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Halley Pacheco de Oliveira: médico, mestre e amigo

Halley Pacheco de Oliveira:

médico, mestre e amigo

No último dia 22 de maio, no início da manhã, ao se inaugurar no Rio de Janeiro o 24o Congresso Brasileiro de Hematologia, deixou-nos o Prof. Halley Pacheco de Oliveira. Estava em plena atividade em seu consultório, e receberia naquele mesmo dia uma placa honorífica de seus pares.

Halley nasceu em 21/6/1925 em Belo Horizonte, mas veio ainda criança para o Rio de Janeiro. Ingressou na Faculdade Nacional de Medicina em 1942, e formou-se em 1948. Neste ano, fez a sua primeira comunicação sobre tema hematológico no Centro de Estudos do IPASE, sobre o tratamento da anemia megaloblástica com o ácido fólico, vitamina então recém-sintetizada.

Em 1949, freqüentou o Curso de Hematologia do Instituto Oswaldo Cruz, ministrado por Walter Oswaldo Cruz. Classificado em primeiro lugar junto com Pedro Clóvis Junqueira, foram ambos convidados a trabalhar como bolsistas da Seção de Hematologia Experimental do Instituto Oswaldo Cruz. Ali permaneceu até junho de 1951, desenvolvendo experimentos em cães na linha de pesquisa de indução de choque com soro antiplaquetário, que resultaram em três publicações em periódicos internacionais. A iniciação com Walter Oswaldo Cruz e Haiti Moussatché cunharam em Halley a vocação científica.

Como as atividades no Instituto Oswaldo Cruz eram realizadas à tarde, suas manhãs podiam ser dedicadas à prática clínica na Santa Casa de Misericórdia. Lá realizou trabalhos de pesquisa clínica com Clementino Fraga Filho, sobre "Anemias megaloblásticas de causa nutritiva", e com J. P. Lopes Pontes e A.L. Boavista Nery, sobre "Determinações do volume sangüíneo em doentes de cirrose hepática". Colaborou ainda em várias teses, dentre as quais destaca-se a de Fraga Filho, "Estudos sobre a Coagulação em Hepatopatias", na qual Halley foi o responsável por todos os estudos da coagulação.

Ainda em seu primeiro ano de formado, Halley prestou concurso para médico do IPASE, e lá trabalhou no Laboratório de Hematologia até 1955, quando foi convidado para o recém-criado Setor de Hematologia Clínica do Hospital dos Servidores do Estado, que era então o maior hospital da América Latina. Em pouco tempo tornou-se chefe do setor e exerceu a chefia por vinte anos. Foi um período extraordinariamente profícuo de sua carreira, em que a sua vocação acadêmica já se manifestava no exercício integrado de atividades de assistência médica, formação e pesquisa clínica. O HSE foi pioneiro na instituição da Residência Médica, e mais de duas dezenas de hematologistas de todo o país fizeram ali a sua formação. Ainda nesse período, Halley publicou cerca de 40 trabalhos científicos, duas teses de Livre Docência e nove capítulos em livros médicos. Contribuiu ainda com 145 comunicações a congressos médicos e 88 comunicações a Sociedades Científicas. Em 1967, assinou a ata de fundação do Colégio Brasileiro de Hematologia.

Culminando todo este esforço, publicou em 1977 o seu esplêndido tratado "Hematologia Clínica". Sua consagração como um nome nacional da hematologia brasileira deu-se em 1979, quando presidiu no Rio de Janeiro o Congresso Brasileiro de Hematologia. Orgulhava-se de ter sido este o único congresso brasileiro até hoje co-patrocinado pelo Colégio Brasileiro de Hematologia e pela Sociedade Brasileira de Hematologia, e manifestou-se inúmeras vezes pela unificação destas duas organizações da hematologia brasileira.

Ainda em 1977, Halley prestou concurso para Professor Assistente da Faculdade de Medicina da UFRJ. Este foi o prenúncio da nova fase de sua carreira, que teria início em 1980, ao assumir a chefia do Serviço de Hematologia do recém-inaugurado Hospital Universitário Clementino Fraga Filho. Desde então, sua carreira acadêmica seguiu em progressão inabalável: ascendeu a Professor Adjunto e a Titular através de concursos públicos; consolidou o Serviço de Hematologia; criou a Pós-Graduação em Hematologia; foi Chefe do Departartamento de Clínica Médica; formou 29 residentes; foi homenageado diversas vezes pelo corpo discente, sendo Paraninfo em 1981, e Patrono em 1992 e 1997; participou de 41 Bancas Examinadoras de concursos universitários; foi co-autor de inúmeros trabalhos publicados e apresentados em congressos pelo Serviço de Hematologia; deu início ao programa de transplantes de medula óssea, e teve papel essencial na criação do laboratório de biologia molecular e celular do Hospital Universitário.

Aposentado por compulsória em 1995, foi elevado a Professor Emérito por decisão unânime da Congregação, e foi eleito no mesmo ano Membro Titular da Academia Nacional de Medicina.

Tudo isto dá a medida do profissional e do líder que foi Halley Pacheco de Oliveira, mas não é suficiente para descrever o homem e o mestre. Creio que suas principais características eram a imensa curiosidade intelectual e um estado de permanente inquietude. Halley interessava-se por tudo: da política à história, da ciência à religião, das intrigas próprias da vida universitária às maiores realizações acadêmicas, ele queria saber de tudo e parecia entender de tudo. Era capaz de discorrer de improviso sobre a Primeira Guerra Mundial, citando batalhas e locais; sobre motores de automóveis, detalhando configurações e soluções de diferentes fabricantes; sobre modelos de aviões civis e militares; sobre técnicas fotográficas; sobre arte e artistas, uma paixão especial. Guardou da juventude o hábito de percorrer sebos no Brasil e no exterior, garimpando assim uma esplêndida coleção de tratados de hematologia.

Nos últimos anos, passou a adquirir e a deleitar-se com coleções inteiras de discos clássicos (LPs) que encontrava à venda nos sebos do Rio, formando também uma respeitável discoteca. Ainda no final do ano passado, tivemos a alegria de inaugurar no Hospital Universitário a Biblioteca Halley Pacheco de Oliveira, composta pelos tratados médicos que ele generosamente doou para as futuras gerações de hematologistas que lá formamos.

Outra marca sua era o humor refinado. Algumas frases que gostava de repetir: "a saúde é um estado de equilíbrio instável que não antecede nada de bom"; "o auto-elogio tem uma grande vantagem: é sempre sincero". Para defender o uso de uma abordagem menos agressiva no tratamento dos pacientes com mais idade, argumentava: "qual a curva de sobrevida dos indivíduos com mais de 70 anos?". Para explicar a diversidade dos linfomas a um paciente, dizia: "os linfomas são como os felinos, há desde gatinhos até tigres". Para tranqüilizar um paciente com anemia ferropriva ou perniciosa, informava: "o senhor felizmente escolheu um dos melhores pratos de nosso cardápio".

Já o mestre Halley é de conhecimento mais amplo. A disciplina no trabalho, nas rotinas hospitalares e na abordagem diagnóstica, ele ditava com o seu característico entusiasmo. A profundidade no estudo dos problemas médicos, ele impunha pelo seu próprio saber e pelo respeito aos limites do conhecimento científico. Jamais o vimos usar a sua vasta experiência, senão para ampliar o horizonte do debate, privilegiando sempre a literatura médica, da qual era compulsivo consumidor. Era um dos primeiros a se deliciar quando um dogma se desmanchava, seu espírito sempre voltado para o novo. Talvez esta característica o tenha feito compor o Serviço de Hematologia do Hospital Universitário com um grupo de jovens médicos que ajudou a formar e empenhou-se pessoalmente em selecionar ao longo de sua trajetória na UFRJ.

Como médico e mestre, Halley tocou e encantou centenas de pacientes e alunos. Aos muitos amigos, Halley deixa uma lição de simplicidade e sabedoria, e uma imensa saudade.

Nelson Spector

Prof. Adjunto

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2003
  • Data do Fascículo
    Ago 2000
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