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Meninos e meninas na rua: impasse e dissonância na construção da identidade da criança e do adolescente na República Velha

Resumos

Este artigo analisa a construção da identidade da criança e do adolescente em momento particularmente importante da história da cidade de São Paulo, qual seja, a da passagem para o século XX. Em poucas palavras, pretende confrontar a situação vivida por crianças e adolescentes das camadas economicamente menos favorecidas - quer na condição de trabalhadores, quer em relação ao abandono e à delinqüência infanto-juvenil - com as imagens construídas por diferentes discursos em torno da infância e da adolescência na sociedade brasileira.

Infância; Adolescência; Delinqüência Infanto-Juvenil; Trabalho Infanto-Juvenil


This article analyses the construction of child's and adolescent's identity in an important moment of the history of São Paulo city, the passage to this century. In a few words, it intends to confront the life of poor children and adolescents with the images constructed by different discourses about childhood and adolescence in Brazilian society.

Childhood; Adolescence; Juvenile Delinquency; Juvenile Work


Meninos e meninas na rua: impasse e dissonância na construção da identidade da criança e do adolescente na República Velha * * Este artigo foi selecionado para ser publicado pela International Union for the Scientific Study of Population - IUSSP em colaboração com a Universidad Nacional de Cordoba (Argentina) juntamente com os textos apresentados no Seminário Internacional "Changes and continuity in american demographic behaviours: the five centuries'experience" (Cordoba, 27-29 de outubro de 1998).

Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura

Universidade de São Paulo

RESUMO

Este artigo analisa a construção da identidade da criança e do adolescente em momento particularmente importante da história da cidade de São Paulo, qual seja, a da passagem para o século XX. Em poucas palavras, pretende confrontar a situação vivida por crianças e adolescentes das camadas economicamente menos favorecidas - quer na condição de trabalhadores, quer em relação ao abandono e à delinqüência infanto-juvenil - com as imagens construídas por diferentes discursos em torno da infância e da adolescência na sociedade brasileira.

Palavras-chave: Infância; Adolescência; Delinqüência Infanto-Juvenil; Trabalho Infanto-Juvenil.

ABSTRACT

This article analyses the construction of child's and adolescent's identity in an important moment of the history of São Paulo city, the passage to this century. In a few words, it intends to confront the life of poor children and adolescents with the images constructed by different discourses about childhood and adolescence in Brazilian society.

Keywords: Childhood; Adolescence; Juvenile Delinquency; Juvenile Work.

O PERIGO DA RUA: IMPASSE

Quando Gaetaninho morre tragicamente sobre os trilhos do bonde, os flagrantes de Brás, Bexiga e Barra Funda enchem-se de amargura1 1 MACHADO, António de Alcântara. Novelas Paulistanas. 3ª ed., Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1973. . A vivacidade do menino sardento esvai-se rapidamente no fim trágico que Alcântara Machado destina às suas travessuras. A partir da ausência de limites que pressupõe, a rua, identificada com o perigo em vários níveis, transforma-se, em meio à estruturação da ordem burguesa, à emergência da modernidade e à desagregação a ela inerente, em local definitivamente questionado e, em larga medida, interditado para crianças e adolescentes. A dinâmica das ruas - que não deve ser pensada somente enquanto fator de risco à moralidade, aos bons costumes, à integridade física dos transeuntes - oferece, então, ao observador, em relação à criança e ao adolescente, um rol infinito de possibilidades afeitas ao perigo: da possibilidade de atropelamento, como o que, no texto literário, vitima Gaetaninho em busca da bola numa rua do Brás, à aprendizagem e prática da mendicância, vadiagem, prostituição, delinqüência e criminalidade. No limiar deste século, Henri Robert, comentando a criminalidade infanto-juvenil na França, chama a atenção para "esta coisa terrível para a juventude que se chama a `Rua'". "A Rua", assinala -, "com as suas promiscuidades, as suas tentações, os seus espetáculos malsãos é a grande abastecedora da polícia correcional e do tribunal do juri."2 1 MACHADO, António de Alcântara. Novelas Paulistanas. 3ª ed., Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1973. . Prefaciando Oliver Twist, Charles Dickens indaga no século passado:

As ruas de Londres à meia-noite, frias, úmidas, desabrigadas; os antros sórdidos e bafientos, onde o vício se comprime e carece de espaço para virar-se; o assédio da fome e da doença; os andrajos que mal se mantêm juntos; onde estão os atrativos dessas coisas? Não encerram uma lição e não sussurram algo além da quase despercebida advertência de um abstrato preceito moral?3 3 DICKENS, Charles. Oliver Twist. São Paulo, Círculo do Livro, s/d., p. 07.

Dickens pretende, como afirma, "mostrar, no pequeno Oliver, o princípio do Bem sobrevivendo através de toda circunstância adversa, e finalmente triunfando"4 3 DICKENS, Charles. Oliver Twist. São Paulo, Círculo do Livro, s/d., p. 07. . No entanto, a lição que resulta das ruas de Londres e de seus "horrores"- palavra usada pelo próprio Dickens -, bem como das ruas de outras cidades - a de que a rua é um ambiente social a ser moralmente saneado - forja-se no interior de um sentimento profundo de medo. A história das ruas e de seus personagens, na Literatura ou não, nos conduz inevitavelmente à fascinante história do medo.

É certo que, em fins do século passado e em princípios deste, a rua, além de sediar o dinamismo do setor terciário, de testemunhar o desenvolvimento das indústrias no ritmo dos operários a caminho do trabalho, bem como o peso da economia informal, é espaço social dos mais ativos nos bairros paulistanos. Nos bairros pobres, é nelas que se reproduzem as brincadeiras entre as crianças, a conversa e também as brigas da vizinhança, o restrito lazer operário - conforme recorda Zélia Gattai a respeito da rua Caetano Pinto - quando aos domingos, a maioria dos homens "ocupava a pista de paralelepípedos, jogando bocha e malha"5 5 GATTAI, Zélia. Anarquistas, Graças a Deus. São Paulo, Círculo do Livro, 1979, p. 79. . Mas, a rua é, também, o espaço do ócio, do comportamento visto como imoral, o espaço do crime, o espaço onde se reproduzem formas de sobrevivência tidas como verdadeiramente marginais, onde as misérias sociais estão em permanente e contundente exposição. É, enfim, o espaço no qual a ordem estabelecida tem de lidar com sua própria vulnerabilidade: o ambiente das ruas - onde se reproduzem códigos e modelos diversos de comportamento - torna-se ameaçador. A rua adquire assim, uma identidade perversa, associada ao crescimento da cidade, identidade que se reproduz para além do universo das elites: nas palavras de Zélia Gattai, as calçadas da rua Caetano Pinto eram "calçadas proibidas" em sua casa devido aos "cortiços famosos" e às mal-afamadas "brigas e bafafás diários"6 5 GATTAI, Zélia. Anarquistas, Graças a Deus. São Paulo, Círculo do Livro, 1979, p. 79. , o jornal O Socialista comenta, por sua vez, em 1896, que "a donzela", ao se dirigir para o trabalho, "pela manhã", tem seu "pudor (...) ofendido, a cada passo, pelas ruas, por esses ditos imorais que saem dos lábios da ociosidade".7 7 O Socialista, 26/01/1896, p. 03. Maria Inez M.B. Pinto observa que à presença de desempregados, de miseráveis, bem como de trabalhadores que vivem de pequenos expedientes nesse período na cidade de São Paulo, correspondem índices crescentes de criminalidade e delinqüência social. O "aumento considerável dos desocupados", a "grande incidência dos pequenos crimes", bem como a "onda de violência cotidiana" - assinala - gera insegurança, apreensão e, consequentemente, a reivindicação, por parte de "alguns setores das classes proprietárias, da classe média e mesmo do operariado", no sentido de que seja ampliado o contingente policial paulistano. Concluindo que "uma nova fração das classes destituídas era considerada como sendo violenta, perigosa e sem nenhum respeito pela legalidade", a autora afirma que "a disseminação de formas de miséria urbana" contribui para o "aumento assustador dos índices de ataques noturnos e diurnos dos delinqüentes miseráveis aos ricos e aos pobres", sobretudo o furto de bolsas, ressaltando que a divulgação dos crimes veiculados nos jornais atemoriza a população, tornando-se, o medo dos assaltos, "um sentimento dominante na época"8 7 O Socialista, 26/01/1896, p. 03. .

Termos como ociosidade, vício, delinqüência, crime transformam-se, de fato, em corolários da palavra rua. São, em certa medida, termos redutores da realidade das ruas, porque aglutinam e ao mesmo tempo excluem, sob seu significado, uma extraordinária gama de personagens que se inserem na sua própria dinâmica de forma diferenciada. A rua é, também, o espaço no qual a pobreza ganha plena visibilidade, mesclando-se à tão questionada marginalidade social, e são tênues os limites que a separam do crime e da delinqüência com os quais freqüentemente se confunde.

A identidade perversa da rua é construída, assim, a partir de identidades múltiplas, de personagens que parecem estar à espreita em cada esquina, que povoam, enfim, as crônicas e as estatísticas policiais da cidade. No caso da criança e do adolescente, que nos interessa em particular, distingue-se, na rua, os contornos de uma eficaz escola do vício:

(...) vejo, aí por essas ruas - denuncia O Socialista em fins do século passado - a miséria personificada numas pálidas crianças, pela exploração, ou - quem sabe - para não estourarem de fome, estendendo a mão a imorais que as infamam de ações vis e as contaminam de todos os vícios de que estão saturados9 9 O Socialista, 26/01/1896, p. 02. .

Semelhante é a opinião do industrial Jorge Street que, no final da década de 1910, vê - por oposição ao trabalho infanto-juvenil - a convivência das ruas, que reconhece cheias de perigo, como oportunidade ímpar para que as crianças fiquem "à disposição de todas as seduções e vícios, indo engrossar ainda mais o já tamanho número de abandonados e delinqüentes de tenra idade"10 9 O Socialista, 26/01/1896, p. 02. .

Ao abrigo do pensamento que enfatiza a influência do meio sobre o indivíduo, a rua encontra nos meninos e meninas abandonados ou já inseridos no mundo da mendicância, da vadiagem, da prostituição, da delinqüência e do crime, um fator que definitivamente tende a projetá-la enquanto ambiente social a ser moralmente saneado. Verdadeiro impasse, no entanto, a presença de crianças e de adolescentes nesse controvertido painel de comportamentos dissonantes em relação aos padrões de comportamento burguês socialmente estabelecidos e aceitos, não só resiste aos novos horizontes filantrópicos e ao aprimoramento do controle social que emana do Estado, mas parece se tornar cada vez mais acentuada, seguindo seu curso de forma inexorável e expondo as contradições sociais em cada esquina.

UM MODELO INCONSISTENTE

Visíveis nas estatísticas criminais e matéria cotidiana na imprensa local, abandono e criminalidade infanto-juvenil inserem-se no contexto de crescimento da cidade de São Paulo. Adquirindo projeção sobretudo a partir da década de 1890, o problema se antecipa à República: em fevereiro de 1876 o Presidente da Província alertava para o fato de que "na Capital existem dezenas de meninas que já têm na fronte o estigma da desonra", arrastadas "ao abismo da prostituição" pelos "impiedosos braços da miséria"11 11 Relatório apresentado à Assemblea Legislativa Provincial de São Paulo pelo Presidente da Província, Exmo. Sr. Dr. Sebastião José Pereira, em 02 de fevereiro de 1876. São Paulo, Typ. do Diário, 1876, p. 71. .

Passadas duas décadas, o Chefe de Polícia da cidade de São Paulo faz menção aos mendigos e às "crianças abandonadas que, em grande número vagam pelas ruas, maltrapilhas e famintas, esmolando às vezes por conta de outrém, na mais triste degradação", crianças que "constantemente figuram em casos policiais como auxiliares de gatunos ou autores de pequenos furtos"12 11 Relatório apresentado à Assemblea Legislativa Provincial de São Paulo pelo Presidente da Província, Exmo. Sr. Dr. Sebastião José Pereira, em 02 de fevereiro de 1876. São Paulo, Typ. do Diário, 1876, p. 71. . Ainda na década de 1890, o Fanfulla insiste "na necessidade de medidas em relação à verdadeira legião de menores que vivem na rua, no vício e no embrutecimento", denunciando que "à uma da manhã se vêem grupos de garotos (...) nos pontos centrais da cidade, vendendo jornais que àquela hora já não são comprados mais, trocando impropérios e socos (...). No Largo do Rosário - prossegue -, um menino de três anos e um mês de idade, vende bilhetes de loteria! (...)"13 13 Fanfulla, 11/03/1899, p. 02 e 31/10/1892, p. 02. .

Em meados da década de 1910, o Presidente da Cruz Vermelha Brasileira, Gal. Thaumaturgo de Azevedo, observa, durante o Primeiro Congresso Americano da Criança, que é dever dos poderes públicos, tendo em vista a "questão dos menores abandonados e da vida que levam, vagueando nas ruas sem instrução e sem trabalho", proceder ao "registro dos menores abandonados na via pública", que substituiria a roda, bem como tomar a si a tarefa de educá-los14 13 Fanfulla, 11/03/1899, p. 02 e 31/10/1892, p. 02. . Lembrando, anos depois, na Assembléia Nacional Constituinte de 1934, que "se a educação é um direito de todos os cidadãos, precisamos dizer também que todos os cidadãos têm direito à educação", a Deputada paulista Carlota Pereira de Queiróz - cuja fala é de uma atualidade verdadeiramente incômoda -, observa no plenário do Congresso, que

(...) órfãos na realidade ou devido ao abandono em que se vêem, rolam essas crianças pelas ruas sujeitas a todas as explorações até que, consideradas como perturbadoras da ordem pública, receberão ainda, a título de punição, o presente da sua internação num asilo ou num instituto disciplinar, onde passarão a viver enquistadas, arrastando por longos anos os nomes de asiladas ou de incorrigíveis15 15 Discursos Pronunciados na Assembléia Nacional Constituinte de 1934 pela primeira Deputada Brasileira, Drª Carlota Pereira de Queiroz. Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, pp. 13 e 16. .

Percebe-se que as soluções para o problema apontam sobretudo na direção de classificar, controlar, confinar, disciplinar e recuperar, ao mesmo tempo que são engendradas através das fendas de um modelo que não se sustenta diante do vivido, vivido que não é possível omitir ou negar. Denunciando os próprios mecanismos de exclusão que lhes deram origem, os personagens da rua projetam-se por entre fendas, como negação da ordem pública, do trabalho, da moralidade e da legalidade, enfim, da própria capacidade do Estado em exercer sobre a sociedade um controle eficiente. Se essas imagens se constróem em meio à inconsistência do modelo burguês, não deixam, no entanto, de se reproduzir, da mesma forma, entre a população de condição sócio-econômica inferior. A história das ruas nos faz pensar então numa verdadeira estratificação da exclusão social, na qual os personagens da rua ou ocupam os mais ínfimos degraus, ou são lançados à chamada marginalidade, o que lhes confere caráter diferenciado no âmbito de uma sociedade reveladora, independentemente de classe social, de um certo consenso no modo de concebê-los: enquanto marginais, simbolizam a negação dos valores estabelecidos, catalizadores que são de comportamentos e atitudes que não só não devem ser imitados, mas erradicados. Tipos de comportamento que o Estado, ao voltar o olhar para as ruas e seus "marginais", usa de forma ambivalente: esse mundo cheio de "desvios" legitima o controle social muitas vezes extremado que o Estado busca fazer incidir sobre a sociedade e permite reforçar - num processo de mútuo esclarecimento - os padrões de comportamento tidos como socialmente aceitáveis.

No caso da criança e do adolescente, a realidade das ruas projeta-se de forma ainda mais contundente, porque peculiar: é o avesso de um sentimento da infância e da adolescência que se pretende absoluto, de representações que, elaboradas sobretudo em torno da criança, resultam na construção de uma identidade que exclui o mundo do crime, da delinqüência, da prostituição, da vadiagem, da mendicância, do qual ambos são, afinal, ativos personagens. A República Velha já registra o uso da palavra "menor" para designar a criança e o adolescente, terminologia associada à idade e não imbuída, até o limiar da década de 1920, do sentido que depois acabou por adquirir - indicativo da situação de abandono e marginalidade, definidor da condição civil e jurídica - e que persiste atualmente16 15 Discursos Pronunciados na Assembléia Nacional Constituinte de 1934 pela primeira Deputada Brasileira, Drª Carlota Pereira de Queiroz. Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, pp. 13 e 16. . Basta lembrar que crianças e adolescentes freqüentemente aparecem, nesse período, sob a terminologia redutora de "menores", enquanto critério etário designativo inclusive da diferenciação desse segmento no mundo do trabalho.

Na verdade, sob o olhar normalizador e normatizador que se institucionaliza com a República Velha, identifica-se uma clara resistência em aceitar e conviver com um tipo de infância e de adolescência que se distancia drasticamente de um imaginário que se presume consistente. Estado, médicos, juristas, classes trabalhadoras e imprensa em geral vêem com apreensão a criança e o adolescente que desfrutam da convivência das ruas. Essa postura que, em última instância, acena com a interdição do espaço público a crianças e adolescentes, é simultaneamente resultado e reforço de um sentimento da infância e da adolescência já profundamente arraigado.

É conhecido o fato de que a criança e o adolescente não são totalmente imunes à maldade. Às travessuras e brincadeiras de Gaetaninho, Gennarinho e Lorenzo em Brás, Bexiga e Barra Funda, Alcântara Machado opõe a maldosa "menina de pulseira de ouro e meias de seda", que se aproveita do "enlevo" e "inveja" de Lisetta, menina pobre, filha de imigrantes, diante do ursinho que exibe no bonde. À tristeza de Lisetta, impossibilitada de "pegar um pouquinho, um pouquinho só", o ursinho que "custara cinquenta mil réis na Casa S. Nicolau", o autor contrapõe a dissimulada atitude maldosa da menina rica ao perceber o interesse e o sofrimento da outra.17 17 MACHADO, Antônio de Alcântara. op.cit., p. 28 No noticiário da imprensa, os "excessos da garotagem", na terminologia do O Estado de S. Paulo dão conta, no âmbito do vivido, de comportamentos que reforçam a imagem que associa os menores a atitudes que remetem para a maldade. Em março de 1909, o citado jornal informa:

Pedem-nos chamar a atenção da polícia da quarta circunscrição, para a malta de menores vagabundos que durante o dia e noite cometem os maiores desatinos, na rua D. Antonia de Queiroz e adjacências, arrebentando campainhas e atirando pedras às vidraças18 17 MACHADO, Antônio de Alcântara. op.cit., p. 28 .

A identidade da criança e do adolescente é construída, no entanto, a partir de elementos que incorporam o idílico e a relação com o sagrado, a partir de características como temeridade, imprudência, fraqueza e fragilidade, bem como a partir da idéia de futuro da pátria em gestação.

O idílico aparece, por exemplo, de forma plena em matéria assinada por G. Santos e publicada no jornal A Voz do Trabalhador em fevereiro de 1915:

Ter filhos! É belo sem dúvida.

É belo ser (...) pai, viver (...) rodeado por um rancho de crianças, entre os seus risos e os seus gritos, afagado pelas suas carícias angelicais, brincando com elas e beijando-as, passeando-as pelos campos e vendo-as correr, sempre risonhas e infatigáveis, apanhando flores (...)19 19 A Voz do Trabalhador, 1º/02/1915, p. 04.

A relação com a criança é concebida, assim, como sendo permeada por sentimentos positivos como amor, ternura, alegria de viver. Paralelamente, a referência ao "angelical" introduz elementos do sagrado aos atributos da infância.

Essas são passagens que nos permitem entender plenamente o sentido da observação de Dickens ainda ao prefaciar Oliver Twist:

Pareceu circunstância chocante e grosseira que algumas das personagens destas páginas tenham sido escolhidas dentre as mais criminosas e degeneradas da população de Londres; (...) que os meninos sejam batedores de carteiras e a menina, prostituta20 19 A Voz do Trabalhador, 1º/02/1915, p. 04. .

Igualmente pertinente, a observação do citado Henri Robert sobre a criminalidade na França:

Não há associação de palavras que mais repugne e horrorize do que esta: Crime e Juventude! Parece que se não poderia falar de crianças criminosas senão como de uma monstruosa exceção.

Concebemos a infância desgraçada ou abandonada, atraindo e excitando a nossa piedade com aquilo a que um poeta chamou 'o direito divino da fraqueza'. Não queremos acreditar, porém, ao menos os espíritos superficiais ou mal informados, que se possa ligar a idéia de infância ou de juventude ao crime21 21 O Estado de S. Paulo, 24/12/1913, p. 07. .

O idílico, de fato, tende a ser relativizado diante das circunstâncias do vivido. O próprio autor da matéria acima transcrita, publicada no A Voz do Trabalhador, alerta para o fato de que a aspiração da paternidade deve ser evitada por aqueles que, por circunstâncias adversas, não podem ter filhos saudáveis ou recursos para bem criá-los e educá-los. O sagrado, por sua vez, é uma clara alusão à pureza, à inocência, bem como à importância de se preservar o universo da infância de tudo aquilo que possa vir a desvirtuá-lo. Pureza supõe transparência, faz prever um dado comportamento que exclui atitudes e sentimentos negativos, enquanto o ser inocente remete para a ingenuidade e para o ser não-responsável, sobretudo no caso da criança. Em 1916, o Fanfulla, em matéria sobre os "menores vagabundos", equaciona com maestria essa relação, vendo-os como "delinqüentes forçados", porque fruto da miséria e da conseqüente impossibilidade de freqüentarem a escola, "inconscientes e incapazes de avaliar o dano e a gravidade dos próprios atos"22 21 O Estado de S. Paulo, 24/12/1913, p. 07. .

No entanto, pureza e inocência não conferem imunidade à criança e ao adolescente frente ao mundo da delinqüência e do crime: características como temeridade e imprudência - que excluem capacidade e responsabilidade -, bem como fraqueza e fragilidade - que não se limitam ao orgânico mas dizem respeito ao caráter e à personalidade - acabam, na opinião de observadores da época, por torná-los vulneráveis ao "contágio". Por outro lado, a sacralização da criança não encontra respaldo no vivido, uma vez que a relação com o universo dos adultos nem sempre é permeada por afetividade mas pela violência em vários níveis.

Não é, portanto, surpreendente que a associação entre criminalidade, delinqüência, prostituição e infância/adolescência mobilize os vários setores da sociedade, sobretudo à medida em que o olhar que se debruça sobre a criança e o adolescente nesse momento, distingue-os acima de tudo como o futuro de uma pátria em gestação. Vistos principalmente na qualidade de adultos em formação e, portanto, numa projeção futura, crianças e adolescentes não devem ficar expostos às influências do meio pernicioso das ruas, à deriva pela cidade, mas devem ser resgatados do mundo da marginalidade social, recuperados, transformados em elementos socialmente sadios, produtivos.

CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO MUNDO DO TRABALHO: DISSONÂNCIA

Em 1918, o Deputado Nicanor Nascimento, em meio à discussão no Congresso Nacional sobre o trabalho de crianças e adolescentes, ressalta que nos menores está a "reserva dos homens do Brasil"23 23 Documentos Parlamentares. Legislação Social, vol. 01. Rio de Janeiro, Tipografia do Jornal do Comércio, 1919, p. 347. . Aqueles que "têm hoje dez, doze anos, serão dentro de oito ou dez anos a Nação" enfatiza, e conclui que a geração do presente terá passado, as suas energias "ter-se-ão extinguido e serão esses homens que virão resolver todos os problemas militares e econômicos da Nação"24 23 Documentos Parlamentares. Legislação Social, vol. 01. Rio de Janeiro, Tipografia do Jornal do Comércio, 1919, p. 347. . Nos discursos da época, o menor trabalhador contrapõe-se, no entanto, ao menor que vive nas ruas, em função ou não do abandono. De qualquer forma, a então significativa presença de crianças e de adolescentes de ambos os sexos no espaço público, seja em função da atividade produtiva ou não, já não pode ser omitida ou simplesmente ignorada. Do âmbito das representações para a dinâmica das ruas, a criança e o adolescente que as primeiras décadas republicanas nos colocam diante dos olhos estão no trabalho das fábricas e oficinas, às voltas com a economia informal, vagando simplesmente pelas ruas, engrossando os quadros dos "amigos do alheio", da prostituição e da criminalidade, encarcerados nas cadeias da Capital por crimes que vão da vadiagem ao homicídio. São, portanto, ativos personagens na cidade que cresce, correspondendo em 1920 a 07% do total da mão-de-obra empregada no setor secundário no Estado de São Paulo e responsáveis, no período de 1900 a 1915 por exemplo, por aproximadamente 21% das ocorrências policiais registradas na Capital25 25 Ver Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Diretoria Geral de Estatística. Recenseamento do Brasil, realizado em 1º de setembro de 1920, V (1ª parte), INDÚSTRIA. Rio de Janeiro, Tip. da Estatística, 1927. Ver também Relatórios da Secretaria de Estado da Justiça e da Segurança Pública e de Chefes de Polícia do Estado de São Paulo, 1900-1915. .

Interessante notar que a identidade construída em torno da criança e do adolescente tende a reforçar a idéia da influência do meio social, e é por ela reforçada. A inserção dos menores no mundo da mendicância, da vadiagem, da delinqüência, da prostituição, do crime, projeta-se socialmente enquanto prova incontestável de que a criança e o adolescente, em função de suas características, são passíveis da influência do meio no qual convivem. Por outro lado, essa influência, tida como comprovada, reforça a imagem que associa a criança à imprudência, temeridade, fraqueza, fragilidade, ingenuidade. Por isso, a proposta de saneamento moral das ruas, de isolamento da criança e do adolescente de sua convivência. Importante acentuar que Dickens, quando faz referência - conforme vimos anteriormente -, à estupefação diante da menina prostituta que as páginas de Oliver Twist abrigam, acena com a questão de gênero que faz pensar nas diferenças no interior da infância e da adolescência. A menina, a adolescente, devem ser inseridas em toda essa discussão de forma diferenciada: em relação a elas, o sagrado não é mero atributo da idade. Como aceitá-las na vida promíscua das ruas, quando o casamento e a maternidade dentro do casamento então igualmente sacralizados, são concebidos como espaços nos quais a felicidade feminina encontra a plenitude?

Mas, argumentam os contemporâneos, não basta isolar das ruas, confinar simplesmente: é preciso corrigir, disciplinar, educar. Nesse sentido, o trabalho, a atividade produtiva, emerge como caminho que permitirá redimir todos os males. Identifica-se no trabalho a dupla função de preservar a criança e o adolescente do contato com o vício, e de recuperar, resgatar do vício. Relativas ao Instituto Disciplinar, criado no início do século com a finalidade de transformar em "homens trabalhadores e úteis à sociedade", os menores abandonados "que se perdiam no vício adquirido na mais sórdida vadiagem", bem como de "afastar dos criminosos comuns os delinqüentes de menor idade"26 25 Ver Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Diretoria Geral de Estatística. Recenseamento do Brasil, realizado em 1º de setembro de 1920, V (1ª parte), INDÚSTRIA. Rio de Janeiro, Tip. da Estatística, 1927. Ver também Relatórios da Secretaria de Estado da Justiça e da Segurança Pública e de Chefes de Polícia do Estado de São Paulo, 1900-1915. , as palavras de Altino Arantes em 1916, constituem síntese perfeita desse pensamento:

O pequeno delinqüente, o pequeno desocupado, removidos que sejam para um meio de trabalho e moralidade, quase sempre se regeneram. Forças perdidas que eram para a sociedade, para ela voltam revigoradas e sãs27 26 O Estado de S. Paulo, 15/01/1909, p. 03 e 16/01/1909, p. 04. .

Da mesma forma - e a anteriormente citada opinião do empresário Jorge Street encaminha-se nesse sentido - a inserção do menor na atividade produtiva é concebida como meio de incorporar "hábitos de trabalho" e aprender "um ofício", tendo em vista a precariedade do ensino profissional, assim como situação que impede o contato e a convivência com a rua e seus "desvios". Ocupados nas fábricas e oficinas - onde ficam verdadeiramente confinados em função da excessiva jornada de trabalho - os pequenos operários "não aumentam a falange dos menores vagabundos que infestam esta cidade", conclui Bandeira Júnior em 1901, nada solitário nesse argumento28 28 BANDEIRA JÚNIOR, Antonio Francisco. A Indústria no Estado de São Paulo em 1901. São Paulo, Tip. do Diário Oficial, 1901, p. 13. .

É, no entanto, de modo ambivalente que o mundo do trabalho projeta-se, então, sobre o universo da infância e da adolescência. Em primeiro lugar, porque a forma como se reproduz a atividade produtiva da criança e do adolescente nas fábricas e oficinas resulta, da mesma forma, em apreensão por parte do Estado, bem como por parte de médicos e juristas, dos trabalhadores e de suas organizações de classe, por parte da imprensa em geral. Afinal, crianças e adolescentes operários, assim como aqueles que vagam pelas ruas, estão igualmente sujeitos ao perigo, embora de forma diferenciada. São conhecidos os resultados extremos da inserção dessa mão-de-obra no trabalho industrial nas primeiras décadas republicanas: da negação do pleno direito à infância e à adolescência até a mutilação e a morte em acidentes do trabalho29 28 BANDEIRA JÚNIOR, Antonio Francisco. A Indústria no Estado de São Paulo em 1901. São Paulo, Tip. do Diário Oficial, 1901, p. 13. . Em segundo lugar, porque no caso de crianças e de adolescentes de sexo feminino, o trabalho nas fábricas e oficinas não exclui a imagem ameaçadora da possibilidade da prostituição. Ao contrário, cumpre lembrar que o questionamento ao trabalho feminino passa, na época, pelo argumento - denúncia talvez, - que insiste em apontar a convivência nos estabelecimentos industriais como possível circunstância coercitiva, senão facilitadora, da prostituição.

Voltando à questão da identidade construída em torno da criança, o sagrado, portanto, não só não exclui a infância do mundo da chamada marginalidade social, como não impede que sua inserção no mundo do trabalho se dê em condições verdadeiramente deploráveis, enquanto objeto de desenfreada exploração. Em princípios do século, o jornal Il Picollo faz menção a um tempo no qual "as crianças eram sagradas", condenando, com veemência, a exploração a que são submetidas nas fábricas e oficinas30 30 Il Picollo, 31/12/1908, p. 01. . Nessa ocasião, ressaltando que o operário "deve exigir um salário suficiente para dar o pão, para satisfazer os direitos de suas crianças" - uma vez que a pobreza da classe trabalhadora é de fato o grande detonador do trabalho infanto-juvenil - o jornal responsabiliza, além dos patrões, os pais pela exploração dessa mão-de-obra.

Por outro lado, o que pode haver de idílico nas fábricas e oficinas da capital paulista nas primeiras décadas deste século? A imagem construída por G. Santos em torno da infância no jornal A Voz do Trabalhador, transcrita neste texto, perde consistência diante do pequeno operário: uma significativa fração das crianças que vivem em São Paulo nas primeiras décadas republicanas, muitas de tenra idade, não estão passeando pelos campos e apanhando flores, mas fazendo operar máquinas perigosas, não estão sempre risonhas e infatigáveis, mas fatigadas pela jornada de trabalho excessiva, não vivem uma relação pautada em carícias e beijos, mas o rigor da disciplina que permeia as relações de trabalho e que freqüentemente "justifica" a violência de patrões, mestres e contra-mestres. Além disso, o que dizer do fato de que é exigido do menor operário, na situação de trabalho, "um comportamento compatível com sua condição de produtor, condição na qual se confunde plenamente com o adulto"31 30 Il Picollo, 31/12/1908, p. 01. ? O que dizer do fato de que a pequena operária - e provavelmente também os meninos - são muitas vezes alvo de atitudes lascivas às quais o mundo do trabalho jamais esteve imune?

É certo que as condições de trabalho, pautadas em longas jornadas, bem como na insalubridade das fábricas e oficinas e na periculosidade de máquinas e funções que freqüentemente vitima a mão-de-obra menor, reforçam a noção que associa fraqueza, fragilidade, temeridade e imprudência à infância e à adolescência, bem como os argumentos que se encaminham no sentido de ver o futuro projetado nesses trabalhadores. "Deixar que meninos e meninas de 10 ou 12 anos sejam submetidos a trabalhos (...) sempre superiores às suas forças", é "comprometer a origem da própria vida", alerta o Fanfulla em 191732 32 Fanfulla, 19/10/1917, p. 04. . No entanto, a admissão de crianças e de adolescentes no trabalho industrial, a atribuição de funções, nada criteriosa em relação à faixa etária na qual se inserem os trabalhadores, são claros indicadores de que esses traços, tão destacados em relação à infância e à adolescência, jamais teriam atuado enquanto impedimento à exploração dessa mão-de-obra.

Seja como for, no mundo do trabalho as atitudes e características consideradas inerentes à infância e à adolescência não são vistas - e é justamente nesse ponto que mais se fragilizam os argumentos favoráveis ao trabalho infanto-juvenil - com naturalidade mas, freqüentemente, como impedimento ao pleno desempenho profissional desses trabalhadores e, portanto, pelo ângulo dos prejuízos que fazem incidir sobre o sistema produtivo. É, por exemplo, o caso específico dos acidentes de trabalho, em larga medida justificados, no caso da mão-de-obra menor, pelo prisma da imprudência, do descuido, das brincadeiras de crianças e adolescentes, e não pelo prisma das circunstâncias adversas que esses trabalhadores enfrentam no ambiente de trabalho, como fadiga excessiva e falta de aprendizado adequado - e, conseqüentemente, de experiência - para lidar com as máquinas.

Em profunda dissonância, a projeção social do trabalho, como forma de conter e evitar o convívio do menor com a rua e suas seqüelas sociais, de prepará-lo adequadamente para o futuro, da qual a fala de Street, anteriormente mencionada, é clara representante, pois aponta muito mais para outra situação-limite, desencadeada pelos termos em que se reproduz a atividade produtiva desse segmento no mercado de trabalho. Conforme argumenta ainda o citado Deputado Nicanor Nascimento, em discussão sobre o Código do Trabalho,

A questão dos menores nas fábricas tem de fato vários aspectos, que determinam o estudo imediato da matéria. Em primeiro lugar, as fábricas devem produzir sem destruir. Devemos procurar aquelas limitações que permitem o máximo de rendimento do trabalho racional sem inutilização das forças produtoras33 32 Fanfulla, 19/10/1917, p. 04. .

Assim, se a educação profissional pode vir a ser o caminho que, nas palavras de Coryntho da Fonseca, permita preparar o cidadão para melhor corresponder às exigências da vida social democratizada34 34 Comitê Nacional Brasileiro do Primeiro Congresso Americano da Criança. Conclusões das Teses, Memórias e Comunicações de membros do "Comité Nacional Brasileiro", enviadas por intermédio do Dr. Arthur Moncorvo Filho. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1916, p. 55. , se o caminho da cidadania passa pela inserção no mundo do trabalho, nas fábricas e oficinas da capital paulista, essa postura esbarra inevitavelmente no processo de consolidação dos interesses do capital, processo cuja trajetória inexorável passa pela extrema pobreza na qual está pautado o cotidiano da família operária, pela precariedade e pela burla constante da legislação social-trabalhista vigente, pela inutilização da capacidade produtiva de crianças e de adolescentes, enfim, pela morte prematura de muitos desses pequenos operários e operárias nos acidentes do trabalho.

MENINOS E MENINAS NA RUA: FORJANDO OUTRAS IDENTIDADES

A crescente marginalização social do menor, bem como os termos de sua inserção no mundo do trabalho, resultam em evidente impasse frente à identidade construída em torno da criança e do adolescente. A condição da infância e da adolescência nas primeiras décadas republicanas é multifacetada: entre o menor José, de 12 anos de idade que, em novembro de 1917 perde o braço direito nas engrenagens de uma máquina35 34 Comitê Nacional Brasileiro do Primeiro Congresso Americano da Criança. Conclusões das Teses, Memórias e Comunicações de membros do "Comité Nacional Brasileiro", enviadas por intermédio do Dr. Arthur Moncorvo Filho. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1916, p. 55. , o menor Severino, de 8 anos de idade, preso por furto em novembro de 191136 36 Citado por PINTO, Maria Inez M. Borges. op.cit e os menores inseridos nas camadas economicamente mais favorecidas, há uma grande distância. Nos matizes do cotidiano de muitas crianças e adolescentes em São Paulo, insinuam-se identidades outras: o menor vagabundo, delinqüente, criminoso, a menina que se prostitui, incorporam o mal às características do menor que vive nas ruas, qualificado, então, de incorrigível, pervertido, gatuno; a incapacidade que é, inclusive, institucional, desaparece na situação de trabalho, para dar lugar ao "operário perfeito"37 36 Citado por PINTO, Maria Inez M. Borges. op.cit , hábil no exercício da profissão; o conjunto das condições de trabalho nas fábricas e oficinas, a atribuição indiscriminada de funções, faz destoar o argumento da fraqueza/fragilidade da infância e da adolescência; no âmbito das relações de trabalho, temeridade e imprudência podem ser traduzidas, muitas vezes, como resistência a uma condição regra geral incompatível com a faixa etária na qual se insere o trabalhador menor.

A identidade construída para a infância e a adolescência fragiliza-se, portanto, diante das condições em que vivem muitas crianças e adolescentes, existindo freqüentemente apenas do avesso, antítese do futuro caráter nacional que se pretende formar. "A iniciação precoce do menor nas atividades ilegais", observa Maria Inez M. B. Pinto, "fazia parte do ritual cotidiano dos miseráveis" na luta pela sobrevivência, à medida em que as crianças originárias de famílias extremamente carentes, "socializadas num ambiente em que o recurso às práticas marginais de ganho eram normais", interiorizavam "os meios de subsistência informais e ilícitos de certos setores das camadas oprimidas"38 38 PINTO, Maria Inez M. Borges. op.cit., p. 219. . Assim, o Deputado Nicanor Nascimento anota em 1918 que "a malandragem, a habilidade de enganar a vizinhança, as espertezas todas que exprimem um malandr o urbano dominam esses infantes de modo que, ao chegar à maioridade, atingem ou excedem no crime os mais inveterados", tornando-se "expressão da verdadeira degradação humana"39 38 PINTO, Maria Inez M. Borges. op.cit., p. 219. . No entanto, a proposta de resgatar o menor que está na convivência das ruas para o mundo do trabalho e da legalidade, não consegue se despir dos artifícios de um discurso que não encontra respaldo no vivido, que não resiste ao cotidiano de crianças e de adolescentes de ambos os sexos em São Paulo. A identidade da criança e do adolescente recorta-se no mundo dos adultos e nele se revela em seu significado pleno: no interior das relações de idade, o idílico e o sagrado se perdem, enquanto temeridade, imprudência, fraqueza e fragilidade - que remetem para a necessidade de proteção, tutela e cuidados permanentes, emanados do mundo dos adultos - e mesmo a idéia de futuro da pátria em gestação - por meio da qual o menor se define sob o ângulo das determinações capitalistas - legitimam o teor das relações de poder que se reproduzem no universo da família, no mundo do trabalho, no mundo visto como socialmente marginal, que freqüentemente têm, na violência, um denominador comum. Construção social, a identidade da criança e do adolescente aponta muito mais para um significativo fechar de olhos diante dos termos nos quais se reproduzem as relações de idade nas primeiras décadas republicanas, quer no mundo do trabalho, quer fora dele.

No caso do menor vagabundo, delinqüente, criminoso, da prostituição infanto-juvenil, talvez tenha sido assim, fechando sistematicamente os olhos, não conferindo às contradições econômico-sociais o status de verdadeira questão de fundo de toda essa discussão, ignorando que a verdadeira identidade de uma parcela significativa de crianças e de adolescentes se forjou na miséria extrema e em meio à tão discutida marginalidade social, que tenhamos evoluído ou, melhor, involuído, de uma situação na qual meninos e meninas estavam "na rua", para uma situação na qual se tornaram "da rua".

NOTAS

2O Estado de S. Paulo. 24/12/1913, p. 07.

4Idem, pp. 05-06.

6Idem, pp. 78-79.

8 PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e Sobrevivência: A Vida do Trabalhador Pobre na Cidade de São Paulo, 1890-1914. Tese de Doutorado, FFLCH-USP, São Paulo, 1984, pp. 213 e 249-250.

10O Estado de S. Paulo, 19/09/1917, pp. 09-10.

12 Relatório apresentado ao Secretário dos Negócios da Justiça pelo Chefe de Polícia Bento Pereira Bueno, em 31 de janeiro de 1896. São Paulo, Tipografia a vapor de Espíndola, Siqueira & Comp., 1896, pp. 174-175.

14 Comitê Nacional Brasileiro do Primeiro Congresso Americano da Criança. Conclusões das Teses, Memórias e Comunicações de membros do "Comité Nacional Brasileiro", enviadas por intermédio do Dr. Arthur Moncorvo Filho. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1916, p. 23.

16 Ver LONDOÑO, Fernando Torres. "A Origem do Conceito Menor". In PRIORE, Mary del (org.). História da Criança no Brasil. São Paulo, Contexto, 1991.

18O Estado de S. Paulo, 23/03/1909, p. 03.

20 DICKENS, Charles. op. cit., p. 05.

22Fanfulla, 05/02/1916, p. 05.

24Idem.

27 Câmara dos Deputados do Estado de S. Paulo. Annaes da Sessão Ordinária de 1916, organizados pelos tachygraphos Horácio Belfort Sabino e Numa de Oliveira, 1917, p. 05.

29 Ver MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Mulheres e Menores no Trabalho Industrial: os Fatores Sexo e Idade na Dinâmica do Capital. Petrópolis, Vozes, 1982.

31 Ver MOURA, Esmeralda Blanco B. de. "Infância Operária e Acidente do Trabalho em São Paulo". In PRIORE, Mary del (org.). op. cit.

33Documentos Parlamentares. Legislação Social, vol. 01. Rio de Janeiro, Tipografia do Jornal do Comércio, 1919, p. 347.

35Fanfulla, 14/11/1917, p. 02.

37Documentos Parlamentares. Legislação Social, vol. 01. Rio de Janeiro, Tipografia do Jornal do Comércio, 1919, p. 348.

39Documentos Parlamentares. Legislação Social, vol. 01. Rio de Janeiro, Tipografia do Jornal do Comércio, 1919, p. 353.

Artigo recebido em out./98, aprovado em abril/99

  • 1 MACHADO, António de Alcântara. Novelas Paulistanas. 3Ş ed., Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1973.
  • 2O Estado de S. Paulo. 24/12/1913, p. 07.
  • 3 DICKENS, Charles. Oliver Twist. Săo Paulo, Círculo do Livro, s/d., p. 07.
  • 5 GATTAI, Zélia. Anarquistas, Graças a Deus. Săo Paulo, Círculo do Livro, 1979, p. 79.
  • 7O Socialista, 26/01/1896, p. 03.
  • 8 PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e Sobrevivęncia: A Vida do Trabalhador Pobre na Cidade de Săo Paulo, 1890-1914. Tese de Doutorado, FFLCH-USP, Săo Paulo, 1984, pp. 213 e 249-250.
  • 9O Socialista, 26/01/1896, p. 02.
  • 10O Estado de S. Paulo, 19/09/1917, pp. 09-10.
  • 11 Relatório apresentado à Assemblea Legislativa Provincial de São Paulo pelo Presidente da Província, Exmo. Sr. Dr. Sebastião José Pereira, em 02 de fevereiro de 1876. São Paulo, Typ. do Diário, 1876, p. 71.
  • 13Fanfulla, 11/03/1899, p. 02 e 31/10/1892, p. 02.
  • 14 Comitê Nacional Brasileiro do Primeiro Congresso Americano da Criança. Conclusões das Teses, Memórias e Comunicações de membros do "Comité Nacional Brasileiro", enviadas por intermédio do Dr. Arthur Moncorvo Filho. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1916, p. 23.
  • 15 Discursos Pronunciados na Assembléia Nacional Constituinte de 1934 pela primeira Deputada Brasileira, DrŞ Carlota Pereira de Queiroz. Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, pp. 13 e 16.
  • 18O Estado de S. Paulo, 23/03/1909, p. 03.
  • 19A Voz do Trabalhador, 1ş/02/1915, p. 04.
  • 21O Estado de S. Paulo, 24/12/1913, p. 07.
  • 22Fanfulla, 05/02/1916, p. 05.
  • 23 Documentos Parlamentares. Legislação Social, vol. 01. Rio de Janeiro, Tipografia do Jornal do Comércio, 1919, p. 347.
  • 26O Estado de S. Paulo, 15/01/1909, p. 03 e 16/01/1909, p. 04.
  • 27 Câmara dos Deputados do Estado de S. Paulo. Annaes da Sessăo Ordinária de 1916, organizados pelos tachygraphos Horácio Belfort Sabino e Numa de Oliveira, 1917, p. 05.
  • 28 BANDEIRA JÚNIOR, Antonio Francisco. A Indústria no Estado de Săo Paulo em 1901 Săo Paulo, Tip. do Diário Oficial, 1901, p. 13.
  • 30Il Picollo, 31/12/1908, p. 01.
  • 32Fanfulla, 19/10/1917, p. 04.
  • 33Documentos Parlamentares. Legislação Social, vol. 01. Rio de Janeiro, Tipografia do Jornal do Comércio, 1919, p. 347.
  • 34 Comitê Nacional Brasileiro do Primeiro Congresso Americano da Criança. Conclusões das Teses, Memórias e Comunicações de membros do "Comité Nacional Brasileiro", enviadas por intermédio do Dr. Arthur Moncorvo Filho. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1916, p. 55.
  • 35Fanfulla, 14/11/1917, p. 02.
  • 37Documentos Parlamentares. Legislação Social, vol. 01. Rio de Janeiro, Tipografia do Jornal do Comércio, 1919, p. 348.
  • 39Documentos Parlamentares. Legislação Social, vol. 01. Rio de Janeiro, Tipografia do Jornal do Comércio, 1919, p. 353.
  • *
    Este artigo foi selecionado para ser publicado pela International Union for the Scientific Study of Population - IUSSP em colaboração com a Universidad Nacional de Cordoba (Argentina) juntamente com os textos apresentados no Seminário Internacional "Changes and continuity in american demographic behaviours: the five centuries'experience" (Cordoba, 27-29 de outubro de 1998).
  • 1
    MACHADO, António de Alcântara.
    Novelas Paulistanas. 3ª ed., Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1973.
  • 3
    DICKENS, Charles.
    Oliver Twist. São Paulo, Círculo do Livro, s/d., p. 07.
  • 5
    GATTAI, Zélia.
    Anarquistas, Graças a Deus. São Paulo, Círculo do Livro, 1979, p. 79.
  • 7
    O Socialista, 26/01/1896, p. 03.
  • 9
    O Socialista, 26/01/1896, p. 02.
  • 11
    Relatório apresentado à Assemblea Legislativa Provincial de São Paulo pelo Presidente da Província, Exmo. Sr. Dr. Sebastião José Pereira, em 02 de fevereiro de 1876. São Paulo, Typ. do Diário, 1876, p. 71.
  • 13
    Fanfulla, 11/03/1899, p. 02 e 31/10/1892, p. 02.
  • 15
    Discursos Pronunciados na Assembléia Nacional Constituinte de 1934 pela primeira Deputada Brasileira, Drª Carlota Pereira de Queiroz. Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, pp. 13 e 16.
  • 17
    MACHADO, Antônio de Alcântara.
    op.cit., p. 28
  • 19
    A Voz do Trabalhador, 1º/02/1915, p. 04.
  • 21
    O Estado de S. Paulo, 24/12/1913, p. 07.
  • 23
    Documentos Parlamentares. Legislação Social, vol. 01. Rio de Janeiro, Tipografia do Jornal do Comércio, 1919, p. 347.
  • 25
    Ver Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Diretoria Geral de Estatística. Recenseamento do Brasil, realizado em 1º de setembro de 1920, V (1ª parte), INDÚSTRIA. Rio de Janeiro, Tip. da Estatística, 1927. Ver também Relatórios da Secretaria de Estado da Justiça e da Segurança Pública e de Chefes de Polícia do Estado de São Paulo, 1900-1915.
  • 26
    O Estado de S. Paulo, 15/01/1909, p. 03 e 16/01/1909, p. 04.
  • 28
    BANDEIRA JÚNIOR, Antonio Francisco.
    A Indústria no Estado de São Paulo em 1901. São Paulo, Tip. do Diário Oficial, 1901, p. 13.
  • 30
    Il Picollo, 31/12/1908, p. 01.
  • 32
    Fanfulla, 19/10/1917, p. 04.
  • 34
    Comitê Nacional Brasileiro do Primeiro Congresso Americano da Criança. Conclusões das Teses, Memórias e Comunicações de membros do "Comité Nacional Brasileiro", enviadas por intermédio do Dr. Arthur Moncorvo Filho. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1916, p. 55.
  • 36
    Citado por PINTO, Maria Inez M. Borges.
    op.cit
  • 38
    PINTO, Maria Inez M. Borges.
    op.cit., p. 219.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Out 1999
    • Data do Fascículo
      Set 1999

    Histórico

    • Aceito
      Abr 1999
    • Recebido
      Out 1998
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