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Talassemias alfa

Alpha thalassemias

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Talassemias alfa

Alpha thalassemias

Rodolfo D. Cançado

Médico assistente da Disciplina de Hematologia e Oncologia. F.C.M. da Santa Casa de São Paulo

Correspondência Correspondência: Hemocentro da Santa Casa de São Paulo Rua Marquês de Itu, 579 – 3º andar 01223-001 – São Paulo-SP E-mail: rdcan@uol.com.br

A talassemia alfa constitui um grupo de doenças hereditárias, de distribuição mundial, causada pela deficiência de síntese de uma ou mais cadeias alfa da hemoglobina.

A primeira descrição clínica de talassemia alfa ocorreu em meados da década de 1950, quando Rigas (EUA) e Gouttas (Grécia), analisando indivíduos com quadro laboratorial sugestivo de talassemia beta, sobretudo pela presença de microcitose e hipocromia, observaram que alguns apresentavam concentrações normais das hemoglobinas A2 e fetal, associadas à presença de quantidades variáveis de uma hemoglobina de migração mais rápida que a hemoglobina A, que, posteriormente, foi denominada hemoglobina H (Hb H) e corresponde ao tetrâmero de globinas beta normais.1

Com o desenvolvimento das técnicas de biologia molecular, a partir da década de 1970, a estrutura genética e molecular, bem como a localização e organização dos genes alfa foram elucidadas. Demonstrou-se que, em indivíduos normais, as células diplóides contêm quatro genes codificantes para as cadeias alfa (a) da hemoglobina (a2a1/a2a1 ), presentes no cromossomo 16 (dois em cada cromossomo 16). As diferentes formas de talassemia alfa estão relacionadas à deficiência, na maioria das vezes, devido à deleção, de um, dois, três ou dos quatro genes alfa. Quando apenas um gene alfa está inativado denomina-se talassemia a+ e quando os dois genes estão afetados designa-se talassemia a0.1,2

Do ponto de vista clínico, existem três formas de talassemia alfa: traço talassêmico a (deleção de um ou dois genes a), doença da Hb H (três genes a afetados) e síndrome da hidropsia fetal (quatro genes a afetados).1,2

O traço talassêmico a+ heterozigoto (-a/aa), também denominado portador silencioso, resulta em uma forma de talassemia praticamente assintomática e com alterações laboratoriais mínimas ou ausentes, o que dificulta o seu diagnóstico por técnicas laboratoriais convencionais.

O traço talassêmico a+ homozigoto e o traço talassêmico a0 heterozigoto, que correspondem à perda de dois genes alfa, ou seja, -a/-a e --/aa, respectivamente, caracterizam-se por apresentarem anemia (Hb geralmente entre 11,0 e 13,0 g/dl), hemácias hipocrômicas e microcíticas (VCM entre 75 e 80 fl), anisopoiquilocitose discreta e pela presença de Hb Bart's (5% a 10%) ao nascimento. A Hb H formada na vida adulta é rapidamente proteolisada pela própria hemácia, o que dificulta a sua detecção.

A interação das formas a0 e a+ (--/-a) resulta na doença da Hb H. Os pacientes portadores dessa forma apresentam 25% a 50% de Hb Bart's ao nascimento e 5% a 30% de Hb H na vida adulta. Os quadros clínico e laboratorial são mais exuberantes e caracterizam-se por anemia (Hb entre 8,0 e 11,0 g/dl), microcitose (VCM entre 55 e 65 fl), hipocromia e poiquilocitose, presença de hemácias policromatófilas e de hemácias em alvo, icterícia e esplenomegalia.

A homozigose da talassemia a0 (--/--), denominada hidropsia fetal, é a forma mais grave das síndromes talassêmicas, sendo causa de morte intra-uterina ou morte logo após o nascimento. Nesses casos, a eletroforese de hemoglobina mostra a presença de quase 100% de Hb Bart's e, no sangue periférico, observa-se hipocromia, microcitose e anisopoiquilocitose intensas, além do aumento significativo da porcentagem de eritroblastos.1,2

Entre todos os defeitos genéticos das hemoglobinas, a talassemia alfa é a mais prevalente em quase todos os continentes. A freqüência de talassemia a+ é elevada em populações da Ásia e da Oceania (China, Tailândia, Indonésia, etc), e da região do Mediterrâneo (Itália e Grécia) podendo chegar a 80%. Em países do Oriente Médio (Arábia Saudita, Irã e Turquia), essa freqüência pode atingir 60%; no continente africano e em alguns países da América (Canadá, Estados Unidos, México, Caribe, Jamaica, Venezuela, Argentina), pode chegar a 40%, Quanto à talassemia a0, sua ocorrência limita-se, praticamente, às regiões do Mediterrâneo e do Sudeste Asiático.1

Apesar da elevada freqüência da talassemia a no Brasil, essa é a hemoglobinopatia menos investigada em nosso meio. Assim como na maioria das populações estudadas, a expressiva maioria dos casos relatados na população brasileira refere-se à talassemia a+ resultante da deleção de um gene a, especificamente a deleção -a3,7. Quanto à doença da Hb H, são poucos os casos relatados em nosso país.2,3

Estima-se que, na população brasileira, a prevalência do portador silencioso seja de 10% a 20% e 1% a 3% do traço alfa talassêmico. Entretanto, se considerarmos os indivíduos afro-descendentes, essa freqüência pode alcançar 20% a 25%. Isso reflete a forte influência da população africana no Brasil e, em razão do elevado grau de miscigenação racial que aqui ocorre, é alta a probabilidade de associação entre esse tipo de talassemia e outras hemoglobinas variantes, sobretudo com a hemoglobina S, que é bastante freqüente em nosso país.2,3

Estudo realizado em Salvador, Bahia, através da análise do sangue do cordão umbilical de 590 recém-nascidos, observou a presença de talassemia alfa em 114 recém-nascidos (22,2%; todos com a deleção -a3,7), dos quais 101 (19,7%) eram heterozigotos e 13 (2,5%) homozigotos.4

Tomé-Alves et al., analisando a presença concomitante de talassemia alfa em pacientes brasileiros portadores de hemoglobina S em heterozigose (Hb AS) com anemia, observaram que das 1.002 amostras de sangue analisadas, 16 (1,59%) pacientes apresentavam a interação Hb AS/talassemia alfa.5

Couto et al., estudando a associação de talassemia (deleção -a3,7) em indivíduos portadores de hemoglobinopatia C, observaram freqüência de talassemia alfa de 21,7% na forma heterozigótica e de 0,9% na forma homozigótica.6

Borges et al. observaram freqüência de talassemia alfa (deleção -a3,7) de 49,9% em indivíduos com microcitose e hipocromia sem anemia, provenientes da região Sudeste.7

Os resultados descritos nesses estudos estão em concordância com os achados de estudos brasileiros já publicados, confirmam que as hemoglobinopatias são um problema de saúde pública no Brasil e enfatizam a importância dos programas de triagem neonatal e aconselhamento genético, e da investigação da talassemia alfa em nosso país.

Uma das explicações para a diferença de freqüência da talassemia alfa nos estudos citados anteriormente está relacionada à população estudada e à metodologia empregada para o diagnóstico laboratorial dessa hemoglobinopatia.

No neonato, a Hb Bart's pode ser detectada na eletroforese de hemoglobina, em acetato de celulose, em pH alcalino (8,6 - 8,9) e sua confirmação deve ser feita em tampão fosfato, pH 6,5-7,0. No entanto, concentrações muito reduzidas dessa hemoglobina, geralmente inferiores a 1%, dificultam sua detecção. Estima-se que cerca de 50% dos heterozigotos das talassemia a+ não são detectados por esse método.1,2

No adulto, a Hb H deve ser investigada no sangue periférico, através da pesquisa de corpúsculos de inclusão, após coloração do sangue com azul brilhante de cresil, para visualização dos corpos intra-eritrocitários formados pela precipitação dos tetrâmeros de cadeias beta, e pela pesquisa de corpos de Heinz, através da coloração do sangue com violeta de metila para visualização de corpos birrefringentes, constituídos de Hb instável, no interior das hemácias.1,2

A análise cuidadosa do traçado eletroforético em pH alcalino permite a visualização de bandas de Hb H, sugerindo talassemia a. Entretanto, o hemolisado deve, preferencialmente, ser preparado em tampão fisiológico sem a presença de solventes orgânicos. Além disso, é importante que o profissional de laboratório seja informado pelo médico requisitante sobre a intenção de investigação de talassemia alfa. A Hb H é instável e se desnatura com facilidade, o que dificulta a sua visualização. A confirmação dessa suspeita deve ser realizada de forma cuidadosa e com a utilização de diferentes metodologias.2

A pesquisa da Hb H no sangue periférico é um teste relativamente simples, de baixo custo e de fácil reprodutibilidade. Presença de Hb H confirma o diagnóstico de talassemia alfa e a sua realização está indicada nos indivíduos que apresentam microcitose e hipocromia, independentemente da presença ou ausência de anemia, e concentração normal de Hb A2, após a exclusão de deficiência de ferro.2

O diagnóstico molecular de talassemia alfa está indicado para o período pré-natal, em estudos populacionais e para o diagnóstico ou confirmação diagnóstica dos casos de talassemia a+ homozigota e a0 heterozigota. O estudo molecular de talassemia alfa tem sido realizado por meio da reação em cadeia da polimerase (PCR) seguido da amplificação das regiões onde as deleções ocorrem mais freqüentemente. Porém, utilizam-se técnicas elaboradas, de custo mais elevado e mais difíceis de serem implantadas na rotina da maioria dos laboratórios clínicos.1,2

No presente fascículo da Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, Oliveira et al., alicerçados pela experiência acumulada em mais de 35 anos em pesquisa sobre hemoglobinopatias pelo Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em São José do Rio Preto, estado de São Paulo, avaliam o perfil hematológico de pacientes portadores de talassemia alfa provenientes das regiões Sudeste e Nordeste do Brasil e ressaltam a importância desse tema, não apenas pela freqüência com que essa doença genética ocorre em nosso país, mas pelas diferenças quanto ao perfil hematológico observadas entre populações de duas regiões brasileiras. Os autores enfatizam a importância da investigação diagnóstica da talassemia alfa por meio da utilização de metodologias relativamente simples, de elevada reprodutibilidade e que podem ser facilmente aplicadas aos laboratórios de rotina.

Referências Bibliográficas

1. Weatherall DJ. Thalassemia: the long road from bedside to genome. Nat Rev Genet 2004;5(8):625-631.

2. Sonati MF, Costa FF. Talassemias alfa. In: ______ Tratado de Clínica Médica. Lopes AC. Ed Roca, 2006. p1.932-1.938.

3. Sonati MF, Farah SB, Ramalho AS, et al. High prevalence of alpha-thalassemia in a black population of Brazil. Hemoglobin 1991; 15:309-311.

4. Adorno EV, Couto FD, Moura Neto JP, et al. Hemoglobinopathies in newborns from Salvador, Bahia, Northeast Brazil. Cad Saúde Pública 2005;21(1):292-298.

5. Tomé-Alves R, Marchi-Salvador DP, Orlando GM, et al. Hemoglobinas AS/Alfa talassemia - importância diagnóstica. Rev Bras Hematol Hemoter 2000;22(3):399-394.

6. Couto FD, Albuquerque AB, Adorno EV, et al. Alpha-thalassemia 2, 3,7 Kb deletion and hemoglobin AC heterozygosity in pregnancy: a molecular and hematological analysis. Clin Lab Haematol 2003; 25:29-34.

7. Borges E, Wenning MR, Kimura EM, et al. High prevalence of alpha-thalassemia among individuals with microcytosis and hypochromia without anemia. Braz J Med Biol Res 2001;34(6): 759-762.

Recebido em: 12/05/2006

Aceito: 21/05/2006

Avaliação: O tema abordado foi sugerido e avaliado pelo editor.

Conflito de interesse: não declarado

  • Correspondência:

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Jan 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2006
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