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Em direção a uma utopia espacializada: romantismo e vida cotidiana no marxismo de Henri Lefebvre

Resumo

A presença do elemento espacial na reflexão de Henri Lefebvre não é mero resultado do trabalho de tradução e adaptação do pensamento crítico desenvolvido até o seu tempo. A compreensão de que nem mesmo a mais elevada expressão da tradição crítica havia notado suficientemente essa dimensão crucial da vida é um dos pontos de ligação entre o avanço teórico representado pela orientação espacial da crítica e o esforço de renovação do horizonte utópico. Uma assimilação muito particular do trabalho de juventude de Marx e a proximidade com o romantismo revolucionário, sobretudo de extração nietzschiana, tiveram impacto decisivo na concepção lefebvriana. A prática, o corpo, o gozo e os instintos, recobrando lugar na imaginação social crítica, se tornam a base da refundação de um programa teórico-prático que envolve a formulação da noção de direito à cidade. A perspectiva da apropriação substitui, assim, os vagos enunciados emancipatórios das filosofias do sujeito.

Palavras-chave:
Henri Lefebvre; Direito à cidade; Romantismo; Apropriação; Cotidiano

Abstract

The presence of the spatial element in the reflections of Henri Lefebvre does not merely result from work involving the translation and adaptation of critical thinking developed up until his time. The realization that not even the highest expression of the critical tradition had sufficiently noticed this crucial dimension of life was one of the connecting points between theoretical advance, represented by the spatial orientation of critique, and the effort to renew the utopian horizon. A very distinct assimilation of the early work of Marx and the proximity to revolutionary romanticism, particularly of Nietzschean extraction, rendered a decisive impact on Lefebvrian conception. Practice, body, pleasure and instincts, recovering their place in the critical social imagination, went on to become the basis for the re-foundation of a theoretical-practical program that involved the formulation of the notion of the right to the city. The perspective of appropriation thus replaced the vague emancipatory statements of the subject's philosophies.

Keywords:
Henri Lefebvre; The right to the city; Romanticism; Appropriation; Everyday life

As forças de destruição não são mais descritas; elas não têm mais nome nem rosto [...]. Elas são Sistema, único, o da negação e da morte sob uma aparência positiva, que ataca a existência e si mesma, até nas suas profundezas. Às vezes [...] dá vontade de gritar: ‘Alerta! Revolução ou morte...’. O que não significa: ‘morramos pela revolução’, mas, ao contrário: ‘Se não querem que morramos, façam a revolução, depressa, totalmente’.

Henri Lefebvre, [1972] 2008LEFEBVRE, H. Espaço e política. Belo Horizonte: UFMG , [1972] 2008., Espaço e política

O profundo impacto que o pensamento de Henri Lefebvre causou nas ciências humanas e, mais especialmente, nas formas de autocompreensão de disciplinas como a geografia, a arquitetura e o urbanismo foi marcado pela importância de sua reflexão sobre a dimensão espacial para a explicação da realidade contemporânea. Essa marca tornou-se também muito emblemática, carregando uma aptidão para definição do atual momento do capitalismo e orientação do debate acadêmico. Assim, post-mortem, Lefebvre passou a ser considerado um dos ícones da chamada “virada espacial” (CARLOS, 2015CARLOS, A. F. A virada espacial. Mercator: Revista de Geografia da UFC, 14(4), 2015, 7-16. Disponível em: Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=273644811002 . Acesso em: 25 out. 2021.
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=2...
; LÖW, 2013LÖW, M. O spatial turn: para uma sociologia do espaço. Tempo Social, v. 25, n. 2, 2013, 17-34. ; SOJA, [1990] 1993SOJA, E. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: [1990] 1993.). Contudo, a capacidade de desestabilização que os fundamentos dessa virada representaram para o horizonte utópico da modernidade é um aspecto ainda pouco explorado nesse universo de acomodações. Tomada na origem do pensamento lefebvriano, essa mudança paradigmática não somente guarda o potencial de redesenhar o projeto utópico, tal como admitido até então por liberais e críticos do liberalismo econômico, mas também exige sua redefinição, amparando-se, simultaneamente, nela.

A relação entre a formulação teórica e a redefinição do horizonte utópico no trabalho de Henri Lefebvre se esclarece, em parte, pelos arranjos da concepção metodológica, que traz o elemento virtual para o interior da análise (LEFEBVRE, [1949] 2000LEFEBVRE, H. Problèmes de sociologie rurale. In: LEFEBVRE, H. Du rural à l’urbain. Paris: Anthropos, [1949] 2000, p. 21-40., [1953] 2000LEFEBVRE, H. Perspectives de la sociologie rurale. In: LEFEBVRE, H. Du rural à l’urbain . Paris: Anthropos , [1953] 2000, p. 64-78., [1961] 2000LEFEBVRE, H. Utopie experimentale: pour un nouvel urbanisme. In: LEFEBVRE, H. Du rural à l’urbain . Paris: Anthropos , [1961] 2000, pp. 129-140., [1968] 1991LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Editora Moraes, [1968] 1991., [1970] 1999LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: UFMG, [1970] 1999.)1 1 Todas as obras em língua estrangeira citadas ao longo deste artigo foram traduzidas pelo autor. , e pelo próprio universo de referências mobilizado na base da compreensão lefebvriana de mundo. A crítica à assimilação contínua e irrefletida das definições iluministas encontra na aproximação com o romantismo, Marx e Nietzsche os elementos com os quais o programa utópico será redesenhado nas mãos de Lefebvre. A insurgência da prática e da dimensão corpórea faz parte do movimento que descobre a apropriação como fator de superação do limitado horizonte emancipatório das filosofias do sujeito. Desse modo, a dimensão concreta da utopia renovada não só está em conformidade com os fundamentos do pensamento que disparou a chamada “virada espacial”, como também não se separa deles. A apropriação do espaço constitui, pois, o horizonte necessário de uma programação teórico-prática que se realiza no e através do cotidiano, superando as expectativas formuladas em torno da história como o imenso objeto do pensamento abstrato: uma articulação complexa que está na base da utopia do direito à cidade.

1. Lefebvre e o romantismo

A ligação de Lefebvre com a tradição do romantismo não é um elemento a ser deixado exclusivamente na mão de uma crítica mal-informada, para a qual esses vínculos seriam meros recursos alegóricos. Há algo de radicalmente verdadeiro na imagem que enuncia o vínculo do autor com uma crítica de extração romântica, ainda que, em geral, ela tenha sido difundida com intenções depreciativas. Esse vínculo, além de real, é um componente importante para a compreensão dos fundamentos da crítica e do projeto utópico lefebvrianos. De acordo com Michael Löwy (2011LÖWY, M. Préface. In: AJZEMBERG, A.; LETHIERRY, H; BAZINEK, L. (Org.) Maintenant Henri Lefebvre: renaissance de la pensée critique. Paris: L’Harmattan, 2011., p. 11), “uma das principais fontes de originalidade - e mesmo da singularidade - do pensamento de Henri Lefebvre no panorama histórico do marxismo francês [...] é precisamente a sua relação com o romantismo revolucionário”.2 2 A referência adotada para as citações neste artigo sobre as posições de Michel Löwy no que diz respeito ao romantismo revolucionário lefebvriano se remete antes ao prefácio escrito para o livro Maintenant Henri Lefebvre: renaissance de la pensée critique que ao trabalho, muito anterior e maior, escrito em parceria com Robert Sayre (LÖWY e SAYRE, 1992). A opção se justifica pelo fato de que, considerando as formulações mais focalizadas no trabalho de Henri Lefebvre, nota-se que, entre ambos, as diferenças de conteúdo e de redação são mínimas e que a versão mais atual do fragmento do livro devotada à problemática, que reaparece sob a forma de prefácio, contempla melhorias. Como as citações ao debate de Löwy neste artigo não ultrapassam aquelas que podem ser reunidas neste fragmento “reeditado”, optou-se por manter o padrão de referências vinculado ao trabalho mais recente. Deixa-se, no entanto, a referência ao trabalho original, que traz elementos em muito maior extensão para o debate sobre o romantismo revolucionário, nas referências bibliográficas.

Essa relação não aparece como uma dimensão negligenciada, obscura ou inconsciente nas produções do autor. Ela faz parte de um posicionamento explícito já no título de dois de seus trabalhos: Le romantisme révolutionaire, publicado na Nouvelle Revue Française em 1957; e “Vers un nouveau romantisme”, último capítulo de Introduction à la modernité, de 1962. Contudo, a origem dessa aproximação data de períodos anteriores. Imbuído desse espírito, após seus estudos sobre Schelling nos anos 1920, Lefebvre se aproximou de Nietzsche, o qual se tornou um dos mais importantes autores a compor o quadro maior de seu trabalho de maturidade.

Na mesma medida que Nietzsche trouxe para a crítica lefebvriana a dimensão antagônica do grande projeto de racionalização do mundo e a reivindicação dos direitos da dimensão irracional da vida (aqui compreendidos o sexo, as paixões, a loucura, a embriaguez, as pulsões e os instintos), a aproximação do romantismo preparou o novo lugar que sua crítica iria ocupar, transportando para o âmbito do debate marxista as dimensões negligenciadas por muitas de suas vertentes e por boa parte do pensamento filosófico e científico da modernidade.

Desde suas primeiras manifestações, “tanto o Sturm und Drung como o romantismo têm tendências anticlássicas, opondo-se aos seus cânones em geral e em particular ao seu equilíbrio, proporção, ordem, harmonia, objetividade, ponderação, disciplina e visão apolínea” (ROSENFELD, 1969ROSENFELD, A. Aspectos do romantismo. In: ROSENFELD, A. Texto/Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1969, p. 145-168., p. 148). Uma vez que, para o romantismo, “a razão não é considerada valor supremo, realçando-se as forças emocionais e a sensibilidade imponderável do homem, como tais subjetivas e de irredutível variedade, [...] a igualdade essencial, verificável somente através de operações analíticas de abstração, é negada” (ROSENFELD, 1969ROSENFELD, A. Aspectos do romantismo. In: ROSENFELD, A. Texto/Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1969, p. 145-168., p. 150). Essa dimensão crítica aberta pelo movimento romântico foi decisiva na crítica lefebvriana.

O romantismo, prenhe da força de uma crítica cultural da civilização moderna, atingiu em cheio a racionalidade da indústria e da economia. Ele nasceu de um “violento impulso irracionalista, da luta contra a ilustração” (ROSENFELD, 1969ROSENFELD, A. Aspectos do romantismo. In: ROSENFELD, A. Texto/Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1969, p. 145-168., p. 146). Esse é um dos sentidos da assimilação de aspectos do movimento romântico na elaboração da crítica lefebvriana. O romantismo revolucionário evocado explicitamente por Lefebvre no fim dos anos 1950 carregava consigo, na origem e na forma, o desacordo fundamental entre a teoria crítica e a razão moderna. Nos termos de Grindon (2013GRINDON, G. Revolutionary Romanticism. Third Text, v. 27, n. 2, 2013, p. 208-220., p. 218), por isso, “esse romantismo não é uma crítica racional da vida cotidiana, mas uma tentativa conjunta de inspirar e entusiasmar”.

É verdade, no entanto, que, muitas vezes, a crítica romântica assumiu formas conservadoras, passadistas e, frequentemente, reacionárias. Esses são os aspectos que forneceram as razões do ataque de Lukács ([1954]LUKÁCS, G. La destruction de la raison I: les débuts de l’irrationalisme moderne, de Schelling à Nietzsche. Paris: L’Arche , [1954] 1959. 1959) às ideias vindas do romantismo. A sua face conservadora e retrógrada, tal como destacado pelo autor em A destruição da razão, constituiu o fundamento da rejeição que a inspiração romântica passou a enfrentar no debate marxista do século XX, no conjunto e na elaboração das perspectivas utópicas pós-industriais e no interior do pensamento revolucionário.

A menor importância dada às dimensões utópicas e revolucionárias nas considerações de Georg Lukács sobre o romantismo permitiu a Michael Löwy atribuir um caráter “profundamente unilateral” às suas posições. Para Lukács, segundo a crítica de Löwy (2011LÖWY, M. Préface. In: AJZEMBERG, A.; LETHIERRY, H; BAZINEK, L. (Org.) Maintenant Henri Lefebvre: renaissance de la pensée critique. Paris: L’Harmattan, 2011., p. 12), “[...] o romantismo seria somente uma ideologia reacionária, sem nenhuma relação com o marxismo e destinada, por seu irracionalismo, a favorecer a emergência das doutrinas fascistas”. Esse não foi o caminho que definiu as formas de apreensão do potencial crítico e revolucionário do romantismo por Henri Lefebvre. Tal posição é explicitada nos apontamentos preliminares que Lefebvre dirigiu à estética lukácsiana. Em suas palavras, haveria “[...] diferenças profundas, mesmo desacordos” (LEFEBVRE, 1955LEFEBVRE, H. Lukács 1955. Paris: Aubier, 1955., p. 72), entre suas pesquisas e as de Lukács. A estética marxista vislumbrada por Lefebvre seria “mais impregnada de romantismo que aquela de Lukács” (LEFEBVRE, 1955LEFEBVRE, H. Lukács 1955. Paris: Aubier, 1955., p. 73).

2. Nostalgia ou utopia?

As soluções passadistas e retrógradas, arranjadas em nome de valores pré-modernos, se não recusadas, não predominaram entre os aspectos que parecem ter justificado a aproximação de Lefebvre do legado e do movimento românticos. E isso se deu por duas razões. Primeiramente, porque, de acordo com o autor, a radicalidade da crítica romântica interessava aos propósitos de uma crítica radical da modernidade. O romantismo fornecia os elementos e o potencial críticos para ir contra a ordem dos acontecimentos e a razão que orientava o mundo. Portava o ímpeto que se voltava não somente contra o curso e o sentido dos acontecimentos, mas também contra a história como campo de inteligibilidade e totalidade opressora no ordenamento da vida - contra a própria ideia de inevitabilidade da história, portanto. Não se tratava de um posicionamento contrário a uma determinada racionalidade ou forma de organização social racional, mas a toda razão e toda forma de racionalidade, tal como definidas na modernidade.

Ao buscar do “homem total”, que tinha como premissa a superação do homem teórico ou do homem filosófico, Lefebvre tentava encontrar as dimensões encobertas, reprimidas, castradas e exiladas desse mesmo homem. É nesse sentido que a crítica da vida cotidiana se configurou como um campo de aproximação, mais do que de incompatibilidade, entre o romantismo e o marxismo em Lefebvre. Aliás, seu programa de Crítica da vida cotidiana corresponde a “um tipo de intuição, bem anterior à adesão ao marxismo. Essa intuição se vincula à grande revolta do pós-guerra [...] como um romantismo plebeu. Filosoficamente formulada, essa intuição prevê ou anuncia que a ‘inversão’ da filosofia, realizada por Marx a partir do sistema hegeliano, se estenderá a todas as atividades ditas superiores” (LEFEBVRE, [1959] 2009LEFEBVRE, H. La somme et le reste. Paris: Economica/Anthropos, [1959] 2009., p. 598).

Assim, o projeto de “inversão do mundo invertido” de Marx foi retomado com a ampliação de seu escopo de ação e área de abrangência, atingindo, então, a filosofia moderna, o Estado, a história, os saberes, as leis, o espaço, a razão: “[...] bem se trataria, então, da inversão de toda a cultura e civilização fundadas sobre as hierarquias de pessoas, valores e instituições [...]. Essa inversão se estenderia à cultura inteira” (LEFEBVRE, [1959] 2009LEFEBVRE, H. La somme et le reste. Paris: Economica/Anthropos, [1959] 2009., p. 599). Distanciando-se das conclusões de Lukács, a força revolucionária do pensamento marxista passou a revelar novas dimensões ao se agregar ao potencial subversivo deixado pelo romantismo. Essa conjunção muito especial aparece na origem do romantismo revolucionário de extração lefebvriana.

O romantismo funcionou, também, como uma espécie de antídoto contra a abstração que os pensamentos filosófico e funcionalista tentaram impor à reflexão crítica. O resultado disso foi a emergência do corpo, da infância, da feminilidade e de tudo aquilo que mantinha uma identidade constituída pelo avesso e pela oposição, como dimensões negativas e negadas de um mundo forjado pela racionalidade masculina, apolínea e formal. Estava para nascer uma “nova consciência” que valorizava as dimensões da vida cotidiana, na qual o conceito de “revolução total” encontrava todo o material que lhe permitia ultrapassar os conceitos econômicos. Com o cotidiano passando ao primeiro plano, juntamente com os explorados, os subalternos, os marginais e outros tantos grupos já classificados pelo pensamento social crítico, ganharam destaque as dimensões esquecidas, apagadas e reprimidas. Em nome deles, o romantismo lefebvriano exige “que os últimos sejam os primeiros. E não somente os proletários, e o trabalho e o econômico, mas também as crianças e as mulheres, e os corpos, e o amor, e o prazer na inocência [...]. E a vida cotidiana. ‘O homem será cotidiano ou não será’” (LEFEBVRE, [1959] 2009LEFEBVRE, H. La somme et le reste. Paris: Economica/Anthropos, [1959] 2009., p. 601).

Há aqui dois movimentos simultâneos: (1) a tentativa de refundação dos parâmetros teórico-analíticos, a qual, ao lançar luz sobre as dimensões negligenciadas do cotidiano, reelabora o horizonte utópico legado pelas vertentes derivadas do iluminismo, restituindo-lhe as dimensões concretas da vida; e (2) a constituição de um entendimento crítico que guarda o potencial de superação do homem abstrato e das abstrações que impedem o gozo de uma vida completa, superando o conceito de uma liberdade abstrata fundada numa subjetividade apartada do universo sensível, do corpo e de suas paixões. O programa da crítica da vida cotidiana se insere, portanto, no escopo de elaboração de um verdadeiro programa revolucionário total.

A segunda razão pela qual Lefebvre não se apegou aos posicionamentos retrógrados e reacionários do romantismo está ligada à expectativa de extrair da crítica radical contra a modernidade um programa utópico e revolucionário renovado. A referência ao passado pré-industrial, pré-moderno ou pré-capitalista “é um aspecto intrínseco a qualquer forma de romantismo” (LÖWY, 2011LÖWY, M. Préface. In: AJZEMBERG, A.; LETHIERRY, H; BAZINEK, L. (Org.) Maintenant Henri Lefebvre: renaissance de la pensée critique. Paris: L’Harmattan, 2011., p. 14), logo, não está ausente em Lefebvre. Apesar do recurso a imagens do passado que parecem expressar ou dar os parâmetros de uma vida ou unidade perdidas, que frequentemente constituem o cerne ou o ponto de partida para a crítica do presente, o romantismo revolucionário lefebvriano se mantém direcionado para o futuro. De fato, as imagens e os conteúdos da cidade-obra, da festa e do resíduo, que povoam o universo dos trabalhos de inspiração lefebvriana, atendem, no amplo espectro das considerações do autor, aos propósitos da elaboração de um horizonte utópico renovado e servem de parâmetro para a construção de uma vida una e total, mas que não se efetiva no retorno ao passado. “Redirecionando a nostalgia do ‘antigo romantismo’, o romantismo revolucionário estaria ‘firmemente enraizado no presente precisamente porque seu coração pertence ao futuro’, e veria sua grandeza (ao invés de sua deficiência) em ser ‘imprevisível, problemático, dividido entre o passado e o futuro’” (BLECHMAN, 2000BLECHMAN, M. Revolutionary romanticism: a reply to Agnes Heller. Radical Philosophy, 99, January/February, 2000, p. 40-43., p. 43).

A amarração entre crítica e utopia - núcleo do romantismo revolucionário trazido à luz por Lefebvre - define o compromisso com a práxis e impede a abstração das condições presentes, sem reduzir a realidade ao universo do instantâneo. É também pelo desacordo do vivido com o real que uma projeção do “possível-impossível”, como virtualidade já inscrita no presente, se desenha no horizonte como conteúdo da utopia e resultado da crítica radical, simultaneamente. Se o velho romantismo implicava um “homem capturado pelo passado”, o "homem capturado pelo possível, [...] seria a primeira definição, a primeira afirmação da atitude do romantismo revolucionário" (LEFEBVRE, [1957] 2012LEFEBVRE, H. Revolutionary Romanticism, Art in Translation, n. 4, v. 3, [1957] 2012, p. 287-299. , p. 293). Essa é a atitude de um romantismo revolucionário que se agarra na virtualidade do presente e faz “oposição radical ao existente” (LEFEBVRE, [1957] 2012LEFEBVRE, H. Revolutionary Romanticism, Art in Translation, n. 4, v. 3, [1957] 2012, p. 287-299. , p. 293), “em nome de uma possibilidade mais real do que o real" (LEFEBVRE, [1957] 2012LEFEBVRE, H. Revolutionary Romanticism, Art in Translation, n. 4, v. 3, [1957] 2012, p. 287-299. , p. 296). “O drama interior do romantismo revolucionário é, com efeito, o que Lefebvre chama de consciência do possível-impossível” (MARCOLINI, 2007MARCOLINI, P. L’Internationale situationniste et la querelle du romantisme révolutionnaire. Noesis [En ligne], n. 11, 2007, p. 31-46., § 16). É nisso, portanto, que reside “o caráter revolucionário do novo romantismo” (MARCOLINI, 2007MARCOLINI, P. L’Internationale situationniste et la querelle du romantisme révolutionnaire. Noesis [En ligne], n. 11, 2007, p. 31-46., § 17).3 3 Como a versão usada do artigo de Marcolini (2007) não traz paginação, optou-se por completar a referência com a menção aos parágrafos citados.

Pelo que se vê, por um lado, o elemento crítico-radical do romantismo interfere na orientação do projeto utópico, redefinindo seus termos e renovando seus horizontes; por outro, a concepção utópico-revolucionária extrai do conservadorismo aquilo que o romantismo trazia como potencial para a teoria social crítica.

3. Uma leitura de Marx pelas lentes do romantismo revolucionário

Em muitos trabalhos - por exemplo, em O fim da história, Hegel, Marx e Nietzsche e Um pensamento tornado mundo -, a aproximação de Lefebvre em relação às possibilidades abertas pela orientação revolucionária do romantismo fez com que ele enfatizasse dimensões não consideradas habitualmente no campo do pensamento marxista. Se, por um lado, esse movimento favoreceu o reconhecimento da continuidade entre Hegel e Marx não somente do ponto de vista daquilo que poderia ser tomado em nome da construção de uma teoria crítica e revolucionária, por outro, ele nunca impediu que Lefebvre sustentasse o posicionamento radical de Marx face à história e à razão. Afinal, “Marx rejeita Hegel para a Realpolitik e quase para o positivismo (que Hegel detestava); mas fá-lo tão só para arrancar a dialética, restituindo-lhe o gume das armas ofensivas. O método dialético volta-se contra o hegelianismo e contra a filosofia [...] como exigência de uma superação metafilosófica” (LEFEBVRE, [1975] 1976LEFEBVRE, H. Hegel, Marx e Nietzsche ou o reino das sombras. Lisboa: Ulisseia, [1975] 1976., p. 131).

Constitui-se, assim, a partir de Marx, “uma via para além do acabamento hegeliano da filosofia, do pensamento, da história, do homem no Estado” (LEFEBVRE, [1975] 1976LEFEBVRE, H. Hegel, Marx e Nietzsche ou o reino das sombras. Lisboa: Ulisseia, [1975] 1976., p. 125). Esse é o ponto que coloca Marx, juntamente com Nietzsche, nos quadros da crítica metafilosófica anunciada por Lefebvre. Tal consideração aponta para a importância inconteste que o pensamento marxista assume na obra de Lefebvre, mas esboça, ao mesmo tempo, o modo muito particular de sua assimilação pela crítica lefebvriana.

Lefebvre parte de uma clivagem nas formas de apreensão do trabalho de Marx que relativiza a posição do pensamento marxiano tanto diante da problemática da história quanto dos esquemas lefebvrianos da relação dialética que estabelece com os pensamentos de Hegel e de Nietzsche (SIMONI-SANTOS, 2019SIMONI-SANTOS, C. Henri Lefebvre e a morfologia de uma dialética espacial. Geousp - Espaço e Tempo (Online), v. 23, n. 3, p. 525-550, dez, 2019.). Para Lefebvre, Marx, no período “que podemos discutir se é necessário ou não denominar ‘feurbachiano’, [...] não só admite uma antropologia como uma ontologia” (LEFEBVRE, [1970] 1971LEFEBVRE, H. O fim da história. Lisboa: Dom Quixote, [1970] 1971., p. 86). Daí a origem de uma concepção de natureza que se antecipa à própria história e se opõe a ela. “Um dos manuscritos de 1844 afirma-o: as paixões humanas (desejo e necessidade) têm uma importância ontológica. Não descobrem, ‘são’” (LEFEBVRE, [1970] 1971LEFEBVRE, H. O fim da história. Lisboa: Dom Quixote, [1970] 1971., p. 86). Os aspectos e as posições teórica e analítica de Marx que o aproximam mais de Hegel e da própria historicidade (de seus desdobramentos lógicos e categoriais) começam a predominar mais claramente após esse período.

Depois de 1844 e dos célebres Manuscritos, ou antes, no decurso da sua redação (que confronta a filosofia feuerbachiana da Natureza com a filosofia hegeliana da História), a Natureza perde o seu lugar. Não é já o terreno da produção do ‘ser humano’ por si próprio, produção pela qual o filho privilegiado emerge da Mãe-Natureza. Já não é mais do que o objeto da produção industrial. O conceito de produção tende a restringir-se ao precisar-se, ainda que Marx nunca tenha explicado essa redução [...]. O caráter histórico da produção (que levará ao reconhecimento do primado da economia política, num momento determinado da história) prevalece. (LEFEBVRE, [1970] 1971LEFEBVRE, H. O fim da história. Lisboa: Dom Quixote, [1970] 1971., p. 86-87)

De acordo com Michel Löwy (2011LÖWY, M. Préface. In: AJZEMBERG, A.; LETHIERRY, H; BAZINEK, L. (Org.) Maintenant Henri Lefebvre: renaissance de la pensée critique. Paris: L’Harmattan, 2011.), os influxos do romantismo, e mesmo o empenho na construção dos alicerces de um novo romantismo revolucionário, têm papel decisivo na assimilação do conjunto da obra de Marx pelo pensamento lefebvriano: “A adesão ao potencial subversivo do romantismo desempenha um papel muito importante na evolução intelectual e filosófica de Lefebvre. Sua leitura de Marx será, ela mesma, iluminada por esta perspectiva” (LÖWY, 2011LÖWY, M. Préface. In: AJZEMBERG, A.; LETHIERRY, H; BAZINEK, L. (Org.) Maintenant Henri Lefebvre: renaissance de la pensée critique. Paris: L’Harmattan, 2011., p. 12). Para Lefebvre, os escritos do jovem Marx “são a manifestação de um romantismo revolucionário radical” (LÖWY, 2011LÖWY, M. Préface. In: AJZEMBERG, A.; LETHIERRY, H; BAZINEK, L. (Org.) Maintenant Henri Lefebvre: renaissance de la pensée critique. Paris: L’Harmattan, 2011., p. 12), e isso não se expressa exclusivamente pela presença da práxis, do corpóreo, do sensível e do natural: “É necessário não esquecer, nem um só minuto, que para o jovem Marx a revolução política representava o fim da filosofia e da política. O romantismo comportava uma parte de ilusão e de utopia” (LEFEBVRE, [1959] 2009LEFEBVRE, H. La somme et le reste. Paris: Economica/Anthropos, [1959] 2009., p. 393).

Em La somme et le reste, Lefebvre deixa mais um testemunho da importância de suas considerações sobre a relação que ele estabelece entre o jovem Marx e o romantismo:

Nas obras de juventude de Marx - obras assumidas como filosóficas e que contêm as razões mais sólidas para duvidar da filosofia enquanto tal - encontro e reconheço irrefutavelmente os signos do romantismo e, ao mesmo tempo, o esforço para ultrapassá-lo. Esse romantismo ardente, espontâneo, às vezes, um pouco ingênuo, sempre otimista, com uma confiança ilimitada no futuro próximo, não foi suficientemente sublinhado pelos marxistas. Os marxólogos saberão desvelá-los?” (LEFEBVRE, [1959] 2009LEFEBVRE, H. La somme et le reste. Paris: Economica/Anthropos, [1959] 2009., p. 393)

Para Lefebvre, um dos grandes problemas do marxismo do século XX é desprezar a dimensão utópica do pensamento de Marx, além de contentar-se exclusivamente com seus trabalhos de maturidade.

Na época da maturidade de Marx, o enfrentamento político havia abatido o entusiasmo revolucionário, tendo lhe ensinado os limites dos possíveis. O humanismo das obras de juventude não é menos um humanismo romântico [...]. O romantismo revolucionário de Marx já ultrapassa o romantismo cosmológico e o romantismo antropológico [...]. Esse romantismo [...] não tem nada de escatológico ou de messiânico. (LEFEBVRE, [1959] 2009LEFEBVRE, H. La somme et le reste. Paris: Economica/Anthropos, [1959] 2009., p. 394)

Amparado nessa leitura, Lefebvre observa muitas aproximações entre Marx e Nietzsche, sobretudo no campo da crítica à filosofia e da valorização da práxis. Segundo ele, “não se notou suficientemente que o ponto de partida de Nietzsche coincide com o de Marx: a crítica do hegelianismo e, mais particularmente, do hegelianismo de esquerda. No entanto, a situação teórica mudou profundamente” (LEFEBVRE, [1970] 1971LEFEBVRE, H. O fim da história. Lisboa: Dom Quixote, [1970] 1971., p. 92-93). Em outro trecho, ele ainda afirma: “A meditação e a obra de Nietzsche começam no exato momento em que o pensamento de Marx, tendo atingido o seu ponto mais alto com O Capital (1867), declina” (LEFEBVRE, [1970] 1971LEFEBVRE, H. O fim da história. Lisboa: Dom Quixote, [1970] 1971., p. 92).

4. Crítica ao fetiche da lei e ao primado da consciência

A partir de sua crítica ao apego fetichista à legalidade interna ou aos automatismos dos desdobramentos categoriais, extraídos de uma leitura cientificizante de O Capital, Lefebvre reclama uma leitura mais atenta ao método e à prática nos trabalhos de Marx, contrapondo-se ao uso dele com vistas à extração ou formulação de uma lógica geral do funcionamento social. Para Lefebvre, depois de a terem negligenciado por anos,

[...] certos marxistas se precipitaram sobre a noção de lei objetiva. Eles não viam mais outra coisa. Eles a fetichizaram [...], realizando, por assim dizer, uma nova metafísica da lei e uma nova forma de marxismo vulgar. Eles esqueceram este pensamento profundo de Lênin, retido e compreendido por Lukács: ‘O fenômeno é mais rico que a lei’, porque ele contém efetivamente não apenas lei, mas também outra coisa: a relação com o universo, com a riqueza infinita da vida, de modo que toda lei é incompleta, aproximativa e insuficiente. (LEFEBVRE, 1955LEFEBVRE, H. Lukács 1955. Paris: Aubier, 1955., p. 79)

Além dos bloqueios à via revolucionária colocados por essa espécie de “marxologia”, Lefebvre também teve de enfrentar as mistificações alimentadas por um grupo de “especialistas da consciência”, ambos fortemente arraigados no interior do pensamento marxista francês. Alguns trabalhos, compreendidos entre as mais criteriosas abordagens nesse campo de debate, devem seu amplo reconhecimento justamente ao rigor que lhes foi atribuído na junção do tratamento lógico das categorias da análise social crítica aos condicionantes da consciência. É nesse sentido que Lefebvre direciona sua crítica ao famoso livro História e consciência de classe do jovem Lukács: “Assim, o conceito [...] e a ciência se reduzem a uma tomada de consciência, a um fenômeno de consciência. Redução característica do subjetivismo, do psicologismo, da fenomenologia, do existencialismo, ou seja, de todas as degradações ‘modernas’ da filosofia especulativa desde Hegel” (LEFEBVRE, 1955LEFEBVRE, H. Lukács 1955. Paris: Aubier, 1955., p. 63). O problema da emancipação, assim posto, frequentemente se resolve por meio de um universo de soluções dadas pela consciência.

Não é fortuita, ainda, a aproximação de certo marxismo aos determinismos categoriais da filosofia hegeliana. “Tudo se passa no hegelianismo sistematizado como se a contradição nascesse com a alienação e da alienação. A Ideia absoluta sai de si, aliena-se na Natureza, encontra-se depois, reconhece-se ou reproduz-se em plena consciência e conhecimento através da história e do saber conceitual. A desalienação dissipa a contradição” (LEFEBVRE, [1975] 1976LEFEBVRE, H. Hegel, Marx e Nietzsche ou o reino das sombras. Lisboa: Ulisseia, [1975] 1976., p. 80). A observação crítica dessa orientação coloca limites ao estabelecimento de relações mais diretas entre uma teoria da alienação (que figurou, frequentemente, nas formas da consciência da alienação e da alienação da consciência) e o projeto emancipatório. E é desse modo que o par alienação-emancipação começa a ser posto em questão diante da exigência da práxis.

A pretensão de cientificidade que cativou, inclusive, muitos pensadores marxistas gerou prejuízos à dimensão da prática no âmbito da teoria, aniquilou, segundo Lefebvre, o potencial revolucionário da teoria e do método de Marx. É nesse sentido que ele, ao refletir sobre a forma-mercadoria, afirma que, “para conhecê-la e denunciá-la, é preciso uma ciência”, porém, “para destruí-la, é preciso uma ação política, uma transformação profunda das relações sociais [...]. A consciência (seja ela a do proletariado) não é suficiente”. Logo, nem mesmo “a consciência do proletariado [...] possui espontânea e prontamente este singular privilégio filosófico: suprimir a filosofia” (LEFEBVRE, 1955LEFEBVRE, H. Lukács 1955. Paris: Aubier, 1955., p. 30).

Como indaga Lefebvre ([1959] 2009LEFEBVRE, H. La somme et le reste. Paris: Economica/Anthropos, [1959] 2009., p. 447), não haveria aqui “um vasto problema, um aspecto importante da crise filosófica e, mais ainda, da crise moral e cultural? Apostar na consciência é perigoso. A consciência se deixa enganar; ela se engana a si própria”. No repertório de saídas possíveis, não cabe mais, como alternativa ou solução exclusivas, o esforço teórico para “correção” da consciência ou de suas formas. Não se trata de preservá-la imaculada, pura, incorruptível. Opera-se um deslocamento no campo da aposta. Não é mais a consciência, a boa consciência, que se corrompe. “Não há na consciência e segundo a consciência critério de autenticidade” (LEFEBVRE, [1959] 2009LEFEBVRE, H. La somme et le reste. Paris: Economica/Anthropos, [1959] 2009., p. 448): essa é a constatação crucial para o salto para fora.

5. O lugar de Nietzsche numa utopia romântico-marxista

A solução que começa a se desenhar no trabalho teórico de Henri Lefebvre acomoda simultaneamente um projeto apontado para o futuro e um lugar para a prática social total. Uma das linhas de renovação do pensamento crítico tecidas no escopo do pensamento lefebvriano se remete, assim, à incorporação do elemento virtual no plano metodológico. Essa possibilidade foi claramente sistematizada em suas produções (LEFEBVRE, [1961] 2000LEFEBVRE, H. Utopie experimentale: pour un nouvel urbanisme. In: LEFEBVRE, H. Du rural à l’urbain . Paris: Anthropos , [1961] 2000, pp. 129-140.; [1968] 1991LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Editora Moraes, [1968] 1991.; [1970] 1999LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: UFMG, [1970] 1999.; [1972] 2008LEFEBVRE, H. Espaço e política. Belo Horizonte: UFMG , [1972] 2008.; 1980LEFEBVRE, H. Une pensée devenue monde: faut-il abandonner Marx? Paris: Fayard, 1980.). Na reflexão de Henri Lefebvre, a dimensão utópica é acoplada ao seio da dimensão teórico-metodológica.

Na perspectiva lefebvriana, além da valorização do jovem Marx e de sua inclinação para o romantismo revolucionário, é a consideração do corpo, das paixões, do sonho, dos instintos, do sexo e da loucura que serve de contraponto aos riscos da importação de um tipo de ciência da lógica. No esforço de superação do racionalismo moderno, a exigência de um estatuto para a prática similar ou superior àquele concedido à consciência vem acompanhada das reivindicações sobre a dimensão corpórea, original e estrutural, a qual é frequentemente negligenciada pelo paradigma filosófico da subjetividade. Portanto, é no romantismo revolucionário e, sobretudo, na inspiração nietzschiana que se revela uma parte da especificidade do projeto lefebvriano.

Diferentemente da Alemanha, onde “o sopro do romantismo se dirigiu num sentido reacionário, de Schlegel a Nietzsche” (LEFEBVRE, 1955LEFEBVRE, H. Lukács 1955. Paris: Aubier, 1955., p. 28), na França e no restante no mundo, ele ainda podia cumprir seu papel conclamando as dimensões negligenciadas pelas filosofias da emancipação na constituição de um novo projeto de sociedade. Para Lefebvre (1955LEFEBVRE, H. Lukács 1955. Paris: Aubier, 1955., p. 69), “o romantismo guarda um fascínio subversivo, pelo menos revoltado, se não revolucionário”. Como ele pontua, em resposta à posição assumida por Lukács:

O romantismo exprime o desacordo, a distorção, a contradição entre o individual e o social. Ele implica o desacordo entre as ideias e a prática, a consciência e a vida, as superestruturas e a base. Ele envolve, ao menos virtualmente, a revolta. Para nós, franceses, o romantismo guarda um fascínio antiburguês. (LEFEBVRE, 1955LEFEBVRE, H. Lukács 1955. Paris: Aubier, 1955., p. 72)

O pensamento nietzschiano carrega vitalidade e a crítica à moralidade da razão para o âmago da reflexão lefebvriana. “Por que abandonar Nietzsche aos hitlerianos? Seria também a ocasião de dizer que a revolução política, no caso de vir a ocorrer, não resolveria todos os problemas da vida individual, do amor, da felicidade” (LEFEBVRE, [1959] 2009LEFEBVRE, H. La somme et le reste. Paris: Economica/Anthropos, [1959] 2009., p. 460). A busca do “homem total” não se encerraria com o socialismo. Esse ensinamento de Nietzsche se tornou ainda mais importante a partir da segunda metade do século XX, uma vez que “a sociedade industrial [...] tende a perder contato com a vida imediata, com a espontaneidade, com o mundo” (LEFEBVRE, [1959] 2009LEFEBVRE, H. La somme et le reste. Paris: Economica/Anthropos, [1959] 2009., p. 465). A opção de Lukács pelo classicismo, em rejeição ao romantismo, o comprometeu com a cisura entre a estética e o projeto transformador. Por isso, “do socialismo, Lukács pensa e escreve que não pode preencher a alma” (LEFEBVRE, 1955LEFEBVRE, H. Lukács 1955. Paris: Aubier, 1955., p. 52).

6. Crítica à história e superação de Marx: natureza e corpo na nova utopia

No campo da análise crítica, Lefebvre observa o trabalho de ocultação operado pela razão ocidental moderna, que apaga o corpo, os prazeres, as paixões, os instintos e o sonho, bem como rebaixa o papel da natureza, subordinando-o. Trata-se do mesmo movimento que põe à sombra, em suma, a dimensão dionisíaca da vida. Uma poderosa representação amparada nesse movimento sustenta um universo de coações bastante reais. O corpo, a natureza e as paixões, quando emergem no horizonte, aparecem como matéria dominada, subjugada e servil aos próprios projetos da razão. É somente assim que a história pode ser o cavalgar do grande espírito do mundo, que coloca a seu serviço a natureza inteira, incluindo aí os impulsos cegos de homens imperfeitos. Até mesmo “para Marx, a dominação da natureza material encontrava-se indissoluvelmente ligada à apropriação dessa natureza” (LEFEBVRE, [1973] 1973LEFEBVRE, H. A re-produção das relações sociais de produção. Porto: Escorpião, [1973] 1973., p. 14), e, em seus fundamentos,

[a] apropriação, incompatível com a propriedade privada (nomeadamente com a propriedade privada do solo, da terra, da natureza), transformava a matéria natural em realidade humana segundo os desejos e necessidades do “homem” - inclusivamente a natureza nele: o seu corpo, as suas necessidades e o seu desejo. Essa hipótese otimista, expressão do racionalismo industrial do século XIX, vem a cair na segunda metade do século XX. (LEFEBVRE, [1973] 1973LEFEBVRE, H. A re-produção das relações sociais de produção. Porto: Escorpião, [1973] 1973., p. 14)

Diante das renovadas exigências para o engajamento no debate social, também “o romantismo revolucionário irá impor novos termos à velha questão romântica da relação entre o homem e a natureza” (MARCOLINI, 2007MARCOLINI, P. L’Internationale situationniste et la querelle du romantisme révolutionnaire. Noesis [En ligne], n. 11, 2007, p. 31-46., § 17). A reintrodução da dimensão do corpo e da physis na análise crítica, sem subordiná-la a uma razão abstrata, encontra em Nietzsche seu ponto de apoio. É amparado na reflexão nietzschiana que Lefebvre revisita a história, com a intenção de compreender seus mais sutis mecanismos de racionalização da vida, sua natureza apolínea e todo o sistema de opressões implantado por meio dela. Em O fim da história, ele situa a própria história como um projeto que despreza as dimensões irracionais da vida e que tem efeito prático sobre a repressão dos sentidos, o controle do corpo, a castração dos impulsos e a orientação do desejo. Assim a história não é somente uma forma de contar os fatos, uma narrativa seletiva: ela constitui propriamente a forma da reprodução social, organizada sob o imperativo máximo da racionalização do mundo.

Apesar de Lefebvre ([1970] 1971LEFEBVRE, H. O fim da história. Lisboa: Dom Quixote, [1970] 1971.; [1975] 1976LEFEBVRE, H. Hegel, Marx e Nietzsche ou o reino das sombras. Lisboa: Ulisseia, [1975] 1976.) ter posto Marx, além de Hegel, como tributário dessa forma social, “Marx nunca considerou o histórico como um conjunto de fatos acabados” (LEFEBVRE, 1961LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne II. Paris: L’Arche, 1961., p. 76). Além disso, “Marx, na sua crítica ao hegelianismo, se volta contra a filosofia [...] e contra o Estado [...]. Tal é o sentido filosófico das obras de Marx [...], ele proclama aí uma necessidade: aquela da morte da filosofia [...]. [Mas Marx] não foi até o fim de seu pensamento” (LEFEBVRE, 1961LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne II. Paris: L’Arche, 1961., p. 187).

Além da relação com a história e com o movimento de superação revolucionária previsto no pensamento marxista, Lefebvre põe em questão os próprios conteúdos presentes no real, que seriam capazes de dar início a um processo de transformação da vida e de instaurar uma vida nova.

Marx, para pensar a sociedade burguesa como totalidade, começou por determinar o possível, o socialismo, e se voltou contra o real para concebê-lo no movimento, como totalidade condenada, num futuro próximo, à explosão revolucionária de suas contradições internas. Esse processo de pensamento se obscurece para nós, tanto porque o capitalismo, contrariando todas as expectativas, não se rompeu sob a pressão das massas proletárias nos países mais capitalistas, quanto porque a noção mesma de socialismo não ficou mais clara no curso de sua realização. Continuamos a pensar segundo o esquema marxista (do possível ao real e do real ao possível), mas sem contar muito com ele para esclarecer o real e o possível em torno de nós. (LEFEBVRE, 1961LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne II. Paris: L’Arche, 1961., p. 189)

É nesse ponto que o pensamento nietzschiano é conduzido para dentro do pensamento crítico, com vistas a completar um projeto que é, ao mesmo tempo, teórico e revolucionário. Um projeto que se emancipa também da história e aplaca o niilismo deixado na sua ausência e na falência da razão. Esse é, ainda, o motivo pelo qual o projeto lefebvriano exige uma saída diferente daquelas que foram imaginadas até dado momento pelo pensamento revolucionário.

Diante do avanço das forças econômicas e do poder sobre a vida e sobre os aspectos exilados do cotidiano, “a alienação de Hegel e de Marx muda de caráter e ganha outra importância. A alteração da vida ameaça a sua base vital: o corpo” (LEFEBVRE, [1975] 1976LEFEBVRE, H. Hegel, Marx e Nietzsche ou o reino das sombras. Lisboa: Ulisseia, [1975] 1976., p. 237). À crise da história e da historicidade, soma-se a exigência de um projeto renovado: a saída e o abandono da história. Para Lefebvre ([1975] 1976LEFEBVRE, H. Hegel, Marx e Nietzsche ou o reino das sombras. Lisboa: Ulisseia, [1975] 1976., p. 39), “o niilismo europeu não procede do pensamento crítico, mas da sua ineficácia. Não deriva também da recusa da história, da nação, da pátria, mas dos malogros da história [...]. Nietzsche quer ultrapassar este real - transcendê-lo - pela poesia, fazendo apelo às profundidades carnais”. A práxis revolucionária, orientada por uma utopia renovada, caracteriza-se, “em primeiro lugar, por interromper o tempo linear e unidirecional do relógio capitalista; em segundo lugar, por sua capacidade de abrir uma brecha que desvia o curso da História e que o empurra - por meio de uma rejeição radical - a perseguir um plano espaço-temporal diverso” (BIAGI, 2019BIAGI, F. The Marxian Legacy in Defense of Utopian Thinking: Notes on Lefebvre’s Thought. In: Biagi, F.; Ferraro, G.; Masini, M. (Org.) Utopia as a Form of Life, Thomas Project, n. 2, December, 2019, p. 45-57, p. 48). Somente a tomada da história, ela toda, como um objeto, mas parcial, permite a concepção de um horizonte que não se confunde com aqueles projetados no interior da história e em função de seus próprios desígnios e ideologias.

7. Alienação e vida cotidiana

A teoria da alienação é o ponto de partida do projeto revolucionário lefebvriano. Contudo, ela não pôde ser admitida da exata maneira que foi formulada ou continuada por boa parte do pensamento marxista. Seu desfecho revolucionário e seus resultados práticos também não puderam ser mantidos intactos. “É evidente que a revolução mundial não seguiu exatamente o curso anunciado por Marx” (LEFEBVRE, 1961LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne II. Paris: L’Arche, 1961., p. 43). Não foi a tomada de consciência, nem a dos meios de produção, o que sucedeu à crise da história: esses fins já não figuram como horizonte da crise permanente que se arrasta desde meados do século XX. É por isso que, em Lefebvre, se encontra “uma crítica da vida cotidiana que utiliza de modo renovado [...] as antigas noções, sobretudo aquela da alienação” (LEFEBVRE, 1961LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne II. Paris: L’Arche, 1961., p. 30).

No pensamento dito filosófico de Marx, a alienação, representada especulativamente por Hegel, se torna um fato histórico, tal como sua desaparição. Contudo, Marx tendia [...] a deixar de lado múltiplas formas de alienação para defini-la de forma unívoca por seu caso-limite: a transformação das atividades e relações humanas em coisas pela ação dos fetiches econômicos, do dinheiro, da mercadoria, do capital. Reduzida à alienação econômica no e para o capitalismo, a alienação deveria desaparecer em bloco, de uma só vez, por um ato histórico, mas único: a ação revolucionária do proletariado. Nessa concepção histórica e revolucionária, subsistia alguma coisa do absoluto filosófico de onde ela provinha. (LEFEBVRE, 1961LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne II. Paris: L’Arche, 1961., p. 209)

Se, no ponto de partida, pode-se reencontrar no projeto lefebvriano uma teoria da alienação; em sua construção e em seu ponto de chegada, recuperam-se todas aquelas dimensões exiladas no curso do programa totalitário da razão e das filosofias do sujeito. A crítica da vida cotidiana se apresenta, por isso, em sua tripla dimensão: crítico-analítica, estratégica e utópica. “O mundo humano não se define somente pelo histórico, pela cultura, pela totalidade ou pela sociedade global [...]. Ele se define por este nível intermediário e mediador: a vida cotidiana” (LEFEBVRE, 1961LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne II. Paris: L’Arche, 1961., p. 50).

Ela envolve, então, as formas imediatas e naturais da necessidade [...] assim como os germes da atividade que as domina [...]. Ela compreende, em seguida, a região da apropriação contínua dos objetos e dos bens, da elaboração dos desejos a partir das necessidades e da correspondência entre os “bens” e os desejos. Nessa zona, confrontam-se o necessário e o aleatório, o possível e o impossível, o apropriado e o que escapa, a sorte e o azar empíricos. Ela não vai sem um esforço para ampliar o possível. [...] É o lugar do movimento dialético “alienação-desalienação”. (LEFEBVRE, 1961LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne II. Paris: L’Arche, 1961., p. 66-67)

Apesar da colonização que avança sobre o cotidiano, a vida cotidiana pode ser “definida, em primeiro lugar, como região da apropriação pelo homem, não tanto da natureza exterior, quanto da sua própria natureza - como zona de demarcação e de junção entre o setor não dominado da vida e o setor dominado” (LEFEBVRE, 1961LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne II. Paris: L’Arche, 1961., p. 51). Assim, o papel da teoria da alienação no programa da crítica à vida cotidiana constitui também uma orientação para a renovação do horizonte utópico, ao mesmo tempo que se modifica substancialmente em relação ao que era na origem de sua formulação radical. O reconhecimento da dimensão prático-sensível está no âmago tanto dessa nova utopia quanto na reformulação de seus fundamentos teóricos.

8. Cotidiano: corpo e apropriação

O corpo, como componente de um projeto utópico renovado, reencontra seu lugar com a rejeição das abstrações do iluminismo e das filosofias do sujeito. O movimento de reconsideração da dimensão corpórea, das paixões, do sonho e do desejo bloqueia a alternativa de manutenção de uma ideia abstrata de liberdade, tal como aparece em Hegel, e exige a ampliação da noção de emancipação, tal como aparece em Marx. A noção de apropriação completa o quadro de renovação do projeto utópico, substituindo, sem descartá-lo, o elemento estruturante do horizonte de expectativas da modernidade, a saber, a própria liberdade.

Esse deslocamento crucial se opera a partir da reconsideração da vida e do próprio entendimento sobre a constituição do humano. A restauração das dimensões negligenciadas, reprimidas e exiladas pelo projeto de racionalização iluminou outras frentes do processo de alienação. “Se definirmos o homem pelo trabalho, iremos em direção ao fetichismo da produtividade e da ética do trabalho, ou, mesmo, recairemos na sacralização arcaica do labor artesanal e camponês. Assim, mutilaremos o ser humano negligenciando o gozo. [...] Só o gozo torna efetiva a apropriação” (LEFEBVRE, 1961LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne II. Paris: L’Arche, 1961., p. 194).

Na passagem da grande narrativa histórica à vida cotidiana, o cotidiano se torna âmbito de coações e possibilidades, isto é, arena das disputas sociais. A “colonização do cotidiano”4 4 “O segundo volume de Crítica da vida cotidiana contém uma tese [...] não desprovida de sentido [...]. Segundo essa teoria, o cotidiano substitui as colônias. Incapazes de manter o antigo imperialismo [...], os dirigentes capitalistas tratam o cotidiano como eles tratavam anteriormente os territórios colonizados” (LEFEBVRE, 1981, p. 31). chama a atenção para esse universo de dimensões desprezadas, até então, pela filosofia, cria novas lutas e não deixa incólume a orientação utópica. A alienação do desejo, do corpo e do sonho foi também a alienação das formas de emprego do tempo, de uso do espaço, da relação com os espaços da cidade. A crítica ao mundo da mercadoria assume também esse sentido. É por isso que o projeto prevê a apropriação como instância superior da desalienação. Se, por um lado, as estratégias de reprodução avançam sobre o corpóreo, sobre o gestual e, por extensão, sobre a vida cotidiana, por outro, ao fazê-lo, elas lançam luz sobre instâncias reprimidas, cativas ou apagadas. Dessa forma, passam a integrar o movimento geral de superação revolucionária.

O interesse pelo ‘gestual’ se acresce com uma certa renovação do corpo e do interesse pelo corpo, na sequência de sua reapropriação [...] em detrimento da imagem e da espetacularização. A predominância do visual sobre o corpo parece se atenuar, o que modificará lentamente, mas seguramente, a relação do cotidiano com o espaço. Este não se define mais somente de maneira ótica, geométrica e quantitativa. Ele se torna ou reincorpora o espaço carnal, ocupado pelo(s) corpo(s). (LEFEBVRE, 1981LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne III. Paris: L’Arche, 1981., p. 102)

A reconvocação da dimensão corpórea forja um dos princípios do direito à cidade: apropriar-se efetiva e concretamente do espaço social como instância de realização da vida passa pela reconsideração do corpo e dos sentidos como dimensões cruciais. Ela é parte de um programa que reconhece a amplitude de ação dos processos de alienação, envolve a crítica objetiva da vida cotidiana e se incumbe da realização da utopia redesenhada.

9. Espaço e utopia: entre Marx e Nietzsche

Em O direito à cidade, A revolução urbana, Espaço e política, A produção do espaço, e Crítica da vida cotidiana, Lefebvre ([1968] 1991LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Editora Moraes, [1968] 1991.; [1970] 1999LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: UFMG, [1970] 1999.; [1972] 2008LEFEBVRE, H. Espaço e política. Belo Horizonte: UFMG , [1972] 2008.; [1974] 2000LEFEBVRE, H. La production de l’espace. Paris: Anthropos , [1974] 2000.; 1981LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne III. Paris: L’Arche, 1981.) recupera a importância do espaço em diversos momentos da história. O espaço, extensão da dimensão corpórea, igualmente ocultado, diminuído e desprezado pelo pensamento filosófico da modernidade, também foi mobilizado em nome da economia e do poder, no bojo do avanço das formas de produção e controle do cotidiano, a partir de arranjos que dissimulam a própria crise da historicidade (ALVAREZ, 2019ALVAREZ, I. P. A noção de mobilização do espaço em Henri Lefebvre. Geousp: Espaço e Tempo (Online), v. 23, n. 3, p. 494-505, dez. 2019.). Na perda dos referenciais históricos, na derrocada da filosofia, no vacilo da historicidade, a crise da acumulação e as estratégias para a reprodução do poder recorrem à dimensão espacial como alternativa para a reprodução das relações sociais de produção. “O espaço lúdico, onde o corpo se reencontra reencontrando o uso, se torna âmbito do lucro, com este subordinando as possibilidades do gozo e degradando-as” (LEFEBVRE, 1981LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne III. Paris: L’Arche, 1981., p. 128). “Aqui o morto ainda apreende o vivo! A cidade é alienada como o humano ao qual ela oferece seu abrigo” (LEFEBVRE, 1981LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne III. Paris: L’Arche, 1981., p. 132).

Ao mesmo tempo, Lefebvre também reconhece que esse é o momento de emergência do espaço e da espacialidade como um novo campo de inteligibilidade, que deflagra a crise da história e da historicidade, bem como a crise e as novas modalidades (críticas) da reprodução econômica. Se, por um lado, o espaço é objeto da ação do Estado e do capital nesse momento crítico, por outro, é função do pensamento engajado tanto reconhecer as estratégias do inimigo e fazer um inventário dos danos dessa ofensiva, quanto projetar uma saída. Assim, o programa de transformação da vida não envolve somente a rejeição das repressões do tempo histórico sobre o corpo, nem apenas a revelação das dimensões ocultadas pela história ou a defesa contra a alienação do espaço social. Ele envolve, na saída da história, a apropriação do espaço. “Este projeto do espaço [...] implica antes uma superação (Uberwinden) à escala do mundo, capaz de precipitar no abolido os resultados mortos do tempo histórico. E comporta uma provação concreta, ligada à prática e à totalidade do possível, segundo o pensamento mais radical de Marx; ligada igualmente à restituição do corpo, em conformidade com a poesia nietzschiana” (LEFEBVRE, [1975] 1976LEFEBVRE, H. Hegel, Marx e Nietzsche ou o reino das sombras. Lisboa: Ulisseia, [1975] 1976., p. 259). “Esse momento não depende mais do pensamento historicizante ou de uma teoria clássica das crises [...]. A possibilidade de um tal momento (perspectiva que não coincide exatamente com a teoria habitual da revolução) define uma hipótese estratégica” (LEFEBVRE, [1972] 2008LEFEBVRE, H. Espaço e política. Belo Horizonte: UFMG , [1972] 2008., p. 18).

Observa-se aqui, então, um projeto de sociedade (teórico e prático) que se ampara numa saída da história, que não aguarda, portanto, sua realização ou seu colapso. Uma saída, desse modo, que rejeita as obstruções ao corpo e às paixões e revoga o exílio do dionisíaco: uma saída pelo espaço.

Marx substituiu o estudo das coisas pela análise crítica da atividade produtora das coisas. Retomando a inciativa dos grandes economistas (Smith, Ricardo) e a ela acrescentando a análise crítica do modo de produção (capitalista), ele elevou o conhecimento a um nível superior. Uma démarche análoga se impõe atualmente no que concerne ao espaço. (LEFEBVRE, [1972] 2008LEFEBVRE, H. Espaço e política. Belo Horizonte: UFMG , [1972] 2008., p. 33)

No entanto, seguindo a orientação de Marx, para Lefebvre, o que se revela por detrás da aparência das coisas não é tão-somente uma verdade escondida, mas também o mundo dos possíveis - a virtualidade, já presente no real e na orientação de uma saída. Essa posição teórica e metodológica permitiu ao pensamento lefebvriano esquivar-se de “armadilhas da crítica” e do “vácuo utópico”, libertando-o do confinamento na denúncia. Assim sendo, buscar a saída desse universo de coações nas dimensões prático-sensíveis, mais do que na consciência ou nas formas do entendimento, permitiu a recomposição do projeto revolucionário.

É por isso que a emancipação, como produto da desalienação da consciência, não constitui mais o cerne do programa utópico. A alienação mesma tem de ser observada, para além de seus vínculos com as formas do entendimento, em relação à vida prática, reportando-se ao mundo material como em Marx, mas agora atrelada à vida urbana, à produção e ao uso do espaço, vista adiante do momento do econômico, da subsistência e da produção fabril. Aqui ganha sentido a dimensão corpórea, que não pode ser reduzida a um pacote de meras funções orgânicas. É assim que, frente às reivindicações forjadas pelo cotidiano, pelo corpo, pelos instintos e pelo desejo, o horizonte utópico se reelabora, superando e substituindo, sem descartar, a liberdade pela apropriação.

A redefinição do elemento central de articulação do projeto utópico em Henri Lefebvre constitui a premissa do direito à cidade e da inversão que dá prioridade ao uso sobre a troca.5 5 Por isso, “os estudos urbanos lefebvrianos são atravessados por uma nova visão do significado de ‘utopia’” e “o estatuto político do ‘direito à cidade’ é incompreensível sem uma reflexão sobre a utopia” (BIAGI, 2019, p. 45). Uma reflexão de densidade a esse respeito pode ser encontrada em: CARLOS, A.F. A privação do urbano e o ‘direito à cidade’ em Henri Lefebvre. In: CARLOS, A. F. ALVES, G.; PADUA, R. (Org.) Justiça espacial e o direto à cidade. São Paulo: Contexto, 2017 p. 33-62; CARLOS, A.F. Em nome da cidade (e da propriedade). Geocrítica: XIV Coloquio Internacional de Geocrítica: Las utopías y la construcción de la sociedad del futuro. Barcelona, 2-7 de mayo de 2016. URL: http://www.ub.edu/geocrit/xiv_anafani.pdf; e CARLOS, A.F. Henri Lefebvre: o espaço, a cidade e o “direto à cidade”. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, v.11, n. 1, 2020, p.349-369. “‘Mudar a vida’? Sim, certamente, mas isso só se pode vislumbrar considerando o espaço do planeta inteiro, sem excluir a criação, aqui e ali, de espaços apropriados, cuja apropriação, escapando à propriedade, poderia servir de exemplo” (LEFEBVRE, [1972] 2008LEFEBVRE, H. Espaço e política. Belo Horizonte: UFMG , [1972] 2008., p. 162). “A experiência histórica [...] desses últimos tempos obriga a completar a teoria marxista, tal como Marx a deixou” (LEFEBVRE, 1961LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne II. Paris: L’Arche, 1961., p. 324). A restituição das dimensões concretas alienadas se posiciona no cerne de um projeto que prioriza a apropriação, como estratégia subversiva e finalidade, num processo ativo de desalienação. Essa apropriação não é somente a apropriação do produto alienado, mas também do tempo, do corpo, dos desejos, do sonho e do espaço, o principal entre estes e que os viabiliza.

Desse modo, plano analítico e orientação utópica aparecem reunidos no projeto teórico-prático lefebvriano e inserem a dimensão espacial no centro das considerações. Eles reconhecem, por um lado, que o espaço se tornou a nova dimensão da reprodução dos processos econômicos, políticos e sociais, além de destacarem que é exatamente nessa dimensão que a violência, as abstrações e as reduções que fundamentavam as filosofias do sujeito são transmitidas para a vida. Por outro lado, exigem a consideração da dimensão espacial como complemento necessário a esse universo de carências econômicas e do desejo.

Considerações finais

Ao ler Marx, rejeitando o reducionismo lógico, próprio de abordagens mais aspirantes ao rigor que ao compromisso com a realidade, e recuperando em Nietzsche os aspectos negligenciados pelas filosofias da emancipação, Lefebvre reintroduz a práxis e os conteúdos instintivos, sensíveis e afetivos, como atributos da dimensão corpórea, não somente no plano da reflexão crítica sobre o presente, mas também no da renovação do horizonte utópico. Ao mobilizar explicitamente o potencial revolucionário do romantismo, ele reinaugura o programa de transformação radical que está na base do projeto do direito à cidade, rejeitando a racionalidade abstrata que deu sustentação aos projetos de hegemonização da burocracia estatista, ao formalismo presente no planejamento urbano e territorial, ao mundo da mercadoria e à abstração do trabalho.

O reconhecimento de que a abstração da dimensão corpórea havia possibilitado que o princípio da emancipação fosse capturado pela história, que falhava no cumprimento de suas promessas, e pela reprodução social das relações sociais de produção fez com que o pensamento lefebvriano se comprometesse com a renovação da imaginação social crítica. A apropriação do espaço aparece, assim, como componente de um projeto utópico renovado, inseparável da compreensão teórica do mundo. Por essa razão, “a prática da apropriação, pelo ser humano, do tempo e do espaço” irrompe como “modalidade superior da liberdade” (LEFEBVRE, [1970] 1999LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: UFMG, [1970] 1999., p. 131). Nesse contexto teórico-revolucionário, é elaborada a noção de Direito à Cidade.

Referências

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  • SOJA, E. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: [1990] 1993.
  • 1
    Todas as obras em língua estrangeira citadas ao longo deste artigo foram traduzidas pelo autor.
  • 2
    A referência adotada para as citações neste artigo sobre as posições de Michel Löwy no que diz respeito ao romantismo revolucionário lefebvriano se remete antes ao prefácio escrito para o livro Maintenant Henri Lefebvre: renaissance de la pensée critique que ao trabalho, muito anterior e maior, escrito em parceria com Robert Sayre (LÖWY e SAYRE, 1992LÖWY, M.; SAYRE, R. Révolte et mélancolie: Le romantisme à contre-courant de la modernité. Paris: Payot, 1992.). A opção se justifica pelo fato de que, considerando as formulações mais focalizadas no trabalho de Henri Lefebvre, nota-se que, entre ambos, as diferenças de conteúdo e de redação são mínimas e que a versão mais atual do fragmento do livro devotada à problemática, que reaparece sob a forma de prefácio, contempla melhorias. Como as citações ao debate de Löwy neste artigo não ultrapassam aquelas que podem ser reunidas neste fragmento “reeditado”, optou-se por manter o padrão de referências vinculado ao trabalho mais recente. Deixa-se, no entanto, a referência ao trabalho original, que traz elementos em muito maior extensão para o debate sobre o romantismo revolucionário, nas referências bibliográficas.
  • 3
    Como a versão usada do artigo de Marcolini (2007)MARCOLINI, P. L’Internationale situationniste et la querelle du romantisme révolutionnaire. Noesis [En ligne], n. 11, 2007, p. 31-46. não traz paginação, optou-se por completar a referência com a menção aos parágrafos citados.
  • 4
    “O segundo volume de Crítica da vida cotidiana contém uma tese [...] não desprovida de sentido [...]. Segundo essa teoria, o cotidiano substitui as colônias. Incapazes de manter o antigo imperialismo [...], os dirigentes capitalistas tratam o cotidiano como eles tratavam anteriormente os territórios colonizados” (LEFEBVRE, 1981LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne III. Paris: L’Arche, 1981., p. 31).
  • 5
    Por isso, “os estudos urbanos lefebvrianos são atravessados por uma nova visão do significado de ‘utopia’” e “o estatuto político do ‘direito à cidade’ é incompreensível sem uma reflexão sobre a utopia” (BIAGI, 2019BIAGI, F. The Marxian Legacy in Defense of Utopian Thinking: Notes on Lefebvre’s Thought. In: Biagi, F.; Ferraro, G.; Masini, M. (Org.) Utopia as a Form of Life, Thomas Project, n. 2, December, 2019, p. 45-57, p. 45). Uma reflexão de densidade a esse respeito pode ser encontrada em: CARLOS, A.F. A privação do urbano e o ‘direito à cidade’ em Henri Lefebvre. In: CARLOS, A. F. ALVES, G.; PADUA, R. (Org.) Justiça espacial e o direto à cidade. São Paulo: Contexto, 2017 p. 33-62; CARLOS, A.F. Em nome da cidade (e da propriedade). Geocrítica: XIV Coloquio Internacional de Geocrítica: Las utopías y la construcción de la sociedad del futuro. Barcelona, 2-7 de mayo de 2016. URL: http://www.ub.edu/geocrit/xiv_anafani.pdf; e CARLOS, A.F. Henri Lefebvre: o espaço, a cidade e o “direto à cidade”. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, v.11, n. 1, 2020, p.349-369.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2021
  • Aceito
    05 Ago 2021
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