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A transfiguração da forma: uma história sem história, ou o ensaio semiótico clariciano 1 1 O presente artigo é resultado de discussões que surgiram ao longo de pesquisa acadêmica orientada no âmbito do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo, com financiamento do CNPq, e orientada pelo Prof. Dr. Ivã Carlos Lopes. Cf. Moreira (2021) para acesso ao trabalho com todos os seus desdobramentos.

The Transfiguration of the Form: A Story Without a Story, or a Lispector’s Semiotic Essay

RESUMO:

A partir dos estudos do discurso, analisamos a obra Água viva (1973), de Clarice Lispector, considerando o desvio estético-temático que ocorre na obra diante do embate com o código linguístico durante a enunciação. Apontamos estratégias enunciativas usadas no discurso para moldar e [re]formar a substância por meio do questionamento de formas e figuras sem, contudo, que haja o abandono destas ou daquelas. Observamos que o paroxismo da experiência transfiguradora no livro se constitui de uma miríade de instâncias atuando de modo a tornar o resultado dessa experiência iconoclasta, em consonância com o movimento modernista do período em que foi escrito e, ao mesmo tempo, destacando-se de maneira definitiva na literatura e no que tange aos estudos discursivos.

PALAVRAS-CHAVE:
Transfiguração discursiva; Água viva ; Lispector; Semiótica; tensividade

ABSTRACT:

Based on discourse studies, we analyze the Água viva (1973), by Clarice Lispector, considering the aesthetic-thematic deviation that occurs due to the clash with the linguistic code during the enunciation. We observe enunciative strategies in the discourse to mold and [re]form the substance from the questioning of forms and figures without, however, abandoning these or those. The paroxysm of the transfiguring experience in the book is constituted by a myriad of instances acting in such a way as to make the result of this an iconoclastic experience, in line with the modernist movement of the period in which it was written and, at the same time, standing out in a definitive way in literature and in discourse studies.

KEYWORDS:
Discursive Transfiguration; Água viva ; Lispector; Semiotics; tensivity

Ouve-me, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que eu te falo e

sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo

dela e estou à tona de brilhante escuridão. Um instante me leva

insensivelmente a outro e o tema atemático vai se desenrolando

sem plano mas geométrico como as figuras sucessivas em um

caleidoscópio [...] Estou atrás do que fica atrás do pensamento.

( LISPECTOR, 1998b, p. 13-14LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.)

1 “Um romance sem romance” 2 2 Usamos a expressão em alusão ao termo usado na orelha do livro Água viva. Cf. HELENA (1998b).

Água viva (1973), de Clarice Lispector, tenta abordar temas, mas se recolhe. Circunda assuntos, sem os adentrar, talvez por serem incômodos e áridos, ou pela dificuldade em colocar em palavras o âmago tensivo dos afetos. Pergunta-se, retoricamente, o sujeito do enunciado emendando resposta a si próprio: “Como reproduzir em palavras o gosto? O gosto é uno e as palavras são muitas” ( LISPECTOR, 1998b, p. 46LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.). Esse diálogo reflexivo, começa na primeira página do livro e, na última, indica não ter fim – “Não vai parar: continua” ( LISPECTOR, 1998b, p. 95LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.). Ele permanece, sem uma conclusão, “Como vês és-me impossível aprofundar e apossar-me da vida, ela é aérea, é o meu leve hálito. Mas bem sei o que quero aqui: quero o inconcluso” ( LISPECTOR, 1998b, p. 26LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.). A personagem quer “não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz” ( LISPECTOR, 1998b, p. 12LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.), o que garante à enunciação seu alargamento e seu inacabamento, no que nos parece coerente estabelecer analogia filosófica à consciência do inacabamento, de Paulo Freire, “Na verdade, o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento” ( FREIRE, 2017, p. 50FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 55. ed. Rio de Janeiro: São Paulo: Paz e Terra, 2017.). Essa consciência é latente no livro, dela não foge o narrador em sua enunciação que sugere tratar de uma generalidade de questões aparentemente desconectadas, mas cujas estruturas têm um ponto comum conforme se demonstrará. A força propulsora é a gestação de uma paixão complexa, gradual, conforme previsto pelo lexicólogo lituano, considerado o principal responsável pelo pensamento constituinte da semiótica discursiva, Algirdas Julien Greimas ( 2014, p. 235GREIMAS, A. J. Sobre o sentido II: ensaios semióticos. Tradução: Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Nankin: Edusp, 2014.), que pressupõe um “estado original”, “neutro, mas de um sujeito fortemente modalizado” e “um estado terminal” bem diferente do referido estado incoativo. Assim como na análise da paixão da cólera, tais configurações começam a se deslocar a partir da espera do sujeito e da fidúcia que o modaliza.

O narrador é uma mulher que se dirige a alguém a quem diz ter amado: “Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca. E tudo isso ganhei ao deixar de te amar” ( LISPECTOR, 1998b, p. 18LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.), contudo, como o dizer nem sempre é o que literalmente se diz, nota-se uma resiliente tentativa de resolução desse sentimento amoroso por parte do sujeito do enunciado, em um processo gradual de mudança aos moldes de uma paixão complexa: “O anel que tu me deste era de vidro e se quebrou e o amor acabou. Mas às vezes em seu lugar vem o belo ódio dos que se amaram e se entredevoraram” ( LISPECTOR, 1998b, p. 84LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.). Desse sujeito do enunciado pouco se sabe, apenas que é uma pintora que decide trocar o plano da expressão, pintura, pelo das palavras para se dirigir a esse enunciatário pressuposto, sofrendo no processo de transferência. O sofrimento, contudo, não se deve a um programa narrativo da vingança, o que não se observa na obra após o fim do amor, assim como não há um prolongamento do rancor ou do desejo explícito de permanência ou retorno à conjunção. Trata-se de um sofrimento agônico de incômodo diante da linguagem.

O interlocutor – se irá tornar-se realizado ou se será mantido virtualizado, não se sabe; sequer fica nítido se a mensagem chegou a ele ou se essa não passou de uma reprodução textual de conflitos internos da personagem principal –, mostra-se mais por seu efeito atrator de uma possibilidade de estabelecimento de resolução do estado passional do sujeito do enunciado, promovendo a esperança de um ajustamento tensivo por meio de uma suposta textualização do afeto, do que por qualquer outra função. O próprio ato de enunciação é o acontecimento em torno do qual o livro se desenvolve. Cabe, aqui, pontuar o conceito de enunciação para os estudos de semiótica discursiva. A enunciação diz respeito à significação e constitui o enunciado, mas também se insere aquém e além dele. Não se trata apenas de sua manifestação, mas envolve todo o seu processo de produção e seus efeitos de sentido. De acordo com Greimas e Courtés ( 1983, p. 145–148GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. Tradução: Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Cultrix, 1983.), o conceito pode ser definido de duas maneiras diferentes. Uma delas é não linguística (referencial), a outra é linguística (logicamente pressuposta pela própria existência do enunciado). Essa ideia expandida vai ao encontro do estudo da emergência do sentido pela via semiótica, aquela que trata o todo de significação, o discurso em sua teia de relações e interrelações.

A compreensão global do texto expande horizontes de interpretação. A Semiótica abrange a dimensão semântica dos textos, mas tem como grande desafio, e é o que a distingue de outras teorias de análise textual, a extração do valor sintáxico dos elementos que compõem um discurso. Segundo Luiz Tatit ( 2012, p. 188TATIT, L. A abordagem do texto. In: FIORIN, J. L. (org.). Introdução à Linguística I: objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2012. p. 187-209.), “a Semiótica adota a forma ‘sintáxico’ para definir relações entre categorias referentes ao texto global, reservando o termo ‘sintático’ para relações entre elementos no nível da frase”. Assim, em um enunciado que trate do sentimento de raiva, por exemplo, pode-se pressupor a existência de um sujeito prejudicado por narrativas anteriores, levando ao que os semioticistas chamam de programa narrativo, isto é, um conjunto de ações que poderão levar o sujeito a se vingar ou a perdoar. Essa perspectiva não era abordada nos estudos tradicionais sobre análise de textos. Ainda com base na interpretação de Tatit, podemos inferir que a ampliação da compreensão de noções funcionais que ainda mantinham interseção com a abordagem frasal fez com que esses componentes, com o sujeito e o objeto, passassem a ser reprojetados para definir papéis narrativos. Esses papéis só adquirem seu alcance completo no contexto geral do discurso. Um exemplo é o papel do herói, ou o do oponente. Essa sintaxe narrativa, contudo, não era suficiente e, assim, Greimas apostou em um modelo em níveis ou camadas, o percurso gerativo, que se fortaleceria e ganharia contornos entre um nível e outro, a partir do pressuposto relacional entre eles, o chamado percurso gerativo de sentido. Como mencionamos a ideia de sujeito, também se faz pertinente destacar que é na enunciação que se instauram sujeito, tempo e espaço, também chamados de componentes da sintaxe discursiva.

Após essas pinceladas teóricas, pode-se voltar à Água viva compreendendo que a personagem que também narra nada mais faz do que colocar em palavras sentimentos, como que se exorcizando deles. É aí, precisamente, que a enunciação ganha corpo e validade. Esse é o ponto de virada, ou desvio. Na incapacidade de se esvair de seu interior por meio de um código compartilhado socialmente, instala-se o “espaço agônico da linguagem” ( NUNES, 1988, p. XXXNUNES, B. (coord.). Introdução do coordenador. In: LISPECTOR, C. A paixão segundo G. H. ed. crítica. Paris: Association archives de la littérature latino-américaine, de Caraibes et africaine du XX siècle; Brasília: CNPq, 1988. p. XXIV-XXXIII.), de onde o enunciador não consegue escapar. Tudo o que se segue é uma busca pelo paroxismo da experiência, o alargamento do instante e uma densa discussão sobre a representação, o dizer sobre esse ápice da experiência passional vivida e da sôfrega tentativa de reconstrução instaurada pela enunciação, o que faz do sujeito da enunciação em Lispector, nas palavras de Gilda de Mello e Souza ( 2009, p. 100SOUZA, G. de M. e. O vertiginoso relance. In: ______. Exercícios de leitura. São Paulo: Editora 34: Duas Cidades, 2009. p. 97-112. (Coleção Espírito Crítico).), um “romancista do instante”. Essa busca desesperada pela maximização da experiência pode ser observada em diversos trechos, como os a seguir:

Quero sentir nas mãos o nervo fremente e vivaz do já e que me reaja esse nervo como buliçosa veia. E que se rebele, esse nervo de vida, e que se contorça e lateje. E que se derramem safiras, ametistas e esmeraldas no obscuro erotismo da vida plena: porque na minha escuridão enfim treme o grande topázio, palavra que tem luz própria.

( LISPECTOR, 1998b, p. 19LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.)

Antes rompo o saco de água. Depois corto o cordão umbilical. E você está vivo por conta própria. E quando nasço fico livre. Esta é a base de minha tragédia. Não. Não é fácil. Mas “é”. Comi minha própria placenta para não precisar comer durante quatro dias. Para ter leite para te dar. O leite é um “isto”. E ninguém é eu. ninguém é você. Esta é a solidão. Estou esperando a próxima frase. É questão de segundos. Falando em segundos pergunto se você aguenta que o tempo seja hoje e agora e já. Eu aguento porque comi a própria placenta.

( LISPECTOR, 1998b, p. 35LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.)

O que te escrevo não vem de manso, subindo aos poucos até um auge para depois ir morrendo de manso. Não: o que te escrevo é de fogo como olhos em brasa.

( LISPECTOR, 1998b, p. 31LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.)

E se tenho aqui que usar-te palavras, elas têm que fazer um sentido quase que só corpóreo, estou em luta com a vibração última. Para te dizer o meu substrato faço uma frase de palavras feitas apenas dos instantes-já. Lê então o meu invento de pura vibração sem significado senão o de cada esfuziante sílaba.

( LISPECTOR, 1998b, p. 11LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.)

Essa que pode ser considerada a principal virada temática do livro acaba construindo, ou costurando, uma coluna vertebral entre os demais retalhos temáticos agrupados pela personagem, “Há uma linha de aço atravessando isto tudo que te escrevo” ( LISPECTOR, 1998b, p. 37LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.). A dificuldade de textualizar o afeto obriga o sujeito do enunciado a se digladiar com a linguagem. Essa confluência espectral, que aponta a direção tensiva do discurso, contudo, não significa necessariamente, uma mudança absoluta. Tratamos de nuances da medida e há confluências temáticas que perpassam toda enunciação, misturando-se, confundindo-se e, no fim, parecem querer apontar para o projeto de desfalecimento da forma (ou a referida linha de aço). A pintora-escritora recorre às pinceladas textuais sobre o amor e sobre a sempre e coexistente presença da solidão:

E eis que sinto que em breve nos separaremos. Minha verdade espantada é que eu sempre estive só de ti e não sabia. Agora sei: sou só. Eu e minha liberdade que não sei usar. Grande responsabilidade da solidão. Quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama. Quanto a mim, assumo a minha solidão. Que às vezes se extasia como diante de fogos de artifício. Sou só e tenho que viver uma certa glória íntima que na solidão pode se tornar dor. E a dor, silêncio. Guardo o seu nome em segredo. Preciso de segredos para viver.

( LISPECTOR, 1998b, p. 72LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.)

Como se nota, existe uma tentativa de dar à solidão não a medida da disforia, mas a de condição humana. Para isso, o sujeito do enunciado prefere a abordar sob o ponto de vista da libertação que promove do amor: “É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais” ( LISPECTOR, 1998b, p. 09LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.). É de tamanha fixação em fazer-crer que é, precisamente, do que trata o sujeito do enunciado que ao longo dos vários temas atemáticos no livro, o morfema liber- tem quarenta e seis ocorrências, formando os lexemas liberdade, liberto, libertina, liberadamente, liberta-se, libera, libertar, libertou-se. Adicionem-se vinte e cinco ocorrências do lexema livre. São setenta e uma ocorrências no decorrer de noventa e cinco páginas. Em uma média aritmética, em se considerando apenas a razão entre os números sem se ater a nuances ao longo do discurso, poderíamos admitir que há uma ocorrência de alusão a termos relativos à liberdade a cada 1,3 página – menos de uma página e meia de distância entre os termos, vislumbrando-se esse hipotético esforço abstrato de se assumir uma distribuição equidistante. Transcrevemos abaixo algumas dessas ocorrências para indicar sua preponderância na enunciação do texto que nos propomos a analisar:

[...] venho do inferno de amor mas agora estou livre de ti. [...] Liberdade? é o meu último refúgio, forcei-me à liberdade e aguento-a não como um dom mas com heroísmo: sou heroicamente livre. E quero o fluxo.

( LISPECTOR, 1998b, p. 16LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b., grifo nosso)

Estou livre? Tem qualquer coisa que ainda me prende. Ou prendo-me a ela? Também é assim: não estou toda solta por estar em união com tudo. Aliás uma pessoa é tudo. Não é pesado de se carregar porque simplesmente não se carrega: é-se o tudo.

( LISPECTOR, 1998b, p. 33LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b., grifo nosso)

Não estou brincando. Estou grave. Porque estou livre. Sou tão simples. Estou dando a você a liberdade.

( LISPECTOR, 1998b, p. 35LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b., grifo nosso)

Está fazendo um dia de sol. A praia estava cheia de vento bom e de uma liberdade. E eu estava só. Sem precisar de ninguém. É difícil porque preciso repartir contigo o que sinto.

( LISPECTOR, 1998b, p. 53LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b., grifo nosso)

Sabendo que a distribuição não é equânime, tem-se a certeza de trechos de altíssima concentração em torno da ideia de liberdade (ou seu oposto, a interdição), o que torna o núcleo dessa intencionalidade ainda mais coeso e não deixa dúvida de como o tema, ou a sombra dele, insiste em se fazer presente na enunciação, contudo, de maneira etérea não se deixa tocar ou definir. Definir a liberdade já não seria uma ausência de liberdade? A fixação, como que por osmose, contamina o ambiente enunciativo holisticamente. Trata-se de uma liberdade formal, de uma ruptura com a fixidez, com a forma. Se a forma recorta nebulosas, dando à luz o conteúdo a ponto de a semiótica greimasiana se debruçar, essencialmente, sobre a forma do conteúdo, não seria ela, a forma, o que se deve atacar em busca de liberdade e ampliação de significações? Quando algo precisa de reparos, usamos o prefixo re em combinação com o lexema forma [reforma], ou seja dar forma de novo, reconstruí-la, ou lhe conferir uma nova forma. Por um método indutivo, podemos raciocinar reconstruindo esse percurso geracional de sentido e chegando à teoria que aplicamos de maneira dedutiva: é a forma que delimita. É também, portanto, a forma que pode afrouxar ou ampliar. Há forma, inclusive, no que se dismorfiza para se reformular, ou reformar.

É o que acontece em várias instâncias do projeto enunciativo em Água viva. O livro não segmentado em capítulos, em outra frente, apresenta uma forma pouco usual que, por outro lado, subdivide-se em uma miríade de temas que parecem, a princípio, não constituir conexão lógica. Aos moldes do que propunha a obra em seu título original, Atrás do pensamento: monólogo com a vida, o efeito de sentido é de um monólogo com ingredientes filosóficos, existenciais e psicológicos densos. Também nisso corrobora formalmente o efeito de sentido que nos causa impressão de o texto ter sido escrito em um fluxo ininterrupto 3 3 Documentamos ter ciência de que o livro foi escrito ao longo de anos, tendo sua primeira versão ficado pronta em 1971. À época, seu título provisório era Atrás do pensamento: monólogo com a vida. Com 151 páginas, o texto original era bem maior que a resumida versão final, Água viva, publicada em 1973. Antes da derradeira, contudo, houve uma edição intermediária ainda maior, com 185 páginas, intitulada Objeto gritante que, assim como a primeira, não foi a opção para publicação. Moser ( 2011, p. 540–541) aponta, em sua biografia da escritora, que Lispector havia desistido de publicar esse livro por achá-lo caótico. Olga Borelli a teria convencido e a auxiliado com revisões e com a estruturação dos fragmentos do manuscrito. Trechos altamente pessoais e autobiográficos também foram suprimidos. Fazemos tal adendo para certificarmos a nosso leitor que, neste estudo, não há uma perspectiva crítica genética, optando-se por outra metodologia: o paradigma analítico semiótico discursivo. , como um descarrego enunciativo direcionado ao amor com o qual a personagem principal está em disjunção. Importante reiterar que tratamos de uma abordagem semiótica. Dessa maneira, o parecer é o que se mostra e o que interessa no discurso (e, consequentemente, em nossa análise). Nosso objeto é visto a partir do efeito de sentido narrativo e discursivo que produz, conforme os princípios teóricos de análise sincrônica. Justamente para demonstrar a potência de significação de uma obra e o pouco controle de seu autor sobre ela depois que passa a ser interpretada por um interlocutor, a Semiótica opta por desvincular o autor biográfico (no caso, Lispector) daquele que conduz o discurso (e que se torna o foco central da análise: o enunciador – ou o autor que não é o de carne e osso, como dizem alguns). Tal abordagem também opta por desconsiderar fatores externos à enunciação em si, a não ser que haja uma intertextualidade que justifique e, dessa forma, mantenha o princípio de imanência da análise.

Há, ainda, uma reiterada recursividade ao que poderíamos chamar de espaços brancos na obra, promovendo a necessidade de catálise, o que é uma condição textual, segundo observou Hjelmslev ( 2013, p. 99HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Tradução: J. Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 2013.), contudo, em excesso pode prejudicar sua coesão e, portanto, compreensão. Poderíamos nos aventurar a traduzir a definição de catálise como a previsibilidade de que a constituição de algo possa se dar mesmo se parte de seus constituintes for interpolada por outras vias (a partir do conceito de função e funtivos). Segundo a definição de Hjelmslev,

Uma dependência que preenche as condições de uma análise será denominada função. Desse modo, diremos que há função entre uma classe e seus componentes (entre uma cadeia e suas partes, entre uma paradigma e seus membros), do mesmo modo como há função mútua entre os componentes (partes e membros). Serão denominados funtivos de uma função os termos entre os quais esta existe, entendendo-se por funtivo um objeto que tem uma função em relação a outros objetos. Diz-se que um funtivo contrai sua função. Das definições, resulta que também funções podem ser funtivos, uma vez que que pode haver função entre funções. Deste modo, existe uma função entre a função que as partes contraem entre si e a função contraída entre a cadeia e suas partes.

( HJELMSLEV, 2013, p. 39HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Tradução: J. Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 2013., grifo do autor)

É importante destacar também que a elipse, supressão de um termo que poderá ser inferido pelo contexto do enunciado, é o elemento que demanda a catálise e já se apresenta, em um primeiro momento, com uma constituição tônica, de impacto, promovendo esse efeito desacelerador.

Em outra instância, observamos, desde o título, uma alusão em duplo sentido ao animal marinho e à substância repleta de energia vital. Há figurativização em ambos e estrutura formal, inclusive física, embora altamente maleável, em ambos, assim como em outra figura recorrente: a da placenta que, como as duas anteriores, também está ligada ao nascimento, ao novo.

2 A transfiguração da forma

A proposição da reforma em Água viva passa pela negação da forma, para uma posterior asserção do seu complementar, gerando ao fim um novo, o it. Pode-se pensar, caso se deseje considerar a lógica como feito por meio do quadrado semiótico, em um processo em que se nega a forma, pela contraditoriedade. Na sequência, pela asserção do complementar, chega-se à dismorfia. A passagem gradual da dismorfia para a próxima transformação de estado levaria à instauração do espaço incoativo epistêmico (Cf. Esquema 1), ou seja, a partir de uma reforma, os rígidos sentidos cristalizados vão se dissipando e se torna possível instaurar, pela língua, uma nova forma ( reformular).

Esquema 1 -
A transfiguração lispectoriana

São processos que se retroalimentam – o desfalecimento da forma no léxico, por meio de novas construções sintagmáticas; o desfalecimento das figuras na pintura e no discurso textual, buscando o figural; o desfalecimento dos sentidos cristalizados e a instauração de novos sentidos. É quando nasce o impessoal, o it, “Sou-me. Mas há também o mistério do impessoal que é o ‘it’” ( LISPECTOR, 1998b, p. 30LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.). A retroalimentação entre as instâncias formais e conceituais ocorre a todo momento e em fluxos em diferentes partes do livro. Já muito próximo do fim, há a indicação do que seria essa impessoalidade no que tange ao amor que deixou de existir e que não se enveredou para o ódio: “Amor impessoal, amor it, é alegria: mesmo o amor que não dá certo, mesmo o amor que termina” ( LISPECTOR, 1998b, p. 93LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.).

Não é um processo perfeito, e no livro isso fica explícito. O que se apresenta é o questionamento, não as respostas: “E eis que te faço perguntas e muitas estas serão. Porque sou uma pergunta” ( LISPECTOR, 1998b, p. 39LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b., grifo nosso). Não há qualquer prescrição, ao contrário, há um convite ao enunciatário para construção, intersubjetivamente, do conteúdo, pela instauração das catálises – “Sou um coração batendo no mundo. Você que me lê que me ajude a nascer” ( LISPECTOR, 1998b, p. 36LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.) –, assim como há uma ciência de que o simulacro de algo nunca será algo. Ao analisar Infância, do também modernista (contudo, representante da segunda fase do movimento), Graciliano Ramos, Mariana Luz Pessoa de Barros percebeu um efeito de sentido que pode ser observado a respeito do que acabamos de apontar em Lispector:

Talvez um texto muito explicativo, construído por meio de estratégias mais da ordem do inteligível e em que todos os vazios estivessem preenchidos perdesse parte de seu impacto, de sua intensidade sobre o leitor. Ao esconder, o discurso mostra ou ainda esconde e mostra. Aquilo que estava esquecido força sua aparição no discurso e deixa-se perceber na fragmentação.

( BARROS, 2014, p. 147BARROS, M. L. P. Fragmentação e memória. CASA: Cadernos de Semiótica Aplicada, Araraquara, v. 12, n. 1, p. 137-158, 2014. Disponível em: https://doi.org/10.21709/casa.v12i1.7121. Acesso em: 29 dez. 2020.
https://doi.org/10.21709/casa.v12i1.7121...
, grifo nosso)

Em Água viva, ocorre algo similar para tirar do enredo bem amarrado o protagonismo, deslocando-o para a experiência em construção, a dúvida, a reforma. Termina em suspensão, consciente de que as perguntas serão muito mais impulsionadoras do que poderiam ser as respostas à ampliação dos sentidos. A língua ganha, dessa maneira, novos contornos, a partir de sua negação – feita por meio dela mesma, num processo imanente: “Estou esperando a próxima frase. É questão de segundos. Falando em segundos pergunto se você aguenta que o tempo seja hoje e agora e já. Eu aguento porque comi a própria placenta” ( LISPECTOR, 1998b, p. 35LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.). Essa placenta, primitiva, disforme, misteriosa, que oscila entre o divino e o profano, entre a luz e as trevas, a vida e a morte é a tônica e a razão de ser da emergência do sentido em Água viva. Ao fazer uso dessa figura e trazer o incômodo de pensar em como seria comê-la, à maneira de um animal, nasce uma vigorosa discussão sobre a figuratividade na maximização da experiência para justificar a ruptura com a cristalização social nos discursos.

Nesse caminho, portanto, forma e figura são questionadas. O que adiantamos, de imediato, é que se questiona a figuração, ou figurativização, na pintura, na escrita e, também, na prosodização discursiva ou no próprio andamento tensivo que rege a enunciação. Há um projeto explícito de transfiguração, ou de redução que parte da figura, em direção ao figural, um esforço de abstração para posterior reconstrução de sentidos, o que ocorrerá, metaforicamente, com o conteúdo ao longo do livro. Não apenas a enunciação tem início com uma citação de Michel Seuphor 4 4 “Tinha de existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura – o objeto – que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência” (SEUPHOR apud LISPECTOR, 1998b, p. 7). A referida citação foi transformada por Lispector em epígrafe de seu Água viva. O pintor nasceu em 1901 na Antuérpia, Bélgica, região de Flandres, bem perto da fronteira com a Holanda. Sua morte foi em 1999 em Paris, na França. Michel Seuphor era, na verdade, seu pseudônimo (anagrama de Orfeu). Seu nome verdadeiro era Fernand-Louis Berckelaers. sobre a não necessidade da figura, como o próprio livro é o elogio supremo ao paroxismo da experiência transfiguradora, transformadora. Uma espécie de esmaecimento da figura para que se possa vislumbrar o imaginário da matéria.

Deixo-me ficar jogada no chão agreste, exausta, o coração ainda pula doido, respiro às golfadas. Estou a salvo? enxugo a testa molhada. Ergo-me devagar, tento dar os primeiros passos de uma convalescença fraca. Estou conseguindo me equilibrar. Não, isto tudo não acontece em fatos reais mas sim no domínio de - de uma arte? sim, de um artifício por meio do qual surge uma realidade delicadíssima que passa a existir em mim: a transfiguração me aconteceu.

( LISPECTOR, 1998b, p. 20–21LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b., grifo nosso)

Toda transformação pressupõe criatividade. Para o filósofo francês Edgar Morin, essa criatividade atua no mundo e nos seres do mundo por ter sido condição de emergência tanto de um quanto dos outros. A criatividade sistêmica que atua no mundo físico possibilitou a auto-organização e esta, por sua vez, deu origem à criatividade viva. Seguindo a tradição do pensamento mitológico grego, Morin refuta a ideia reducionista de caos como desordem, visto que para os gregos Caos era pai de Cosmo. Ainda segundo o autor, o caos comporta uma complexidade dialógica entre ordem/desordem/organização. Sendo a metamorfose o processo que dá origem a uma nova realidade, o pensador considera o estado incoativo do mundo (uma espécie de nebulosa) como sendo “um vazio que não é vazio” ( MORIN, 2020, p. 33MORIN, E. Conhecimento, ignorância, mistério. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.).

O mais incrível é que a concepção astrofísica do nosso cosmo não só pressupõe um caos subjacente como supostamente derivou daquilo que menos parece ter realidade: o vazio. Acontece que esse vazio seria constituído de energias virtuais, infinitas, que, ao se atualizarem (depois de um acontecimento ou acidente estranho), teriam produzido essa deflagração térmica metaforicamente chamada de Big Bang. Assim, o que parece menos real, o vazio, teria sido a origem da nossa realidade.

Não existe, portanto, uma realidade em si, mas há uma auto-organização do universo que produz sua realidade.

( MORIN, 2020, p. 29MORIN, E. Conhecimento, ignorância, mistério. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.)

Assim, nosso universo não teria nascido do nada, do “vazio”, do ex nihilo, nem sequer de um vazio que realmente fosse totalmente vazio, mas de um vazio portador de infinitas energias potenciais. Se infinitas energias são apenas potenciais no vazio originário, significa também que tudo nele é indistinto, nada é separado. Em outras palavras, não existe espaço nem tempo, que são os separadores que permitem existência de um universo com uma pluralidade de objetos e entidade separados, assim como a sua evolução.

( MORIN, 2020, p. 33–34MORIN, E. Conhecimento, ignorância, mistério. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.)

As reflexões filosóficas de Morin muito nos inspiram ao fazermos relações com o pensamento tensivo e com a enunciação em Água viva, metáfora da metamorfose do sentido, da transfiguração, ou do nascimento do it, do desfalecimento de formas, eliminando tempo e espaço e alargando o instante ao máximo de sua agonia, à sensação do que se prende nas mãos com a força que permite marcar a própria pulsação do sangue bombeado nas veias. Tal pensamento nos aproxima e nos permite vislumbrar, inclusive teoricamente, a atuação de vetores tensivos, a força que leva adiante, na construção do mundo e, por conseguinte, nos enunciados sobre o mundo. Morin acredita no potencial criativo como algo transumano e complexo. Está fora, mas também no núcleo do ser chamado por ele de “ sapiens/demens”. Há um processo que escapa à explicação: é o mistério, também presente em Água viva. Esse processo é holístico, e toda tentativa de o explicar resulta na insistência em um método reducionista, partindo de quaisquer abordagens. O vazio preenchido possui forças em estado virtualizado que, ao se atraírem por alguma razão sobre a qual há uma miríade de teorias, potencializam-se e, ao se chocarem, realizam-se. O caos é, portanto, medida, também, da ordem. Em Lispector, podemos traduzir esse projeto usando palavras de Nádia Gotlib, ao se referir à dimensão subjacente à superfície no universo enunciativo da escritora. A uma construção mais aparente, “coexiste uma outra, subterrânea, que questiona e desmonta a primeira sob o disfarce de outros elementos que instauram o desequilíbrio, a desordem, o caos” ( GOTLIB, 1995, p. 70GOTLIB, N. Clarice, uma vida que se conta. 3. ed. São Paulo: Ática, 1995.), ou, ainda, nas palavras do próprio sujeito da enunciação em Água viva, “Quero a profunda desordem orgânica que no entanto dá a pressentir uma ordem subjacente” ( LISPECTOR, 1998b, p. 27LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b., grifo nosso). Não apenas coexistem, portanto, as duas grandezas aparentemente discretas e opostas (caos e ordem), como a primeira corrobora a existência da segunda. Por isso, em Morin ( 2020, p. 39MORIN, E. Conhecimento, ignorância, mistério. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.), temos que a”criação é inseparável da destruição [...] é ao se desintegrar que o universo se organiza”, assim como em Lispector, a vida da morte: “Aquilo é lei universal. Nascimento e morte. Nascimento. Morte. Nascimento e – como uma respiração do mundo” ( LISPECTOR, 1998b, p. 37–38LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.). É como o sujeito da enunciação concebe o nascimento do sentido, de maneira complexa, em que forças tensivas atuam em concomitância: “Fixo instantes súbitos que trazem em si a própria morte e outros nascem – fixo os instantes de metamorfose e é de terrível beleza a sua sequência e concomitância” ( LISPECTOR, 1998b, p. 13LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.). Em Lispector, a “Harmonia secreta da desarmonia” ( LISPECTOR, 1998b, p. 12LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.), em Morin, a ideia de que “[...] o universo vive de maneira heraclitiana entre discórdia e concórdia, harmonia e desarmonia” ( MORIN, 2020, p. 39MORIN, E. Conhecimento, ignorância, mistério. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.).

A força, ou caos criador, não se explica, não se encaixa em mitologias gnósticas. Em Morin, Deus não é religioso assim como em Lispector também não o é: “Muitos cientistas receiam que a criatividade viva remeta exclusivamente ao criacionismo, ou seja, ao desígnio de um Deus criador, quando a criatividade se encontra, como pensava Spinoza, no próprio cerne da natureza viva” ( MORIN, 2020, p. 62MORIN, E. Conhecimento, ignorância, mistério. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.). A essa força-mistério potencial o pensador credita o fenômeno da auto-organização. Morin enxerga nos seres uma microdinâmica que reproduz a macrodinâmica universal, disso depreendemos que esse elã criador existe em nós e não é passível de ser explicado.

A criatividade, ela, sim, é um mistério! Pode ser simulada ou desencadeada por interações não elucidadas entre nosso nível de realidade física e o nível de realidade quântica, e essas interações são de natureza a provocar a criatividade tanto na evolução biológica quanto na criatividade humana do espírito/cérebro. Acredito sobretudo que a força criadora escapa a toda denominação, permanecendo em última análise um “mistério indizível” (Klee).

( MORIN, 2020, p. 96MORIN, E. Conhecimento, ignorância, mistério. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.)

Essa mesma criatividade (função) tem entre seus funtivos aquele que só se integra ao todo por catálise: “A união dialógica de um princípio de invariância com um princípio de transformação é um caráter essencial da vida” ( MORIN, 2020, p. 59MORIN, E. Conhecimento, ignorância, mistério. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.). Uma força interna que se autorregula do estado de indistinção ao estado organizador, é quando a forma recorta a nebulosa, um processo dinâmico excitado, que ocorre a cada instante ou a cada milésimo de instante, assim como há movimento particular entre espaços vagos no nível microfísico mesmo nas substâncias mais compactas e coesas no nível físico. Como toda excitação, a criatividade pressupõe gasto de energia e se realiza em um esvaziamento de algo que se transmuta em outra coisa ( forma – ñ forma – reforma). Em Água viva, essa transfiguração criativa se dá por um processo de transe que é o caminho para o êxtase (paroxismo da experiência que penosamente se faz no espaço agônico da linguagem).

Transfiguro a realidade e então outra realidade sonhadora e sonâmbula, me cria. E eu inteira rolo e à medida que rolo no chão vou me acrescentando em folhas, eu, obra anônima de uma realidade anônima só justificável enquanto dura a minha vida. E depois? depois tudo o que vivi será de um pobre supérfluo. Mas por enquanto estou no meio do que grita e pulula. E é sutil como a realidade mais intangível. Por enquanto o tempo é quanto dura um pensamento. E de uma pureza tal esse contato com o invisível núcleo da realidade. Sei o que estou fazendo aqui: conto os instantes que pingam e são grossos de sangue. Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem isso? improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da plateia.

( LISPECTOR, 1998b, p. 22–23LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.)

Penso que agora terei que pedir licença para morrer um pouco. Com licença - sim? Não demoro. Obrigada. ... Não. Não consegui morrer. Termino aqui esta “coisa-palavra” por um ato voluntário? Ainda não. Estou transfigurando a realidade – o que é que está me escapando? por que não estendo a mão e pego? É porque apenas sonhei com o mundo mas jamais o vi.

( LISPECTOR, 1998b, p. 65LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.)

O ato criativo, que esvazia o criador, pressupõe transe como condição para o atingimento de um êxtase gerado pelo estado contemplativo de criação, sendo o “Estado de transe: estado que se manifesta na possessão, na divinação (Pítia), na mediunidade, no orgasmo, na inspiração poética, literária e musical, na festa” ( MORIN, 2020, p. 92MORIN, E. Conhecimento, ignorância, mistério. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.). Por sua vez, “Se o estado de poesia é a aspiração profunda do ser humano, o êxtase é a aspiração suprema dessa aspiração” ( MORIN, 2020, p. 93MORIN, E. Conhecimento, ignorância, mistério. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.). O êxtase é, então, o paroxismo do transe: “Gilles Léothaud distinguiu claramente transe e êxtase, embora seja possível confundi-los pois um transe extremo pode se transformar em êxtase; mas ele adquire beatitude, extrema serenidade, sentimento do absoluto” ( MORIN, 2020, p. 93MORIN, E. Conhecimento, ignorância, mistério. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020., grifo nosso).

Se a transfiguração é o processo penoso que se constrói pelo alargamento da experiência elevada à sua mais alta potência, borrando tempo e espaço como unidades definidoras à maneira como os conhecemos, o que se observa em uma busca é a saída do universal em direção a uma visada do absoluto, é a triagem, em metalinguagem tensiva zilberberguiana. Beatitude é aquilo que busca o sujeito da enunciação em Água viva no paroxismo da experiência transfiguradora.

Essa felicidade eu quis tornar eterna por intermédio da objetivação da palavra. fui logo depois procurar no dicionário a palavra beatitude que detesto como palavra e vi que quer dizer gozo da alma. Fala em felicidade tranquila - eu chamaria porém de transporte ou de levitação. Também não gosto da continuação no dicionário que diz: “de quem se absorve em contemplação mística”. Não é verdade: eu não estava de modo algum em meditação, não houve em mim nenhuma religiosidade. Tinha acabado de tomar café e estava simplesmente vivendo ali sentada com um cigarro queimando-se no cinzeiro.

( LISPECTOR, 1998b, p. 88–89LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b., grifo nosso)

A referida beatitude é “[...] o pensamento do homem e o modo como esse pensar-sentir pode chegar a um grau extremo de incomunicabilidade – que, sem sofisma ou paradoxo, é ao mesmo tempo, para esse homem, o ponto de comunicabilidade maior. Ele se comunica com ele mesmo” ( LISPECTOR, 1998b, p. 90LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.), contudo, é, também, um objeto que não se alcança discursivamente, apenas por meio da experiência: “[...] quero ver se consigo prender o que me aconteceu usando palavras. Ao usá-las estarei destruindo um pouco o que senti – mas é fatal. Vou chamar o que se segue de ‘À margem da beatitude’” ( LISPECTOR, 1998b, p. 89LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.). O enunciatário acompanha e é instaurado no ínterim, no devir, na espera do inesperado, na experiência do instante-já que alimentam o transe enunciativo em busca de seu êxtase.

Exorbito-me então para ser. Sou em transe. Penetro no ar circundante. Que febre: não consigo parar de viver. Nesta densa selva de palavras que envolve espessamente o que sinto e penso e vivo e transforma tudo o que sou em alguma coisa minha e que no entanto fica inteiramente fora de mim. Fico me assistindo pensar. O que me pergunto é: quem em mim é que está fora até de pensar? Escrevo-te tudo isto pois é um desafio que sou obrigada com humildade a aceitar. Sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que é mítico e fantástico - a vida é sobrenatural. E eu caminho em corda bamba até o limite de meu sonho. As vísceras torturadas pela voluptuosidade me guiam, fúria dos impulsos. Antes de me organizar tenho que me desorganizar internamente. Para experimentar o primeiro e passageiro estado primário de liberdade.

( LISPECTOR, 1998b, p. 68LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.)

Não se trata de um transe qualquer “Não como se estivesse estado em transe - não há nenhum transe - sai-se devagar, com um suspiro de quem teve tudo como o tudo que é” ( LISPECTOR, 1998b, p. 88LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.), mas de um estado de graça, “Não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte. O estado de graça de que falo não é usado para nada. é como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe e existe o mundo” ( LISPECTOR, 1998b, p. 87LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.). Entre os indícios do transe criativo, no sentido da força do caos criador de que fala Morin, isto é, a transfiguração ou dismorfização em Lispector, podemos observar repetições, reiterações no enunciado. É como se as questões assombrassem o enunciador em uma embriaguez discursiva, sem aparente resolução. Essa técnica diante de um conflito, aliás, está presente em outras obras, como em A paixão segundo G.H. (1964): “Uma das estratégias que Clarice utilizou para subverter o conjunto de representações ordenadas que compõe um discurso foi a repetição. Na medida em que o discurso se desenvolve, a irrepresentabilidade dos objetos aumenta” ( MOREIRA et al., 2019, p. 236 MOREIRA, F. et al. O que dizer da Paixão? A ampliação do sentido em G. H., de Lispector. O eixo e a roda, Belo Horizonte, v. 28, n. 3, p. 223-238, 2019. Disponível em: http://dx.doi.org/10.17851/2358-9787.28.3.223-238. Acesso em: 20 dez. 2020.
http://dx.doi.org/10.17851/2358-9787.28....
). Tais repetições podem ter, ao menos, quatro funções na enunciação, a saber: a repetição que dessemantiza aquele sentido habitual para as palavras poderem ser coisa (apesar da dessemantização, nesse caso, há um aumento de gradação do sensível); a repetição cumulativa que vai se intensificando; a repetição que interrompe o fluxo narrativo, em um processo também de aumento da intensidade; a repetição que encena o improviso, encena a enunciação em ato, o processo, em uma recursividade que tende à recriação do efeito de oralidade na escrita em um fluxo contínuo. Transcrevemos, abaixo, exemplos dessas repetições em Água viva.

  1. I.

    O mistério dos números aparece na página 33 e volta a surgir na página 44:

    Mas 9 e 7 e 8 são os meus números secretos. Sou uma iniciada sem seita. Ávida do mistério. Minha paixão pelo âmago dos números, nos quais adivinho o cerne de seu próprio destino rígido e fatal. E sonho com luxuriantes grandezas aprofundadas em trevas: alvoroço da abundância, onde as plantas aveludadas e carnívoras somos nós que acabamos de brotar, agudo amor - lento desmaio.

    ( LISPECTOR, 1998b, p. 33LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b., grifo nosso)

    Meu número é 9. É 7. É 8.

    ( LISPECTOR, 1998b, p. 44LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b., grifo nosso) 5 5 Por se tratar de destaque, mantemos o recuo e o tamanho da letra menor em algumas citações diretas apenas neste bloco de excertos, mesmo não havendo mais de três linhas, como prescreve a ABNT. Fazemos isso em função de manutenção de coerência estética para visualização dos tópicos em repetição pelos leitores.
  1. I.
    1. II.

      A reiteração da própria ultrapassagem também pode ser notada em mais de um excerto:

      Eu me ultrapasso abdicando de mim e então sou o mundo.

      ( LISPECTOR, 1998b, p. 24LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b., grifo nosso)

      Eu me ultrapasso abdicando de meu nome, e então sou o mundo.

      ( LISPECTOR, 1998b, p. 47LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b., grifo nosso)
  1. III.

    Não são as únicas repetições, como podemos observar nos trechos abaixo:

    Eu sou a morte.

    ( LISPECTOR, 1998b, p. 25LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b., grifo nosso)

    Eu – eu sou a minha própria morte.

    ( LISPECTOR, 1998b, p. 39LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b., grifo nosso)
  1. IV.

    As isotopias discursivas seguem como a se refletirem no espelho clariciano, um espelho convexo que distorce as formas para as amplificar, ressignificando suas palavras:

    Ouve-me, ouve o silêncio. O que eu te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão. Um instante me leva insensivelmente a outro e o tema atemático vai se desenrolando sem plano mas geométrico como as figuras sucessivas em um caleidoscópio.

    ( LISPECTOR, 1998b, p. 14LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b., grifo nosso)

    Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Quando digo “águas abundantes” estou falando da força de corpo nas águas do mundo. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso. Lê a energia que está no meu silêncio.

    ( LISPECTOR, 1998b, p. 30LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b., grifo nosso)

Os desvios temáticos bruscos também não são pouco frequentes. No mais eloquente, o sujeito da enunciação anuncia: “Agora vou falar da dolência das flores para sentir mais o que existe” ( LISPECTOR, 1998b, p. 56LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.). Fala de muitas delas, “A sempre viva é sempre morta” ( LISPECTOR, 1998b, p. 58LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.); atenta-se ao fato de que a “rosa não é it. É ela. As encarnadas são de grande sensualidade. As brancas são a paz do Deus” ( LISPECTOR, 1998b, p. 56LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.). Depois de fazer essa derivação que parece, a princípio, não fazer sentido, há indício da soência do sobrevir, o inesperado:

Orgulho-me de sempre pressentir mudança de tempo. Há coisa no ar - o corpo avisa que virá algo novo e eu me alvoroço toda. Não sei para quê. naquela mesma primavera ganhei a planta chamada prímula. É tão misteriosa que no seu mistério está contido o inexplicável da natureza. Aparentemente nada tem de singular. Mas no dia exato em que começa a primavera as folhas morrem e em lugar delas nascem flores fechadas que têm um perfume masculino e feminino extremamente estonteador.

( LISPECTOR, 1998b, p. 63LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.)

Esses afastamentos que beiram o surrealismo, e o nonsense comportado por ele, costuram uma relação com discursos que tocam o onírico, em fluxos de consciência intermitentes entre a insônia e o desvario, mas um desvario sóbrio, como deve ser em Lispector: “Verifico que estou escrevendo como se estivesse entre o sono e a vigília” ( LISPECTOR, 1998b, p. 47LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.). São três as vezes que o sujeito da enunciação se diz acordado às cinco da madrugada. Uma delas, no dia 25 de julho, única ancoragem temporal mais bem delimitada no livro. Há, ainda, uma terceira menção às horas, desta vez, cinco e meia da manhã – os trinta minutos que se encontram no limiar entre a noite e o dia, a luz e a escuridão.

Tudo nos leva a pensar em um processo de transe, no limiar da criação, do desfalecimento do que é fechado para a abertura que é a viagem sem sair do lugar. Essa isotopia ou metalinguagem da passagem de um estado a outro é, ainda, a interseção do referido transe ao seu ápice, o êxtase, atingindo o estado de graça, a beatitude, o nirvana. É a negação da cotidianidade: “Na extremidade do samsara, há a vida ‘prosaica’, mais ou menos automatizada, mecanizada, submissa. Depois, quando nos afastamos, aparece a vida poética de comunhão, a qual, na exaltação, chega às proximidades estáticas do nirvana...” ( MORIN, 2020, p. 94MORIN, E. Conhecimento, ignorância, mistério. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020., grifo do autor).

Tudo isso converge na discussão sobre contigência versus liberdade, com impactos no que tange ao conteúdo. É a base mesma da discussão sobre os alargamentos de sentido por exercícios hipotéticos de cisão com o conteúdo recorrentemente recortado. É a reformulação do discurso, ou seu ajustamento.

O processo de questionamento dos discursos ditos em face aos não ditos – “o melhor está nas entrelinhas” ( LISPECTOR, 1998b, p. 95LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.) – é outra marca do sujeito da enunciação. A partir desse estilo, concebemos a emergência de sentido em um objeto tão específico, quanto é Água viva. Lispector (1998a)LISPECTOR, C. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998a. relatou na dedicatória do livro A paixão segundo G.H. que a aproximação do que quer que seja é feita gradual e penosamente – atravessando o oposto daquilo de que se pretende se aproximar. “A travessia do oposto é a destruição da personalização, a destruição da personalidade inútil” ( SÁ, 1993, p. 144SÁ, O. Clarice Lispector: a travessia do oposto. São Paulo: Annablume, 1993.). Essa travessia em busca da despersonificação também é notada em Água viva, nosso objeto de estudo . A pintora, agora mais nova escritora – idealizada pela autora que ganhou o mundo com seus textos e, curiosamente, também pintava –, tenta se encontrar em seu recente e errante projeto enunciativo. Ela não relega a língua a um patamar de inferioridade. Ao contrário, coloca-a em protagonismo. A semantização em um contexto social dessa mesma língua foi o que a empobreceu. Nesse sentido, o vigor da travessia do oposto em Clarice, por fragmentos, mostra a potencialidade da literatura, força essa que, na avaliação de Barthes, é propriamente semiótica, que “consiste em jogar com os signos em vez de destruí-los, em colocá-los numa maquinaria de linguagem cujos breques e travas de segurança arrebentaram, em suma, em instituir no próprio seio da linguagem servil uma verdadeira heteronímia das coisas” ( BARTHES, 1989, p. 27BARTHES, R. Aula. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1989.).

3 Conclusões

Água viva contém material vasto para discussões no âmbito da Semiótica que valoriza o tempo, o aspecto, a aforia 6 6 “Aforia é o termo neutro da categoria tímica que se articula em euforia/disforia” ( GREIMAS; COURTÉS, 1983, p. 16). ou foria 7 7 Ou “força que leva adiante” ( TATIT, 2012, p. 199). , os afetos e as gradações, isto é, tratamos aqui, também, de medidas da tensividade.

Tensividade é a relação que o sema durativo de um processo contrai com o sema terminativo: isso produz o efeito de sentido “tensão”, “progressão” (por exemplo: o advérbio “quase” ou a expressão aspectual “a ponto de”). Essa relação aspectual sobredetermina a configuração aspectual e a dinamiza de algum modo. Paradigmaticamente, tensividade opõe-se à distintividade.

( GREIMAS; COURTÉS, 1983, p. 457–458GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. Tradução: Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Cultrix, 1983.)

Posteriormente, com o advento da semiótica tensiva, a tensividade passou a ser concebida como o eixo semântico em que se articulam intensidade e extensidade – sendo intensidade a força da ordem do sensível e a extensidade posições de quantidade, da ordem do inteligível. Ambas são eixos graduais. No espaço compreendido entre elas se realiza a correlação, já que há sempre uma carga maior de uma ou de outra, podendo haver uma correlação direta ou inversa entre essas grandezas ( MENDES, 2011, p. 192MENDES, C. M. Da Linguística Estrutural à Semiótica Discursiva: um percurso teórico-epistemológico. Raído, Dourados, v. 5, n. 9, p. 173-193, jan./jun. 2011. Disponível em: http://ojs.ufgd.edu.br/index.php/Raido/article/view/975/810. Acesso em: 28 dez. 2020
http://ojs.ufgd.edu.br/index.php/Raido/a...
).

Em Água viva, o impacto dessa articulação gira em torno da coisa do que se diz, em sua interface com o sujeito, resultando em produção de sentido. Desse encontro, nasce a entrelinha, que está além, “atrás do pensamento” ( LISPECTOR, 1998b, p. 13LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.), mas depende da interface, seja tátil, auditiva, codificada, para vir à tona no discurso. Uma limitação que permite a comunicação. Entendemos a apreensão do simulacro da coisa, ou o sentido mesmo, como o que o sujeito da narrativa em Lispector, na impossibilidade (e também se negando a isso) de dar uma nomenclatura que fielmente a descrevesse, chamou de it: “It é elemento puro. É material do instante do tempo. Não estou coisificando nada: estou tendo o verdadeiro parto do it. Sinto-me tonta como quem vai nascer” ( LISPECTOR, 1998b, p. 34LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.). Há, nesse trecho, uma negação da ontologização apesar de, em vários outros, buscar-se a coisa, isso se dá por meio da interface discursiva. A personagem principal usa de metalinguagem para discorrer sobre a emergência do sentido, sobre os momentos de suspensão na discursivização entre uma palavra e outra. “[...] em Água viva, o que constitui eminentemente um evento é a própria ocorrência da ‘próxima frase’: a maravilha de sua vinda, iminente (ameaçante) e todavia inesperada” ( PRADO JÚNIOR, 2015, p. 22PRADO JÚNIOR, P. W. O impronunciável: notas sobre um fracasso sublime. Remate de males, Campinas, n. 9, p. 21-29. 2015. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8636558/4277. Acesso em: 12 dez. 2020.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
). O sujeito da enunciação em Lispector prolonga o tempo, fazendo-o o seu tempo subjetivo, no qual o sentido vai sendo costurado e gestado em uma placenta que o modela.

Referências

  • BARROS, M. L. P. Fragmentação e memória. CASA: Cadernos de Semiótica Aplicada, Araraquara, v. 12, n. 1, p. 137-158, 2014. Disponível em: https://doi.org/10.21709/casa.v12i1.7121 Acesso em: 29 dez. 2020.
    » https://doi.org/10.21709/casa.v12i1.7121» https://doi.org/10.21709/casa.v12i1.7121
  • BARTHES, R. Aula. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1989.
  • FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 55. ed. Rio de Janeiro: São Paulo: Paz e Terra, 2017.
  • GOTLIB, N. Clarice, uma vida que se conta. 3. ed. São Paulo: Ática, 1995.
  • GREIMAS, A. J. Sobre o sentido II: ensaios semióticos. Tradução: Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Nankin: Edusp, 2014.
  • GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. Tradução: Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Cultrix, 1983.
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  • LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.
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  • MOREIRA, F. et al. O que dizer da Paixão? A ampliação do sentido em G. H., de Lispector. O eixo e a roda, Belo Horizonte, v. 28, n. 3, p. 223-238, 2019. Disponível em: http://dx.doi.org/10.17851/2358-9787.28.3.223-238 Acesso em: 20 dez. 2020.
    » https://doi.org/10.17851/2358-9787.28.3.223-238» http://dx.doi.org/10.17851/2358-9787.28.3.223-238
  • MOREIRA, F. Transfigurando o código: a presença sensível na ressignificação da palavra em seu deslimite. 2021. 145 f. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8139/tde-24052021-191446/pt-br.php Acesso em: 5 jan. 2021.
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  • MORIN, E. Conhecimento, ignorância, mistério. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.
  • MOSER, B. Clarice, uma biografia. Tradução: José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify, 2011. 752 p.
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  • TATIT, L. A abordagem do texto. In: FIORIN, J. L. (org.). Introdução à Linguística I: objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2012. p. 187-209.
  • 1
    O presente artigo é resultado de discussões que surgiram ao longo de pesquisa acadêmica orientada no âmbito do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo, com financiamento do CNPq, e orientada pelo Prof. Dr. Ivã Carlos Lopes. Cf. Moreira (2021)MOREIRA, F. Transfigurando o código: a presença sensível na ressignificação da palavra em seu deslimite. 2021. 145 f. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8139/tde-24052021-191446/pt-br.php. Acesso em: 5 jan. 2021.
    https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
    para acesso ao trabalho com todos os seus desdobramentos.
  • 2
    Usamos a expressão em alusão ao termo usado na orelha do livro Água viva. Cf. HELENA (1998b)HELENA, L. [Orelha de livro]. In: LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b. Não paginado..
  • 3
    Documentamos ter ciência de que o livro foi escrito ao longo de anos, tendo sua primeira versão ficado pronta em 1971. À época, seu título provisório era Atrás do pensamento: monólogo com a vida. Com 151 páginas, o texto original era bem maior que a resumida versão final, Água viva, publicada em 1973. Antes da derradeira, contudo, houve uma edição intermediária ainda maior, com 185 páginas, intitulada Objeto gritante que, assim como a primeira, não foi a opção para publicação. Moser ( 2011, p. 540–541MOSER, B. Clarice, uma biografia. Tradução: José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify, 2011. 752 p.) aponta, em sua biografia da escritora, que Lispector havia desistido de publicar esse livro por achá-lo caótico. Olga Borelli a teria convencido e a auxiliado com revisões e com a estruturação dos fragmentos do manuscrito. Trechos altamente pessoais e autobiográficos também foram suprimidos. Fazemos tal adendo para certificarmos a nosso leitor que, neste estudo, não há uma perspectiva crítica genética, optando-se por outra metodologia: o paradigma analítico semiótico discursivo.
  • 4
    “Tinha de existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura – o objeto – que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência” (SEUPHOR apud LISPECTOR, 1998b, p. 7LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.). A referida citação foi transformada por Lispector em epígrafe de seu Água viva. O pintor nasceu em 1901 na Antuérpia, Bélgica, região de Flandres, bem perto da fronteira com a Holanda. Sua morte foi em 1999 em Paris, na França. Michel Seuphor era, na verdade, seu pseudônimo (anagrama de Orfeu). Seu nome verdadeiro era Fernand-Louis Berckelaers.
  • 5
    Por se tratar de destaque, mantemos o recuo e o tamanho da letra menor em algumas citações diretas apenas neste bloco de excertos, mesmo não havendo mais de três linhas, como prescreve a ABNT. Fazemos isso em função de manutenção de coerência estética para visualização dos tópicos em repetição pelos leitores.
  • 6
    “Aforia é o termo neutro da categoria tímica que se articula em euforia/disforia” ( GREIMAS; COURTÉS, 1983, p. 16GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. Tradução: Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Cultrix, 1983.).
  • 7
    Ou “força que leva adiante” ( TATIT, 2012, p. 199TATIT, L. A abordagem do texto. In: FIORIN, J. L. (org.). Introdução à Linguística I: objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2012. p. 187-209.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Mar 2021
  • Aceito
    01 Ago 2022
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