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Hemovigilância: verificação final da qualidade da transfusão?

Hemovigilance: ultimate transfusion quality assessment?

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Hemovigilância: verificação final da qualidade da transfusão?

Hemovigilance: ultimate transfusion quality assessment?

Anna Bárbara F. C. ProiettiI; Júnia G. M. CioffiII

IPresidente da Fundação Hemominas

IIDiretora Técnica da Fundação Hemominas

Endereço para correspondência Correspondência: Anna Bárbara de Freitas Carneiro Proietti Fundação Hemominas, Fapemig, CNPq Rua Grão Pará, 882 30150-341 – Belo Horizonte-MG Tel.: (31)3280-7490 E-mail: anna.proietti@hemominas.mg.gov.br

A hemovigilância pode ser definida como um conjunto de procedimentos de verificação da cadeia transfusional1,2, que objetiva colher e processar informações dos efeitos colaterais ou inesperados resultantes da transfusão de hemocomponentes. Visa à tomada de providências que possibilitem prevenir a ocorrência e/ou a recorrência desses efeitos e pode-se considerá-la como um sistema de controle final da qualidade e segurança transfusional.3

No presente número temos um estudo de look-back relacionado aos vírus HTLV-1 e 2, realizado na Fundação Hemominas. Estes estudos revestem-se de grande importância no Brasil, onde a prevalência destes e outros vírus transmissíveis pelo sangue é notoriamente alta na população em geral.

Look-back é um procedimento que busca os receptores de transfusão de sangue suspeita de contaminação por agente(s) infeccioso(s) e os notifica sobre os possíveis riscos. Testes laboratoriais são oferecidos para verificar se houve a transmissão da infecção.4 A possível transmissão viral, notadamente do vírus da imunodeficiência humana (HIV), desperta a atenção e preocupa tanto os profissionais envolvidos com o "ciclo do sangue"quanto o público em geral. Considerando-se ainda a possibilidade de infecções emergentes, a monitorização eficiente de possíveis doenças concordantes entre doadores de sangue e receptores constituem um importante componente de um sistema de hemovigilância.3 Na investigação de infecções transfusionais, os estudos de look-back assumem considerável importância.4

Outro componente essencial da hemovigilância é a prevenção dos erros administrativos: de digitação, registro, conferência, etc (clerical errors). Estes são surpreendentemente mais comuns que as transmissões virais, sendo freqüentemente omitidos pelos serviços, não aparecendo nas estatísticas. Estes erros, que podem levar, por exemplo, à troca de sangue por vezes com incompatibilidade ABO grave ou fatal, praticamente não são reportados. No Brasil, isto é demonstrado pelo baixo número de comunicações feitas à Anvisa pelos hospitais participantes do programa de "Hospitais Sentinela".¹

Os dados da França e Inglaterra,2,5 onde os eventos transfusionais indesejados (incidentes transfusionais) são coletados de forma compulsória (França) ou de maneira voluntária (Inglaterra, através do programa SHOT - Serious Hazards of Transfusion)5 demonstram que uma taxa basal de eventos está sempre presente e que ela pode ser reduzida através da análise dos efeitos indesejáveis e da elaboração e implementação de medidas que possam preveni-los. Estes números nos mostram que a maioria dos países que não têm um sistema de hemovigilância organizado ou participativo tem um nível baixo, ou mesmo inexistente, de relato destes eventos. O sistema inglês SHOT, que tem estatística acumulada de um período de dez anos (1996-2006), mostra que o número de notificações relacionadas com transfusão incorreta de hemocomponente (erro de classificação ou troca de componentes) é superior a 70% do total das reações indesejáveis.5 Neste sistema, através da análise das notificações, são elaborados relatórios dos eventos mais comuns, seguido de orientações e padronizações para todos os serviços e profissionais de saúde do Reino Unido, com o objetivo de minimizar os erros transfusionais no país.

Desde 2000, o Brasil tem discutido o processo de hemovigilância e, a partir de 2003, a legislação brasileira tornou obrigatória a notificação das soroconversões de doadores e também a ocorrência de erros ocorridos nos procedimentos de classificação de pacientes e doadores, bem como nos testes de compatibilidade e nas transfusões em si (trocas de sangue, por exemplo), com os mesmos propósitos do grupo inglês.

Até o momento, as notificações são mínimas, com pequena geração de conhecimento nacional sobre o assunto. Parece existir um receio, por parte dos serviços e profissionais, de que a notificação possa denegrir a boa imagem dos serviços de hemoterapia e hospitais existentes no país.

A transfusão de sangue é um ato médico, com muitas variáveis que podem ser controladas. A presença de janela imunológica, a existência de inúmeras doenças emergentes cuja transmissão por transfusão ainda não está claramente identificada, e os erros humanos em todo o processo, desde a prescrição pelo médico e requisição pelo hospital, na realização de testes imunohematológicos e aplicação dos componentes, são algumas dessas variáveis.

O conhecimento das variáveis que podem levar aos efeitos indesejáveis da transfusão e o seu controle permitem gerenciamento de risco, com minimização dos eventos adversos. A qualidade do serviço deve ser medida pelo monitoramento de seu processo e ações preventivas e corretivas tomadas para evitar a ocorrência ou reincidência desses eventos. Dentro dessa concepção, as notificações passam a ser instrumento indispensável para que o país estabeleça os riscos existentes no ato transfusional e que, com o conhecimento adquirido, possa definir ações para minimizar esses riscos.

Ainda estamos muito distantes desta realidade, já evidente naqueles países que resolveram enfrentar com determinação os eventos adversos transfusionais. Somente com o reconhecimento das limitações da hemoterapia e da existência de riscos que possam ser reduzidos, mas nunca totalmente abolidos, os serviços transfusionais no Brasil conseguirão avançar na segurança transfusional.

As publicações dos índices nacionais de eventos adversos relacionados à transfusão permitirão maior conhecimento do profissional médico dos riscos deste ato. Neste contexto, os comitês transfusionais hospitalares podem e devem ter um papel fundamental. Quando estão totalmente em operação, eles permitem que as reações indesejáveis ao uso de sangue sejam notificadas, suas conseqüências avaliadas e as devidas providências em relação à sua prevenção sejam tomadas. Além disso, as indicações do uso dos hemocomponentes é revista pelo comitê transfusional, otimizando-se o uso dos mesmos. A implantação e bom funcionamento dos comitês transfusionais em hospitais, clínicas e centros de transfusão deve ser uma prioridade da administração e da direção clínica dos mesmos.

Recebido: 28/05/2008

Aceito: 30/05/2008

Avaliação: O tema abordado foi sugerido e avaliado pelo editor.

  • 1. Carneiro-Proietti ABF, Simões BJ, Fernandes MFA, et al. Haemovigilance in Brazil. Establishment and perspectives. Transfusion Today. 2005;65:7-8.
  • 2. Rouger PH, Noizat-Pirenne F, Le Pennec PY. Haemovigilance and transfusion safety in France. Vox Sang. 2000;78(suppl.2):287-89.
  • 3. Regan FA, Hewitt P, Barbara JA, et al. Prospective investigation of transfusion transmitted infection in recipients of over 20.000 units of blood. TTI Study Group. BMJ. 2000;320:403-6.
  • 4. Kleinman S, Swanson P, Allain JP, et al. Transfusion transmission of human T-lymphotropic virus types I and II: serologic and polymerase chain reaction results in recipients identified through look-back investigations. Transfusion. 1993;33(1):14-8.
  • 5. The Serious Hazards of Transfusion Steering Group (SHOT), Annual Report 2006. Acessado em 21/05/08 in /www.shotuk.org/SHOT_report_2006.pdf
  • Correspondência:
    Anna Bárbara de Freitas Carneiro Proietti
    Fundação Hemominas, Fapemig, CNPq
    Rua Grão Pará, 882
    30150-341 – Belo Horizonte-MG
    Tel.: (31)3280-7490
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Out 2008
    • Data do Fascículo
      2008
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