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Não é só uma estátua: notas sobre o documentário A arte de derrubar (The Art of Fallism, Aslaug Aarsæther e Gunnbjörg Gunnarsdóttir, Noruega/África do Sul, 2019)

It’s not Just a Statue: Notes on the Documentary The Art of Fallism (Aslaug Aarsæther and Gunnbjörg Gunnarsdóttir, Norway/South Africa, 2019)

A ARTE DE DERRUBAR (The Art of Fallism). Direção: Aarsæther, Aslaug; Gunnarsdóttir, Gunnbjörg. . Produção: Isme Film e Pink Rock Media. Noruega e África do Sul, 2019.

Derrubar uma estátua é derrubar um símbolo, mas não só. O símbolo que cai abre espaço para o questionamento cada vez mais incisivo de violências históricas sedimentadas, violações que por gerações eram orgulhosamente ostentadas em um pedestal. Remover um monumento é confrontar essa inércia. É iniciar, enfim, um movimento. Eis o mote do documentário A arte de derrubar (The Art of Fallism, Aslaug Aarsæther e Gunnbjörg Gunnarsdóttir, Noruega/África do Sul, 2019). O filme conta o passo a passo da efervescência contestatória desencadeada pela derrubada, em 2015, da estátua de Cecil Rhodes, colonialista britânico e antigo primeiro-ministro da Colônia do Cabo, na atual África do Sul. Erigida em 1934, a estátua de Rhodes desde então dominava a paisagem do campus da Universidade da Cidade do Cabo (UCT). A retirada do monumento foi a primeira vitória dos estudantes em seu impulso de decolonizar aquela instituição de ensino. Mas logo a agenda foi se ampliando, ou melhor, foram se “interseccionando” as pautas urgentes da contemporaneidade pós-apartheid. O pontapé decolonial atingiu de um só golpe as opressões raciais, de gênero, de classe e contra pessoas LGBTQIA+. Da derrubada do monumento a Rhodes surge um movimento de maior abrangência, o Fallism do título original da obra.

Em termos formais, o documentário recorre basicamente às entrevistas com um mosaico de ativistas envolvidos nos eventos de 2015, em geral jovens estudantes da Universidade da Cidade do Cabo, incluindo artistas da cena local. Nenhuma pessoa entrevistada é branca, e eis aí uma decisão das duas diretoras norueguesas, Aslaug Aarsæther e Gunnbjörg Gunnarsdóttir, voltadas a transferir para a tela do filme o protagonismo negro existente no desenrolar do movimento sul-africano. Três das pessoas entrevistadas se destacam ao longo da narrativa como “representantes” de vertentes em jogo, todas apresentadas nas legendas simplesmente como ativistas da Universidade da Cidade do Cabo. São elas: Mickey Moyo, uma das vozes mais entusiasmadas no filme sobre a potência e o significado do movimento; Wandile Dlamini, cuja ação coloca no centro da agenda as demandas das pessoas trans; e Phakamani Ntentema, estudante de origem pobre e periférica que enfatiza a diferença de classe como um problema tanto no cotidiano universitário quanto na experiência de mobilização.

O documentário recupera também registros filmados pelos próprios ativistas no calor da hora. Em muitos momentos, as falas dos entrevistados são acompanhadas por vídeos dos diferentes protestos realizados ao longo de 2015. Nestas imagens tremidas e apressadas, é possível ter uma dimensão do grau de engajamento nos atos, com a composição racial majoritariamente negra dos manifestantes. Os registros dão a ver a escalada de conquistas e a expansão paulatina da mobilização para outras universidades sul-africanas, até atingir a esfera nacional. Mas os vídeos igualmente testemunham a brutalidade policial contra um movimento que insistia em ir adiante na derrubada das velhas estruturas herdadas do apartheid.

Depoimentos e imagens de arquivo são organizados cinematograficamente em sequências bem delimitadas, cujas temáticas são pontuadas por intertítulos que reproduzem as hashtags de cada pauta a ser abordada. Por trás das letras, no fundo de cada um dos intertítulos, vê-se o registro de uma performance de Angel-Ho, mulher negra trans que compunha o grupo de artistas da cena local entrevistado logo no início do documentário.

Na sequência intitulada #RhodesMustFall fica narrada a demanda na origem do Fallism, a derrubada da estátua de Cecil Rhodes então existente no campus da Universidade da Cidade do Cabo, como ficou dito anteriormente. A sequência #AzaniaHouse aborda o primeiro impulso de continuidade da mobilização após a vitória da retirada da estátua do colonialista. O movimento estudantil decide seguir ocupando um espaço na universidade que havia sido transformado em base de articulação prática e debates teóricos. A sequência #PatriarchyMustFall apresenta o desdobramento da hashtag para a luta contra o patriarcado. E a sequência #FeesMustFall mostra como a pressão pela redução das taxas cobradas pelas instituições de ensino superior na África do Sul fez com que o movimento chegasse a outras universidades espalhadas pelo país. A partir daí, as pautas ganham escala nacional, algo que é abordado na sequência #OccupyParliament, sobre a tentativa de ocupação do Parlamento da África do Sul, localizado na Cidade do Cabo. Neste ponto, segundo relatam os entrevistados, os protestos se acirram e, nas imagens de arquivo, salta aos olhos o emprego da força policial na dispersão e detenção de manifestantes. A sequência #ShackVille dá novas mostras da disposição das forças de segurança para reprimir prontamente os atos. Nela se conta o episódio da retirada violenta de um barraco típico das habitações periféricas da Cidade do Cabo montado, como denúncia das desigualdades, em pleno campus universitário, ao pé de onde antes ficava a estátua de Rhodes.

Na estrutura fílmica, o alcance nacional da mobilização e o consequente acirramento da repressão funcionam como uma espécie de clímax do relato. Há aí um ponto de virada a partir do qual o documentário se volta para um balanço do ano de mobilizações do Fallism. Na sequência #TransCapture, os depoimentos e as imagens de arquivo vão delineando as discordâncias no interior do movimento. As clássicas dissidências políticas entre militantes se atualizam em chave identitária. Os limites das “seccionalidades” mostram sua força: o peso do patriarcado se faz sentir mesmo entre os ativistas; as pautas LGBTQIA+ são colocadas em segundo plano pelas lideranças; tenta-se cristalizar uma narrativa heroica sobre a experiência recente que apaga uma série de problemáticas centrais dos debates contemporâneos.

Como se sabe, a pauta da derrubada de estátuas vem tendo repercussões em diversos países nos últimos anos, questionando a monumentalização de violências históricas calcadas no racismo e no colonialismo. O documentário A arte de derrubar revela as dinâmicas específicas desse movimento na África do Sul, um país ademais marcado pelos legados do apartheid. No Brasil, as estátuas também foram alvo recente de contestações incisivas. O caso de mais repercussão talvez tenha sido a queima da estátua do bandeirante Borba Gato na Avenida Santo Amaro, em São Paulo, em julho de 2021, ação reivindicada pelo coletivo Revolução Periférica. No campo historiográfico daqui, Marcos Napolitano e Rosane Kaminski (2022NAPOLITANO, Marcos; KAMINSKI, Rosane (Orgs.). Monumentos, memória e violência. São Paulo: Letra e Voz, 2022.) organizaram uma coletânea intitulada Monumentos, memória e violência, com capítulos que abordam distintas formas de intervenção, das destrutivas até as mais mediadas, desvelando a complexidade que atravessa o tema do “bota-abaixo” das estátuas.

O assunto já tem a sua fortuna bibliográfica, isso sem mencionar as polêmicas na imprensa e nas redes sociais. A argumentação neste breve texto, porém, não quer se afastar de seu objetivo: a análise do documentário A arte de derrubar. O filme se encerra com uma sequência que faz uma elipse temporal. Ocorre um salto, nos últimos minutos do relato, para o cotidiano dos ativistas em 2019 (ano de produção do documentário). O tom nesse desfecho é de certa “volta à vida normal” daqueles que, em 2015, eram estudantes intensamente envolvidos no movimento Fallism. O engajamento deixou marcas pessoais e cansaços, como revelam os entrevistados. Mas a “normalidade” agora, apesar dos pesares, é aquela em que a estátua do colonialista está de uma vez por todas ausente do pedestal. Com tal arco narrativo, o filme parece querer sugerir um contraste entre, de um lado, os “jovens normais” que convulsionaram a África do Sul em 2015; e, de outro, os velhos “heróis” nacionais e suas façanhas sangrentas.

Não é nada banal a opção por pontuar os intertítulos com as hashtags do movimento. As palavras de ordem estão mediadas pela linguagem das redes sociais. A militância no Fallism teve seus efeitos bem reais, mas o meio digital é um fator estruturante da ação - e muitos dos vídeos de arquivo utilizados ao longo do filme provêm das redes, como fica indicado nos créditos finais. A arte de derrubar está afinado tanto com as pautas quanto com os meios do engajamento contemporâneo contra a colonialidade, o patriarcado e a heteronormatividade. Porém, é preciso dizer que, no que toca à sua forma como filme documentário, a obra acaba seguindo uma receita um tanto datada: o mosaico de cabeças falantes dos entrevistados; o uso ilustrativo das imagens de arquivo; algumas tomadas de cobertura (aquelas que inserem “intervalos” no relato); os intertítulos demarcando a progressão de cada sequência; o arco narrativo bem delineado. Se, por um lado, os ativistas são figurados como “jovens normais” em sua luta decolonial e interseccional; por outro, o documentário é bastante “normal” em termos estéticos.

A questão tem uma vasta trajetória na história da arte política. Ela sempre se renova, em diferentes conjunturas, girando em torno das relações entre teor revolucionário e forma revolucionária. As perguntas de base poderiam ser resumidas assim: Toda obra de arte revolucionária deve necessariamente romper com as fórmulas estéticas consolidadas? O emprego de modelos já conhecidos do público não seria um meio de potencializar a eficácia da comunicação da mensagem política? Não é o caso aqui de reconstituir essa história. Tampouco de cobrar de A arte de derrubar algo a que a obra não se propôs - renovar os paradigmas estéticos do cinema documentário engajado. Sua forma segue certa “norma”; suas hashtags são diretas; sua narrativa é bem demarcada; mas isso nem de longe retira o interesse da crônica do Fallism apresentada pelo filme. A história contada em A arte de derrubar deixa nítido que a queda de um monumento é apenas o primeiro passo. Nunca é só uma estátua. Derruba-se o símbolo, mas as estruturas coloniais, patriarcais e heteronormativas ainda precisam ser sacudidas, porque são renitentes e não vão ao chão assim tão facilmente.

REFERÊNCIAS

  • NAPOLITANO, Marcos; KAMINSKI, Rosane (Orgs.). Monumentos, memória e violência. São Paulo: Letra e Voz, 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2023
  • Aceito
    07 Jun 2023
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