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Escola pra que(m)? - exclusão e segregação na escola brasileira

Gil, N. L. 2023. Exclusionary Rationalities in Brazilian Schooling: Decolonizing Historical Studies. Routledge

Introdução

Em que pese a profusão de dados produzidos acerca dos números e fluxos que atravessam a escola brasileira, são ainda necessários estudos que se ocupem de seu entendimento, problematização e tensionamento. O campo da História da Educação, pois, não se furtou desse esforço. Seja pelo estudo pormenorizado das estatísticas escolares (Gil, 2009Gil, N. L. (2009). A produção dos números escolares (1871-1931): contribuições para uma abordagem crítica das fontes estatísticas em História da Educação. Revista Brasileira de História, 29(58), 341-358., 2018, 2019) ou pelo questionamento dos mecanismos de opressão que são reiterados nas dinâmicas de escolarização (Veiga, 2022Veiga, C. G. (2022). Subalternidade e opressão sociorracial - questões para a historiografia da educação latino-americana. Editora Unesp.), o campo vem sinalizando para a persistência de formas de exclusão que se mantém na organização das instituições educacionais (Gil & Paulilo, 2019Paulilo, A., & Gil, N. L. (2019). Fracasso escolar: debates sobre reprovação e evasão na escola brasileira no século XX. In N. L. Gil, & A. L. G. Lima (Eds.), O rendimento da escola brasileira em questão (pp. 24-45). FEUSP. https://doi.org/10.11606/9786550130091
https://doi.org/10.11606/9786550130091...
; Paulilo, 2017). Todavia, o estabelecimento da relação entre essas formas escolares de operar a exclusão e os discursos e as representações, que animaram a implantação de um modelo educacional no Brasil, é ainda um campo a ser explorado na historiografia. É nele, pois, que a obra “Racionalidades excludentes na escolarização brasileira: descolonizando os estudos históricos”1 1 Exclusionary Rationalities in Brazilian Schooling: Decolonizing Historical Studies. , de autoria de Natália L. Gil (2023), se insere2 2 O livro é o quarto da série Routledge Research in Decolonizing Education. A coleção apresenta como proposta o tensionamento das relações entre decolonialidade e educação, promovendo portanto novas pesquisas por essa via. .

A esse respeito, já o título é bastante sugestivo. Ao assinalar para uma possível “descolonização” dos estudos históricos, a autora endossa uma série de leituras3 3 Citam-se aqui, a título exemplificador, nomes como Aníbal Quijano, Walter Mignolo, Paulo Freire e Milton Santos. que se propõem a inverter eixos de análise, matizando assim a dinâmica de colonialidade em torno da qual se estrutura a instituição escolar no Brasil. Também essa via de entendimento já vinha sendo sinalizada em suas produções pregressas, nas quais ela tem se ocupado do estudo dos mecanismos de quantificação mobilizados para o entendimento da escola brasileira e, mais recentemente, das formas de exclusão que eles reforçam ou escamoteiam. Talvez por isso, o esforço aqui anunciado seja o de matizar narrativas de universalização da escola, já que “[...] longe da consolidação da cidadania e dos direitos sociais, prevalecem práticas de classificação e hierarquização de pessoas e de distribuição de privilégios, [...] [sendo que eles] têm efeitos nas escolas [e] orquestram também a própria hierarquização de países no cenário global” (Gil, 2023, p. 5)4 4 A resenha foi feita tendo como base a paginação do livro digital, podendo haver diferenças quando consultado em seu formato físico. . Para tanto, a publicação se organiza em dez capítulos, os quais se demoram sobre aspectos históricos estruturantes da escola brasileira que mantém, cotidianamente, insistentes práticas de exclusão.

Sobretudo nos três primeiros, o esforço foi de apresentar a obra, seus objetivos e referenciais, retomar práticas e prescrições a respeito da avaliação em importantes tratados europeus da Modernidade5 5 Aqui, nomeadamente, Natália Gil retoma brevemente os seguintes tratados: “Didática Magna”, “Ratio Studiorum” e “Conduite des Écoles Chrétiennes” (Gil, 2023, p. 26-47). Nessa ocasião, conforme anunciado no capítulo anterior, a autora escapa rapidamente ao recorte temporal operado no restante do livro - a saber, entre 1918 e 2012. e, por fim, escrutinar os debates a respeito das práticas avaliativas travados no Brasil do século XX. No terceiro capítulo, destacou-se ser a escola no período uma instituição bastante rara (Gil, 2023, p. 48) e potencializadora da relação entre avaliação e moralidade (Gil, 2023, p. 51), o que reforçou seu caráter seletivo e classificatório. Nos capítulos seguintes - “Mediação e classificação de pessoas - testes a serviço da eficiência escolar”6 6 Measurement and classification of persons - tests in the service of school efficiency e “Escola graduada, homogeneização das classes e reduções no programa de ensino”7 7 Graded school, homogenization of classes, and rein the Brazilian case, children tended to be considered normal the more their behaviors and ways of thinking approached those of white people from urban elites, which constituted the social environment supposed to be adjusted and corresponded to the social group to which doctors, psychologists, and prominent educators in that period belonged to [...] ductions of teaching programs. - são problematizados os mecanismos de quantificação e medição mobilizados na institucionalização de um formato de escola, bem como a sua organização seriada e pretensamente homogeneizada. Sobretudo no quarto capítulo, são tensionadas as narrativas que elegeram uma racionalidade classificatória e evolutiva como organizadora da nação brasileira e que, consequentemente, validaram o uso de testes psicológicos no espaço escolar. Foi, pois, nesse esteio que campos como a Psicologia firmaram bases sólidas, e noções como a de “criança problema” ganharam força e potencial explicativo para o entendimento do fluxo discente na escola. Todavia, a autora ressalta que o estabelecimento de tais bases não é neutro e, especificamente “[...] no caso brasileiro, quanto mais próximos dos comportamentos e modos de pensar de uma elite branca e urbana à qual médicos, psicólogos e educadores de destaque pertenciam, mais as crianças tenderiam a ter seus comportamentos considerados normais” (Gil, 2023, p. 81, tradução nossa).

Assim sendo, a definição do que é ou não um desempenho escolar esperado conversou com um processo histórico de criação de categorias que consideraram, inclusive, padrões de comportamento, frequência e atenção (Gil, 2023, p. 87). Tratou-se, portanto, de uma operação complexa, multifacetada e disputada, em torno da qual se definiram critérios, tempos, procedimentos e métodos legítimos para promover uma organização institucional que conversasse com um parâmetro de racionalidade exportado e que, em alguma medida, desse conta da diversidade sociorracial constitutiva de um país como o Brasil. Também como parte dessa organização, a seriação e homogeneização das classes8 8 No Brasil, a implantação do modelo de escola primária graduada se deu na forma dos Grupos Escolares. Eles, no estado do Rio Grande do Sul, receberam o nome de Colégios Elementares. foi anunciada como forma de promover eficiência e qualidade educacional, condições indispensáveis para a expansão da escola e promoção da democracia (Gil, 2023, p. 93). Entretanto, paradoxalmente, tal modelo acabou por engatilhar uma série de mecanismos de exclusão. Dentre eles, a autora destacou as altas taxas de reprovação (Gil, 2023, p. 94), a padronização dos tempos de aprendizagem (Gil, 2023, p. 97) e a reificação de uma noção hegemônica de cultura nos textos e documentos curriculares (Gil, 2023, p. 106).

A análise prossegue pela via do tensionamento das indefinições a respeito de quem era o público da escola institucionalizada a partir do século XIX, e das inconsistências da noção de mérito para a promoção de uma organização social justa. A tais fatores são relacionados os mecanismos de quantificação do fluxo escolar propostos a partir da década de 1930, que foram paulatinamente tomados como centrais tanto para o estabelecimento de políticas públicas, quanto para evidenciar as falhas do sistema escolar existente. Nesse sentido, a autora é precisa ao destacar o uso das estatísticas como parte de uma configuração política complexa e organizadora de plataformas de ação dos sujeitos políticos (Gil, 2023, p. 134-138). Exemplo disso é a bastante recente inclusão de categorias sociorraciais para a organização do Censo Escolar9 9 A categoria cor somente foi incluída no Censo Escolar em 2005, após reivindicações de setores organizados da sociedade civil (Rosemberg, 2006, citado em Gil, 2023, p. 145). (Gil, 2023, p. 145), e o pouco debate historicamente gerado em torno da diferença de acesso escolar para meninos e meninas, embora estatísticas a respeito existam desde o século XIX (Gil, 2023, p. 142). Essas lacunas de entendimento no perfil discente, por sua vez, reforçaram a narrativa que colocava o talento e o mérito como definidores da performance e do fluxo escolar (Gil, 2023, p. 146).

Por fim, os três capítulos finais da obra demoram-se sobre os desdobramentos que essa forma de organizar e entender a escola tiveram para o seu funcionamento. Neste sentido, “ao longo do século XX, a quantificação constituiu um dos elementos centrais no processo histórico de definição de algumas situações como ‘normais’ e outras como ‘problemas educacionais’”10 10 [...] that is, throughout the 20th century, quantification constituted one of the central elements in the historical process that established certain situations as “normal” and others as “educational problems”. (Gil, 2023, p. 154, tradução nossa). Já que às primeiras não se destinaram mecanismos de escrutínio e regulação, tudo que lhes escapasse foi paulatinamente entendido como divergente. Dessa forma, taxas de não aprovação e evasão passaram a ser consideradas distorção de fluxo - e, portanto, questões a serem analisadas e resolvidas - a partir desse período, em lugar da até então reincidente discussão sobre pontos como a falta de vagas e prédios apropriados, ou o suposto desinteresse das famílias em matricular e manter seus filhos na escola (Gil, 2023, p. 155). Nesse ínterim, a profusão de estatísticas e interpretações fez com que tais discussões ultrapassassem as fronteiras da academia e da burocracia, alcançando veículos de comunicação diversos. Tanto na mídia quanto em periódicos científicos, o que a autora observou é que nem sempre a interpretação e o debate dos índices de reprovação foram feitos pelo recrutamento de pesquisas empíricas (Gil, 2023, p. 182). Diante disso, as explicações sobre o fenômeno se alteraram, culpando-se, com o passar das décadas, a má formação docente, os métodos e materiais de ensino, a heterogeneidade das classes e a seletividade inerente ao modelo da escola graduada (Gil, 2023, p. 194).

É, porém, em seu capítulo final - “Soluções para a não aprovação escolar e preocupações com a qualidade do ensino”11 11 Solutions for school non-approval and concern with the quality of teaching. - que Natália Gil vai listar e matizar as propostas que animaram tentativas de renovação da escola brasileira pela via da melhora de sua qualidade. Dito de outro modo, se a argumentação da obra aponta para a reprovação escolar como uma marca recorrente da exclusão escolar no Brasil, aqui ela assinala para as soluções nem sempre amparadas em análises de dados e circunstâncias que foram propostas ao longo do tempo (Gil, 2023, p. 201). Dessa forma, entre as décadas de 1950 e 2000, mas mais marcadamente a partir da década de 1980, espraiam-se os debates em torno de políticas de não retenção variadas (Gil, 2023, p. 210). No entanto, eles, via de regra, não atravessaram um ponto importante: a definição do que seria qualidade em educação, e em qual perspectiva ela seria pensada (Gil, 2023, p. 218). Assim sendo, para a autora, o problema reside na primazia de uma racionalidade técnica que se pretende universal e que, ao fazê-lo, restringe o senso de educação (Gil, 2023, p. 219, tradução nossa).

Talvez por isso a pergunta “escola pra que(m)?” - que dá o título dessa resenha - seja uma via possível de listar muito brevemente algumas das provocações que o livro suscita. Isso porque ao listar, ainda que em alguns momentos de forma panorâmica, os mecanismos de exclusão que organizaram a implantação da escola brasileira, Natália Gil faz colocações bastante precisas sobre a forma pela qual a imposição de tempos e fluxos únicos operou como forma de tornar a escola tudo, menos mais justa. Da mesma forma, assinala como a institucionalização da educação conviveu, aqui, com formas de organização que destinaram diferentes escolas para diferentes públicos, mesmo com a universalização das matrículas. Para tanto, a noção de mérito é central na argumentação proposta pela autora: ora, se a exclusão e a segregação permanecem mesmo com o aumento das taxas de matrícula, ela é recorrentemente justificada pelo entendimento de que são as habilidades individuais - e somente elas - que garantem a aprovação discente.

O livro se anuncia, seja pelo idioma ou pelo veio editorial no qual se insere, como uma leitura voltada a um público estrangeiro. Também por isso, opera arrazoados gerais das configurações históricas e faz um evidente esforço em ligar a implementação da escola brasileira ao mesmo processo em demais países. Ao leitor brasileiro, ele contribui ao sistematizar uma série de postulados que já vinham sendo alinhavados nos estudos pregressos da autora e oferecer um panorama de possibilidades analíticas e documentais para mapeamento dos dispositivos excludentes que insistem em povoar a escola de hoje. Por fim, vale destacar a potencialidade de dois movimentos firmemente estabelecidos ao longo da obra: a apresentação da História da Educação como matriz explicativa possível para a análise da configuração atual da escola fora de uma relação linear de causalidade; e o uso das estatísticas educacionais como fonte e objeto para pensar a história da escola. Sobretudo neste último, o que fica é o desenho de um uso possível das estatísticas na pesquisa histórica tanto pelo que elas falam, quanto pelo que elas deixam de falar.

Referências

  • Gil, N. L. (2009). A produção dos números escolares (1871-1931): contribuições para uma abordagem crítica das fontes estatísticas em História da Educação. Revista Brasileira de História, 29(58), 341-358.
  • Gil, N. L. (2018). Reprovação escolar no Brasil: história da configuração de um problema político-educacional. Revista Brasileira de Educação, 23, e230037.
  • Gil, N. L. (2019). Estatísticas e educação: considerações sobre a necessidade de um olhar atento. Pensar a Educação em Revista, 5(2), 1-29.
  • Paulilo, A. (2017). A compreensão histórica do fracasso escolar no Brasil. Cadernos de Pesquisa, 47(166), 1-16.
  • Paulilo, A., & Gil, N. L. (2019). Fracasso escolar: debates sobre reprovação e evasão na escola brasileira no século XX. In N. L. Gil, & A. L. G. Lima (Eds.), O rendimento da escola brasileira em questão (pp. 24-45). FEUSP. https://doi.org/10.11606/9786550130091
    » https://doi.org/10.11606/9786550130091
  • Veiga, C. G. (2022). Subalternidade e opressão sociorracial - questões para a historiografia da educação latino-americana. Editora Unesp.
  • Financiamento:

    A RBHE conta com apoio da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e do Programa Editorial (Chamada Nº 12/2022) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • Licenciamento:

    Esta resenha é publicada na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).
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    Exclusionary Rationalities in Brazilian Schooling: Decolonizing Historical Studies.
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    O livro é o quarto da série Routledge Research in Decolonizing Education. A coleção apresenta como proposta o tensionamento das relações entre decolonialidade e educação, promovendo portanto novas pesquisas por essa via.
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    Citam-se aqui, a título exemplificador, nomes como Aníbal Quijano, Walter Mignolo, Paulo Freire e Milton Santos.
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    A resenha foi feita tendo como base a paginação do livro digital, podendo haver diferenças quando consultado em seu formato físico.
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    Aqui, nomeadamente, Natália Gil retoma brevemente os seguintes tratados: “Didática Magna”, “Ratio Studiorum” e “Conduite des Écoles Chrétiennes” (Gil, 2023, p. 26-47). Nessa ocasião, conforme anunciado no capítulo anterior, a autora escapa rapidamente ao recorte temporal operado no restante do livro - a saber, entre 1918 e 2012.
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    Measurement and classification of persons - tests in the service of school efficiency
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    Graded school, homogenization of classes, and rein the Brazilian case, children tended to be considered normal the more their behaviors and ways of thinking approached those of white people from urban elites, which constituted the social environment supposed to be adjusted and corresponded to the social group to which doctors, psychologists, and prominent educators in that period belonged to [...] ductions of teaching programs.
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    No Brasil, a implantação do modelo de escola primária graduada se deu na forma dos Grupos Escolares. Eles, no estado do Rio Grande do Sul, receberam o nome de Colégios Elementares.
  • 9
    A categoria cor somente foi incluída no Censo Escolar em 2005, após reivindicações de setores organizados da sociedade civil (Rosemberg, 2006, citado em Gil, 2023, p. 145).
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    [...] that is, throughout the 20th century, quantification constituted one of the central elements in the historical process that established certain situations as “normal” and others as “educational problems”.
  • 11
    Solutions for school non-approval and concern with the quality of teaching.

Editor-associado responsável:

Raquel Discini de Campos (UFU)
E-mail: raqueldiscini@uol.com.br
https://orcid.org/0000-0001-5031-3054

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2024
  • Aceito
    25 Fev 2024
  • Publicado
    05 Mar 2024
Sociedade Brasileira de História da Educação Universidade Estadual de Maringá - Av. Colombo, 5790 - Zona 07 - Bloco 40, CEP: 87020-900, Maringá, PR, Brasil, Telefone: (44) 3011-4103 - Maringá - PR - Brazil
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