as que se queira, aceitando a ideia de que uma cena tão inverossímil como a final se destina a desamarrar a mensagem de Being there de qualquer laço que o filme possa ter com a realidade.

Há, no entanto, elementos suficientes para se inferir que o realizador queria estabelecer ligações entre esta cena e o que o filme transmite.

A primeira é que a cena é carregada de um simbolismo bíblico que inevitavelmente faz com que olhemos para Chance enquadrado nesse simbolismo. É impossível que Ashby não estivesse consciente que a cena evocaria imediatamente a figura de Cristo a caminhar sobre as águas perante a incredulidade e admiração das pessoas que assistiam.12 12 Episódio descrito em três dos quatro Evangelhos: João 6,16-21; Marcos 6,45-52 e Mateus 14,22-33.

Será, no entanto, demasiado simplista pensar que Chance é apresentado como Cristo. Nada no filme aponta para essa leitura. Pelo contrário, Chance é o símbolo do humano na sua dimensão mais simples, mais ingenuamente crédula. E, embora possa parecer paradoxal, é nesta dimensão que torna-se verossímil o personagem caminhar sobre as águas. No episódio bíblico, não é só Cristo que consegue caminhar sobre elas. Pedro, o pescador rude, também. Todo humano, desde que tenha fé, consegue fazer o impossível. Repare-se como o Evangelho Segundo São Mateus descreve o episódio:

De madrugada, Jesus foi ter com eles, caminhando sobre o mar. Ao verem-no caminhar sobre o mar, os discípulos assustaram-se e disseram: “É um fantasma!” e gritaram com medo. No mesmo instante, Jesus falou-lhes, dizendo: “Tranquilizai-vos! Sou Eu! Não temais!”. Pedro respondeu-lhe: “Se és Tu, Senhor, manda-me ir ter contigo sobre as águas”. “Vem” - disse-lhe Jesus. E Pedro, descendo do barco, caminhou sobre as águas para ir ter com Jesus. Mas, sentindo a violência do vento, teve medo e, começando a ir ao fundo, gritou: “Salva-me, Senhor!” Imediatamente Jesus estendeu-lhe a mão, segurou-o e disse-lhe: “Homem de pouca fé, porque duvidaste?”. (Mateus, 14, 25-31, 1998)13 13 Nova Bíblia dos Capuchinhos, de 1998.

A mensagem mais profunda do episódio não é, portanto, que caminhar sobre a água é um poder divino, mas sim que também pode ser feito por humanos, desde que tenham fé para tal, desde que não duvidem que conseguem. Por isso, é muito importante, para interpretar a cena, o momento em que Chance mede a altura da água com o guarda-chuva, para confirmar que está mesmo a caminhar sobre a água. Depois ele não para, pois não tem medo como Pedro, e, por isso, não afunda. Chance continua porque é um ser que, como as crianças, acredita que tudo é possível; ele não é limitado pelo realismo que faz com que os adultos acreditem que há coisas que não são possíveis. Não é por acaso que a cena coincide com a parte final do discurso fúnebre que o Presidente dos Estados Unidos faz, usando citações do próprio magnata: “Não importa o que parecemos. Somos todos crianças…”. É igualmente esclarecedor que antes do momento em que Chance começa a caminhar sobre o lago se ouça, no mesmo discurso: “Quando era pequeno, disseram-me que Deus nos fez à sua própria imagem”.

Por isso, para compreender a enigmática cena final, que separa o romance do filme, não se pode ignorar as associações bíblicas feitas a Chance quando ele caminha sobre as águas. Ele é, verdadeiramente, uma personagem “do outro mundo”.14 14 Ver seção 3.2 A construção de Chance, personagem “de outro mundo”. Ele é o protótipo bíblico da inocência e da pureza, uma criança em tudo o que faz, em tudo o que pensa e em tudo o que fala. “Deixai vir a mim as crianças, porque delas é o Reino dos Céus”, disse Cristo, de acordo com o Evangelho Segundo São Mateus. (Mateus, 19,14, 1998) Chance é esta personagem bíblica, inocente, criança em corpo de adulto, para quem a linguagem nunca tem um segundo sentido, nunca é metafórica, nunca é equívoca.

Chance, ironicamente, parece que, afinal, tinha razão quando dizia que tinha “um quarto lá em cima”, um lugar no céu, só que o sentido não é nem o dado pela sua interpretação - um quarto de dormir - nem pela de Ben - um sítio para se estar depois de morto -, mas um verdadeiro lugar no paraíso, no sentido bíblico.

Em razão disso, é fundamental a dimensão irônica da personagem para a global ironia de Being There sobre a forma como a linguagem nos permite a comunicação. Ela implica uma complexidade de jogos e intenções que os espíritos ingênuos - representados pelo caráter infantil de Chance - terão dificuldade em compreender. No entanto, se, por um lado, nos permite ultrapassar essa ingenuidade e infantilidade, por outro pode nos condicionar ao ponto de querermos perceber mensagens e sentidos que não estão nos outros, mas que são, na verdade, interpretações que nós inventamos.

Não se pode ver o filme como um apelo ou como a valorização de uma ingenuidade infantilizada na comunicação. Ninguém fica com vontade de ser Chance, mas ficamos com o sorriso de quem sabe como é irônico nós dizermos uma coisa e os nossos interlocutores compreenderem outra, porque a linguagem é complexa, essencialmente polissêmica, metafórica e ambígua. Ela é o elemento fundamental para a construção dos nossos quadros cognitivos, dos nossos modelos mentais e das nossas percepções sobre o mundo. Chance é o exemplo de como vivências e percepções muito básicas sobre o mundo - só através da televisão - resultam em uma linguagem básica na mesma proporção. As outras personagens constroem, erradamente, através de inferências linguístico-cognitivas, o seu entendimento sobre Chance, o que mostra que é possível, em uma mesma realidade e através das mesmas palavras, haver percepções muito diferentes. Conclui-se, assim, que nós não somos, assim como a vida não é, mais do que o conjunto dessas percepções, desses estados de espírito. Por isso é que, enquanto Chance caminha tranquilamente sobre a água, a frase que fecha a cena e o filme é: “A vida é um estado de espírito”.15 15 “Life is a state of mind”.

Referências

  • BARCELONA, A. (Ed.). Metaphor and metonymy at the crossroads: a cognitive Perspective. Berlin: Mouton de Gruyter, 2000.
  • BEING There. Direção: Hal Ashby. Produção: Andrew Braunsberg. Los Angeles: Warner Bros., 1979. 1 fita de video (130 min), VHS, son., color.
  • GOOSSENS, L. Metaphtonymy: the interaction of metaphor and metonymy in expressions for linguistic action. Cognitive Linguistics, [s. l.], v. 1, n. 3, p. 323-340, 1990.
  • GRICE, P. Studies in the way of words. Cambridge: Harvard University Press, 1989.
  • LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago Press, 1980.
  • LAZAR, M. Jerzy Kosinski’s Being There, novel and film: changes not by chance. College Literature, Baltimore, v. 31, n. 2, p. 99-116, 2004.
  • NOVA BÍBLIA DOS CAPUCHINHOS. Novo Testamento. Evangelho Segundo Mateus. Lisboa: Difusora Bíblica, 1998.
  • TAYLOR, J. R. How many meanings does a word have? Stellenbosch Papers in Linguistics, Stellenbosch, v. 25, p. 133-167, 1992.
  • TAYLOR, J. R. Polysemy’s paradoxes. Language Sciences, Amsterdam, v. 25, p. 637-655, 2003.
  • TEIXEIRA, J. Metaftonímia, cognição e cinema: o caso de Match Point de Woody Allen. In: COLÓQUIO DE OUTONO: ESTÉTICA, CULTURA MATERIAL E DIÁLOGOS INTERSEMIÓTICOS, 13., 2012, Braga. Anais […]. Braga: Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, 2012. p. 165-184. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3il6yIH Acesso em: 30 set. 2021.
    » https://bit.ly/3il6yIH
  • TEIXEIRA, J. Metaphors, we li(v)e by: metáfora, verdade e mentira nas línguas naturais. Revista Galega de Filoloxía, Corunha, n. 14, p. 201-225, 2013a.
  • TEIXEIRA, J. Diegese, linguagens, língua e cinema: The Artist de Michel Hazanavicius. Diacrítica, Braga, v. 3, n. 27, p. 285-300, 2013b.
  • TEIXEIRA, J. Metáforas da crise cotidiana: os media e a veiculação da crise grega. Investigações, Recife, v. 28, n. 2, p. 1-39, 2015.
  • TEIXEIRA, J. Metáforas verbais e pictóricas, média e comunicação: a cascata de metáforas de “geringonça” nos cartunes. Revista Portuguesa de Humanidades, Braga, v. 21, n. 1, p. 87-110, 2017.
  • 1
    Sobre como o cinema transforma a multiplicidade dos meios que dispõem de uma pluralidade de códigos simbólicos, ver Teixeira (2013bTEIXEIRA, J. Diegese, linguagens, língua e cinema: The Artist de Michel Hazanavicius. Diacrítica, Braga, v. 3, n. 27, p. 285-300, 2013b.).
  • 2
    Ver Grice (1989GRICE, P. Studies in the way of words. Cambridge: Harvard University Press, 1989.).
  • 3
    Ver Taylor (1992TAYLOR, J. R. How many meanings does a word have? Stellenbosch Papers in Linguistics, Stellenbosch, v. 25, p. 133-167, 1992., 2003TAYLOR, J. R. Polysemy’s paradoxes. Language Sciences, Amsterdam, v. 25, p. 637-655, 2003.).
  • 4
    Sobre como o processo metafórico pode ser usado como multiplicador de sentidos e intenções, ver Teixeira (2013aTEIXEIRA, J. Metaphors, we li(v)e by: metáfora, verdade e mentira nas línguas naturais. Revista Galega de Filoloxía, Corunha, n. 14, p. 201-225, 2013a., 2015TEIXEIRA, J. Metáforas da crise cotidiana: os media e a veiculação da crise grega. Investigações, Recife, v. 28, n. 2, p. 1-39, 2015., 2017TEIXEIRA, J. Metáforas verbais e pictóricas, média e comunicação: a cascata de metáforas de “geringonça” nos cartunes. Revista Portuguesa de Humanidades, Braga, v. 21, n. 1, p. 87-110, 2017.).
  • 5
    Indicaremos os tempos das sequências do filme no formato: (horas:minutos:segundos).
  • 6
    No âmbito da Teoria da Metáfora Conceitual, distinguem-se as metáforas conceituais das expressões metafóricas dessas metáforas. Assim, a mesma metáfora conceitual, por exemplo, reclamações são objetos, pode ser expressa por várias expressões metafóricas, como “o aspecto de uma reclamação”, “tropeçar numa reclamação”, “pegar numa reclamação”, “olhar para uma reclamação”, etc.
  • 7
    Todas as traduções dos diálogos do filme são da nossa responsabilidade.
  • 8
    Na concepção da Teoria da Metáfora Conceitual, há sempre um domínio alvo, isto é, o que se quer metaforizar, e um domínio fonte, que serve de modelo. Assim, na metáfora conceitual estrutura econômica é jardim, o alvo é estrutura econômica e a fonte é jardim.
  • 9
    Outros equívocos de referenciação equivalentes acontecem, por exemplo, quando lhe perguntam (BEING…, 1979BEING There. Direção: Hal Ashby. Produção: Andrew Braunsberg. Los Angeles: Warner Bros., 1979. 1 fita de video (130 min), VHS, son., color., 01:36:00) que jornais lê e ele, por não saber ler, diz: “Não leio jornais, eu vejo televisão”. O jornalista comenta que poucos homens públicos têm a coragem de Chance de dizer que preferem a cobertura da televisão à dos jornais. Ou ainda, quando o embaixador russo sentado ao seu lado - estamos no contexto da guerra fria - lhe diz que Chance “vai descobrir que não estamos assim tão longe um do outro” e Chance lhe responde: “Não estamos muito longe um do outro; as nossas cadeiras quase se tocam”. “Bravo! Bravo!”, ri o embaixador, supondo a ironia do jogo de linguagem, que Chance não usou.
  • 10
    Não sendo aqui o lugar para desenvolver as relações entre a metáfora e a metonímia, este exemplo permite verificar como ambos os fenômenos se interligam e contribuem para a plurissignificação, polissemia e possibilidades de múltiplas interpretações das construções linguísticas. O conceito de metaftonímia pretende, precisamente, descrever este funcionamento. Sobre o conceito de metaftonímia, ver Goossens (1990GOOSSENS, L. Metaphtonymy: the interaction of metaphor and metonymy in expressions for linguistic action. Cognitive Linguistics, [s. l.], v. 1, n. 3, p. 323-340, 1990.) e Barcelona (2000BARCELONA, A. (Ed.). Metaphor and metonymy at the crossroads: a cognitive Perspective. Berlin: Mouton de Gruyter, 2000.). Sobre metaftonímia e cinema, ver Teixeira (2012TEIXEIRA, J. Metaftonímia, cognição e cinema: o caso de Match Point de Woody Allen. In: COLÓQUIO DE OUTONO: ESTÉTICA, CULTURA MATERIAL E DIÁLOGOS INTERSEMIÓTICOS, 13., 2012, Braga. Anais […]. Braga: Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, 2012. p. 165-184. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3il6yIH . Acesso em: 30 set. 2021.
    https://bit.ly/3il6yIH...
    ).
  • 11
    “Unlike most cinematic adaptations of novels, Being there allows us to witness and judge the original writer’s reconception of his own work for a different genre, and although the two pieces are consistent in tone, three thematic shifts reveal Kosinski’s evolving attitude toward American culture and visual media: racial tensions receive more attention than Cold War politics; a minor character, Benjamin Rand, gains importance as a symbol of American capitalism; and the revised ending implies that the Fool may actually be a saint”. (LAZAR, 2004LAZAR, M. Jerzy Kosinski’s Being There, novel and film: changes not by chance. College Literature, Baltimore, v. 31, n. 2, p. 99-116, 2004., p. 99-100)
  • 12
    Episódio descrito em três dos quatro Evangelhos: João 6,16-21; Marcos 6,45-52 e Mateus 14,22-33.
  • 13
    Nova Bíblia dos Capuchinhos, de 1998NOVA BÍBLIA DOS CAPUCHINHOS. Novo Testamento. Evangelho Segundo Mateus. Lisboa: Difusora Bíblica, 1998..
  • 14
    Ver seção 3.2 A construção de Chance, personagem “de outro mundo”.
  • 15
    “Life is a state of mind”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2020
  • Aceito
    20 Jul 2021
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