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Políticas públicas, estatalidades e experimentações neoliberalizantes: o estado do Rio de Janeiro como um caso situado1 1 Nós gostaríamos de expressar nossos mais sinceros agradecimentos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pelo apoio prestado a esta pesquisa.

Resumo

O artigo busca situar as políticas públicas e os desafios de constituir ações estatais e estatalidades de outra natureza no contexto dos processos de neoliberalização recentes e/ou em curso na América Latina. Procura identificar os determinantes estruturais e averiguar os modos pelos quais tais processos impactam as capacidades governativas. Utilizando o estado do Rio de Janeiro como um estudo de caso situado, realiza-se um exame das implicações socioeconômicas e institucionais do processo de neoliberalização, nas circunstâncias estruturais e conjunturais da crise profunda e multidimensional pela qual passa a sociedade fluminense. São apontadas diversas restrições à execução de uma agenda inclusiva e durável de desenvolvimento no território estadual, que tem sido cada vez mais submetido às lógicas pró-mercado. Por isso, é discutida a necessidade de reconstituir, em novas bases, estatalidades portadoras de valores emancipatórios.

Palavras-chave:
Políticas Públicas; Estatalidades; Capacidades Governativas; Estado do Rio de Janeiro

Abstract

The article aims to situate public policies, and the challenges of establishing statecraft and statehoods and state actions of another nature within the context of recent, ongoing neoliberalization processes in Latin America. It seeks to identify the structural determinants of this situation and investigates how such processes have impacted government capacities. Using the State of Rio de Janeiro as a situated case study, it examines the socio-economic and institutional implications of the neoliberalization process in the structural and conjunctural circumstances of the deep, multidimensional crisis which the society of Rio de Janeiro is currently experiencing. The article reveals the various restrictions involved in effecting an inclusive, durable development agenda within the state territory, which has increasingly been subjected to pro-market logic. Thus, it discusses the need to reconstitute the statecraft and statehoods, formed on a new basis, in order to undertake actions that carry emancipatory values.

Keywords:
Public Policies; State; Statehoods; Government Capacities; the State of Rio de Janeiro

Introdução

O debate sobre políticas públicas, estatalidades e capacidades governativas na América Latina apresenta grande acúmulo de conhecimentos e reflexões críticas. Muito se avançou nas análises das ações públicas que buscam a promoção do desenvolvimento no continente. No entanto, persiste a necessidade de pesquisas renovadas que possam discutir e sugerir uma atuação do Estado com um outro sentido, como agente de mudança social que, efetivamente, conteste os dispositivos neoliberais e produza uma outra realidade sociopolítica e espacial.

Na tradição não conservadora do pensamento social latino-americano, a história e os tempos-espaços específicos da subalternizada inserção periférica no contexto do capitalismo mundial não são negligenciados. Assim, são imprescindíveis nessa perspectiva crítica as especificidades geográficas, institucionais, culturais e socioeconômicas que caracterizam a natureza multidimensional e multiescalar do estilo de desenvolvimento regional na América Latina (CENDES, 1969 CENDES. Estilos de Desarrollo: grupo de modelos matemáticos. El Trimestre Económico, v. 36, n. 144, p. 517-576, dez. 1969.; VUSKOVIC, 1970VUSKOVIC, P. Distribución del ingreso y opciones de desarrollo. Cuadernos de la Realidad Nacional, n. 5, p. 41-60, set. 1970.; ROLLINS; LA FUENTE, 1973ROLLINS, C.; LA FUENTE, M. Diferentes modelos o estilos de desarrollo. Santiago de Chile: CEPAL, 1973.; VARSAVSKY, 1975VARSAVSKY, O. Marco histórico constructivo para estilos sociales, proyectos nacionales y sus estrategias. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1975.; PINTO, 1976PINTO, A. Notas sobre estilos de desarrollo en América Latina. Revista de la CEPAL , n. 1, p. 97-128, 1976.; GRACIARENA, 1976GRACIARENA, J. Poder y Estilos de Desarrollo: una perspectiva heterodoxa. Revista de la CEPAL, n. 1, p. 173-193, 1976.).

Nos primeiros decênios do século XXI, vários dos países desse continente apresentaram algum ímpeto na promoção de políticas públicas, alcançando resultados concretos na redução de suas desigualdades socioeconômicas (SÁNCHEZ-ANCOCHEA, 2021SÁNCHEZ-ANCOCHEA, D. The surprising reduction of inequality during a commodity boom: what do we learn from Latin America? Economic Policy Reform, v. 24, n. 2, p. 95-118, 2021.; CLIFTON, 2020 CLIFTON, J. et al. Falling Inequality in Latin America: The Role of Fiscal Policy. Journal of Latin American Studies, v. 52, p. 317-341. 2020.). Nos anos recentes, contudo, outra lógica foi imposta, fazendo lembrar que o Estado capitalista é uma condensação contraditória, relacional e em disputa de forças e que, na maioria das vezes, afirma-se como instrumento de dominação de classes. É possível, então, vislumbrá-lo enquanto um agente crucial de mudança? Será factível, por meio de processos contra-hegemônicos diversos e multiescalares, forjar sujeitos, repolitizar processos, transformar a realidade e instituir outras estatalidades?

Tais perguntas, voltadas à natureza capitalista do Estado em perspectiva periférica, orientam este artigo, cujo propósito é abordar o caso do estado do Rio de Janeiro (ERJ) e, com isso, contribuir com as reflexões teórico-metodológicas sobre as políticas públicas e estatalidades na América Latina. A escolha desse procedimento se justifica pelas potencialidades que investigações sobre múltiplas visões de processos histórico-espaciais concretos, extraídas de casos situados, proporcionam. Ao lançar luz sobre condições contextuais e específicas, revelando similaridades e diferenças, apresenta-se tanto a “importância do caso em si” quanto a possibilidade de obter uma perspectiva comparada de mais longo alcance (RIDDER, 2017RIDDER, H. G. The theory contribution of case study research designs. Business Research, v. 10, pp. 281-305, 2017.; MITCHELL, 1983MITCHELL, J. C. Case and situational analysis. Sociological Review, v. 31, n. 2, p. 187-211, 1983.). Assim, não como um “teste de teoria”, o caso do ERJ se configura como aquilo que Lipietz (1988LIPIETZ, A. O capital e seu espaço. São Paulo: Nobel, 1988.) denominou de “campo ou banco de prova”.

Para tanto, na seção 1, apresentam-se questões atinentes às políticas públicas, estatalidades e capacidades governativas. Em seguida, na seção 2, discutem-se as experimentações neoliberalizantes recentes realizadas no ERJ, marcadas por restrições fiscais-financeiras que foram, contraditoriamente, impostas como solução para a crise multidimensional que o aflige, terminando por reforçar sua subjugação às pedagogias pró-mercado. Uma leitura das insuficiências da socioeconomia fluminense, apreciadas em termos multiescalares, elucida essa constatação. Diante das fragilidades governativas do atual arranjo, a seção 3 aponta para uma necessária e ousada promoção de políticas públicas de distinta natureza, desafiando e engendrando (outras) estatalidades, por intermédio das quais, imagina-se, seria possível recolocar a realidade do ERJ - e, por extensão, a brasileira - na trilha de uma experiência sociopolítica fundamentada em novos valores coletivos e democráticos.

1. Estado, políticas públicas, estatalidades e capacidades governativas em contexto de difusão de dispositivos neoliberais

Na discussão sobre políticas públicas e estatalidades, é fundamental analisar se - e como - o Estado estrutura e dispõe de capacidades governativas, isto é, de habilidades e condições para exercer uma ação estratégica e coesa do aparato burocrático e de suas instâncias, em vista de seus objetivos constitucionais e/ou estratégicos, inclusive à escala subnacional. Nesses termos, a ação pública deveria se expressar em uma territorialização da oferta de bens e serviços, cujo propósito seria reconhecer, atingir e transformar a vida cotidiana das pessoas (SOUZA, 2017SOUZA, C. Modernização do Estado e construção de capacidade burocrática para a implementação de políticas federalizadas. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 51, n. 1, p. 27-45, 2017.).

Auxilia esse enfoque a concepção de capacidades infraestruturais de Mann (1984MANN, M. The autonomous power of the state: its origins, mechanisms and results. European Journal of Sociology, v. 25, n. 2, p. 185-213, 1984.; 2008MANN, M. Infrastructural power revisited. Studies in Comparative International Development, v. 43, p. 355-365, 2008.), noção aperfeiçoada por Chibber (2002CHIBBER, V. Bureaucratic rationality and the developmental state. American Journal of Sociology, v. 107, n. 4, p. 951-989, jan. 2002.), Fernández e Puente (2013FERNÁNDEZ, V. R.; PUENTE, M. J. G. Estado, producción y desarrollo: las capacidades nodales en una perspectiva latinoamericana. Revista Estado y Políticas Públicas, Buenos Aires, Flacso, n. 1, p. 19-46, 2013.) e Puente (2020)PUENTE, M. J. G. Transformaciones del Estado y desarrollo industrial: capacidades estatales de la Provincia de Santa Fe (2000-2013). Santa Fe: UNL, 2020. para referenciar o Estado como articulador nodal de uma estratégia político-econômica sistêmica. Nessa linha, pressuposta a superação do viés de fragmentação e de superposição da intervenção governamental, engendrar-se-ia a coordenação, a interdependência e o direcionamento de ações públicas socialmente legitimadas cujos resultados demonstrariam a coerência e a coesão das arenas decisórias das estatalidades.

O exame dos dispositivos com os quais o Estado se credencia a enfrentar problemas sociais é um requisito para qualquer análise relativa à capacidade estatal de promover e coordenar ações e estratégias renovadas de desenvolvimento (AGUIAR; LIMA, 2019AGUIAR, R. B.; LIMA, L. L. Capacidade estatal: definições, dimensões e mensuração. BIB, n. 89, p. 1-28, 2019.). Tal investigação se exprime em um marco interpretativo assentado sobre um balanço multiescalar de poder e espaço, em que os compromissos, as competências e coalizões, os conflitos e as negociações devem ser discutidos (GARCÍA, 2014GARCÍA, A. Espacio y poder en las políticas de desarrollo: un marco teórico interpretativo para escenarios emergentes. In: GARCÍA, A. (comp.). Espacio y poder en las políticas de desarrollo del Siglo XXI. Buenos Aires: CONICET-GER, 2014, p. 30-69.; 2020GARCÍA, A.; ROFMAN, A. Circuitos productivos regionales: apuntes para una renovada herramienta analítica sobre procesos económicos en América Latina a principios de siglo XXI. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais (Anpur), v. 22, p. 1-22, 2020.).

Provavelmente, os maiores antagonistas de um Estado capaz de se constituir em efetivo agente de mudança social na América Latina - ao lado das forças políticas retrógradas, sempre recombinadas com as forças “mais modernas” imperializantes - jazem no processo de neoliberalização. Há mais de quatro décadas, dispositivos, mecanismos e instrumentos propulsores de valores mercadológicos vêm se incrustando em variados domínios e instâncias da vida social, com repercussões adaptáveis a cada conjuntura e lugar (HALL; MASSEY, 2010HALL, S.; MASSEY, D. Interpreting the crisis. Soundings, n. 44, p. 57-71, 2010.). Sob tal periodização, as políticas públicas e a estatalidade estão sujeitas ao discurso da austeridade (BLYTH, 2017BLYTH, M. Austeridade: a história de uma ideia perigosa. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.) e aos ditames da razão neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.), a despeito da crise econômica, política, moral, institucional (INNERARITY, 2017INNERARITY, D. A política em tempos de indignação: a frustração popular e os riscos para a democracia. São Paulo: Ed. Leya, 2017.) e, agora, sanitária (MÉNDEZ, 2020MÉNDEZ, R. Sitiados por la pandemia: del colapso a la reconstrucción - apuntes geográficos. Madrid: Revides, 2020.) pela qual boa parte dos países do mundo vem passando.

Cabe, então, qualificar as experimentações de uma neoliberalização (BRENNER; PECK; THEODORE, 2012 BRENNER, N; PECK, J.; THEODORE, N. Após a neoliberalização? Caderno Metrópoles, v.14, n. 27, p. 15-39, 2012.) que, à escala mundial, buscam nada menos que a sujeição, à pedagogia do mercado (WERNER; ROCHA, 2020 WERNER, D.; ROCHA, C. A pandemia Covid-19 como pedagogia neoliberalizante no Brasil. Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas , UESB, v.17, n. 30, p. 218-226, 2020.), de tudo aquilo quanto estiver exteriorizado em relação às imposições das prefigurações mercantis. Quando exitosa, essa tendência resulta em uma subalternização, dificilmente reversível, de localidades e arenas cada vez mais amplas aos preceitos dos mercados. Não há, porém, fatalismo ou inexorabilidade: a neoliberalização é um processo incompleto, contraditório, contestado e complexo. Possui natureza fungível, dependente da trajetória do lugar onde vai se materializar. Aberta em relação ao futuro, hibridiza-se em ambiências cujos contornos institucionais estão em permanente mutação. Ao negar uma acepção geral (“neoliberalismo”) ou abstrata (“ideologia neoliberal”), tal processo de reestruturação regulatória pró-mercado engendra transformações socioespaciais que procuram invadir, a um só tempo, escalas, espaços e agentes com distintas dotações de poder político-econômico.

A neoliberalização vai se legitimando por intermédio de rodadas e agenciamentos cujo nexo é a ação favorável ao mundo privado. Primeiro, enfrenta e procura desorganizar a capacidade de ação pública: o Estado, desestruturado, se vê incapaz de atuar enquanto instância redistributiva e promotora do desenvolvimento. Depois, instaura-se um regime adaptável e reescalonável de governança (BRENNER, 2004BRENNER, N. New state spaces: urban governance and the rescaling of statehood. Oxford: Oxford University Press, 2004.), mediante (re)arranjos regulatórios que aprofundam desmantelamentos institucionais e estabelecem uma conivência privado-pública específica (BLYTH, 2017BLYTH, M. Austeridade: a história de uma ideia perigosa. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.; PECK, 2012PECK, J . Neoliberalismo y crisis actual. Documentos y Aportes en Administración Pública y Gestión Estatal, v. 12, n. 19, p. 7-27, 2012.).

Analisar a neoliberalização permite diagramar diferentes efeitos e mosaicos da radical mercadejação de tudo. Na América Latina, ela condensa e renova o histórico estatuto de dependência e subalternidade tipificado em contradições sociais, políticas, econômicas e ideológicas (FIORI, 2018FIORI, J. L. As trajetórias intelectuais do debate sobre desenvolvimento na América Latina. In: BRANDÃO, C . (org.). Teorias e políticas do desenvolvimento latino-americano. Rio de Janeiro: Contraponto, 2018, p. 17-46.), particularizando instrumentações espoliativas, truncadas e rentistas-patrimonialistas, discrepantes do sentido emancipatório do desenvolvimento. Enfrentar o processo complexo, proativo, multidimensional, multiescalar, híbrido e adaptativo de neoliberalização, buscando construir uma outra lógica pública, coletiva e estatal, envolve alimentar e legitimar uma concepção ampla e cidadã de desenvolvimento.

Nesse sentido, Furtado (2013FURTADO, C. O desenvolvimento do ponto de vista interdisciplinar. In: AGUIAR, R. Essencial Celso Furtado. São Paulo: Penguin/Cia. das Letras, 2013, p. 197-235.) se atenta para as rupturas e permanências do verdadeiro desenvolvimento, enquanto Paula (2016 PAULA, J. A. Desenvolvimento: tentativa de conceptualização. Revista Eletrônica Gestão & Sociedade, v. 10, n. 27, p. 1523-1539, set./dez. 2016.) esclarece que elas vão sendo, historicamente, redefinidas. Trata-se, pois, de um processo com peculiaridades concretas e contingentes, qualificadas pela interação entre sujeitos, estruturas e instituições que objetivam determinada finalidade. Assim, a construção do desenvolvimento deve ser permanente e não pode ser confundida nem com uma doutrina, nem com um resultado acabado (um tipo ideal) ou uma condição natural. Em expansão, o escopo do desenvolvimento é tão amplo quanto a capacidade social de identificar necessidades coletivas correntes ante a expansão contraditória e antagônica da base material que o sustenta: o capitalismo. Assim o demonstram as renovadas dimensões - ambiental, justiça social, igualdade racial, igualdade de gênero, entre outras - que, ao longo dos anos, corporificaram e vicejaram o desenvolvimento para além da modernização econômica.

Na esteira dessa porosidade, empreenderam-se estratégias e políticas de desenvolvimento (PAULA, 2016 PAULA, J. A. Desenvolvimento: tentativa de conceptualização. Revista Eletrônica Gestão & Sociedade, v. 10, n. 27, p. 1523-1539, set./dez. 2016.). Muitas delas proporcionaram à sociedade - via saltos emancipatórios - o usufruto de maiores margens de liberdade e criatividade, ao tempo que conquistas pretéritas eram preservadas. Ressalte-se, contudo, que esse é um processo lento, não pré-determinado, não-linear, e, sobretudo, ativo e sujeito a embates contínuos, posto que condensa e repercute interesses e posicionalidades diversas, divergentes e conflituais. Nesse sentido, essa orientação teórico-conceitual-metodológica, ao revelar as composições sociais, as concertações políticas que orientam estratégias de agentes com poderes desiguais de decisão, só pode conduzir a estudos específicos das realidades concretas, ou seja, situadas no tempo e no espaço. Daí a importância de buscar a posicionalidade geográfico-histórica da investigação de casos situados e relacionais, como se pretende realizar, em seguida, com o quadro da estrutura-conjuntura fluminense.

2. Experimentações neoliberalizantes recentes no estado do Rio de Janeiro

O estado do Rio de Janeiro é um caso paradigmático para a compreensão territorializada das restrições que a neoliberalização ocasiona à capacidade governativa. Trata-se de um espaço heterogêneo, desigual e complexo (DAVIDOVICH, 2000DAVIDOVICH, F. R. Estado do Rio de Janeiro: singularidade de um contexto territorial. Revista Território, Rio de Janeiro, n. 9, p. 10-24, jul./dez. 2000.), sujeito a surtos cíclicos de crescimento que logo se vão e explicitam o histórico rastro de incompletude de sua formação socioespacial. Nele, pouco se avançou rumo a novos horizontes materiais, simbólicos e institucionais.

Uma leitura da trajetória recente do ERJ, cerceada por três décadas de neoliberalização, expõe as geometrias de poder que condicionam, e por vezes interditam, o exercício de ações públicas desatadoras do usufruto de conquistas cidadãs com justiça socioespacial. Tais estratégias poderiam ser orientadas por uma ousada “provisão de bens, infraestruturas e serviços públicos e coletivos” (BRANDÃO, 2015BRANDÃO, C . Transformar a provisão de bens e serviços públicos e coletivos nos espaços urbanos e regionais do Brasil. E-metropolis, n. 26, p. 6-14, 2015.). A leitura revela, além disso e com grande senso de urgência, uma sistemática decadência econômica, política, institucional e moral em uma das principais unidades da federação brasileira, a qual foi agravada pela pandemia de Covid-19.

Com efeito, entre a década de 1990 e o início do século XXI, o traço especializado e regressivo da estrutura econômica do ERJ foi aprofundado (HASENCLEVER; PARANHOS; TORRES, 2012HASENCLEVER, L.; PARANHOS, J.; TORRES, R. Desempenho econômico do Rio de Janeiro: trajetórias passadas e perspectivas futuras. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 55, n. 3, p. 681-711, 2012.). Elos intersetoriais foram perdidos e a dinâmica estadual orientou-se por vantagens competitivas estáticas, em especial no grupo de processamento contínuo de petróleo. Assim, a economia fluminense foi subordinada à realização de investimentos estatais - dados o porte e a complexidade dos projetos petrolíferos - e aos ditames da conjuntura externa, com destaque para as variações especulativas dos preços internacionais da referida commodity.

Na segunda década do século XXI, a iminente implantação de grandes projetos de investimentos públicos e privados criou a expectativa de que transformações estruturantes e disruptivas seriam ocasionadas e desencadeariam uma radiação dinâmica no território fluminense. Haveria uma renovação de fronteiras de expansão industrial e de infraestrutura física, reduzindo desigualdades socioespaciais (AJARA, 2006AJARA, C. Configurações econômico-espaciais no estado do Rio de Janeiro: ENCE 50 anos. Rio de Janeiro: IBGE/ENCE, 2006. ). Ao espaço urbano-metropolitano já existente, somar-se-ia o deslocamento extensivo rumo à hinterlândia e às bordas do ERJ.

Essas expectativas não se confirmaram, haja vista a interrupção ou realização pontual do que fora planejado (LUMBRERAS; PIQUET, 2020 LUMBRERAS, M. J.; PIQUET, RPS . Riqueza movida à petróleo: maldição ou alavanca para o desenvolvimento? Novos Cadernos NAEA, v. 23, p. 59-80, 2020.). Frustrado o cenário de crescimento baseado na produção de riqueza nova, instalou-se um quadro de crise multidimensional e renovados desafios à gestão pública estadual. Cedeu-se a vez ao rentismo como estratégia de acumulação, alçando a finança a uma posição hegemônica, inclusive nos assuntos governamentais, o que inviabilizou avanços na capacidade governativa. Enfrentamentos estruturais, quase não houve.

O caso fluminense equipara-se2 2 Gostaríamos de agradecer aqui os instigantes comentários e sugestões de um(a) dos(as) pareceristas, que formulou essa importante disjuntiva, chamando a atenção para o fato de o ERJ ser uma espécie de “antessala” em relação ao que depois viria a se processar no Brasil. O/A parecerista afirmou: “Talvez devêssemos refletir se o Rio de Janeiro, com sua decadência histórica, não antecipa o que acontece com o Brasil: a incapacidade de manter sua indústria e, por consequência, diversificar sua base produtiva ante o desinteresse de uma elite parasitária que desde sempre preferiu aplicar seus recursos fora da órbita produtiva”. , com maior dramaticidade, aos caminhos e descaminhos que seriam trilhados pelo Brasil durante os últimos trinta anos (DAIN, 1990DAIN, S. Rio de todas as crises: crise econômica (Série Estudos e Pesquisas, n. 80). Rio de Janeiro: IUPERJ, 1990. ; LESSA, 2000LESSA, C. O Rio de todos os brasis: uma reflexão em busca de autoestima. Rio de Janeiro: Record, 2000. ; OLIVEIRA, 2019bOLIVEIRA, L. D. Geografia do colapso: crise e desestruturação produtiva na realidade metropolitana do Rio de Janeiro, Terra Livre, v. 33, n. 1, p. 131-158, 2019b.). Nessa escala ou nível estadual, precipitando ou antecipando o que viria a ocorrer na escala nacional, iria se processar uma combinação acomodatícia e itinerante de interesses albergados em regulações públicas privatistas e com impactos econômicos e socioambientais regressivos. Essa paridade ou “vanguarda” espúria fluminense coloca potentes condicionantes às suas economia e sociedade específicas, sumarizadas em sérias dificuldades macrodecisórias estatais, travando quaisquer perspectivas quanto ao desenvolvimento mais sustentado e durável.

Nas últimas décadas, no ERJ, as oportunidades surgidas, além de logo revertidas, não possibilitaram a adoção de preceitos de justiça social nem a implementação de outra construção político-institucional orientada à afirmação emancipatória da coletividade.

Embora a intensa e multifacetada crise estadual tenha, em cada circunstância, naturezas, profundidades e nuances específicas, remete à estrutural e restrita especialização produtiva, que delimita e constrange incipientes encadeamentos intersetoriais em ínfima fração territorial (NATAL; CRUZ, 2021NATAL, J. L. A.; CRUZ, J. L. V. Ensaio sobre a economia fluminense: da crise histórico-estrutural alheada à crise manifesta. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, Rio de Janeiro, n.18, jan-jun. 2021.). Tal quadro compromete, pela via fiscal, a capacidade governativa e reitera a ideia do “Rio de todas as crises” (DAIN, 1990DAIN, S. Rio de todas as crises: crise econômica (Série Estudos e Pesquisas, n. 80). Rio de Janeiro: IUPERJ, 1990. ), enublada pela retórica da insolvência e pela agenda de austeridade que pretende restituir as condições de equilíbrio das contas públicas, que ficaram comprometidas, pelo lado das receitas, após as alterações no regime de partilha dos royalties do petróleo, ocorridas nos primeiros anos da década de 2010.

Nessa linha, conjuga-se a Lei estadual nº 7.629, de 9 de junho de 2017, que autoriza o chefe do executivo estadual a aderir ao regime de recuperação fiscal dos estados e do Distrito Federal, instituído pelo Governo Federal mediante a Lei Complementar nº 195, em 19 de maio de 2017. Enuncia-se, no programa, um senso de obrigação, autodisciplina e penitência, ante frequentes ameaças, retaliações e restrições causadas por uma hipotética não adesão, além da possibilidade de que se realizem privatizações e substantivos cortes nos (supostamente excessivos) gastos estatais.

A austeridade é sancionada face ao temor - ou à certeza - da malversação gerencial de recursos. Essa retórica da crise (JESSOP; KNIO, 2019JESSOP, B.; KNIO, K. The pedagogy of economic, political and social crises: dynamics, construals and lessons. London: Routledge, 2019.) interpõe um garroteamento cuja temporalidade é trina: pune os excessos de um passado de gastança irresponsável, posto que não se verificam entregas correspondentes de bens e serviços; apeia a margem de manobra de turno, dado o apequenamento de uma máquina estatal opaca e ineficiente; e, no futuro, faz um chamamento ao sacrifício, impondo aos gestores públicos a responsabilidade inarredável e precípua do equilíbrio fiscal-financeiro.

A neoliberalização, metamorfoseando-se e adaptando-se continuamente a cada tempo-espaço concreto,3 3 As características de plasticidade e hibridez do processo evolutivo-adaptativo de neoliberalização são fundamentais para dialogar com as importantes ponderações realizadas por um(a) parecerista. Entendemos que o processo de neoliberalização fluminense (como toda lógica ativa-evolutiva pró-mercado) é “customizado”, plástico e adaptado ao lugar. Logo, não é um “pacote” passivo, unilateral, homogêneo ou “fechado” de medidas ou práticas. Assim, a variante fluminense pode ser (e realmente o é, do nosso ponto de vista) muito mais aguda, complexa e profunda do que nos seus congêneres estaduais, em outras escalas regionais brasileiras ou mesmo na escala nacional. introjeta pós-verdades autocráticas e pós-democráticas novo-normalizadas no cotidiano (SARDAR, 2010SARDAR, Z. Welcome to postnormal times. Futures, n. 42, p. 435-444, 2010.). Enquanto se repete, à exaustão, o mantra economicista de que não há dinheiro para as políticas sociais, prioriza-se a atração de investimentos privados por meio de isenções tributárias, oferta de crédito a baixo custo e desenhos regulatórios “inovadores”, como as concessões e as parcerias público-privadas. Sob o fetiche da eficiência gerencial do Mercado, realoca-se - em vez de reduzir-se - o cerne da intervenção do Estado, que dá lastro financeiro e normativo à privatização de bens outrora públicos/coletivos.

Diante disso, é possível identificar fissuras e brechas pelas quais oportunidades emancipatórias viriam a ser aproveitadas para orientar a ação pública no ERJ e engendrar outras condições de existência social?

Para encontrar respostas, convém considerar que a mercadejação neoliberalizante não pode ser vista em oposição ao Estado nem estar restrita à destruição ou alienação dos mecanismos redistributivos da máquina governamental. O abandono do maniqueísmo público-privado mostra que essa instância é uma condensação relacional de forças, uma arena de conflitos em que lógicas contraditórias estão em organização e disputa (OFFE; RONGE, 1984OFFE, C.; RONGE, V. Teses sobre a fundamentação do conceito de “estado capitalista” e sobre a pesquisa política de orientação material. In: OFFE, C. Problemas estruturais do Estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 122-137.). Molda-se a estatalidade aos interesses preponderantes e às transformações estruturais derivadas da ambiência de negócios, espelhando o caráter plástico-adaptativo e multiescalar de transformações ancoradas pela governança da neoliberalização, concretizadas por sequenciamentos de roll back e roll out (PECK; TICKELL, 2002 PECK, J .; TICKELL, A. Neoliberalizing space. Antipode, v. 34, n. 3, p. 380-404,2002.) em vários mundos (do urbano, do trabalho, da regulação etc.).

Primeiro, externam-se ataques ofensivos, desorganizadores dos centros de poder e dos espaços burocráticos previamente constituídos. Desenvolvem-se vários métodos de disciplinamento e, então, vivifica-se, em linha com a coalizão predominante de interesses, o redesenho regulatório que reconfigura modos de governança. O emprego desse referencial para o exame da realidade do ERJ revela um desmantelamento institucional contínuo desde meados dos anos de 1990. Embora com diferentes nuances postas pelo perfil político-partidário das lideranças de turno (OSÓRIO; REGO; VERSIANI, 2017 OSÓRIO, M.; REGO, H. R. S.; VERSIANI, M. H. Rio de Janeiro: trajetória institucional e especificidades do marco de poder. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense , n. 13, p. 73-92, 2017.), vão-se três décadas de impregnação ininterrupta de agenciamentos de conformação aos preestabelecimentos orientadores das lógicas mercadológicas.

Apreender e captar as diversas manifestações da capacidade estatal é um intento que se beneficia, em muito, da confluência teórico-metodológica entre a geografia crítica e a economia política. Os circuitos espaciais (GARCÍA; ROFMAN, 2020GARCÍA, A.; ROFMAN, A. Circuitos productivos regionales: apuntes para una renovada herramienta analítica sobre procesos económicos en América Latina a principios de siglo XXI. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais (Anpur), v. 22, p. 1-22, 2020.) pelos quais flui o excedente econômico revelam a composição multifacetada de forças que engendraram transformações socioeconômicas no ERJ. Aquela conjunção transdisciplinar habilita a apuração das inter-ramificações econômico-setoriais, inter-regionalidades, interurbanidades e interestatalidades que tecem o espaço fluminense, prefaciando os desafios postos à estatalidade em contexto de neoliberalização.

As inter-ramificações econômico-setoriais traduzem a constituição do aparelho socioprodutivo em dado recorte espacial. Isto é, expõem as manifestações concretas e territoriais dos processos de produção, consumo, distribuição e apropriação do excedente. Evidenciam, ademais, a coerência espaço-decisória da circulação e a reprodução do capital, indicando maior/menor densidade e complexidade intersetorial para constituir mais permanentes e enraizadas interações.

No ERJ, essas complementaridades são limitadas e denotam a primazia da especialização na extração e no processamento de petróleo (PIQUET, 2003PIQUET, R . (org.). Norte Fluminense: uma economia petrodependente. Rio de Janeiro: Telha, 2021.). Carece ao estado maior potência propulsiva para ampliar os efeitos encadeadores do sistema social de produção. Isso pressupõe a identificação de elos constitutivos e faltantes na economia estadual, bem como dos segmentos capazes de desempenhar o papel de núcleos de radiação dinâmica, entre os quais constam aqueles das cadeias petroquímicas, siderúrgicas e navais (SILVA, 2012SILVA, R. D. Indústria e desenvolvimento regional no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.).

A forte participação dos serviços e empresas estatais no produto social, bem como o peso das indústrias de base/intermediárias e das atividades de extração mineral são, ainda, temperados por intensas heterogeneidades intersetoriais. A economia fluminense segue com insuficiente competitividade no comércio exterior e restrita incorporação de setores de ponta em bens duráveis e de capital, resultando em baixa promoção de inovações tecnológicas e inclusão social (SOBRAL, 2017SOBRAL, B. L. B. A evidência da estrutura produtiva oca: o estado do Rio de Janeiro como um dos epicentros da desindustrialização nacional. In: MONTEIRO NETO, A.; CASTRO, C. N.; BRANDÃO, C . (orgs.). Desenvolvimento regional no Brasil: políticas, estratégias e perspectivas. Brasília: IPEA, 2017. p. 397-426.).

As inter-regionalidades representam o plano analítico centrado na coesão e integridade dos processos que se dão em determinado espaço e nas possibilidades de sua inserção em outros âmbitos. Esse conceito capta a pluralidade formal da integração econômica mediante elementos materiais e simbólicos reunidos e combinados segundo uma coerência estruturada ou imposta pelas articulações multiescalares da acumulação.

No ERJ, a conjuntura de crise dos anos de 2010 reiterou a dificuldade estrutural de realizar a ancoragem espacial de processos econômicos e sociais cujas determinações decisórias escapam aos agentes estaduais. Mantiveram-se, no território, esparsas relações inter-regionais (MOREIRA, 2003MOREIRA, R. (org.). A reestruturação industrial e espacial do Estado do Rio de Janeiro. Niterói: Edições PPGEO-UFF, 2003.). Interações, quando existem, reafirmam a hierarquização metropolitana, além da proeminência privada, o que termina fragilizando a atuação estatal. A incipiente articulação de subespaços torna ainda mais truncada a já restrita projeção do dinamismo produtivo, reiterando a baixa capacidade de espraiamento e enlaces à escala regional (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2020OLIVEIRA, F. J. G.; OLIVEIRA, L. Espaço metropolitano, regionalização da economia e reestruturação produtiva no Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cuyonomics - Investigaciones en Economía Regional, ano 3, n. 5, 2020.).

As interurbanidades expressam a organização social que a reprodução material e coletiva projeta na rede de cidades. Essa mirada mostra, também, práticas e planos disputados por diferentes sujeitos e agentes sociais em torno à produção do espaço, seja ela voltada à modernização de estruturas produtivas regionais, seja à sociabilidade.

No ERJ, a rede urbana sofre uma influência peremptória da cidade de São Paulo (a qual começa a se alastrar na direção do Norte fluminense) e, em boa medida, abarca e é abarcada pelo polígono produtivo para cujo interior, desde os anos 1990, a indústria se deslocou em busca de vantagens locacionais (DINIZ, 1993DINIZ, C. C. Desenvolvimento poligonal no Brasil: nem desconcentração, nem contínua polarização. Nova Economia, v. 3, n.1, p. 35-64, 1993.). Resta-lhe o caráter ainda centrípeto proporcionado pela especialização petrolífera, porém cada vez mais poroso a comandos exógenos, determinados por modificações regulatórias setoriais (ZANOTELLI et al., 2019ZANOTELLI, C. et. al. Bacia urbano-regional do petróleo: a zona costeira do Espírito Santo associada ao estado do Rio de Janeiro. Confins, n.41, p.1-45, 2019.).

Acrescente-se que os impactos espacialmente concentrados de grandes projetos com características de enclave - isto é, que pouco dinamizam mesmo o seu entorno mais imediato - impedem o ERJ de romper a lógica hermética dos investimentos em sua hinterlândia (CASTRO; PIQUET, 2019CASTRO, R. H.; PIQUET, R. O complexo portuário do Açu e sua influência no mercado de trabalho em São João da Barra. Revista de Desenvolvimento Econômico, v. 3, p. 252-272, 2019.; TORRES; CAVALIERI; HASENCLEVER, 2013 TORRES, R.; CAVALIERI, H.; HASENCLEVER, L. O petróleo e os enclaves do desenvolvimento econômico fluminense. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense , Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, p. 17-35, jul./dez. 2013.). A não-irradiação por um território mais ampliado dificulta a estruturação de encadeamentos virtuosos e dinâmicos e ramificações intersetoriais no interior. Muito disso se deve ao fato de as infraestruturas logísticas terem acentuado os frouxos enredamentos entre o núcleo polarizado de ocupação de uma capital tensionada pela dialética da legalidade/ilegalidade e o restante do território.

As interestatalidades exprimem ações que, no âmbito de relações sociais mais amplas e multiescalares, incorporam-se no aparelho governamental e materializam-se institucionalmente. Uma primeira vantagem dessa perspectiva é que ela supera o caráter exteriorizado, binário e segmentado do Estado em relação aos interesses sociais. Ademais, ela melhor territorializa a abrangência da estatalidade, particularizando efeitos e consequências não necessariamente delimitados ao local.

No ERJ, vislumbra-se o esvaziamento da histórica centralidade político-institucional, a chamada capitalidade, ponto importante do debate das crises fluminenses. Outrora capital do país, a cidade do Rio de Janeiro vê decrescer, desde a inauguração de Brasília, a influência política que chegou a exercer sobre a organização territorial do Brasil (OSÓRIO, 2005OSÓRIO, M. Rio nacional/Rio local: mitos e visões da crise carioca e fluminense. Rio de Janeiro: Senac Rio, 2005.). Além da perda de jugo federativo, avolumam-se desafios ante uma incômoda decadência econômica.

Já há uma consistente literatura que polemiza sobre as especificidades da socioeconomia fluminense.4 4 Realiza-se aqui um diálogo com um(a) dos(das) pareceristas que corretamente afirmou que “não seria prerrogativa do ERJ ter mergulhado em uma situação crítica e agravada pela neoliberalização dos anos 1990 em diante. Outros estados são tão ou mais especializados que o Rio de Janeiro, e não apresentam os mesmos problemas fiscais e, por consequência, a mesma dificuldade para financiar políticas públicas, embora todos tenham aderido ao neoliberalismo. Por que, então, o “extrativismo” seria pior para o Rio de Janeiro do que para outros estados?”. Estas são questões cruciais que devem orientar estudos (se possível, coletivos) baseados em uma metodologia relacional e comparativa de casos situados brasileiros. Dados o escopo e os objetivos específicos deste artigo, podemos, no máximo, apontar algumas hipóteses para futuros trabalhos. As análises dos descensos e impasses sociais, políticos e econômicos, enraizados e de longa duração, apresentam diversas abordagens, prismas metodológicos e dimensões. O ERJ seria um espaço particular: lócus privilegiado da “acumulação oblíqua de capitais” mercantis-especulativos (LESSA; DAIN, 1982LESSA, C.; DAIN, S. Capitalismo associado: algumas referências para o tema Estado e desenvolvimento. In: BELLUZZO, L. G.; COUTINHO, R. Desenvolvimento capitalista no Brasil: ensaios sobre a crise. São Paulo: Brasiliense, 1982.); “caixa de ressonância dos problemas nacionais” (MOTTA, 2000MOTTA, M. S. O Rio de Janeiro continua sendo? Rio de Janeiro, CPDOC, 2000.); apresentando uma “estrutura produtiva oca” (SOBRAL, 2017SOBRAL, B. L. B. A evidência da estrutura produtiva oca: o estado do Rio de Janeiro como um dos epicentros da desindustrialização nacional. In: MONTEIRO NETO, A.; CASTRO, C. N.; BRANDÃO, C . (orgs.). Desenvolvimento regional no Brasil: políticas, estratégias e perspectivas. Brasília: IPEA, 2017. p. 397-426.); com potentes heranças histórico-estruturais (NATAL; CRUZ, 2021NATAL, J. L. A.; CRUZ, J. L. V. Ensaio sobre a economia fluminense: da crise histórico-estrutural alheada à crise manifesta. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, Rio de Janeiro, n.18, jan-jun. 2021.); singularidades de seu “marco de poder” (OSÓRIO; VERSIANI, 2013OSÓRIO, M; VERSIANI, M. H. O papel das instituições na trajetória econômico-social do Estado do Rio de Janeiro. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense , n. 2, p. 188-210, 2013. ).

Entendemos que todas essas diferentes nuances, perspectivas e ênfases em dimensões variadas são importantes para uma interpretação de conjunto da situação fluminense. Elas podem contribuir e convergir para o estudo dos processos que minam a recuperação e a diversificação econômica, bem como a sustentação de ciclos econômicos expansivos. Todas essas abordagens auxiliam no entendimento de porque a crise, nesta unidade da federação, apresente a característica de ser mais estrutural, sistêmica, multidimensional e de longo prazo do que a de outros estados brasileiros.

Outros fatores que se retroalimentam poderiam, ademais, ser destacados. Não há apenas condicionantes estruturais de uma economia acentuadamente “petrodependente”, mas também uma débil articulação de atividades de suporte e uma insuficiente infraestrutura, ou seja, uma fraca retaguarda de atividades de abastecimento de bens e serviços em suas hinterlândias imediatas e distantes. Tais deficiências conformam uma economia que tem enormes dificuldades em espraiar, transmitir intra-regionalmente e interiorizar seus dinamismos.

Em suma, há uma recombinação do “atrasado” (retrógrado) e do “moderno” (contemporâneo) com as deficiências e fragilidades das variadas estruturas (econômico-produtivas; ocupacionais, sobretudo do mercado formal de trabalho; de distribuição de renda e riqueza; burocrático-estatais etc.). Assim, as tentativas de explicação do conjunto de dificuldades para a superação da multifacetada crise fluminense não podem ficar restritas a apenas uma dimensão ou fator. Não basta identificar as relações simples e lineares de causa-efeito, mas buscar desvendar uma conjugação de múltiplas interdependências dos fenômenos econômicos, sociais e políticos, em processo de causação circular cumulativa (MYRDAL, 1957MYRDAL, G. Teoria econômica e regiões subdesenvolvidas. Rio de Janeiro: Saga, 1972, 3a Edição.): entrelaçamento equivalente a uma condensação complexa, no tempo e no espaço, de contradições histórico-estruturais.

Adicionalmente, a problemática fragilidade das máquinas estadual e municipais, inclusive da capital, inibe a concertação de interesses que poderiam descortinar um horizonte articulado de ações de longo prazo no território fluminense (SANTOS, 2017SANTOS, A. M. S. P. Política urbana no contexto federativo brasileiro: aspectos institucionais e financeiros. Rio de Janeiro: UERJ, 2017.; OSÓRIO; VERSIANI, 2013OSÓRIO, M; VERSIANI, M. H. O papel das instituições na trajetória econômico-social do Estado do Rio de Janeiro. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense , n. 2, p. 188-210, 2013. ).

Isso ganha particular relevância em vista dos percalços enfrentados pela governança metropolitana no ERJ. São notáveis os entraves e retrocessos jurídico-normativos à gestão participativa e à instrumentação de aparatos administrativos que deem suporte a uma efetiva coesão nessa escala, mais ainda diante das proposições da Proposta de Emenda Constitucional nº 188/2019, que prevê a fusão de municípios e, em consequência, a reestruturação da oferta de serviços públicos. Faceiam-se confrontamentos que fragilizam, ainda mais, o atendimento conjunto das demandas da cidadania.

Reforçando a neoliberalização, o regime de recuperação fiscal do ERJ passou pela “imperiosa” necessidade de privatizar a Companhia Estadual de Água e Esgoto do Rio de Janeiro (Cedae), tida como requisito para o reequilíbrio financeiro estadual. A desestatização da Eletrobras (medida provisória nº 1.031/2021), sediada no Rio de Janeiro, manifesta como os rearranjos legislativo-regulatórios, à escala federal, repercutem pela via da interestatalidade no espaço fluminense.

Ao invés de instigar a conformação de elementos políticos redutores de incertezas e neutralizadores de instabilidade e oportunismos, prevalece, no ERJ, um ajustamento passivo entre os miniciclos políticos e as imposições da pedagogia neoliberalizante. Desvia-se a agenda pública do desejável debate acerca do fortalecimento das estruturas públicas de planejamento, pondo em segundo plano políticas que, para além da recuperação fiscal, fundamentar-se-iam em um processo consistente de desenvolvimento de natureza mais durável e com justiça socioespacial.

3. Reformatação de políticas públicas: engendrando (outras) estatalidades no território fluminense

Além das mesmas ou semelhantes mazelas e das desigualdades multidimensionais que o país apresenta, outras destituições, muito específicas, recombinaram-se no ERJ. Mesmo em presença de crescimento econômico, não se verificaram melhorias sustentadas das condições de vida. Poucos foram os avanços das capacidades governativas estaduais para enfrentar problemas estruturais e/ou coordenar ações e estratégias mais ousadas, plurais e consistentes de desenvolvimento.

As contradições da regionalidade fluminense resvalaram para as dimensões institucional, administrativa, social e econômica. Isso facilitou a abertura de frentes pró-mercado e provocou profundas proscrições na estatalidade, com consequente destituição da maior parte da população em relação ao usufruto de direitos de cidadania. Revertê-las é um desafio de grande monta.

Por isso, convém reforçar a compreensão da maneira pela qual uma série de reconfigurações no aparato regulatório do Estado concretiza e chancela a privatização de bens e serviços públicos, uma condição necessária, mas insuficiente, para delimitar a incidência dos desígnios de mercado sobre tais bens/serviços. Necessária, porque o viés do capitalismo é tudo comodificar (POLANYI, 2000POLANYI, K. A grande transformação: as origens de nossa época. São Paulo: Campus, 2000.). Insuficiente, porque o padrão relacional das trocas de mercado, uma vez instituído, não deixa de prescindir de ajustamentos aos preceitos e comandos multiescalares e dinâmicos do regime do capital (BERNDT et al., 2020BERNDT, C. et al. Market/place: exploring spaces of exchange. Newcastle upon Tyne: Agenda Publishing, 2020.).

É dizer: na contemporaneidade, mais do que converter bens/serviços públicos em mercadoria, é necessário transformá-los em um ativo financeiro, perfilado a uma acumulação hegemonizada pela apropriação de rendas expectacionais ante o lucro. Para tanto, além de adequá-los técnica e operacionalmente ao padrão corporativo vigente, requer-se a performatização de estruturas de governança privada-pública ajustadas às condições hodiernas de concorrência, valorização e capitalização (BIRCH; MUNIESA, 2020BIRCH, K.; MUNIESA, F. Assetization: turning things into assets in technoscientific capitalism. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2020.).

A minoração das incertezas que rondam essas transfigurações conduz a uma compatibilização que, em termos de estatalidade, dá-se mediante modificações regulatórias, tributárias e financeiro-creditícias, que instituem uma governamentalidade baseada na dívida - pública e privada (LAZZARATO, 2017LAZZARATO, M. O governo do homem endividado. São Paulo: n-1 eds., 2017.). No que se refere à gestão das mercadorias-ativos, multiplicam-se transações de direitos de propriedade, materializadas em uma frenética frequência de aportes (cash in) e retiradas (cash out) de recursos no novo negócio. Essa prática especulativa desnuda a temporalidade curto-prazista que passa a reger a oferta de bens e serviços outrora públicos (MUNIESA, 2016MUNIESA, F. Setting the habit of capitalization: the pedagogy of earning power at the Harvard Business School, 1920-1940. Historical Social Research, v. 41, 2016. n. 2, p. 196-217.).

Portanto, a orientação pró-mercado não se limita apenas ao sentido das trocas mercantis que embasam a busca de lucros operacionais quase-monopólicos pós-privatização. Ao abarcar a configuração/reconfiguração de condições jurídico-normativas, políticas, creditícias e institucionais, esse processo, mais além da dimensão do empresariamento, institui um compósito ecossistêmico no âmbito do qual bens/serviços mercadorizados serão dotados dos atributos que permitem capitalizá-los.

Nesse sentido, pouco importa o valor de uso ou as características imanentes (fixidez, prazo de maturação) do bem/serviço que virá a ser mercadoria-ativo - embora, em geral, a insuficiência quali-quantitativa de sua oferta seja sempre ressaltada para denunciar a incapacidade estatal de provisioná-los. Redes logísticas (rodovias, ferrovias, hidrovias, portos, aeroportos), sistemas de telecomunicações, geração/transmissão de energia, serviços de ensino e saúde, abastecimento de água, tratamento de esgoto, habitação: tudo isso é passível a uma mercadejação guiada por parâmetros financeirizados.

A governança da mercadoria-ativo, perpetrada por investidores institucionais, gestores de fundos privados, frações de venture capital, consultorias internacionais, escritórios de advocacia etc., apruma o viés comodificador do capitalismo à financeirização mundial. Os mecanismos por eles operados fusionam-se, na América Latina, com as interdependências endógenas que definem a especificidade do subdesenvolvimento (BRANDÃO, 2022 BRANDÃO, C. El campo de los estudios urbanos y regionales desde el Sur: anotaciones acerca de los desafíos teóricos y las posibilidades de una reconstrucción teórico-metodológica crítica en la periferia del capitalismo. Revista EURE - Revista de Estudios Urbano Regionales, v. 48, n.144, p. 1-22, may. 2022. ; OLIVEIRA, 2021OLIVEIRA, F. L. P. Estado, desenvolvimento e saúde na encruzilhada do futuro. Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas, v. 18, n. 32, p. 51-67, jul./dez. 2021.). Essa mescla leva à acomodação mercantil-rentista de interesses que, conluiados, aprofundam a seletividade, a fragmentação e a exclusão típicas da espacialidade periférica (OLIVEIRA, 2019OLIVEIRA, F. L. P. Mediações teóricas para a análise da financeirização da produção do espaço na América Latina. Semestre Económico, v. 22, n. 50, p. 47-69, ene./mar. 2019a.).

Diante desse quadro, e tendo em vista a amplificação das contradições sociais e as vulnerabilidades do capitalismo subdesenvolvido Sul-Atlântico na realidade do ERJ, é possível vislumbrar uma estatalidade habilitadora de emancipação?

De antemão, o que se requer é uma ousada e abrangente agenda de desenvolvimento, a qual, à escala subnacional, perpassa pelo específico federalismo brasileiro. A convenção sociopolítica que amalgama entes não equipotentes econômica e politicamente é, em primeira instância, o meio pelo qual forjar-se-ia uma ação pública articulada, capaz de legitimar, inclusive, políticas regionais. A estatalidade federativa não pode ser - como tem sido - reduzida a mero instrumento harmonizador, facilitador e transmissor de desígnios privados, muitos dos quais beneficiados pela insuperada guerra fiscal.

Além de promover a ambiência macroeconômica para microiniciativas, o Estado deve assumir tensionamentos intrínsecos ao desenvolvimento. A repactuação federal costuraria, segundo várias lógicas e escalas, estratégias voltadas ao alargamento do horizonte de possibilidades dos cidadãos brasileiros e fluminenses. Dotada de natureza dialógica, ela estabeleceria o hábito de continuamente reelaborar e coproduzir escolhas sociais face aos desafios de uma realidade - nacional e estadual - com heterogeneidades, assimetrias e injustiças abissais.

Mediante uma sofisticada instrumentação do tipo upscaling-downscaling, a requalificação federativa da estatalidade substituiria ações fragmentadas, parciais e tópicas, tornando a atuação pública mais latente, sobretudo nas porções territoriais com debilidades socioeconômicas. Consorciamentos poderiam ser implementados para endereçar avanços governativos implementadores de políticas estruturantes.5 5 Um importante exemplo contemporâneo - em curso e que ainda não desdobrou todo o seu potencial - são as experimentações realizadas pelas estratégias de políticas públicas concertadas horizontalmente nos nove estados que compõem o Consórcio do Desenvolvimento Sustentável do Nordeste (SIQUEIRA; BRANDÃO, 2022).

Urge transformar, profundamente, o padrão de oferta e gestão de bens e serviços e de provisão de infraestruturas sociais de utilidade pública, posicionando o território no âmago dessa mudança, para melhor aproveitar os efeitos dinâmicos e sinérgicos que nele se enfeixam (WERNER; OLIVEIRA, 2022 WERNER, D.; OLIVEIRA, F. L. P. Infraestrutura no Brasil: da mercadejação à emancipação. In: MARQUES, J. C. S. et al. (orgs.). Pandemia e socioeconomia: os impactos da COVID-19 no Brasil, Nordeste e Maranhão. pp. 191-225. São Luís: EDUFMA, 2022.).

Para reposicionar o horizonte estratégico da ação estatal e afrontar a recalcitrante lógica de destituição, exploração e marginalização da razão neoliberal, uma premissa é situar a emancipação cidadã como princípio fundante. A intervenção pública, ao abandonar a fragmentação e a seletividade mercantil-rentista e promover a articulação do tecido socioprodutivo territorial a um sentido redistributivo, proporcionará os saltos emancipatórios típicos do verdadeiro desenvolvimento.6 6 Um questionamento posto por um(a) parecerista foi de que, no capitalismo, essa utopia talvez nunca se realize. Não obstante, queremos reafirmar neste artigo a importância de se levar à frente insurgências e disputas sociopolíticas e de legitimação democrático-popular para abrir brechas para o desenvolvimento como um processo contínuo e conflituoso, resultante de anseios coletivos e de arranjos de sujeitos em ação. A nosso juízo, as trajetórias de desenvolvimento devem se dar em torno do “alargamento dos horizontes de possibilidades civilizatórias”, uma luta constante pelo verdadeiro desenvolvimento, no sentido que lhe emprestou Celso Furtado (2013).

Com isso, os meios de reprodução e de consumo coletivo, em vez de reduzidos a mercadorias-ativos, funcionariam como instrumentos auxiliares para a formação ampliada das capacidades humanas. Assim, a estatalidade, pela via das inovações sociais e institucionais, melhor atacaria as vulnerabilidades sociais, legitimando, através das políticas públicas, a ruptura dos impasses colocados pela neoliberalização. Essa distribuição de capital básico social e equipamentos de utilidade pública consolidaria uma sociedade de direitos de massa, cuja premência as circunstâncias da pandemia de Covid-19 reiteram.

Conclusões

Vivemos uma conjuntura muito complexa e desafiadora, em que as contradições se condensam e explicitam no tempo-espaço presente. A luta pela democracia é a prioridade máxima; nesse contexto, seria decisivo aprofundar com a sociedade o necessário debate sobre políticas públicas, estatalidades e capacidades governativas. Apesar de a América Latina já contar com um enorme acúmulo de conhecimentos e reflexões críticas sobre tais questões, é importante atualizar e aprofundar, em estudos de casos situados, nesta terceira década do século XXI, marcada pelo contexto pandêmico, os complexos e contraditórios processos da ação estatal, criando tensões para que ela se volte à mudança social.

Muitos países e organizações internacionais aproveitaram-se da pandemia para concertar novas condutas coletivas, combinadas com uma perspectiva mais sustentável e inclusiva de desenvolvimento. No Brasil, seguiu-se rota oposta: elevou-se a parametrização financeira a status de prioridade e reafirmou-se o indelével discurso de austeridade que sujeita as ações públicas às lógicas pró-mercado. Sem hesitação ante centenas de milhares de mortes causadas pelo novo coronavírus, forças retrógradas circunscreveram ainda mais as iniciativas pró-povo, locupletando-se do Estado para privatizar e capitalizar ganhos.

Há, pois, imensuráveis desafios para restituir, na agenda governamental, a premissa de um desenvolvimento multidimensional. Viu-se, com particular ênfase para o caso do ERJ, a maneira pela qual a sujeição da estatalidade a experimentações neoliberalizantes vilipendiou a afirmação de um sentido emancipatório às políticas públicas. Sem soluções equitativas, o cenário vindouro mais provável é o de aumento das injustiças, vulnerabilidades, exclusões e desigualdades socioespaciais.

Sob neoliberalização, aprofundaram-se, no ERJ, características históricas que projetaram, em escala subnacional, o estilo de desenvolvimento do Brasil. Ao dispor de uma estrutura econômica especializada, regressiva e sujeita a variações conjunturais, importantes elos produtivos foram perdidos e um quadro socioeconômico de gritantes desigualdades multidimensionais avolumou-se em território fluminense. Dependentes das receitas oriundas da extração de petróleo e gás, parte das quais alocada em gastos estéreis, os gestores governamentais do estado viram restritas as possibilidades de desenhar e executar políticas públicas portadoras de futuro.

Se, por um breve momento, no início do século XXI, o aporte de investimentos públicos e privados adiou o agravamento dos contrastes socioeconômicos do ERJ, um quadro de crise foi inapelavelmente escancarado a partir de 2016. Para piorar, vive-se, desde 2020, uma inédita condensação de contradições: às históricas e estruturais insuficiências, somaram-se as sanitárias, com consequências dramáticas e mortais para a população.

Mantida a atual correlação hegemônica de forças (no ERJ e no País), eventuais ações criativas serão interditadas pelo capitalismo neoliberal-financeirizado. Predominará uma governamentalidade ancorada na dívida, cujo pressuposto é amparar medidas de austeridade que incidem, principalmente, sobre mecanismos redistributivos do Estado.

Para eludir essa tendência, deve-se evitar o falso binarismo que segrega o público do privado, clivagem muito ao gosto da ideologia e da pedagogia da neoliberalização. Os entraves impostos à ação pública, na realidade, inoculam-se na estatalidade, porque dela não se pode prescindir para sancionar a dimensão regulatória requerida pela valorização capitalista. Tanto é assim que, a despeito dos constrangimentos colocados à gestão pública do ERJ pela crise econômica e pelo regime de recuperação fiscal, preservou-se, intacto, o papel governamental quanto à conversão de meios de reprodução coletiva em mercadorias-ativos, sujeitando-os à governança curto-prazista do rentismo.

Mobilizar a cidadania para disputar uma estatalidade territorialmente distribuída é uma alternativa a esse quadro situacional. É indispensável partir do entendimento do pacto federativo como um mediador multiescalar de poder. Limites de competência e de autonomia de recursos, existentes em parte considerável dos entes subnacionais brasileiros e fluminenses, travam avanços normativos e inovações institucionais relevantes.

Construir estratégias que assegurem a penetração efetiva das vontades coletivas nos assuntos e deliberações de caráter público conduziria a uma maior subsidiariedade relacional entre Estado e Sociedade. Mais abrangentes e melhores bens, serviços e infraestrutura essenciais e de uso social fortaleceriam o aparato produtivo, gerando renovadas inter-ramificações econômico-setoriais, inter-regionalidades, interurbanidades e interestatalidades.

Conectar os canais de interação entre crescimento econômico, integração territorial, cidadania, ciência, tecnologia e inovação habilitará capacidades emancipatórias no enfrentamento de mazelas sociais. A afirmação de uma nova estatalidade resulta, outrossim, da adequação a uma perspectiva capaz de envolver, ao menos, justiça socioespacial e sustentabilidade.

A pandemia de Covid-19 interpõe desafios adicionais. De um lado, evidenciou-se a relevância do Estado, tanto para o enfrentamento das crises econômica e sanitária quanto para a garantia das condições mínimas necessárias de convivialidade cidadã. De outro lado, manteve-se a flagrante inconsistência entre a orientação neoliberalizante do governo e as aspirações emergenciais da população brasileira. Apesar da preponderância da razão mercantil-rentista, a pactuação de ações federativas - imposta pela caótica situação vivida no triênio 2020/2022 - fez do trágico contexto pandêmico uma ocasião para, ao menos, forçar o debate de valores societários assentados na cooperação, na substantividade da vida, na empatia e na solidariedade.

A manutenção futura desses princípios será facilitada se a intervenção crucial e fundante do Estado estiver dirigida à total transformação do padrão de oferta de bens e serviços e de provisão de infraestruturas sociais de utilidade pública. Não há caminho fora da projetação de empreendimentos que priorizem a vida das pessoas, permitindo-lhes usufruir do direito de viver em uma sociedade mais inclusiva e democrática.

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  • 1
    Nós gostaríamos de expressar nossos mais sinceros agradecimentos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pelo apoio prestado a esta pesquisa.
  • 2
    Gostaríamos de agradecer aqui os instigantes comentários e sugestões de um(a) dos(as) pareceristas, que formulou essa importante disjuntiva, chamando a atenção para o fato de o ERJ ser uma espécie de “antessala” em relação ao que depois viria a se processar no Brasil. O/A parecerista afirmou: “Talvez devêssemos refletir se o Rio de Janeiro, com sua decadência histórica, não antecipa o que acontece com o Brasil: a incapacidade de manter sua indústria e, por consequência, diversificar sua base produtiva ante o desinteresse de uma elite parasitária que desde sempre preferiu aplicar seus recursos fora da órbita produtiva”.
  • 3
    As características de plasticidade e hibridez do processo evolutivo-adaptativo de neoliberalização são fundamentais para dialogar com as importantes ponderações realizadas por um(a) parecerista. Entendemos que o processo de neoliberalização fluminense (como toda lógica ativa-evolutiva pró-mercado) é “customizado”, plástico e adaptado ao lugar. Logo, não é um “pacote” passivo, unilateral, homogêneo ou “fechado” de medidas ou práticas. Assim, a variante fluminense pode ser (e realmente o é, do nosso ponto de vista) muito mais aguda, complexa e profunda do que nos seus congêneres estaduais, em outras escalas regionais brasileiras ou mesmo na escala nacional.
  • 4
    Realiza-se aqui um diálogo com um(a) dos(das) pareceristas que corretamente afirmou que “não seria prerrogativa do ERJ ter mergulhado em uma situação crítica e agravada pela neoliberalização dos anos 1990 em diante. Outros estados são tão ou mais especializados que o Rio de Janeiro, e não apresentam os mesmos problemas fiscais e, por consequência, a mesma dificuldade para financiar políticas públicas, embora todos tenham aderido ao neoliberalismo. Por que, então, o “extrativismo” seria pior para o Rio de Janeiro do que para outros estados?”. Estas são questões cruciais que devem orientar estudos (se possível, coletivos) baseados em uma metodologia relacional e comparativa de casos situados brasileiros. Dados o escopo e os objetivos específicos deste artigo, podemos, no máximo, apontar algumas hipóteses para futuros trabalhos.
  • 5
    Um importante exemplo contemporâneo - em curso e que ainda não desdobrou todo o seu potencial - são as experimentações realizadas pelas estratégias de políticas públicas concertadas horizontalmente nos nove estados que compõem o Consórcio do Desenvolvimento Sustentável do Nordeste (SIQUEIRA; BRANDÃO, 2022 SIQUEIRA, H.; BRANDÃO, C . Creative strategies for spatial policy making in Brazilian ‘new left regionalism’: fighting inequalities and COVID-19 in the north-east region. Cambridge Journal of Regions, Economy and Society, 2022. ).
  • 6
    Um questionamento posto por um(a) parecerista foi de que, no capitalismo, essa utopia talvez nunca se realize. Não obstante, queremos reafirmar neste artigo a importância de se levar à frente insurgências e disputas sociopolíticas e de legitimação democrático-popular para abrir brechas para o desenvolvimento como um processo contínuo e conflituoso, resultante de anseios coletivos e de arranjos de sujeitos em ação. A nosso juízo, as trajetórias de desenvolvimento devem se dar em torno do “alargamento dos horizontes de possibilidades civilizatórias”, uma luta constante pelo verdadeiro desenvolvimento, no sentido que lhe emprestou Celso Furtado (2013)FURTADO, C. O desenvolvimento do ponto de vista interdisciplinar. In: AGUIAR, R. Essencial Celso Furtado. São Paulo: Penguin/Cia. das Letras, 2013, p. 197-235..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Ago 2021
  • Aceito
    17 Mar 2022
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