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Um olhar da análise sociointeracional do discurso entre cuidadoras e idosas institucionalizadas no cuidado durante o banho

A Look at the Sociointerational Discourse Analysis Between Caregivers and Institutionalized Older Women in Bathing Care

RESUMO

Este artigo buscou analisar os discursos de profissionais de saúde relacionados aos cuidados de idosas institucionalizadas e ligados aos estigmas do momento de banho, por meio da análise da conversa etnometodológica e ancorado na análise sociointeracional do discurso. A coleta de dados foi realizada por meio de notas de campo e gravações de momentos de interação entre cuidadoras e idosas residentes de uma instituição de longa permanência para idosos (ILPI) selecionada. O estudo apontou algumas características comuns evidenciadas pela literatura quanto aos estigmas vivenciados por idosos que vivem em ILPI, tais como: idade e abrigamento como vetores da estigmatização, repetição e confirmação do estigma e recusa do estigma pelo ser que deseja. Apesar das limitações do estudo, a autora aponta a relevância de que o estudo seja replicado em outros contextos de cuidado e de que sejam realizadas análises das interações em outros cuidados prestados a esta clientela específica de forma a propiciar uma visão ampliada acerca dessas interações e suas repercussões nos atores envolvidos.

PALAVRAS-CHAVE:
estigma social; cuidados de Enfermagem; análise da conversa etnometodológica; análise sociointeracional do discurso

ABSTRACT

Based on Ethnomethodology and Conversational Analysis, and anchored in the Sociointerational Discourse Analysis, this article sought to analyze the speeches of health professionals and their association with stigmas related to institutionalized older women at the time of bathing care. Data were collected using field notes and recordings of interaction moments between caregivers and residents of a selected Long-Term Care Facility (LTCF) for Older Adults. Corroborating the literature on the theme, the results indicate some common characteristics regarding stigmas experienced by older persons living in LTCF, such as age and shelter as vectors of stigmatization, repetition, and confirmation of stigma, as well as refusal of the stigma by the desiring being. Despite the limitations inherent to this study, further research should be replicated in other care contexts, analyzing interactions established with this population, thus providing a broader view of these interactions and their repercussions on the actors involved. In compliance with Resolution 466/2012, the project was submitted to the Research Ethics Committee and approved under Opinion no. 3,534,827, CAAE: 17143019.3.0000.5588.

KEYWORDS:
social stigma; nursing care; ethnomethodological conversation; analysis, socio-interactional discourse analysis

1 Introdução

Atualmente, o tema da interação entre profissionais de saúde e pacientes tem despertado bastante interesse tanto de profissionais quanto de formadores de recursos humanos em saúde. De forma análoga, pesquisadores de diversas áreas têm se interessado pelo tema não só pela abordagem clínica, mas também como importante fator terapêutico.

Um motivo importante para se determinar se houve uma interação efetiva ou não é o momento em que esse encontro entre profissional e paciente ocorre, bem como quais foram suas circunstâncias.

Segundo Gonçalves (2013GONÇALVES, J. C. To be or not to be that’s the question - a continuum of presence in healthcare communication. In: GONÇALVES, J. C. (Org). Presence in healthcare communication: implications for professional education. Niterói: Editora da UFF, 2013.), esse contato terapêutico se manifesta como presença, que varia de acordo com o grau de envolvimento nesse processo. A presença, nas palavras do autor, seria uma atitude, uma ação motivada pela compaixão e que tem seu início ancorado na empatia.

Toda essa preocupação denota uma inquietude e inconformidade com as relações interpessoais na saúde, geralmente classificadas como frias e impessoais. Em função disso, inúmeros movimentos que se contrapõem a essa lógica mecanicista do cuidado têm surgido, amparados pela filosofia da humanização na saúde.

Especificamente no caso do Brasil, em 2003, houve a implantação da Política Nacional de Humanização (PNH), como proposta de resposta ética, estética e política aos questionamentos surgidos frente à crescente burocratização, mecanização e racionalização do cuidado em saúde. (CASATE; CORRÊA, 2005CASATE, J. C; CORRÊA, A. K. Humanização do atendimento em saúde: conhecimento veiculado na literatura brasileira de enfermagem. Revista Latino-americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 13, n. 1, p. 105-111, 2005.)

A enfermagem, enquanto profissão da saúde, traz em seu bojo todas essas questões pertinentes à interação entre seus profissionais e pacientes. O objeto de trabalho da enfermagem é o cuidado e, nesse sentido, inúmeros desdobramentos podem ocorrer quando a interação se manifesta como ponte para esse momento. Um desses desdobramentos possíveis nesse instante delicado e decisivo de encontro pode se revelar como a exteriorização de estigmas, preconceitos e discriminação por parte do profissional para com o indivíduo que recebe seus cuidados.

O estigma é um fenômeno social que possui uma história de construção empírica e documental e cuja estruturação moderna mais recorrente e influente - empregada notadamente na maioria das pesquisas sociológicas - tem suas raízes no livro de Erving Goffman (1988GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988.) Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Contados quase 60 anos desde sua primeira publicação, em 1963, o relato de Goffman sobre o estigma provou-se um conceito extremamente produtivo, aprofundando e dando dimensão à pesquisa sobre estigma social e seus efeitos.

Em seu texto, Goffman resgata o surgimento do conceito na sociedade ocidental, indicando que o estigma originalmente se referia a:

Sinais corpóreos com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor: uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que deveria ser evitada, especialmente em lugares públicos. (GOFFMAN, 1988GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988., p. 11)

O indivíduo que carrega o sinal torna-se alvo, identificado pelos demais membros do grupo como uma pessoa indesejável, de nível inferior, ou até mesmo inerentemente má e perigosa para a sociedade. Ressalta-se ainda que essa marca funciona como um previsor pretensamente seguro de comportamento inadequado do indivíduo marcado, gerando expectativas negativas nos demais e antecipando respostas de esquiva ou contenção do estigmatizado. (SCHILLING; MIYASHIRO, 2008SCHILLING, F.; MIYASHIRO, S. G. Como incluir? O debate sobre o preconceito e o estigma na atualidade. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 34, n. 2, p. 243-254, 2008. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3jcFoVr . Acesso em: 19 jul. 2020.
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)

Em sua utilização contemporânea, o estigma torna-se evidente em qualquer fenômeno coletivo pelo qual uma característica ou detalhe de um indivíduo pode ser apontado ou tornado relevante pelo grupo, gerando interpretações de que este é um sinal externo que aponta para uma falha oculta, um indicador de problemas orgânicos mais sérios de fragilidade ou degeneração moral. Em qualquer das hipóteses, o evento de desvelamento da marca gera no indivíduo aflição, vergonha, ansiedade ou desejo de fuga. (JANSEN; SANDSTRÖM, 2015JANSEN, T.; SANDSTRÖM, J. Normal deviants and Erving Goffman: extending the literature on organizational stigma. Nordic Journal of Working Life Studies, Aarhus, v. 5, n. 4, p. 125-142, 2015. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3qnVcGC . Acesso em: 19 jul. 2020.
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; SCHILLING; MIYASHIRO, 2008SCHILLING, F.; MIYASHIRO, S. G. Como incluir? O debate sobre o preconceito e o estigma na atualidade. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 34, n. 2, p. 243-254, 2008. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3jcFoVr . Acesso em: 19 jul. 2020.
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)

Tyler e Slater (2018TYLER, I.; SLATER, T. Rethinking the sociology of stigma. The Sociological Review Monographs, Hoboken, v. 66, n. 4, p. 721-743, 2018. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3h8hjfM . Acesso em: 4 jul. 2020.
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) resgatam de Goffman uma perspectiva de controle social formal exercida pelo estigma, na qual as marcas e traços identificáveis não servem mais ao grupo para isolar os indesejáveis, mas sim como formas de exercício de poder. Os autores observam que, desde meados do século XX, os cientistas sociais se acostumaram a pensar sobre o estigma dentro de uma estrutura liberal, como um problema de normas sociais que podem ser desafiadas e atenuadas por meio de ações benevolentes ou compensatórias aos estigmatizados. De forma complementar, também são observadas ações que se concentram em “educar” as pessoas sobre determinadas condições estigmatizadas ou então em, de igual modo, educar os estigmatizados para que possam melhor gerenciar sua diferença estigmatizada. Entretanto, essas ações frequentemente negligenciam as questões estruturais que mantêm o estigma e deixam de lado sua função social e política. Por meio delas, o estigma é instrumentalizado como forma de solidificação da estratificação social que serve apenas a alguns grupos de elite ou minoritários.

Para Goffman (1988GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988.), existem três categorias de estigma: abominações do corpo (deformidades físicas), problemas de caráter individual (transtornos mentais/demência) e estigma tribal (participação em grupos). Cada uma dessas categorias de estigma é relevante e potencialmente aplicável aos adultos mais velhos, já que os sinais de envelhecimento físico são considerados problemas ou percebidos de maneira negativa na cultura atual, que privilegia o corpo jovem. Como exemplo de comportamento estigmatizado mais recorrente entre pessoas mais velhas, os pequenos lapsos de memória - que não são necessariamente patologicamente significativos em idosos - são vistos como sinais para um diagnóstico de demência. (CHASTEEN, 2015CHASTEEN, A. L. Age Stereotypes and age stigma: connections to research on subjective aging. Annual Review of Gerontology & Geriatrics, New York, v. 35, n 1, p. 99-119, 2015. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3j9YM5y . Acesso em: 20 jul. 2020.
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)

Chasteen (2015CHASTEEN, A. L. Age Stereotypes and age stigma: connections to research on subjective aging. Annual Review of Gerontology & Geriatrics, New York, v. 35, n 1, p. 99-119, 2015. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3j9YM5y . Acesso em: 20 jul. 2020.
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) observa que, assim como em outros grupos estigmatizados, o preconceito que os idosos enfrentam tem origem nos estereótipos aplicados ao seu grupo. Dentre os vários estereótipos afetos à velhice, duas dimensões principais se destacam na atribuição superficial das marcas e traços dos adultos mais velhos: a qualidade de afabilidade ou calor humano (por exemplo, se são considerados de boa índole, amigáveis, disponíveis para o contato) e a qualidade de competência (por exemplo, se são considerados inteligentes e confiantes na execução de tarefas físicas e intelectuais). Os grupos de pessoas avaliadas dentro dessas dimensões podem ser percebidos como possuindo ambas as qualidades, não tendo nenhuma das qualidades ou possuindo uma, mas não a outra. A autora indica que, em pesquisas sobre o tema, os idosos são geralmente considerados como detentores de pouco poder na sociedade e como pouco competitivos em relação a outros grupos na disputa por recursos; como resultado, eles são vistos como muito afáveis, porém pouco competentes.

Considerando-se que pouco se discute sobre esse tema na formação dos profissionais de saúde, torna-se primordial trazer essa discussão à tona para suscitar reflexões que propiciem aos profissionais irem ao encontro de um cuidado mais humanizado, crítico e reflexivo, para além da mera execução de tarefas. Sobretudo quando esse cuidado se relaciona diretamente com o corpo do outro, é necessário que o profissional se revista de uma postura ética, respeitosa e humana que lhe permita interagir de forma a gerar a confiança e a reciprocidade no indivíduo cuidado.

Sabe-se que inúmeros fatores interagem e podem ser determinantes no processo saúde-doença, não só os físicos e biológicos, mas também os sociais e psicológicos. Dessa forma, justifica-se esta investigação pela necessidade de inserir temas relacionados à interação e mitigação de estigmas na formação de profissionais de saúde, em consonância com as demandas e recomendações atuais dos principais organismos de saúde mundiais. Desse modo, o objetivo deste estudo foi analisar, por meio da análise da conversa etnometodológica e da análise sociointeracional do Discurso, os discursos ligados aos estigmas no momento do banho de profissionais de saúde atuantes nos cuidados de idosas institucionalizadas.

No contexto de interface entre a humanização da assistência de enfermagem e a linguística aplicada, as perguntas de pesquisa que orientaram este trabalho foram: como se dão as interações entre os profissionais e as idosas institucionalizadas no contexto do banho? Como emergem os estigmas na interação? Como são reflexivamente construídas relações de poder e as diferenças culturais nessas situações?

Dessa forma, espera-se que esse estudo possa contribuir para um melhor entendimento sobre as relações de poder e a construção das identidades nas instituições de longa permanência para idosos (ILPI). Com base no estudo realizado, busca-se trazer reflexões aos profissionais de saúde em formação sobre melhores estratégias de abordagem de pacientes estigmatizados durante a realização de cuidados de enfermagem.

2 Procedimentos metodológicos

Esta pesquisa se caracterizou por ser qualitativa e explicativa, com desenvolvimento baseado na aplicação da análise da conversa etnometodológica (ACE) (LODER; JUNG, 2013LODER, L. L.; JUNG, N. M. (Org.). Análise de fala-em-interação institucional: a perspectiva da Análise da Conversa Etnometodológica. Campinas: Mercado de Letras, 2013.) como subsídio para a análise sociointeracional do discurso (ASD). Foi utilizado o modelo Jefferson de transcrição (MJT) para compilação dos dados obtidos através de gravações em áudio na ACE e posterior análise pela ASD.

Para o desenvolvimento do presente trabalho, o instrumentário da pesquisa qualitativa contribuiu para a análise das interações das cuidadoras e idosas residentes da ILPI pesquisada, uma vez que o trabalho visava observar, de forma não controlada, as ações humanas na realidade social. Para tanto, foi utilizada inicialmente a gravação em áudio dos eventos a serem analisados. Paralelamente, notas de campo foram preenchidas com o intuito de registrar impressões não captáveis pelo gravador, tais como gestos e expressões faciais.

Foram analisados seis momentos de interação entre duas idosas e duas cuidadoras durante a realização do banho com auxílio.

Com base nos pressupostos metodológicos para aplicação da ACE, o grupo foi composto por cuidadoras e um grupo de idosas da ILPI estudada. Para se chegar aos sujeitos desta investigação, partiu-se do registro funcional dos cuidadores da ILPI selecionada e do prontuário das idosas.

Os critérios de inclusão das cuidadoras para participação nesta pesquisa foram: estar vinculada à instituição selecionada e desenvolver cuidados básicos de higiene aos residentes. Como critérios de inclusão das idosas na amostra deste estudo era necessário: ser residente da instituição selecionada, possuir condição clínica compatível com o banho de aspersão e possuir capacidades comunicacionais preservadas.

Na medida em que os sujeitos atendiam aos critérios de inclusão, foi adotado o seguinte procedimento com as cuidadoras: encaminhamento de uma carta-convite com explicação sobre o desenvolvimento do estudo e apresentação da aplicação da ACE, orientando sobre o método para coleta de dados e as etapas envolvidas no processo. Juntamente com a carta-convite, também foi encaminhado um termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). No caso das idosas, o convite foi realizado pessoalmente, bem como a leitura do TCLE. Para as idosas que concordaram em participar, mas não conseguiram assinar o TCLE por questões motoras, a representante legal da ILPI procedeu à assinatura como responsável.

O interesse na realização deste estudo surgiu ao longo do estágio supervisionado em saúde do idoso do curso técnico em enfermagem, momento em que os estagiários perfazem um total de 60 horas de imersão prática em campo, vivenciando as situações cotidianas e aprendendo o cuidado para com o idoso na rotina da instituição. O estágio é realizado em uma entidade filantrópica que abriga cerca de 70 idosos residentes e única instituição no município do estudo com essa natureza de assistência.

A instituição possui 53 funcionários, dos quais 35 integram a equipe de saúde. A maior parte da equipe de saúde é constituída pelos cuidadores, em número de 20, responsáveis pelos cuidados de baixa complexidade, como higiene e auxílio à alimentação.

Dentre os cuidados desenvolvidos no âmbito do estágio prático supervisionado, um dos mais comuns é o banho. Na percepção da enfermagem, o banho é um importante momento de cuidado, uma vez que permite uma inspeção fiel das condições cutâneas, momento em que podem ser identificados inúmeros problemas e/ou condições patológicas até então desapercebidas. Além disso, o banho permite um momento de muita intimidade, o que favorece a interação entre o profissional e o idoso cuidado.

É nesse contexto de ensino prático descrito que essa pesquisa se desenvolveu. De abril a dezembro de 2016 foram acompanhados grupos de estagiários nessa unidade de saúde no turno da manhã. Nesse período, o grupo era responsável, sob supervisão da pesquisadora, pelos cuidados de enfermagem de baixa complexidade prestados às idosas. Dentre esses cuidados, destacamos o banho realizado em idosas que necessitavam de auxílio, o qual era acompanhado pela pesquisadora. Como o vestiário feminino se constituía em um espaço amplo, formado por quatro chuveiros, separados em dois pares por uma sala onde as idosas eram vestidas e acomodadas em suas cadeiras de rodas. Simultaneamente, quatro banhos eram realizados, dois por alunas e dois por cuidadoras, permitindo, portanto, que o banho executado pelas cuidadoras fosse observado atentamente.

Neste estudo foram utilizadas as notas de campo como forma de registrar informações não evidenciadas nas transcrições, como: a disposição dos participantes no interior da sala onde aconteciam os banhos; a descrição do ambiente institucional; e a descrição do evento em si. É importante que se ressalte que essas informações, quando registradas em notas de campo a partir da perspectiva do pesquisador-observador, complementam o conteúdo das gravações. Percebe-se assim que a escrita das notas de campo é um processo fluido e em aberto, no qual se registra mais do que observações. Emerson, Fretz e Shaw (1995EMERSON, R. M.; FRETZ, R. I.; SHAW, L. L. Writing ethnografic fieldnotes. Chicago: The University of Chicago Press, 1995. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2TWd3br . Acesso em: 3 set. 2019.
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) dizem que o pesquisador, através de suas escolhas de escrita, concretiza narrativas, transmitindo suas percepções e compreensões para futuros leitores que não possuem contato com essas vidas e histórias, essas pessoas, esses eventos e fenômenos. Ao escrever uma nota de campo, a escrita se constitui também como um processo interpretativo, um trabalho que muitas vezes é invisível devido à sua intimidade e individualidade, mas que cria um mundo em suas páginas rascunhadas e que dará, no fim das contas, o formato da pesquisa finalizada. O início do processo de análise deve se dar dentro do próprio ambiente pesquisado, no momento da geração dos dados. (ERICKSON, 1988ERICKSON, F. Ethnographic description in Sociolinguistics. Berlin: Walter de Gruyter, 1988.)

O autor também aponta que o pesquisador, como observador dos participantes, deve reler as notas de campo e escutar as gravações como estratégia para decidir qual próximo passo tomar para a geração de mais dados. Essa estratégia também assume relevância no sentido de que pode ser usada como uma forma de aumentar a validade do estudo, adotando-se, conjuntamente, outras estratégias que façam interface com a observação do pesquisador e propiciem uma melhor compreensão do objeto de pesquisa, construção de teorias e teste de hipóteses. (DEWALT; DEWALT, 2002DEWALT, K. M.; DEWALT, B. R. Participant Observation: a guide for fieldworkers. Walnut Creek: Altamira Press, 2002.)

Spradley (1980SPRADLEY, J. P. Participant observation. New York: Holt, Rinehart & Winston, 1980.) descreve os papéis assumidos pelo observador de acordo com a sua participação. No caso do estudo desenvolvido, foi assumida a posição de participantes passivos, pois a meta principal foi gerar dados sem participar da execução do cuidado (banho). Em cumprimento à Resolução 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2012BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 466/2012: diretrizes e normas regulamentadoras sobre pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília, DF: Conselho Nacional de Saúde, 2012. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3xULzBU . Acesso em: 2 mar. 2019.
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), o projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da instituição-sede desta pesquisa e foi aprovado pelo Parecer 3.534.827.

3 O banho, os conflitos e o estigma

Na primeira cena analisada participaram duas personagens: Lúcia (cuidadora) e Maria (idosa). Lúcia tem 43 anos, é casada, tem ensino médio completo e trabalha na ILPI há quatro anos, enquanto Maria tem 83 anos, é viúva, se movimenta com cadeira de rodas e reside na ILPI há 12 anos. Por questões éticas, os nomes das personagens foram trocados.

Na primeira cena (Excertos, 1, 2 e 3), a cena se inicia com Lúcia tentando puxar as mangas da blusa de Maria a fim de prepará-la para o banho.

Excerto 1
Desse jeito; assim não dá.
Excerto 2
Deixa de ser preguiçosa e ajuda aí
Excerto 3
tá arrumando MUITA confusão hoje

O Excerto 1 sugere o início de um conflito, motivado pela resistência da idosa em participar ativamente no momento do banho, conforme solicitação da cuidadora. Embora a idosa acene positivamente com a cabeça, indicando que ajudará, ela ao mesmo tempo apresenta resistência ao enunciar duas vezes “não” (linhas 21 e 23), além de não realizar o movimento solicitado pela cuidadora, em algo que parece ser uma desobediência intencional, confirmada mais à frente no decorrer da interação.

Observa-se também a diminuição ou recategorização do sujeito por meio da infantilização da idosa pela cuidadora que utiliza o pedido diminutivo “pode levantar os bracinhos” (linha 19), da mesma forma que usualmente pratica-se na língua portuguesa brasileira ao se dirigir a crianças ou pessoas inválidas. Existe, portanto, um processo metacomunicativo em andamento, no qual o contexto não pode ser separado da fala. O uso de diminutivos em relação a idosa dá o enquadre de como esta relação estabelece “quem manda” e “quem obedece”; assim, a estrutura desigual da relação é algo que a cuidadora espera que seja inferido pela idosa destas escolhas na fala. (GAL, 2013GAL, S. John Gumperz’s discourse strategies. Journal of Linguistic Anthropology, Hoboken, v. 23, n. 3, p. 115-126. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/35Yq5I1 .Acesso em: 5 ago. 2019.
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) O uso do diminutivo é uma marca linguística da diferença de categoria entre a própria cuidadora e a idosa:

As relações sociais entre pessoas não estigmatizadas e pessoas estigmatizadas seguem o fluxo das primeiras. Estas relações não são igualitárias devido ao sistema de percepções das pessoas não estigmatizadas e pelo seu conjunto de categorias - as quais não as permitem prever uma pessoa estigmatizada em uma categoria comparada com a sua. (SIQUEIRA; CARDOSO JR., 2011SIQUEIRA, R.; CARDOSO JR., H. R. O conceito de estigma como processo social: uma aproximação teórica a partir da literatura norte-americana. Imagonautas, Vigo, v. 2, n. 1, p. 92-113. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/35OzYs1 . Acesso em: 5 jun. 2019.
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, p. 96)

O uso de diminutivos, na relação original entre adultos e crianças, pode ser uma marca de proteção, carinho, aconchego. Porém, também marca a assimetria de poder, ainda que dentro da esfera do carinho. O uso deste recurso interacional no contexto de cuidado de idosos pode também comportar a dimensão de conforto, mas, inevitavelmente, veiculará a mesma assimetria de poder que se verifica na relação criança-adulto, principalmente quando se observa que os abrigos de idosos são tradicionalmente locais estruturados por relações de poder que favorecem a perda da autonomia e identidade daquele que é cuidado, com tendência ao isolamento. (DUARTE, 2014DUARTE, L. M. N. O processo de institucionalização do idoso e as territorialidades: espaço como lugar? Estudos Interdisciplinares Sobre o Envelhecimento, Porto Alegre, v. 19, n. 1, p. 201-217, 2014. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2UCNn41 . Acesso em: 5 ago. 2019.
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; MELLO et al., 2013MELLO, J. G. et al. Subjetividade e institucionalização no discurso de idosas. Distúrbios da Comunicação, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 35-45, 2013. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3h22pb3 . Acesso em: 5 ago. 2019.
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)

Pode-se considerar que a infantilização da idosa é uma maneira de marcar a ascendência da cuidadora, tornando a idosa uma pessoa com menos poder e que deve obedecer à que tem mais poder. A desigualdade de poder é elemento fundamental nas trocas entre cuidadora e idosa e vetor de estigmatização, pois, como Link e Phelan (2001LINK, B. G.; PHELAN, J. C. Conceptualizing stigma. Annual Review of Sociology, New York, v. 27, p. 363-385, 2001. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3xR34CX . Acesso em: 5 jun. 2019.
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, p. 377) afirmam, “estigma existe quando elementos de rotulação, estereotipização, separação, perda de status e discriminação ocorrem simultaneamente em uma situação de poder que permite tais componentes acontecerem”. A retirada de status da idosa é o que permite o comando da cuidadora sobre ela, o que fica mais evidente na análise dos excertos expostos na sequência.

O início da reprovação e conflito surge no enunciado “não, e nem quer fazer esforço, né?” (linha 22) no qual, ao mesmo tempo, a cuidadora torna claro que a idosa não está contribuindo e também que a considera implicitamente “preguiçosa” por não querer fazer esforço (o que será tornado explícito na linha 36 do Excerto 2), caracterizando o início do movimento de imputar falhas de caráter (vontade fraca), como explicitado por Goffman (1963GOFFMAN, E. Stigma: notes on the management of spoiled identity. New York: Simon & Schuster, 1963.), na atribuição da identidade virtual à idosa.

O Excerto 2 demonstra o ápice do conflito iniciado no Excerto 1, estabelecendo uma narrativa que se inicia pela alteração para humor negativo demonstrada pela cuidadora, pelo reconhecimento da reprovação do comportamento pela idosa e pelos movimentos mútuos de retratação, apaziguamento e reforço do comportamento esperado.

As linhas 32 (“o que é isso que cê fez”) e 35 (“cê tá de brincadeira comigo hoje”) apresentam o contínuo até que a irritação da cuidadora atinja um ponto máximo na interação - “eu não tô gostando” “deixa de ser preguiçosa” (linha 36) - quando a idosa, aparentemente convencida pela agressividade e pelo tom de ameaça, passa a colaborar da forma esperada pela cuidadora. A imputação de caráter (preguiçosa) também ajuda a definir o espaço de inferioridade, dando relevo aos elementos de falta de vitalidade comumente associados à velhice em diferentes culturas. (ANDRADE, 2011ANDRADE, M. A. R. Estigma e velhice: ensaios sobre a manipulação da idade deteriorada. Revista Kairós Gerontologia, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 79-97, 2011. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3vWbLL1 . Acesso em: 5 jun. 2019.
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; FALLER; TESTON; MARCON, 2015FALLER, J. W.; TESTON, E. F.; MARCON, S. S. A velhice na percepção de idosos de diferentes nacionalidades. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 24, n. 1, p. 128-37, 2015. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3hl8PSX . Acesso em: 5 jun. 2019.
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)

A mudança interacional também fica marcada pelo uso do que Brown e Levinson (1987BROWN, P.; LEVINSON, S. C. Politeness: some universals in language usage. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.) definem como estratégias bald on record. Isso quer dizer que a cuidadora aponta o que espera da idosa de forma direta, sem minimizar a força impositiva e com pouco ou nenhum cuidado com a face alheia. O uso de verbos imperativos e o caráter de ordem e reprovação realizados neste momento também apoiam a hipótese de que o uso de diminutivos feito anteriormente poderia ser apenas uma estratégia de suavização da ordem (hedge), uma preocupação inicial com a face da idosa que tende a desaparecer junto com a paciência da cuidadora.

A observação seguinte da cuidadora é de reforço do comportamento esperado - “é assim que eu gosto” (linha 41) - iniciando o ciclo de apaziguamento e o fechamento do conflito com a afirmação pela idosa de que vai “obedecer” - “eu sou boazinha” (linha 44) - e a confirmação consequente pela cuidadora de que estes são comportamentos validados e esperados na relação entre ambas, ao enunciar que a idosa é “muito boazinha e obediente” (linha 45). Ser “boazinha” e obedecer são marcações adicionais de retirada da autonomia que reforçam a infantilização e a categorização inferior. A fragilização e submissão são características também usualmente ligadas à velhice, em decorrência do declínio físico, e socialmente compõem a “bricolagem” ou pacote que identifica o idoso, principalmente a partir da percepção dos mais jovens. (ANDRADE, 2011ANDRADE, M. A. R. Estigma e velhice: ensaios sobre a manipulação da idade deteriorada. Revista Kairós Gerontologia, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 79-97, 2011. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3vWbLL1 . Acesso em: 5 jun. 2019.
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; FERNANDES; GARCIA, 2010FERNANDES, M. G. M.; GARCIA, L. G. O sentido da velhice para homens e mulheres idosos. Saúde e Sociedade, São Paulo, v.19, n. 4, p.771-783, 2010. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2T8c0VR . Acesso em: 5 jun. 2019.
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)

Nas linhas finais da interação, a cuidadora anuncia que esta é uma tarefa que “não é fácil” (linha 46), que “é pesada” (linha 47) e para a qual precisa “fazer muito esforço” (linha 49). É possível observar, a partir da polidez comunicacional (BROWN; LEVINSON, 1987BROWN, P.; LEVINSON, S. C. Politeness: some universals in language usage. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.), que as colocações adicionais da cuidadora são uma tentativa de preservação da própria face positiva (“não sou uma megera”; “não estou te maltratando”), justificando reiteradamente que seu comportamento linguístico ríspido não é consequência de falha de caráter, mas sim das próprias exigências de suas tarefas. Pode-se supor ainda que o reforço do comportamento (“muito boazinha e obediente”) são tentativas de preservação da face negativa da idosa (“quando você me obedece, eu não preciso mandar” ou “desculpe por invadir seu espaço corporal, mas eu também fico com dor nas costas”), recompondo a relação e retirando a ameaça inicial.

Como indicado por Marcuschi (2001MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. 3. ed. São Paulo: Parábola, 2001.), toda interação implicará certo trabalho para os interlocutores, exigindo ainda uma dose de altruísmo e solidariedade. Portanto, estar em comunicação com outra pessoa já é em si um risco à imagem, uma constante ameaça à face. (GOFFMAN, 1955GOFFMAN, E. On face-work: an analysis of ritual elements in social interaction. Psychiatry: Interpersonal and Biological Processes, Abingdon, v. 18, n. 3, p. 213-231, 1955. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3gXfunk . Acesso em: 12 jun. 2019.
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) A retratação e o apaziguamento final parecem ser característicos de uma função profissional na qual o maior problema relatado é notadamente a falta de paciência, seguida pela formação insuficiente, pelo desconhecimento das necessidades do idoso e pelas questões emocionais do próprio cuidador (ARAÚJO et al., 2013ARAÚJO, J. S. et al. Perfil dos cuidadores e as dificuldades enfrentadas no cuidado ao idoso, em Ananindeua, PA. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 149-158, 2013. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3zXlkwj . Acesso em: 5 jun. 2019.
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), que entram em choque com as condições reais do trabalho e reforçam a estrutura estigmatizante para conseguir desempenhar suas tarefas.

O Excerto 3 aponta o que parece se configurar como uma nova estratégia de resistência da idosa; como demonstrado no excerto anterior, ela abandona a resistência ativa ao banho, afirmando sua obediência e o fato de ser “boazinha”. No momento atual, entretanto, ela muda o foco de si mesma para a água do banho, que destaca como estando muito fria, fato ao qual se refere reiteradamente. (linhas 53, 54, 56 e 64) Essa pode ser configurada como uma estratégia de resistência passiva, porque a idosa não assume papel agente (quando, por exemplo, se recusava a mover os braços); neste caso, a culpa é da água e da cuidadora.

A cuidadora volta a apontar uma possível má vontade da idosa, com a acusação de que ela está “arrumando confusão” e impossibilitando o próprio banho (linhas 57 e 58). A idosa parece perceber a irritação e o novo início de conflito, e tenta desarmar ou evitar as repreensões da cuidadora asseverando que não quer confusão (“não, não é isso não”), mas que sente frio (linha 59), o que pode operar também como forma de atrair a simpatia dentro de sua posição de inferioridade, buscando proteção ou cuidado. Entretanto, a posição de desamparo e de desconforto não angaria a simpatia ou a ação protetora da cuidadora, que emprega o fato como nova forma de culpar a própria idosa pelo desconforto sentido (“é normal porque você já é mais velha” - linha 61), reforçando a generalização que marca a estigmatização etária. (ANDRADE, 2011ANDRADE, M. A. R. Estigma e velhice: ensaios sobre a manipulação da idade deteriorada. Revista Kairós Gerontologia, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 79-97, 2011. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3vWbLL1 . Acesso em: 5 jun. 2019.
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; GOFFMAN, 1963GOFFMAN, E. Stigma: notes on the management of spoiled identity. New York: Simon & Schuster, 1963.; TEIXEIRA et al., 2016TEIXEIRA, S. M. O. et al. Da velhice estigmatizada à dignidade na existência madura: novas perspectivas do envelhecer na contemporaneidade. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 469-487, 2016. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3qrbFKf . Acesso em: 10 jun. 2019.
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)

O fim do excerto mostra o que parece ser a aceitação da idosa em relação à imputação que lhe foi feita durante a troca comunicativa; o “é, já sou velha” (linha 63) parece ser decorrente de sua ação de olhar para as próprias mãos como constatação visual da idade e de sua incapacidade:

Essa perspectiva negativa do envelhecer marca a sociedade contemporânea ocidental e possui como pilares de sustentação o primado estético de uma sociedade narcisista, que tem como valores a beleza do corpo, a capacidade de ser produtivo e dinâmico, a força e o novo, alimentando-se do mito da juventude inacabável. O inevitável envelhecer passa a ser vivido também como indesejável, em geral, por estar vinculado à ideia de finitude. Dessa maneira, a rejeição dos aspectos próprios da velhice recebe influência direta da visão que a sociedade e a cultura estabelecem sobre o envelhecimento e de todo o conjunto de padrões, exigências e valores que rege o mundo contemporâneo. (TEIXEIRA et al., 2016TEIXEIRA, S. M. O. et al. Da velhice estigmatizada à dignidade na existência madura: novas perspectivas do envelhecer na contemporaneidade. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 469-487, 2016. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3qrbFKf . Acesso em: 10 jun. 2019.
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, p. 477)

O gesto seguido pela afirmação verbal pode ser interpretado como concordância quanto ao seu estado de inferioridade em relação à cuidadora e como aceitação de que deve obediência e passividade em relação a quem está lhe prestando os serviços de cuidado, de modo a considerar a velhice como um estado de quem se torna progressivamente privado da capacidade de expressão ou de demandas. (CORREA, 2009CORREA, M. R. Cartografias do envelhecimento na contemporaneidade: velhice e terceira idade. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3qq4Xns . Acesso em: 14 abr. 2019.
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) Porém, a idosa mantém a estratégia de resistência através da insistência quanto à temperatura da água (linha 64) que, além de se conformar como uma observação de desconforto, pode ser considerada como forma de resistência para a qual a cuidadora ainda não possui resposta eficiente, algo sugerido pelo seu comportamento não verbal durante e ao final da interação (linhas 60 e 65). A reclamação da idosa também demarca o que é observado de forma mais abrangente nas instituições que abrigam idosos como uma falta de correspondência entre o que se espera dos cuidados profissionais e o que é efetivamente prestado. (FREITAS; NORONHA, 2010FREITAS, A. V. S.; NORONHA, C. V. Idosos em instituições de longa permanência: falando de cuidado. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 14, n. 33, p. 359-69, 2010. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3vWCDKA . Acesso em: 10 jun. 2019.
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)

A narrativa estabelecida pelos três excertos mostra o tratamento de uma idosa através do exercício de poder e autoridade de uma cuidadora. O lugar de comando é estabelecido pela inferioridade imposta a um dos membros da relação; nesse caso, a idosa que utiliza como vetor de inferiorização a idade avançada, que lhe assemelharia a uma criança ou a uma pessoa inválida.

Durante a interação, observa-se que a idosa não se conforma facilmente à categoria que lhe é imposta, com diferentes formas de resistência. Inicialmente, ela resiste fisicamente à sua inferiorização, mas, frente à reprovação e irritação da cuidadora, ela refina progressivamente a estratégia de resistência para culpar um ente externo (a temperatura da água). Ao mesmo tempo em que assume sua condição de inferioridade - em deferência à cuidadora “superior” -, a idosa encontra uma forma de manter seu lugar de decisão e agência, apontando que está sentindo frio e que isso é culpa de alguém, certamente não dela mesma. A cuidadora inferioriza a idosa para poder cumprir suas funções mais facilmente, mas a idosa também inferioriza a cuidadora, apontando que ela não faz um bom trabalho, já que nem mesmo consegue manter a água quente para o banho.

Existe, de uma forma geral, uma tentativa de enquadre pela cuidadora (“eu mando, você obedece”). O enquadre é definido como a percepção da situação que está sendo encenada - uma moldura comunicacional - compartilhada e emergente dos sentidos dos falantes, e proveniente das interações verbais e não verbais que constituem a cena. (GOFFMAN, 1986GOFFMAN, E. Frame analysis: an essay on the organization of experience. Boston, Massachusetts: Northeastern University Press, 1986. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/35QW0u7 . Acesso em: 20 jul. 2020.
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; TANNEN; WALLAT, 2002TANNEN, D.; WALLAT, C. Enquadres interativos e esquemas de conhecimento em interação: exemplos de um exame/consulta médica. In: RIBEIRO, B. T.; GARCEZ, P. M. (Org.). Sociolinguística interacional. São Paulo: Loyola, 2002. p. 153-174.) O enquadre pela cuidadora é evidente no uso de bald on record, da ameaça e diminuição da idosa, e da linguagem não verbal de cunho agressivo ou insatisfeito. Entretanto, a tentativa de enquadre não é reconhecida ou facilmente acedida pela idosa; esta apresenta, alternadamente, convergências (“eu sou boazinha”) e divergências (“não ouviu não?”), em uma procura constante por novo enquadre na interação (“você é que deveria estar me servindo”), sugerindo que é persistente nesta interação a dificuldade da cuidadora em realizar a mudança de enquadre (footing) para estabelecer uma relação harmoniosa com a idosa.

Na segunda cena analisada participaram duas personagens: Sara (cuidadora) e Marina (idosa). Sara tem 34 anos, é casada, tem ensino médio completo e trabalha na ILPI há três anos e Marina tem 74 anos, é viúva, se movimenta com auxílio e reside na ILPI há oito anos. Por questões éticas, os nomes foram trocados. A cena 2 (Excertos 4, 5 e 6) ocorre quando a cuidadora está aguardando junto com a idosa que o box de banhos seja liberado por outra paciente. Marina está calada, de olhos fechados e envolta em uma toalha.

Excerto 4
“cê acha que tem idade para novidade?”
Excerto 5
“eu não tenho amiga aqui”
Excerto 6
“ou faz corpo mole?”

A interação neste primeiro excerto marca atribuições de sentido e significado ao discurso da idosa pela cuidadora, o que surge também no próximo excerto. Na linha 10, por exemplo, a cuidadora atribui ao ato de tomar banho o sentido de repetição à fala da idosa “igual todo dia” (linha 9), sendo que a idosa marca na linha 12 (“não”) que não é disso que está falando. Ocorre aqui, portanto, um desalinhamento inicial no enquadre, quando há falha (intencional ou não) na negociação do tópico da conversação. Na linha 12, a cuidadora amplia a atribuição (“você não gosta daqui?”), generalizando as respostas da idosa para uma insatisfação com a instituição como um todo, acompanhando a pergunta por comportamento não verbal que sugere reprovação: ela para de fazer o que está fazendo e coloca as mãos na cintura.

O comportamento de atribuição de sentido denota a imposição do enquadre, continuamente repetido pela cuidadora, sugerindo que ela se recusa a explorar e a entender os sentidos e significados da idosa. A cuidadora não compreende ou ignora as pistas e os marcadores linguísticos (GOFFMAN, 1986GOFFMAN, E. Frame analysis: an essay on the organization of experience. Boston, Massachusetts: Northeastern University Press, 1986. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/35QW0u7 . Acesso em: 20 jul. 2020.
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) que apontam o enquadre proposto pela idosa (“a vida na instituição é muito monótona”), preferindo suas próprias interpretações como forma de direção da interação, deixando de considerar a idosa como portadora de personalidade, poderes e vontades individuais, uma forma de violência verificada em instituições que abrigam idosos:

[…] assinala-se a violência institucional, cuja maior expressão são os asilos de idosos, onde são comuns processos de maus-tratos, de despersonalização, de destituição de poder e vontade, de falta ou inadequação de alimentos e de assistência à saúde. (FERNANDES; GARCIA, 2010FERNANDES, M. G. M.; GARCIA, L. G. O sentido da velhice para homens e mulheres idosos. Saúde e Sociedade, São Paulo, v.19, n. 4, p.771-783, 2010. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2T8c0VR . Acesso em: 5 jun. 2019.
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, p. 780)

Ao mesmo tempo em que ignora as pistas e marcadores da idosa, a cuidadora faz uso da linguagem não verbal para exercer domínio e dar a direção da interação; o gesto de “colocar as mãos na cintura” é socialmente padronizado e marca o que pode ser considerado como início de conflito, quando a cuidadora deixa claro que começa a se incomodar com algo que pode ser interpretado como reclamação por parte da idosa.

A escalada do conflito ocorre na próxima fala da cuidadora (linha 14), quando aplica a categorização etária com inferiorização do indivíduo (“cê acha que tem idade para novidade?”), empregando a estigmatização como forma de controle e sugerindo que pessoas idosas não podem fazer coisas diferentes, de modo que aprender ou fazer coisas novas é algo para pessoas jovens, como aponta Andrade (2011ANDRADE, M. A. R. Estigma e velhice: ensaios sobre a manipulação da idade deteriorada. Revista Kairós Gerontologia, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 79-97, 2011. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3vWbLL1 . Acesso em: 5 jun. 2019.
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, p. 81): “Na sociedade em que vivemos, por vezes chamada de sociedade descartável, há o culto implacável da juventude, que condiciona cada vez mais a degradação do indivíduo segregado ao envelhecimento”.

Ao mesmo tempo, é apagado o desejo da idosa, que não teria o “direito” de desejar variedade em sua vida, o que confirma as observações de Goffman (1988GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988.) a respeito do estigma: a sociedade produz os padrões que serão aceitos e reconhecidos e estes geram as categorias de classificação dos indivíduos, moldam sua identidade e os tipos de relações sociais que serão estabelecidas com outras categorias de indivíduos. No caso da idosa, mesmo quando seu direito de desejar variedade é reconhecido, este direito é facultado apenas a partir de um conjunto de atividades “permitidas” para idosos, como o crochê (linha 16).

Neste contexto, observa-se contradição no discurso da cuidadora, já que na linha 18 ela afirma que todas as outras idosas procuram atividades para distração e que algumas são muito felizes com isso. Neste ponto, observa-se que existe uma “flexibilização” da cuidadora que gera enquadres conflitantes: por um lado, ela propõe o enquadre de que a idosa “não tem idade para novidade” e, por outro, traz o enquadre de que “todas [idosas] que estão ali procuram algo pra se distrair”. O aparente duplo vínculo (BATESON et al., 1956BATESON, G. et al. Toward a theory of schizophrenia. Behavioral Science, Hoboken, v. 1, n. 4, p. 251-264, 1956. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3gT0eHN . Acesso em: 10 jul. 2019.
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) se expressa no par mutuamente excludente de orientações: você não pode desejar novidades/você tem que procurar novas distrações. Ele demarca a significação de que os idosos precisam ocupar seu tempo com atividades novas, mas que existem apenas certas atividades que um idoso pode desejar ou realizar, sancionadas pela instituição e pelos cuidadores.

Neste excerto a cuidadora deixa o conflito de enquadre anterior e tenta negociar novo tópico (“ok, está entediada, então quer fazer o quê?”). O novo enquadre, concernente aos desejos, é aceito pela idosa, que expressa o baile como o tipo de atividade que lhe agradaria (linha 124). É notável que na aceitação do novo enquadre a idosa ignora o tom de descrença (“muito bem/tá entediada/já vi tudo”) e a marcação etária irônica (“essa moça”) da cuidadora na linha 122, que sugerem que o tédio seria apenas algo para os jovens e que um idoso não pode desejar atividades muito emocionantes, marcando novamente a identidade social virtual (GOFMANN, 1988) que a idosa representa para a cuidadora. Note-se que o desejo da idosa, refletido no apreço pelo baile, expressa uma saída válida para reinserção social:

Essa inserção pode ser conseguida de diversas formas. Uma delas pode ser evidenciada nos locais onde esses idosos podem se sentir à vontade, sua exposição pode ser feita sem nenhuma retração. Como locais, podem ser citados: os bailes da terceira idade, coral de idosos das igrejas, encontro periódico nas unidades básicas de saúde, universidades abertas para a terceira idade, grupo de férias do SESC, praças da cidade, entre outros. (ANDRADE, 2011ANDRADE, M. A. R. Estigma e velhice: ensaios sobre a manipulação da idade deteriorada. Revista Kairós Gerontologia, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 79-97, 2011. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3vWbLL1 . Acesso em: 5 jun. 2019.
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, p. 93)

A expressão do desejo pela idosa, entretanto, é tomada pela cuidadora como forma de trazer à tona informações privadas que circulam na instituição (“você arrumou um namorado né?” - linhas 125 e 127) e não como uma atividade de execução possível ou como um desejo reconhecível, denotando novo conflito de enquadres, já que a cuidadora opera agora no enquadre da “fofoca”, enquanto a idosa se mantém no enquadre conversacional, sem alteração concomitante de esquema. Os esquemas são estruturas de conhecimento que se baseiam em experiências anteriormente vividas no mundo e aplicadas em situações análogas no presente. (TANNEN; WALLAT, 2002TANNEN, D.; WALLAT, C. Enquadres interativos e esquemas de conhecimento em interação: exemplos de um exame/consulta médica. In: RIBEIRO, B. T.; GARCEZ, P. M. (Org.). Sociolinguística interacional. São Paulo: Loyola, 2002. p. 153-174.) A resistência ao novo enquadre surge quando a idosa se mantém no esquema de conversa sobre os próprios sentimentos, ao declarar que não tem amigas na instituição, não adotando um esquema que apresente convergência no enquadre da fofoca.

O descompasso na interação é caracterizado pelo conflito constante de enquadres ao longo do excerto, com alternância rápida de tópicos pela cuidadora, sem espaço para desenvolvimento pela idosa. Através da atribuição e da generalização de sentido, a cuidadora interpreta as falas da idosa de maneira a distorcer ou encaminhar a troca comunicativa para respostas irônicas ou com tom de irritação (linhas 12, 14, 122 e 132), propondo continuamente novos enquadres. A linha 131, por exemplo, sugere que a idosa não tem amigas (linha 128) porque não gosta de pessoa enxerida, o que é imediatamente interpretado pela cuidadora como um ataque pessoal (“agora virei enxerida”) em um misto de ironia e manutenção do conflito iniciado no excerto anterior, de modo a reenquadrar a interação como “ofensa pessoal”. O comportamento da cuidadora consiste, assim, em uma forma de bloquear a comunicação efetiva com a idosa, através do desvio de assunto, tentar “adivinhar” a intenção das declarações feitas, embutir reclamações nas respostas, entre outros recursos comunicacionais para manutenção do conflito. (SILVA; VANDENBERGHE, 2008SILVA, L. P.; VANDENBERGHE, L. A importância do treino de comunicação na terapia comportamental de casal. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 13, n. 1, p. 161-168, 2008. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3h0LpTX . Acesso em: 20 jun. 2019.
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)

A estigmatização é marcada também neste excerto através da culpabilização da idosa (“você é difícil” - linha 129), apontando a personalidade da idosa como fato de isolamento (“eu não tenho amiga aqui” - linha 128) pelas outras idosas; a linha 131 parece se constituir como defesa, ao dizer que ela é isolada porque não gosta que os outros se intrometam em sua vida, o que parece ser apoiado pela sua resposta de surpresa (“quem te falou?”) na linha 126. Assim, os traços de personalidade da idosa, como o retraimento ou desejo de ter uma vida privada, são associados com características indesejáveis - isolacionismo, arrogância, soberba - que geram um rótulo socialmente reconhecido como prejudicial, o de pessoa difícil. (LINK; PHELAN, 2001LINK, B. G.; PHELAN, J. C. Conceptualizing stigma. Annual Review of Sociology, New York, v. 27, p. 363-385, 2001. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3xR34CX . Acesso em: 5 jun. 2019.
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)

A cuidadora retoma a linha argumentativa a respeito do “namorado”, ligando o desejo do baile ao desejo da idosa interagir com seu namorado e de dançar (linha 136). A idosa confirma ambos os desejos ao afirmar que sim com a cabeça e sorrir ao mesmo tempo (linha 137), retomando a observação de Andrade (2011ANDRADE, M. A. R. Estigma e velhice: ensaios sobre a manipulação da idade deteriorada. Revista Kairós Gerontologia, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 79-97, 2011. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3vWbLL1 . Acesso em: 5 jun. 2019.
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) a respeito dos eventos sociais como forma de ressocialização do idoso. Neste ponto parece ocorrer a primeira convergência da interação, com a linguagem não verbal da idosa demonstrando partilhar e aceitar o novo enquadre proposto.

O desejo da idosa, entretanto, é novamente esvaziado pela cuidadora, que aponta o fato de a idosa não conseguir nem mesmo ficar de pé direito como uma impossibilidade de ela dançar (linha 138). É uma nova mudança de enquadre operando sobre as limitações físicas da idosa e para o qual ela adota novo esquema de defesa das próprias capacidades. A idosa, ao dizer que “dá jeito” (linha 139), parece deixar claro que a atividade do baile não se estrutura somente ou inteiramente no vigor de uma dança, na velocidade, na agilidade. Surge neste ponto, de forma mais marcada, a necessidade de interação, principalmente com o sexo oposto, em um desejo claro do reconhecimento de que a idade não impede a vontade de se relacionar, de estar junto, de ter relações sexuais, o que se observa como um tabu construído na representação social de idoso:

Na terceira idade, inconscientemente, as pessoas foram condicionadas a acreditar que não devem ou precisam continuar exercitando a sua sexualidade, porém a suspensão ou abandono da mesma pode acelerar o processo de envelhecimento e repercutir, assim, negativamente na saúde do idoso. (UCHÔA et al., 2016UCHÔA, Y. S. et al. A sexualidade sob o olhar da pessoa idosa. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia , Rio de Janeiro, v. 19, n. 6, p. 939-949, 2016. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2T6sPAj . Acesso em: 1 jul. 2019.
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, p. 946)

Ao criar paralelos entre a atividade de dançar e a ação de andar - marcando ambas como impossibilidades para a idosa (linhas 140, 141, 143) - a cuidadora expressa uma visão restrita do que seria o “baile”, utilizando da interrogação irônica (“esquisito isso”) para negar novamente que a idosa possa desejar uma vida mais rica emocionalmente, pois já estaria impossibilitada pelo seu corpo. O enquadre de incapacidade física serve também para realizar o encaixe da idosa em um modelo social esperado:

A repressão da sexualidade das pessoas idosas perpassa principalmente pela família, religião e sociedade, sendo os idosos reprimidos de seus prazeres, tendo que se conformar com um destino tedioso para se encaixar dentro de um padrão de vida que a sociedade os impôs. (UCHÔA et al., 2016UCHÔA, Y. S. et al. A sexualidade sob o olhar da pessoa idosa. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia , Rio de Janeiro, v. 19, n. 6, p. 939-949, 2016. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2T6sPAj . Acesso em: 1 jul. 2019.
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, p. 946)

Dentro do contexto da padronização imposta pela sociedade, a última afirmação da cuidadora (linha 152) pode ser interpretada de modo ambíguo; ao dizer que “o corpo envelhece, mas a alma não”, não se sabe se: (1) a cuidadora está reconhecendo que a alma (neste caso o universo emocional interno) não é restrita pelo corpo (portanto, reconhecendo finalmente os desejos da idosa); ou se (2) a cuidadora está dizendo que o corpo já não dá mais conta de satisfazer os desejos, que devem ser suprimidos com o passar dos anos.

As manobras interpretativas da cuidadora mantêm a impressão de animosidade na interação com a idosa (SILVA; VANDENBERGHE, 2008SILVA, L. P.; VANDENBERGHE, L. A importância do treino de comunicação na terapia comportamental de casal. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 13, n. 1, p. 161-168, 2008. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3h0LpTX . Acesso em: 20 jun. 2019.
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), que estrutura uma linha de defesa contra a ironia percebida (“eu não sou mentirosa” - linha 145; “eu não sou mesmo” - linha 148), que levam a cuidadora a estabelecer um duvidoso pedido de desculpas (linha 149), cuja sinceridade é questionada pelo fato de, novamente, a cuidadora culpabilizar a idosa pelo conflito: “achei que na sua idade ia entender” (linha 150), vinculando a velhice às dificuldades experimentadas na relação. (LINK; PHELAN, 2001LINK, B. G.; PHELAN, J. C. Conceptualizing stigma. Annual Review of Sociology, New York, v. 27, p. 363-385, 2001. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3xR34CX . Acesso em: 5 jun. 2019.
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)

Esta troca comunicativa denota que houve prejuízo à face de ambas, exigindo ação de reparação pela cuidadora. A primeira ação é observada na linha 147, quando a cuidadora assevera que “não disse que você é mentirosa”, afirmação que, longe de reparar a face da idosa, serve apenas como preservação da própria face da cuidadora, negando-se a admitir que pode ter ofendido a idosa. A idosa persiste na necessidade de reparação na linha 148, operando também comportamento não verbal (cruza os braços sobre o peito) para demarcar a ofensa. A cuidadora então pede desculpas literalmente na linha 149, entretanto, não opera a reparação de forma satisfatória, pois a idosa indica sua insatisfação na linha 151 (“Eu não gosto dessas conversas”).

Ao considerar os três excertos, percebe-se que existe uma linha argumentativa repetida pela cuidadora, reforçando continuamente que a idosa não teria direito a uma vida tão rica como a das pessoas mais jovens. Embora afirme que “o corpo envelhece, mas a alma não” (linha 152), a cuidadora estabelece ao longo da interação uma série de restrições tanto para o “corpo” como para a “alma” da idosa, negando os seus direitos de sentir (a idosa não pode se entediar, desejar novidades ou ter uma vida privada) e seus direitos de fazer (a idosa não pode andar, dançar ou namorar). A linha argumentativa é pontuada ainda pelo uso da ironia, pelas escolhas interpretativas restritivas e pelas atribuições de significado, diminuindo o poder da idosa e a culpabilizando pelos seus problemas ou emoções negativas.

Os constantes conflitos de enquadres observados são marcados também por choques entre os esquemas adotados pelos interlocutores. Principalmente nos Excertos 1 e 2, a impressão é a de que a idosa e a cuidadora estão conversando sobre tópicos diferentes em uma troca rápida. A cuidadora, inicialmente, propõe um enquadre de abertura de tópico, ao perguntar na linha 8 “como você está hoje, Marina?”. A idosa adota então um esquema que a permite falar sobre si mesma e seus sentimentos, mas este esquema perde validade rapidamente, já que a cuidadora muda o enquadre para insatisfação da idosa com a instituição e, logo em seguida, para a discussão a respeito do que é possível ou não fazer em certa idade. Não há negociação evidente nos tópicos de conversação, de modo que a cuidadora utiliza a rápida mudança de enquadre como forma de domínio na interação.

A incerteza a respeito do enquadre coloca a idosa em situação de busca de esquemas apropriados, mas que não conseguem sustentar um tópico por muito tempo. Percebe-se também a tentativa de resistência da idosa na interação, com estabelecimento de linhas de defesa e de manutenção de seus desejos. A idosa deixa claro que este tipo de interação com a cuidadora não lhe agrada, ao dizer que “não gosta dessas conversas” (linha 151), transparecendo também que esta é uma situação que parece se repetir com frequência na relação entre as duas, extrapolando a situação expressa nos excertos e apontando para o desconforto com interações anteriores.

O tom belicoso e irônico e a troca constante de enquadres possivelmente constituem uma estratégia comunicativa comum da cuidadora como forma de dominação na interação e de diminuição do parceiro comunicativo, o que de fato ocorre quando “[a] comunicação tende a se tornar aversiva, até que um dos parceiros passa a se esquivar dessa interação incômoda em lugar de enfrentar o problema e tentar resolvê-lo”. (SILVA; VANDENBERGHE, 2008SILVA, L. P.; VANDENBERGHE, L. A importância do treino de comunicação na terapia comportamental de casal. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 13, n. 1, p. 161-168, 2008. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3h0LpTX . Acesso em: 20 jun. 2019.
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, p. 162) Assim, a aversão e esquiva ficam claras na declaração expressa da idosa de que não gosta dessas conversas.

As duas interações são contextualizadas em uma instituição ou abrigo para idosos. Todos os excertos se referem ao momento de banho, no qual uma cuidadora auxilia na higiene de uma idosa e conversam entre si. Este contexto estabelece naturalmente uma relação de poder conflituosa, ou também de distância social, impedindo uma situação de igualdade entre os interlocutores.

Devido às condições de idade avançada, às dificuldades físicas, ao abrigamento e à necessidade de cuidado, as idosas parecem se situar como inferiores na relação, mesmo considerando que deveriam estar sendo servidas pelas cuidadoras, que estão na condição de prestadoras de serviços. Entretanto, são as cuidadoras que “mandam” nas idosas, invertendo a relação de poder esperada entre tomador e prestador de serviço.

Adicionalmente, a infantilização ou a fragilização das idosas (real ou imposta socialmente) faz com que se sintam dependentes de outras pessoas, dificultando a autonomia e a busca de realização individual na sua situação atual. O contexto também contribui para a criação e a manutenção de estigmas relacionados à idade, que surgem constantemente nos dois casos analisados.

A comunicação não verbal é rica nos dois casos, como os excertos demonstram. Maria apresenta produção de fala restrita, mas marca sua resistência ou desinteresse pela conversa através de respostas corporais, como não participar do banho, dar de ombros ou cruzar os braços. A comunicação não verbal, neste caso, aponta para uma relação de conflito entre as interlocutoras.

Marina faz uso mais intenso da fala para se expressar; neste caso, quem se destaca é a cuidadora, que parece acompanhar certo exagero de estados emocionais (ofensas pessoais) com também uma expressividade corporal excessiva e talvez teatral.

Em termos de polidez, observa-se que as cuidadoras de Maria e Marina não envidam esforços iniciais para manutenção da face das pacientes (estes surgem por demandas das idosas, ao longo das conversas), reforçando a hipótese de que a situação de abrigamento e o momento do banho colocam as idosas em desvantagem quanto ao nível de poder e distância social. Em ambos os casos, ocorrem conflitos e declarações explícitas de insatisfação com a interação.

Maria defende a própria face ao dizer que é boazinha, que vai ajudar a cuidadora, que não deseja o conflito, mas ao mesmo tempo ataca a face da funcionária ao assumir a postura de imposição a respeito da água fria, questionando a competência profissional da cuidadora. Ficam também evidentes os imperativos utilizados pela cuidadora, que impõe ordens para a idosa e torna claro que está mais preocupada com a satisfação dos próprios desejos ou com preservação da sua face do que com a verificação do que a idosa gostaria de fazer.

No caso de Marina, a idosa aponta que foi ofendida pela cuidadora quando foi acusada de mentirosa ou dissimulada a respeito de ter forças para dançar, mas não para realizar outras atividades, o que elicia o pedido de desculpas formal pela cuidadora. Embora não faça tanto uso das ordens e imperativos, a cuidadora descontextualiza as falas da idosa para simular ferimento da própria face em mais de uma situação, como quando se mostra ofendida por ter sido “acusada” de enxerida ou quando estende para si mesma, de forma negativa, a compreensão de que a idosa não gosta de estar na instituição.

As estruturas de topicalização e de enquadramento variam bastante entre as duas interações, com diferenças de poder na interação surgindo também como elemento integrador.

No caso de Maria existe pouca ou nenhuma negociação de tópicos, e a interação é caracterizada pelo conflito entre idosa e cuidadora, que parece baseado na recusa da idosa em participar ativamente do próprio momento de banho. Os três excertos versam sobre a atividade em curso, com a cuidadora dirigindo a idosa para que a ajude com sua obrigação de dar banho. O enquadramento dos tópicos é de que a atividade é insatisfatória para as duas, priorizando a diminuição da idosa que, finalmente, impõe um novo enquadre ao fim da interação, apoiando-se sobre a “água fria” como forma de resistência para retomar certo nível de agência na situação ou para marcar que o banho está sendo desagradável não apenas por sua culpa, mas por condições da própria atividade.

A interação de Marina mostra uma cuidadora que exerce rápida alternância de tópicos, também com pouca chance de negociação pela idosa, que é obrigada a rever constantemente o esquema em uso. A troca de tópicos também é seguida pelo reenquadramento constante, com divergências observadas entre a aplicação de esquemas pela idosa e pela cuidadora, que não se fixa por muito tempo em nenhum dos enquadres. A única constância no enquadramento é a recontextualização do que está sendo dito pela idosa de forma a justificar momentos em que a cuidadora se sentiria ofendida. No último excerto, este enquadre é apropriado pela idosa, que também se mostra ofendida, e recupera agência na interação ao declarar que não gosta dessas conversas.

O estigma é uma expressão da percepção de um certo grupo de pessoas a respeito de indivíduos que possuem algumas características indesejáveis. Configura-se como uma forma de gerar desacreditação de uma pessoa ou grupo e se deve a uma percepção pelo grupo maior de desvio da norma social, envolvendo uma relação entre um atributo e um estereótipo. (GOFFMAN, 1963GOFFMAN, E. Stigma: notes on the management of spoiled identity. New York: Simon & Schuster, 1963.) Isso gera sanções sociais para a pessoa rotulada como desviante, agindo como um mecanismo de controle social ao definir o que é aceitável dentro de um contexto particular.

A estigmatização pode envolver práticas prejudiciais e discriminatórias, reduzindo ou limitando o funcionamento social daqueles que são estigmatizados. (HOLM; LYBERG; SEVERINSSON, 2014HOLM, A. L.; LYBERG, A.; SEVERINSSON, E. Living with stigma: depressed elderly persons’ experiences of physical health problems. Nursing Research and Practice, v. 2014, 2014. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3h7qugr . Acesso em: 8 set. 2019.
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) A diminuição do indivíduo e a limitação de suas capacidades consistem em importantes linhas narrativas nos excertos que foram analisados, envolvendo principalmente a experiência das pacientes com sua própria idade e a condição de abrigamento.

4 Considerações Finais

Este trabalho teve como objetivo analisar, por meio da análise da conversa etnometodológica e com base na análise sociointeracional do discurso, os discursos ligados aos estigmas no momento do banho de profissionais de saúde que atuam no cuidado do idoso institucionalizado,

Acredita-se que o discutido nesse breve estudo possibilite uma reflexão necessária sobre as interações diárias entre profissionais de saúde e idosos institucionalizados, que nem sempre são harmoniosas e são capazes de reforçar o estigma para com essa população por meio de diversos dispositivos linguísticos.

O estudo apontou algumas características comuns evidenciadas pela literatura quanto aos estigmas vivenciados por idosos que vivem em ILPI, expostas logo abaixo.

4.1 Idade e abrigamento como vetores de estigmatização

As pacientes analisadas confirmam duas observações comuns na literatura a respeito de estigma entre idosos. (ANDRADE, 2011ANDRADE, M. A. R. Estigma e velhice: ensaios sobre a manipulação da idade deteriorada. Revista Kairós Gerontologia, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 79-97, 2011. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3vWbLL1 . Acesso em: 5 jun. 2019.
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) A primeira nota se refere ao fato de que o simples passar dos anos carrega consigo certos preceitos e preconceitos que refletem a visão geral de uma sociedade sobre o seu estrato etário mais avançado, de modo que exista uma convenção mais ou menos estável em cada grupo sobre o que é “ser/estar velho”. (FALLER; TESTON; MARCON, 2015FALLER, J. W.; TESTON, E. F.; MARCON, S. S. A velhice na percepção de idosos de diferentes nacionalidades. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 24, n. 1, p. 128-37, 2015. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3hl8PSX . Acesso em: 5 jun. 2019.
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; TEIXEIRA et al., 2016TEIXEIRA, S. M. O. et al. Da velhice estigmatizada à dignidade na existência madura: novas perspectivas do envelhecer na contemporaneidade. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 469-487, 2016. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3qrbFKf . Acesso em: 10 jun. 2019.
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) A segunda nota se refere ao fato de que o ato de passar a ser abrigado - tornar-se membro de um “asilo” ou casa de repouso - também traz como consequência imediata uma nova camada de convenções a respeito das capacidades de autocuidado daqueles que ali se encontram. (MELLO et al., 2013MELLO, J. G. et al. Subjetividade e institucionalização no discurso de idosas. Distúrbios da Comunicação, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 35-45, 2013. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3h22pb3 . Acesso em: 5 ago. 2019.
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; FREITAS; NORONHA, 2010FREITAS, A. V. S.; NORONHA, C. V. Idosos em instituições de longa permanência: falando de cuidado. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 14, n. 33, p. 359-69, 2010. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3vWCDKA . Acesso em: 10 jun. 2019.
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)

As pessoas idosas que passam a viver em tais instituições são inicialmente confrontadas com a tarefa de se adaptarem às mudanças na capacidade física e às alterações que ocorrem para pertencer a este novo ambiente social, lidando com o estigma associado aos “lares para idosos”. O estigma é de amplo conhecimento e, por este motivo, muitas pessoas procuram adiar o máximo possível a mudança para um abrigo, pois aceitá-la implicaria uma falha de caráter: admitir que não é mais capaz de cuidar de si mesmo. (FISHER, 1990FISHER, B. J. The stigma of relocation to a retirement facility. Journal of Aging Studies, Amsterdam, v. 4, n. 1, p. 47-59, 1990. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/35NAd6C . Acesso em: 8 set. 2019.
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)

Este tipo de “falha” surge na fala das idosas analisadas, que apontam sua incapacidade de dar conta de tarefas que faziam facilmente quando jovens. Especificamente, deve-se observar que o fato de todas precisarem de ajuda no momento íntimo do banho também é um forte demarcador desse estigma, e entra em choque com outras atividades como, por exemplo, a disposição de uma das idosas para dançar. Tal fato indica que não se sabe com certeza o quanto as idosas realmente precisam da ajuda para o banho e que esta atividade pode ser apenas um vetor da estigmatização repetido no ordenamento da instituição, naturalizando a incapacidade física de autocuidado como algo que é “normal” com a chegada da idade mais avançada. Pode-se até mesmo sugerir que esta normalização da fragilidade, viabilizada pelo banho assistido, torne-se uma forma de controle da instituição sobre os idosos, mantendo-os como pessoas sem agência, algo que parece ser reforçado pelo tratamento infantilizado dado às pacientes analisadas.

O estigma da mudança e do abrigamento é aumentado quando os amigos ou familiares se mantêm distantes, quando visitam com relutância ou apenas por caridade, ou ainda - no extremo - quando param de visitar. O idoso passa a experimentar um isolamento dos contatos sociais externos e sente-se menos desejado e valorizado como pessoa e como parte de um relacionamento. O estigma da idade recebe uma nova camada através da identificação com um grupo visto como menos competente e menos capaz. (FISHER, 1990FISHER, B. J. The stigma of relocation to a retirement facility. Journal of Aging Studies, Amsterdam, v. 4, n. 1, p. 47-59, 1990. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/35NAd6C . Acesso em: 8 set. 2019.
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)

4.2 A repetição e a confirmação do estigma

Outra observação importante nas análises é o que resulta da interação das cuidadoras com as idosas. Segundo Holm, Lyberg e Severinsson (2014HOLM, A. L.; LYBERG, A.; SEVERINSSON, E. Living with stigma: depressed elderly persons’ experiences of physical health problems. Nursing Research and Practice, v. 2014, 2014. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3h7qugr . Acesso em: 8 set. 2019.
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), enfermeiros, cuidadores e profissionais de saúde podem diminuir o estigma se considerarem com seriedade os problemas de saúde física dos idosos, aliviando assim sua dor emocional e ansiedade, o que leva à consideração de que o estigma pode ser um processo profundamente relacional. As análises dos excertos demonstram, de maneira reiterada, que as cuidadoras tendem a minimizar, questionar ou até mesmo ridicularizar as reclamações e afirmações dos idosos sobre as próprias capacidades físicas, desejos ou necessidades, repetindo rótulos referentes ao avanço da idade e pessoas abrigadas. A experiência de estigmatização de idosos pode ser um efeito negativo deste processo de rotulagem, com consequências que podem ser tão prejudiciais quanto os efeitos diretos de outras doenças, transtornos ou incapacidades.

Além disso, as pesquisas também demonstram que ser tratado como uma pessoa em quem não se pode confiar pode aumentar o sentimento de inferioridade e vergonha. A análise da interação de Marina, em especial, demonstra uma cuidadora que questiona continuamente a idosa, chegando ao ponto de gerar conflito, o que leva a idosa a se defender da acusação de “mentirosa”. Nota-se assim que existe uma grande dificuldade em superar o estigma por parte das cuidadoras. É quase impossível para aqueles que não experimentaram o estigma entender a extensão do sofrimento da pessoa idosa estigmatizada. (HOLM; LYBERG; SEVERINSSON, 2014HOLM, A. L.; LYBERG, A.; SEVERINSSON, E. Living with stigma: depressed elderly persons’ experiences of physical health problems. Nursing Research and Practice, v. 2014, 2014. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3h7qugr . Acesso em: 8 set. 2019.
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)

4.3 A recusa do estigma pelo ser que deseja

O estabelecimento do estigma decorrente da idade e do abrigamento e o reforço dos rótulos pelos cuidadores colocam em jogo uma questão de identidade, trabalhada de formas diferentes por cada idosa. Segundo Smith e Farrimond (2019SMITH, G.; FARRIMOND, H. Active ageing, emotional care and the threat of stigma: Identity management in older adults using sleeping medication long-term. Health, Thousand Oaks, v. 23, n. 3, p. 255-272, 2019. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3xTN6I8 . Acesso em: 8 set. 2019.
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), a forte ética moral do trabalho das gerações mais velhas, combinada com uma intensificação contemporânea de ideias sobre a responsabilidade individual sobre o envelhecimento, faz com que os idosos priorizem valores de autocuidado e controle. A saúde se coloca como uma arena na qual esses valores poderiam ser exibidos e seu valor comprovado através da demonstração de envelhecimento “ativo” ou “bem-sucedido”. As falas das idosas demonstram com clareza o desagrado unânime com a deterioração física (percebida ou real) que contrariam tais valores estabelecidos. Assim, o estabelecimento da identidade de “velha” e do estigma ocorrem, principalmente, pela aceitação ou não desta condição. No caso de Maria, esta parece aceitar o estigma e atuar de acordo com sua nova posição na sociedade, enquanto Marina reforça que ainda possui desejos e capacidades, isolando-se do grupo com o qual não se identifica e reafirmando que ainda não está disposta a aceitar totalmente o estigma.

Apontamos como limitação deste estudo o tamanho da amostra e a análise da interação envolvendo um único cuidado prestado, o banho. Ressaltamos a relevância da replicação deste estudo em outros contextos de cuidado e da análise das interações em outros cuidados prestados a esta clientela específica, de forma a propiciar uma visão ampliada acerca dessas interações e de suas repercussões nos envolvidos: idosos institucionalizados e profissionais de saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2020
  • Aceito
    25 Mar 2021
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