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Despossessão, violências e a potência transformadora: um olhar interseccional sobre as remoções

Resumo

O presente artigo parte da seguinte questão: o que significa pensar a remoção e suas consequências com base na narrativa de mulheres que enfrentam esses processos? Ao recuperar as narrativas e as reflexões de mulheres que sofreram remoção ou se encontram em situação de ameaça, é possível iluminar dimensões do processo que podem passar despercebidas ou ser encobertas por análises cujo enfoque recai sobre outras dimensões, que não passam por uma reflexão sobre as características de quem está sendo removido, e sobre o significado disso diante da totalidade do fenômeno. Ao lançar luz sobre a multiplicidade dos impactos decorrentes dos processos de remoção, pode-se retomar a própria noção conceitual para, então, formulá-la desde baixo, quer dizer, a partir das várias experiências que a compõem. Afinal, o que é remoção? O que significa viver sob a ameaça de perder o lugar onde se vive?

Palavras-chave:
Despossessão; Remoção; Feminismos Interseccionais

Abstract

The present article takes the following question as its starting point: What does it mean to think about eviction and its consequences based on the narratives of women who have faced these processes? By examining the narratives and thoughts of women who have either undergone eviction or are living under its threat, it is possible to highlight dimensions of the process that may otherwise go unnoticed by analyses that focus on other dimensions, and which do not appraise the characteristics of those being evicted and what this represents in terms of the totality of the phenomenon. By shedding light on the multiplicity of impacts resulting from the eviction processes, it is possible to return to the conceptual notion itself, so that it may be formulated from the bottom up, i.e., from the various experiences that comprise it. Ultimately, what is eviction? What does it mean to live under the threat of losing your home?

Keywords:
Dispossession; Eviction; Intersectional Feminism

1. Introdução

Entre pesquisadoras e pesquisadores que trabalham com e atuam sobre processos de ameaça e remoção nas cidades do chamado Sul Global, há um entendimento crescente de que, além da dimensão da classe social, há uma dimensão incontornável de gênero, raça/etnia e geração que atravessa esses processos de despossessão, conformando-os de maneiras distintas.

Mas o que significa pensar a remoção e suas consequências com base na narrativa de mulheres que enfrentam esses processos? Ao recuperar as narrativas e as reflexões de mulheres que sofreram ameaça ou remoção, é possível iluminar dimensões do processo que podem passar despercebidas por análises cujo enfoque recai sobre outros elementos, que não refletem as características de quem está sendo removido, e sobre o significado disso diante da totalidade do fenômeno. Ainda, ao lançar luz sobre a multiplicidade dos impactos decorrentes dos processos de remoção, é possível retomar a própria noção conceitual para, então, formulá-la desde baixo, quer dizer, a partir das várias experiências que a compõem. Afinal, o que é remoção? O que significa viver sob a ameaça de perder o lugar onde se vive?

Este artigo tem como objetivo discutir as ameaças e as remoções pautando-se em uma abordagem interseccional que busca lançar novos olhares sobre os processos de despossessão, tornando visíveis suas consequências sobre os diferentes corpos e territórios sobre os quais recaem. Nosso ponto de partida foi o trabalho realizado pelo Observatório de Remoções,1 1 O Observatório de Remoções é uma rede de pesquisa-ação que, desde 2012, realiza o mapeamento colaborativo das ameaças e remoções de forma coletiva com parceiros em outras universidades e cidades brasileiras - como Belo Horizonte, Fortaleza, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo -, envolvendo diferentes estratégias, atores e fontes de dados (MARINO, A.; ROLNIK, R., 2019; LINS, R. D.; ROLNIK, R., 2018; ROLNIK, R.; LEITÃO, K.; COMARU, F.; LINS, R. D., 2017). Para saber mais, ver: http://www.labcidade.fau.usp.br/observatorio-de-remocoes/. Acesso em: 15 abr. 2020. MARINO, A.; ROLNIK, R. São Paulo. Observatório de Remoções. In: MARINO et al. Panorama dos conflitos fundiários urbanos no Brasil. Relatório de 2018. São Paulo: Fórum Nacional de Reforma Urbana. GT Conflitos, 2018. Disponível em: http://www.cdes.org.br/wp-content/uploads/2019/11/panorama-dos-conflitos-2018-5.pdf. Acesso em: 29 abr. 2020. LINS, R. D.; ROLNIK, R. (coord.). Observatório de Remoções 2017-2018. Relatório final do projeto. São Paulo: LabCidade FAUUSP; LabHab FAUUSP; LabJuta UFABC; Fundação Ford, 2018. ROLNIK, R.; LEITÃO, K.; COMARU, F.; LINS, R. D. (coord.). Observatório de Remoções 2015-2017. Relatório final do projeto. São Paulo: LabCidade; LabHab; LabJuta; FAUUSP; UFABC, 2017. uma rede de pesquisa-ação que investiga o tema e atua sobre ele desde 2012, e do qual as autoras são ou foram colaboradoras.

Mas, se há um esforço para visibilizar os processos que estão ameaçando e expulsando milhares de pessoas nas grandes cidades brasileiras - o que, em si, já é um enorme avanço -, ainda faltam dados oficiais sobre as remoções, mas, também e especialmente, sobre quem é removido e as consequências sobre seus corpos e formas de vida.

Aqui, propomos uma reflexão sobre as remoções ancorada em um ponto de vista situado (HARAWAY, 1988HARAWAY, D. Situated knowledges: “The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective”. In: HARAWAY, D. (ed.). Symians, cyborgs and women: the reinvention of nature. New York, Routledge, 1991 [1988]. p. 183-202.), que parte das narrativas de mulheres ameaçadas ou removidas por processos forçados de deslocamento na Região Metropolitana de São Paulo. Como método, e para a composição deste texto, procuramos revisitar e justapor a bibliografia mobilizada aos fragmentos de falas coletadas e territórios populares visitados e vividos em imersões por meio de pesquisas do LabCidade e de parceiros.2 2 Os fragmentos de entrevistas e observações de campo têm origem em pesquisas realizadas pelo Observatório de Remoções e pelo LabCidade: aqueles oriundos da pesquisa “Formas de morar” foram coletados entre maio e novembro de 2019 pela equipe de pesquisadores do LabCidade Os trechos referentes à etnografia efetuada na Zona Norte de São Paulo fazem parte do projeto de pesquisa “Territórios populares”, iniciado em abril de 2018 e ainda em desenvolvimento. Os fragmentos referentes à ocupação Helenira Preta integram o eixo de pesquisa “Observando de perto”, parte do Observatório de Remoções, e foram coletados na oficina conduzida no dia 15 de fevereiro de 2020, por pesquisadoras do LabJuta/UFABC. Além disso, registros literários nos permitiram fazer visitas no tempo, que nos colocaram em contato com outras falas e territórios populares, como os relatos da vida na Favela do Canindé contidos no livro Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus,3 3 Quarto de despejo (1960), diário de Carolina Maria de Jesus, traz o relato e reflexões da autora sobre a vida na Favela do Canindé, localizada às margens do rio Tietê, em São Paulo. Para uma reflexão sobre as potências contidas no trabalho dessa autora, ver Pereira (2019). PEREIRA, G. L. Corpo, discurso e território: a cidade nas dobras da narrativa de Carolina Maria de Jesus. 2015. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015. e Becos da memória, de Conceição Evaristo.4 4 Becos da memória (2017) narra a história dos moradores de uma favela, alvo de um plano de desfavelamento. Para mais informações sobre a vida e obra da autora, ver OLIVEIRA (2013). OLIVEIRA, M. A. Entre becos e memórias, Conceição Evaristo e o poder da ficção. Estado de Minas. Caderno Pensar. Belo Horizonte, 5 out. 2013. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ficcao/68-conceicao-evaristo-entre-becos-e-memorias-conceicao-evaristo-e-o-poder-da-ficcao. Acesso em: 4 jun. 2020.

É por meio dessa combinação de falas, métodos e saberes que buscaremos demonstrar como mulheres, em particular, mulheres racializadas, são as maiores vítimas dos processos de remoção, argumento que será construído apoiado em três eixos. O primeiro tem como objetivo compreender os processos de despossessão com um olhar histórico, que lança luz sobre o papel central desempenhado pela dívida na América Latina, sobretudo no Brasil, desde os tempos coloniais, tendo sido mobilizada, no fim da escravidão, como forma de atualização e reprodução da subjugação dos povos negros recém-libertos. A concepção da remoção como um evento duradouro, de contínua violência sobre os sujeitos atingidos, é o foco do segundo eixo, que aborda as marcas psicológicas deixadas por esses processos, bem como suas profundas consequências sobre a vida, especialmente sobre a de famílias cujas mulheres negras são as principais responsáveis pela casa, em que sobressaem as dimensões de gênero e racialidade da remoção. Por fim, o último eixo reúne debates contemporâneos sobre movimentos sociais e os protagonismos femininos na luta contra as expropriações de toda ordem.

Assim, mais do que um artigo acadêmico com linhas teórico-metodológicas bem definidas, que levam a conclusões e recomendações, entendemos este exercício de escrita e reflexão coletiva como um ensaio em constante (re)fazimento, que reúne leituras, análises e fragmentos diversos, postos aqui em perspectiva, de modo a nos levar a outras perguntas e caminhos possíveis de investigação e reflexão.

2. Abordagem interseccional

A proposta apresentada requer uma reflexão ancorada em teorias feministas que têm construído uma epistemologia que busca deslocar o lugar neutro da ciência e da produção do conhecimento, aproximando teorias às realidades sociais vividas pelos sujeitos (SILVA; FARIA; PIMENTA, 2017SILVA, N. A.; FARIA, D. de O.; PIMENTA, M. Feminismo e o espaço urbano: apontamentos para o debate. Anais Enanpur, v. 17, n. 1, 2017.). Entre as diversas teorias feministas,5 5 Para um debate sobre as diferenças entre correntes teóricas feministas, ver Silvia, Faria e Pimenta (2017) e Hollanda (2018). HOLLANDA, H. B. Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. a interseccionalidade nos ensina a pensar as dimensões de gênero, raça, classe e sexualidade (e outras) como um sistema interligado de opressões, lançando luz sobre as diferenças entre as experiências de mulheres atravessadas por esses sistemas, as quais se encontram na base das relações em nossa sociedade, calcadas no racismo, no sexismo e no capitalismo (AKOTIRENE, 2019AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.; GONZALEZ, 1984GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Brasília, DF , Anpocs,1984.). Por sua própria origem, essa abordagem impõe uma análise fundamentada na raça, cruzada com outras identidades não limitadas a gênero.

A perspectiva interseccional exige, sobretudo, um esforço coletivo, teórico e político, de construção dessa outra epistemologia, que envolve outra forma de refletir e de se colocar no mundo (HILL-COLLINS, 2017HILL-COLLINS, P. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Parágrafo, v. 5, n. 1, jan.-jun. 2017.). No entanto, para essa autora (2017), as ideias que estão na origem da interseccionalidade mudaram de forma e propósito quando foram “traduzidas” para o mundo acadêmico, que, muitas vezes, deixou de lado seu caráter político e objetivo emancipatório. Portanto, é ainda, para muitas de nós, um desafio assumir a interseccionalidade como projeto de conhecimento em toda sua potência epistêmica e política.

Assim, aprendemos com as intelectuais negras que é necessária outra lente epistêmica, capaz de fugir das generalizações e de produzir as ferramentas analíticas para pensar e incidir sobre processos sociais múltiplos e complexos, como os das remoções. Se admitirmos que a sociedade está organizada de acordo com esses marcadores sociais da diferença, não poderemos assumir que os processos que incidem sobre tais corpos são neutros e não variam de acordo com as realidades sociais vividas pelos sujeitos. As experiências urbanas estão aí inscritas.

O trabalho de Desmond (2014DESMOND, M. Poor black women are evicted at alarming rates, setting off a chain of hardship. Policy research brief. Chicago: MacArthur Foundation, 2014. https://www.macfound.org/media/files/HHM_Research_Brief_-_Poor_Black_Women_Are_Evicted_at_ Alarming_Rates.pdf. Acesso em: 29 abr. 2020.
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) pode ser lido como um exemplo da magnitude desse desafio - ou como uma “tradução imperfeita” da interseccionalidade (HILL-COLLINS, 2017HILL-COLLINS, P. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Parágrafo, v. 5, n. 1, jan.-jun. 2017.). As pesquisas desenvolvidas por esse autor levaram-no à conclusão de que as mulheres negras eram as mais penalizadas em processos de despejo em decorrência de uma combinação de fatores, que iam dos salários mais baixos e do número de filhos à própria dinâmica de gênero entre proprietários homens e locatárias mulheres.6 6 Diferentemente do Observatório de Remoções, que se debruça sobre processos coletivos de deslocamento forçado, Desmond lançou seu olhar para os despejos individuais, que, no caso estudado por ele, assumem contornos massivos, dada sua dimensão: em média, anualmente, dezesseis famílias eram removidas por dia na cidade de Milwaukee, no estado de Wisconsin, Estados Unidos (DESMOND, 2014). Desmond argumentou que as causas dos despejos extrapolavam as questões econômicas, apontando a importância do racismo estrutural combinado às estruturas hierárquicas de gênero para a compreensão do processo. Entretanto, se o autor trouxe reflexões importantes sobre os contornos e as dimensões dos despejos para o debate, suas pesquisas são duramente criticadas pela ausência de diálogo e interlocução com os sujeitos nos territórios,7 7 Sobre as críticas ao trabalho do autor e do grupo ao qual está vinculado, o Eviction Lab, ver Aiello et al. (2020). AIELLO, D.; BATES, L.; GRAZIANI, T.; HERRING, C.; MAHARAWAL, M.; MCELROY, E.; PHAN, P.; PURSER, G. Eviction Lab misses the mark. Shelterforce: the voice of community development, Aug. 22, 2018. Disponível em: https://shelterforce.org/2018/08/22/eviction-lab-misses-the-mark/. Acesso em: 29 abr. 2020. reforçando, assim, um modo de produção do saber acadêmico que reproduz hierarquias e exclusões.

No Brasil, são poucas as informações sobre os perfis das pessoas impactadas por processos de remoção e despejos. Alguns trabalhos que vão nessa direção serão aqui revisitados à luz de eixos de investigação propostos a seguir.

De modo a não separar o material empírico das discussões teóricas, organizamos esses fragmentos em três eixos de diálogo com a literatura feminista e com a produção que aborda processos de remoção como expressão de processos de despossessão estruturais e históricos. Esperamos, como resultado desse exercício teórico-político, construir uma ferramenta epistêmica que nos permita compreender a remoção por meio das experiências de diferentes mulheres, buscando um entendimento alargado sobre o próprio processo como mais uma dimensão da acumulação por despossessão em suas formas contemporâneas.

3. Colonialidade e aprisionamento pela dívida

25 de junho… voltei para o meu barraco imundo. Olhava o barraco envelhecido. As tábuas negras e podres. Pensei: está igual a minha vida!

Quando eu preparava para escrever, o tal Orlando surgiu e disse que queria o dinheiro. Dei-lhe 100 cruzeiros.

- Eu quero 250. Quero o deposito.

- Eu não pago o deposito porque já foi abolido pela Light.

- Então eu corto a luz.

E desligou-a. (DE JESUS, 2019JESUS, C. M. de Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2019 [1992]., p. 175).8 8 Nos trechos citados, retirados da obra de Carolina Maria de Jesus, optamos por manter a grafia original tal como consta na publicação utilizada neste artigo e referenciada ao final do artigo.

A habitação se torna mercadoria no Brasil com a Lei de Terras (BRASIL, 1850BRASIL. Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Rio de Janeiro: Chancellaria do Império, 1850. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0601-1850.htm. Acesso em: 15 abr. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
), regulação fundiária associada ao fim da escravidão. Com a abolição da escravatura, formalmente datada de 1888, a passagem da economia fundada no trabalho escravizado e compulsório para uma economia salarial possibilitou o surgimento de um mercado de trabalho atrelado ao mercado de terra e moradia. No entanto, a segregação racial herdada se reproduziu - e se reproduz ainda hoje -, resultando em segregação socioespacial (SOBRINHO, 2017SOBRINHO, T. de C. O papel das mulheres na luta pela apropriação da cidade: reflexões a partir da teoria da interseccionalidade. In: SANTOS JÚNIOR, O.A. et al. (org). Caderno Didático Políticas Públicas e Direito à Cidade. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2017. p. 27., p. 27), na medida em que indivíduos ex-escravizados e imigrantes pobres não tiveram acesso à terra, cuja comercialização ficou restrita a alguns poucos: uma pequena parcela de homens brancos, senhores de terra herdeiros da colônia, que então ocupavam o Parlamento. A Lei de Terras de 1850 recriava as condições do trabalho que desapareceriam com o fim do cativeiro (MARTINS, 1981MARTINS, J. de S. O cativeiro da terra. São Paulo: Hucitec, 1981., p. 28).

A terra passa a ser, então, a principal forma de propriedade, e não mais o número de escravizados, transformando-se no elemento que distingue e hierarquiza os grupos sociais entre proprietários e não proprietários de terras, mantendo a condição de sujeição, mesmo nesse novo mercado, supostamente, livre. Machado e Ariza (2019MACHADO, M. H.; ARIZA, M. Histórias de trabalho, poupança e resiliência: escravas, libertas e libertandas na cidade de São Paulo (1870-1888). In: BARONE, A.; RIOS, F. (org.). Negros nas cidades brasileiras (1890-1950). São Paulo: Intermeios, 2019.) apontam que, depois de garantir a própria liberdade em decorrência da compra, da negociação ou da judicialização de suas alforrias, a partir de meados do século XIX, mulheres negras na cidade de São Paulo assumiram dívidas que consumiam suas vidas para obter a liberdade dos filhos. Esse processo minava a potência emancipatória do trabalho dessas mulheres, que, na cidade, conseguiam obter renda com a venda de produtos manufaturados e de quitutes e com a prestação de outros serviços.

As interdições sobre a autonomia familiar e materna de libertandas, libertas e escravas são expressões bastante específicas dos desafios e experiências femininas no processo de emancipação. Além delas, também o investimento permanente de economias e trabalho na sua alforria e na de seus familiares, levando-as a adentrar o mundo da liberdade formal em condições de continuada exploração e enorme pobreza, e as diversas barreiras impostas à sua autonomia impactaram profundamente não apenas os termos de sua saída da escravidão, mas a própria substância da liberdade que conquistavam. (MACHADO; ARIZA, 2019MACHADO, M. H.; ARIZA, M. Histórias de trabalho, poupança e resiliência: escravas, libertas e libertandas na cidade de São Paulo (1870-1888). In: BARONE, A.; RIOS, F. (org.). Negros nas cidades brasileiras (1890-1950). São Paulo: Intermeios, 2019., p. 53).

A dívida ganha centralidade também com a política racista de “branqueamento” do Brasil, levada a cabo pela Coroa e pelos governos republicanos que se sucederam nos séculos XIX e XX, mediante o incentivo à imigração europeia a partir de 1818 (CARVALHO, 2015CARVALHO, G. de A. S. “Branqueamento” como política brasileira de exclusão social dos negros (século 19 e 20). Revista da Asbrap, n. 21, p. 9-16, 2015.). Esse contexto insere uma nova forma de exploração no país: a “escravidão pela dívida” (GAGO, 2020GAGO, V. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Elefante , 2020.). A sujeição passa a ser estruturada por uma relação de “meação”, em que o colono exercia a atividade agropecuária, dando parte da colheita como pagamento do aluguel pela moradia. Como os valores nem sempre eram suficientes, o colono mantinha-se preso à dívida e, portanto, atado à terra, em um novo processo de escravidão estruturado pela dívida.

A mobilização da dívida como nova forma de colonialidade tem sido revisitada por algumas autoras para pensar processos contemporâneos. A ideia foi desenvolvida por Fields (2017FIELDS, D. Finance as a new terrain for progressive urban politics. Metropolitics, v. 4, 2017.), ao observar que, após a crise das hipotecas estadunidenses ocorrida em 2008, uma grande corporação comprou muitas propriedades dos que não conseguiram pagar suas hipotecas, e os removidos (sem hipotecas) passaram a alugar a mesma casa que possuíam, em uma relação similar à meação, o que resultou na extração de capital de indivíduos e de famílias para as finanças.

As entrevistas realizadas por Fields com indivíduos afetados foram movidas pelo propósito de compreender como a conscientização da situação poderia dar espaço a uma organização coletiva com potência transformadora e emancipatória. Quando dos relatos de suas experiências pessoais, os entrevistados mostravam-se envergonhados; contudo, ao ouvir uns aos outros, o foco da narrativa mudou para as semelhanças sistemáticas entre as experiências vivenciadas. Os indivíduos compartilharam o fato de que foram encorajados a assumir mais dívidas do que poderiam suportar e pressionados a assinar documentos com termos de empréstimo diferentes dos acordados; a sensação era de que não detinham o poder de negociar diante das decisões governamentais e das instituições financeiras que afetariam suas vidas, além da sensação de que o governo não estava disposto a apoiá-los, mas, ao contrário, havia amplo interesse em dirigir propinas para grandes corporações em vez de ajudar os estadunidenses a sair da dívida (SAEGERT; FIELDS; LIBMAN, 2009SAEGERT, S.; FIELDS, D.; LIBMAN, K. Deflating the dream: Radical risk and the neoliberalization of homeownership. Journal of Urban Affairs, v. 31, n. 3, p. 297-317, 2009.).

Outras autoras desenvolveram trabalhos sobre a relação da dívida com o capitalismo dignos de futuros aprofundamentos de pesquisa. Chakravartty e Silva (2012CHAKRAVARTTY, P.; SILVA, D. F. da. Accumulation, dispossession, and debt: The racial logic of global capitalism - an introduction. American Quarterly, v. 64, n. 3, p. 361-385, 2012.), por exemplo, dissertam sobre a lógica racial do capitalismo baseada em dívida. Denise Ferreira da Silva (2019)SILVA, D. F. A dívida Impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. desenvolve esse argumento com o aporte da crise dos empréstimos subprime nos Estados Unidos, entendendo-a como um dos elementos para a elaboração de uma reflexão muito mais profunda sobre a modernidade - como construção ontológica, epistemológica, ética e também material - por meio da mobilização da figura da dívida impagável: “uma obrigação que se carrega, mas que não deve ser paga” (id., p. 154). Para essa autora, a crise financeira global de 2007-2008 revelou as formas pelas quais a racialidade opera no poder global.

Seu argumento é o de que as populações afro-americanas e latinas, as mais afetadas pela crise, adquiriram uma dívida impagável porque os empréstimos subprime foram desenhados para extrair valor do “déficit financeiro” de quem os tomou, operando como ferramentas de subjugação colonial e racial, na medida em que foi justamente a incapacidade dessas pessoas em obter e pagar empréstimos que tornou suas hipotecas um instrumento financeiro valioso. Nessa relação mercantil, esses indivíduos não entraram como “entidades morais”, ou seja, como pessoas reconhecidas em sua humanidade, mas como instrumentos financeiros em si, despossuídos de status moral: “Economicamente, as pessoas que tomaram tais empréstimos não deveriam saldar a dívida precisamente porque, acima de tudo, foi a sua incapacidade de pagar que as tornou ‘instrumentos financeiros’ valiosos” (SILVA, D. F., 2019SILVA, D. F. A dívida Impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019., p. 157). A crise das hipotecas é mobilizada pela autora como meio de ilustrar a continuidade de um “fora do lugar” do corpo negro na modernidade, em um processo de continuidade iniciado na escravidão, em que a dimensão racial se combina à colonial e ao capital, na fundação e perpetuação do sistema capitalista.

A ideia do aprisionamento pela dívida é também trabalhada por Verónica Gago (2020GAGO, V. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Elefante , 2020.), aproximando-se de questões e territórios populares latino-americanos. A autora introduz a ideia de que o extrativismo financeiro envolve a expropriação de terras comunais e indígenas, tirando toda “a autonomia econômica, que vai servir para o confinamento e empobrecimento das mulheres, para torná-las submissas” e responsáveis pelo trabalho doméstico gratuito (GAGO, 2020GAGO, V. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Elefante , 2020., p. 65). Para ela, o extrativismo se expande com o “endividamento popular”, associado ao consumo vinculado à esfera financeira.

Gago mostra que a economia popular é movida por mulheres e que estas, para sobreviver9 9 A lógica da sobrevivência também é apresentada por Rolnik (2019), que chama de “paisagens para a vida” os territórios organizados com base nesse fundamento, nas necessidades e nos desejos de prosperidade. ROLNIK, R. Paisagens para a vida, paisagens para a renda: disputas contemporâneas pelo território urbano. Revista Indisciplinar, v. 5, n. 1, jul. 2019. Disponível em https://wiki.indisciplinar.com/download/008.pdf. Acesso em: 7 jun. 2020. em uma economia urbana com trabalhos e salários cada vez mais insuficientes, vão contraindo dívidas ao ponto de acabar trabalhando para pagá-las, em um processo que conecta as finanças às violências e faz aflorar a precariedade como uma condição que as impede de prosperar, pois estão constantemente em condições estruturais de despojo - sem-terra, sem salário e aprisionadas pelas dívidas.

A vida de Laura10 10 Nome fictício. Entrevista realizada no âmbito de pesquisa do LabCidade (2019). LABCIDADE. Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade. Territórios populares: reestruturação territorial, desigualdades e resistências nas metrópoles. Documentos da Pesquisa Formas de Morar. São Paulo: FAUUSP, 2019. entrelaça alguns desses elementos. Quando a conhecemos, em dezembro de 2019, ela estava participando de uma manifestação na Praça da Sé, área central de São Paulo, contra a remoção da Torrinha, ocupação no extremo norte dessa cidade, onde residia havia dez meses.11 11 Para mais informações sobre a remoção da ocupação Torrinha, ver: http://www.labcidade.fau.usp.br/acao-de-reintegracao-de-posse-na-zona-norte-deixa-1200-familias-sem-casa/. Acesso em: 30 abr. 2020. Baiana, em São Paulo havia quinze anos, ela vivia mudando de uma casa para outra, equilibrando os custos do aluguel com seus rendimentos. Mãe de duas filhas e responsável pelo provimento de sua casa, Laura contava, à época da remoção, com o trabalho como cuidadora em uma casa de família no Tucuruvi. Com o objetivo de sair do aluguel, investiu cerca de 40 mil reais na casa que estava então ameaçada. Quando chegou à Torrinha, a ocupação estava estabelecida havia dois anos, mas também já enfrentava um processo judicial de reintegração de posse - ameaça que Laura descobriu somente depois de ter gastado todo o seu dinheiro na casa.

Essa não era sua primeira tentativa de se estabelecer em uma ocupação. Antes, Laura passou por outra área ocupada, também próxima dali, porém, por conta de uma cena de tráfico e de consumo de drogas no local, ela fez os cálculos dos riscos e optou por mudar-se para a Torrinha. O medo da violência, vindo do tráfico ou da polícia, foi maior que o da perda da moradia - contudo, a sensação de insegurança, atrelada à precariedade das formas de morar, continuou a acompanhá-la. Como ela nos relatou, a incerteza em torno da moradia fez com que adoecesse. Acompanhada por um psiquiatra, havia meses ela só dormia com medicamentos controlados. No dia da remoção da Torrinha, 9 de dezembro de 2019, nós a encontramos passando com sua mudança no carro de um amigo; trocamos rápidas palavras e Laura seguiu seu caminho para mais uma parada na longa e extenuante jornada em busca de moradia.

Por meio da trajetória de Laura, muito brevemente apresentada aqui, é possível vislumbrar as múltiplas dimensões dos processos de despossessão, que não se encerram na perda da moradia. É o que nos mostram as pesquisas em diferentes contextos geográficos, econômicos, políticos e culturais. Para Gago (2020GAGO, V. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Elefante , 2020.), a precariedade é construída em um processo considerado como “espoliação e o saqueio de terras e recursos comuns” (p. 83), ou como “roubo e contaminação de sua terra por parte do neoliberalismo” (FEDERICI, 2019FEDERICI, S. O ponto zero da revolução. São Paulo: Elefante , 2019., p. 9). Também é tida por Schiller e Çağlar (2018SCHILLER, N. G.; ÇAĞLAR, A. Migrants and city-making: dispossession, displacement, and urban regeneration. Durham: Duke University Press, 2018. ) como “despossessão”; essas autoras a descrevem, com efeito, como o confisco das terras comunais, de recursos preciosos e de espaços públicos. O termo “expropriação” é utilizado por Fraser e Jaeggi (2019)FRASER, N.; JAEGGI, R. Capitalism: a conversation in Critical Theory. Cambridge: Polity Press, 2018. em referência às formas de trabalho pelas quais o capitalismo não fornece recompensas, ou cuja recompensa foi muito pequena, não correspondente ao valor do trabalho de reprodução. Trata-se, como é possível notar, de processos entrelaçados de despossessão sobre determinados corpos, modos de vida e territórios.

No Brasil, há várias reflexões sobre o tema, que não se encerram nos processos urbanos de remoção. Um desses trabalhos consiste na descrição de um processo recente de despossessão de moradores de um território quilombola - lugar centenário de territórios de escravizados fugidos na região de Izidora, em Belo Horizonte -, situado em uma área de expansão urbana que foi objeto de um projeto de operação urbana para levar a cabo um gigantesco empreendimento imobiliário popular. Esse processo, analisado por Franzoni, Alves e Faria (2018FRANZONI, J.; ALVES, N.; FARIA, D. “As bruxas da Izidora: feminismos e acumulação por despossessão”. In: ROLNIK, R. et al. (org.). Cidade Estado capital: reestruturação urbana e resistências em Belo Horizonte, Fortaleza e São Paulo. São Paulo: LabCidade FAUUSP, 2018. p. 312-345. , p. 325), foi considerado não apenas uma prática espoliativa de classe, como também uma forma constitutiva às opressões de gênero e raça da população afetada.

Sobre o mesmo território, Natália Alves da Silva (2018SILVA, D. F. Feminismo negro e produção do espaço: as ocupações urbanas em uma abordagem interseccional-espacial. 2018. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.; 2021SILVA, D. F. Uma Izidora e duas Rosas: notas para uma perspectiva do espaço protagonizada por mulheres negras. Revista brasileira de estudos urbanos e regionais. Dossiê Território, Gênero e Interseccionalidades. v. 23, E202138pt, 2021. Doi: 10.22296/2317-1529.rbeur.202138pt.
https://doi.org/10.22296/2317-1529.rbeur...
) e Cruz e Silva (2019CRUZ, M. de M.; SILVA, N. A. da. Intersections in subaltern urbanism: the narratives of women in urban occupations in Brazil. Politics and Space, v. 0, n. 0, p. 1-17, 2019.) lançaram olhares para as mulheres negras que vivem nas ocupações de moradia estabelecidas na região, apoiadas no cruzamento de suas narrativas orais, da memória coletiva, dos resultados de outras pesquisas e dos dados oficiais. No tocante ao âmbito urbano, a noção de despossessão aparece nas remoções de ocupações precárias e dos projetos de “reabilitação urbana”, que removem quem vive em alguns territórios e deles faz uso (ROLNIK, 2015ROLNIK, R. Guerra dos lugares: A colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015 ).

Hoshino (2020HOSHINO, T. de A. P. O direito virado no santo: enredos de nomos e axé. 2020. Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2020.) relata o processo de remoção de um centro de religião afro-brasileira, iluminando como também o racismo religioso orienta processos de despossessão: a remoção de um terreiro de candomblé chamado Abassá de Xangô e Caboclo Sultão, na Operação Urbana Águas Espraiadas em São Paulo, não representou somente a remoção da propriedade, mas uma remoção que é, igualmente, de ordem simbólica e religiosa, tendo em vista que o “dono” do terreiro - uma vez que a própria ideia de propriedade, nesses processos, é aquela que é “performada” ao ser cercada, reiterando regimes de subjetividade como espaço do capital - é o orixá, razão pela qual não é possível efetivar uma despossessão que não seja apenas física e objetiva do espaço, pois a própria noção de propriedade parece limitada nessas circunstâncias.

Muitas dessas autoras e autores que estão olhando para processos de usurpação de terras indígenas, de população ribeirinha e de outros povos afetados por empresas transnacionais, geralmente em territórios rurais ou comunais, inserem uma alcunha na literatura sobre despossessão, na medida em que esta, ao não qualificar quem é despossuído, deixa de fora as formas de exploração coloniais e patriarcais, que ficam, assim, invisibilizadas pelas categorias “capitalista” ou “neoliberal”, quando estas não são constituídas em relação às demais estruturas de opressão.

4. Violências cotidianas, simultâneas e inter-relacionadas

Se tem uma remoção, é sempre pior para as mulheres. Os homens resolvem a vida, colocam as coisas na mala, acham qualquer canto. A gente não, né? Tem a gente e as crianças. Não tem como ficar pulando de galho em galho. (Fala de participante em oficina realizada na Ocupação Helenira Preta, em 15 de fevereiro de 2020).

O corpo da mulher sempre foi condição para a reprodução da vida, possibilitando a formação da classe trabalhadora urbana (FEDERICI, 2017FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017. ). Sem o trabalho feminino de reprodução da vida, não existe trabalho produtivo. Portanto, há uma dimensão estrutural da despossessão no corpo feminino, uma vez que ele é o centro reprodutivo da classe trabalhadora. A remoção é igualmente a destruição do espaço produzido pelas mulheres por meio de redes que lhes conferem poder político. Portanto, sua destruição é, também, política.

Entretanto, há subjetividades nos processos de remoção que merecem ser iluminadas e que se relacionam com a dimensão estrutural. Algumas autoras consideram o processo de remoção como mais um processo violento dentro das diversas violências vividas em diferentes formas de opressão. Galiza, Vaz e Silva (2014GALIZA, H. R. dos S.; VAZ, L. F.; SILVA, M. L. P. da. Grandes eventos, obras e remoções na cidade do Rio de Janeiro, do século XIX ao XXI. In: Conferência Internacional Megaeventos e a Cidade, 2., 2014. Anais [...]. Rio de Janeiro: Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN/IPPUR/UFRJ), 2014.), em uma recuperação histórica das remoções motivadas por grandes eventos e obras no Rio de Janeiro, defendem que a “cultura de remoções” é complementada por uma “cultura de sofrimento”. Elas associam a possibilidade de isso resultar no rompimento de redes sociais “à desestabilização emocional e à insegurança do futuro dos grupos mais vulneráveis” (id., p. 4).

A vida sob constante ameaça de remoção habitacional que algumas comunidades enfrentam foi identificada como situação de “transitoriedade permanente” (ROLNIK, 2015ROLNIK, R. Guerra dos lugares: A colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015 ; SANTOS, 2019SANTOS, R. A. Na cidade em disputa, produção de cotidiano, território e conflito por ocupações de moradia. Cadernos Metrópole , v. 21, n. 46, p. 783-806, 2019.). Pain (2019PAIN, R. Chronic urban trauma: the slow violence of housing dispossession. Urban Studies, v. 56, n. 2, p. 385-400, 2019.) reflete que essa violência, construída cotidiana e gradualmente, às vezes de maneira imperceptível em seu processo, deixa marcas profundas nos sujeitos. São “violências lentas”,12 12 Tradução das autoras para o termo slow violence, adotado por Pain (2019), mas cuja origem está em Nixon (2011 apud PAIN 2019): “uma violência que acontece gradualmente e fora da vista é uma violência de destruição atrasada dispersada através do tempo e do espaço, uma violência de exaustão, tipicamente não vista como violência” (p. 387, tradução nossa). próximas da ideia da violência simbólica de Bourdieu (2000BOURDIEU, P. La dominación masculina. Barcelona: Anagrama, 2000.), que é aquela que não deixa marcas físicas, que é até mesmo invisível para suas vítimas, mas que é exercida pelos caminhos simbólicos da comunicação e do conhecimento (BOURDIEU, 2000BOURDIEU, P. La dominación masculina. Barcelona: Anagrama, 2000. apud VILLAGRÁN, 2012VILLAGRÁN, P. S. El miedo de las mujeres a la violencia en la Ciudad de México. Una cuestión de justicia espacial. Revista Invi, n. 75, v. 27, p. 145-169, 2012.).

Os tratores da firma construtora estavam cavando, arando a ponta norte da favela. Ali, a poeira se tornava maior e as angústias também. Algumas famílias já estavam com ordem de saída e isto precipitava a dor de todos nós. Cada família que saía, era uma confirmação de que chegaria a nossa vez. Ofereciam duas opções ao morador: um pouco de material, tábuas e alguns tijolos para que ele construísse outro barracão num lugar qualquer, ou uma indenização simbólica, um pouco de dinheiro. A última opção era pior. Quem optasse pelo dinheiro recebia uma quantia tão irrisória, que acabava sendo gasta ali mesmo. Depois vinha o pior, decorrido o prazo de permanência, nem o dinheiro, nem as tábulas, nem os tijolos, só o nada. (EVARISTO, 2017EVARISTO, C. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017., p. 71).

Processos de remoção não se encerram na perda da moradia, tampouco são casos episódicos, acontecimentos de um único dia. Ao contrário, são processos violentos, demorados, que envolvem mudanças de vida nos mais amplos espectros - trabalho, educação, família, redes afetivas e de suporte que são desfeitas, ou seja, toda estrutura de reprodução da vida precisa ser reorganizada diante de uma remoção. Pesquisando em um contexto significativamente distinto, de cidades médias do chamado Norte Global, Schiller e Çağlar (2018SCHILLER, N. G.; ÇAĞLAR, A. Migrants and city-making: dispossession, displacement, and urban regeneration. Durham: Duke University Press, 2018. ) mobilizam o par conceitual displacements e emplacements para lançar luz sobre os variados processos de despossessão relacionados não apenas à destruição da moradia, como também à precarização do trabalho, ao desmonte da seguridade social e ao aumento do endividamento, que recaem sobre parte da população e que produzem, simultaneamente, outros processos por meio dos quais as pessoas deslocadas reconstroem suas relações e suas redes, inclusive, ou, sobretudo, reposicionando-se no território. Ou seja, trata-se de processos inter-relacionados de reestruturação do espaço e das relações sociais que, ao se desenvolver, estão produzindo cidade - e contribuindo com a acumulação de capital, ao mesmo tempo que são vítimas dele. Resta a questão: que cidade é essa, produzida por meio de processos continuados e variados de despossessão?

O ciclo ocupação-remoção-ocupação, que caracteriza o estado de transitoriedade permanente, pode se repetir inúmeras vezes, como é o caso de Luiza,13 13 Nome fictício. Entrevista realizada no âmbito da pesquisa do LabCidade (2019). LABCIDADE. Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade. Territórios populares: reestruturação territorial, desigualdades e resistências nas metrópoles. Documentos da Pesquisa Formas de Morar. São Paulo: FAUUSP, 2019. cuja entrevista foi realizada nas proximidades de um Centro Temporário de Acolhimento (CTA), equipamento da Prefeitura de São Paulo que tem como “público-alvo” famílias em situação de vulnerabilidade social. Desde 2018, Luiza vive no CTA com seus quatro filhos e três cachorros, depois de ter passado por sete acampamentos e ocupações desde 2007, quando viveu sua primeira reintegração de posse. Desde que deixou o acampamento formado no Largo do Paiçandu, no centro de São Paulo, após o desabamento da Ocupação Wilton Paes -, ela ocupa de forma temporária-mas-permanente um quarto no CTA, que tem um regime disciplinar um tanto rígido: não é permitido levar comida para dentro do equipamento (todas as refeições são disponibilizadas), nem receber visitas. Sobre o espaço, queixa-se de que “não pode mexer em nada, nem pregar um prego”. Ainda, as crianças não podem ficar sozinhas ou com outras pessoas que vivem ali, por isso Luiza só consegue trabalhar no período em que as crianças estão na escola ou no equipamento próximo, que oferece atividades no contraturno escolar.

Como o CTA é um centro para permanência temporária, caso Luiza e seus filhos tenham que deixar a vaga que hoje ocupam, terão de voltar para a ocupação onde já viveram. Além disso, o estigma que acompanha a família faz das crianças vítimas de bullying na escola - elas são chamadas de “crianças de abrigo” -, e a chefe da família tampouco consegue abrir uma conta no banco ou arranjar um emprego. Luiza atribui isso ao fato de fornecer o endereço do CTA. São nítidas as múltiplas camadas de violência que tal processo de transitoriedade permanente imprime na vida dessa família, história que se repete com um sem-número de outras pessoas.

Maria-Velha e Mãe Joana demonstravam uma confiança que não tinham naquele momento. Era preciso não amargurar os filhos. Elas sabiam, porém, que as dificuldades seriam redobradas. Como viriam trazer e buscar as roupas? Como manteriam a freguesia? Mudar a forma de trabalho? Voltar a trabalhar nas casas de famílias? Quem cuidaria de Tio Totó e das crianças? Havia o medo, o desconhecido, os bichos. Havia o enorme desamparo. (EVARISTO, 2017EVARISTO, C. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017., p. 174).

O interesse de Pain (2019PAIN, R. Chronic urban trauma: the slow violence of housing dispossession. Urban Studies, v. 56, n. 2, p. 385-400, 2019.) na dimensão traumática das remoções e em seu aspecto espacial e coletivo, em detrimento dos efeitos sobre corpos e mentes individuais, expande os efeitos da violência, que é repetida ao longo de um recorte temporal extenso, bem como a escala e a profundidade desse trauma, politizando-o. Além disso, no caso de remoções e outros eventos, como megaobras de infraestrutura com grandes impactos ambientais, o autor é o próprio Estado e, por isso, pode utilizar técnicas de violência psicológica e gozar de impunidade (NIXON, 2011 apud PAIN, 2019PAIN, R. Chronic urban trauma: the slow violence of housing dispossession. Urban Studies, v. 56, n. 2, p. 385-400, 2019.), deixando claras quais são as relações de poder estabelecidas.

Os caminhões chegavam de manhã e até tarde da noite levavam as famílias. Todos já estavam mesmo querendo partir. A vida tinha se tornado insuportável. Áreas da favela estavam desertas. Ir de um local a outro havia se tornado um perigo. As pessoas estavam temerosas de si e dos outros. Até o amigo podia ser um inimigo em potencial. Havia o perigo real e o perigo imaginário. As mulheres e as crianças, para buscarem água à noite, só andavam em grupo, e este afazer tomava até altas horas da madrugada. O medo do invisível se apoderou de nós. Não tínhamos certeza de mais nada. [...] Era um medo que talvez viesse de situações mais concretas, como a mudança de um local que de certa forma amávamos e críamos como nosso. Medo por começar outra nova-mesma vida. Medo de que o amanhã fosse pior, muito pior do que hoje. Medo, consciência da nossa fraqueza, de nosso desamparo, de nossa desvalia. (EVARISTO, 2017EVARISTO, C. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017., p. 166).

Um olhar feminista sobre esses fenômenos leva ao que Verónica Gago (2020GAGO, V. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Elefante , 2020.) sugere: para compreender as violências que as mulheres sofrem, é preciso fazer uma cartografia das violências que consiga dar conta de suas variadas formas. Segundo essa autora, é possível realizar uma leitura da violência no neoliberalismo de várias maneiras, entre elas mediante a observação do “modo que a exploração se enraíza na produção de subjetividades compelidas à precariedade ao mesmo tempo que lutam para prosperar em condições estruturais de despojo” (id., ibid., p. 82-83).

Um debate e um mapeamento colaborativo das remoções e das ameaças de remoção no impacto da vida das mulheres foram promovidos em fevereiro de 2020 pela Casa de Referência Mulher Helenira Preta e pelo Observatório de Remoções, em Mauá, região do ABC de São Paulo. A Casa é uma ocupação organizada pelo Movimento de Mulheres Olga Benário, que, desde 2018, recebe mulheres vítimas de violência, realiza atendimento jurídico e psicológico e oferece atividades de formação e cultura.

Além das novas denúncias de ocorrências, a atividade resultou no registro das percepções das mulheres moradoras de Mauá em relação às injustiças territoriais e serviu de ferramenta para a elaboração da Rede Contra Remoções da Helenira Preta, que está em atividade recebendo denúncias e atualizações sobre a situação das mulheres. A percepção das mulheres sobre o próprio território foi resumida por palavras como “risco” e “ameaça”. A primeira, para além do risco geológico, também foi mencionada no sentido de sofrer violência, de não ter vagas em creche para os filhos, de estar sem amparo social e sem emprego, como se percebe nesta fala: “É um risco sair todo dia pra trabalhar e não saber se vai voltar. Não saber se nossas filhas vão voltar. Os serviços são longe, muitos fora de Mauá” (fala de participante em oficina realizada na Ocupação Helenira Preta, em 15 de fevereiro de 2020).

Já a palavra “ameaça” recebeu uma carga mais grave e foi usada em momentos de relato de terror policial, de medo muito intenso, de casos de violência sexual e de risco à vida. As situações de risco são administráveis. Apesar dos riscos de sair de casa, é possível sair de casa. O risco torna a vida digna mais difícil de ser atingida, contudo não retira totalmente a capacidade de escolha das mulheres. É possível, como foi citado na oficina, pegar caminhos mais seguros, ao sair de casa, para diminuir o risco. O contrário acontece em situações de ameaça. Uma mulher que se sente ameaçada não tem condições, sozinha, de diminuir a ameaça: “Dá medo de morar em moradia precária. Incêndio, inundação, enchente, ficar sem água. É medo o tempo todo. Muitas mulheres ainda sofrem violência e têm medo também de denunciar. Além do medo das ameaças do marido” (fala de participante em oficina realizada na Ocupação Helenira Preta, em 15 de fevereiro de 2020).

As ameaças de remoção causam medo, pois a perda da casa leva à perda de outros elementos. O mais citado deles foi a creche. Em alguns casos, a distância entre a nova moradia e a creche na qual os filhos estão matriculados é tamanha que é impossível levá-los: “A falta de creche é a principal barreira para se ter uma vida digna em Mauá. A falta de creche, empregos, casa e água é muito pior para as mulheres. Como é que você cuida? Como você limpa? Como você pode organizar as coisas? Boa parte da cidade é assim” (fala de participante em oficina realizada na Ocupação Helenira Preta, em 15 de fevereiro de 2020).

A fala das participantes da oficina promovida na Ocupação Helenira Preta traz muitas dimensões de violência. Ela está expressa no medo - causado pela ameaça de remoção, mas também pelas condições de vida decorrentes da moradia precária, que provocam medo o tempo todo, além do risco ao qual as moradoras e sua família estão submetidas no caso de um evento imprevisível -, mas é plenamente possível que esses eventos que causam ansiedade aconteçam de fato. A isso se soma a ameaça constante da violência de gênero, perpetrada pelo companheiro, em igual ou pior situação de precariedade laboral, também alvo de violência estatal por seu endereço, gênero ou raça.

Os papéis de gênero, da mulher no espaço reprodutivo, bem como do homem no espaço público, articulam violências de gênero cotidianas, o que foi percebido no campo da Zona Norte. Para além do corpo biológico, entender as amarras e as armadilhas da manutenção desses papéis é essencial para entender como as remoções são vividas e enfrentadas pelas mulheres, em um processo que acaba por reforçá-los.

Na Torrinha, ocupação localizada no distrito de Tremembé, e removida em dezembro de 2019, Yolanda,14 14 Nome fictício. Entrevista realizada no âmbito da pesquisa do LabCidade (2019). LABCIDADE. Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade. Territórios populares: reestruturação territorial, desigualdades e resistências nas metrópoles. Documentos da Pesquisa Formas de Morar. São Paulo: FAUUSP, 2019. de 28 anos, conta que bateu de porta em porta tentando alugar um imóvel antes da concretização da remoção, que viria oito meses depois. Mas não conseguiu. A razão não era unicamente econômica, apesar do peso que os R$ 800 teriam no orçamento: o principal empecilho para a concretização do negócio era o veto dos proprietários a animais e a crianças. A responsabilidade pelo sustento e pela manutenção da família figura como um exemplo dos papéis de gênero que aprisionam e condicionam, de maneiras diferenciadas, a vida de mulheres, impactando igualmente na relação travada com e no território. Na Região Metropolitana de São Paulo, 18% das casas são chefiadas por mulheres sozinhas e com filhos ou netos, contra apenas 3% do mesmo modelo familiar chefiado por homens (SEADE, 2020SEADE. Fundação Estadual de Sistema de Dados. Mulheres e arranjos familiares na metrópole. São Paulo: Seade, 2020.).

5. A potência transformadora de um cotidiano de resistências

É possível dizer dos estudos feministas que vários deles se esforçam por fazer emergir, reconhecer e estimular os processos de mobilização social que têm as mulheres no centro, tomando o cotidiano de resistência como o cerne da transformação, como uma potência transformadora em um contexto de profundas contradições e conflitos. Disputas que envolvem moradia, ou outras dimensões da reprodução da vida, são comumente protagonizadas por mulheres, que assumem a linha de frente nos casos de resistência ou em manifestações por demandas coletivas (MONTEIRO; MEDEIROS; NASCIUTTI, 2017MONTEIRO, P.; MEDEIROS, M.; NASCIUTTI, L. Insurgência feminina: a ética do cuidado e a luta contra a remoção. In: Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, 17., 2017. Anais [...]. São Paulo: Enanpur, 2017. p. 22-26. Tema: Desenvolvimento, crise e resistência: Quais os caminhos do Planejamento Urbano e Regional?; SANTORO, 2007SANTORO, P. F. Gênero e planejamento territorial: uma aproximação. In: Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 16., 2007, Caxambu. Anais [...]. Caxambu: Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa, 2007.; BLAY, 1994BLAY, E. A. Mulheres e movimentos sociais. São Paulo em Perspectiva, v. 8, n. 3, p. 45-47, 1994.).

Em São Paulo, as mulheres estavam no centro das reivindicações quanto à estruturação e qualificação dos territórios populares, como vem ocorrendo há décadas nos Clubes de Mães da Zona Sul, no Movimento Contra o Aumento do Custo de Vida etc. Ao menos desde os anos 1970, foram elas que protagonizaram reivindicações que colocaram na agenda política a luta pela moradia adequada, por equipamentos de saúde pública, creches e serviços, como coleta de lixo, instalação de rede de esgoto e linhas de ônibus (GOHN, 1982GOHN, M. da G. M. Reivindicações populares urbanas: um estudo sobre as associações de moradores em São Paulo. São Paulo: Autores Associados, 1982.; SADER, 1988SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.). Também são delas os corpos que compõem a base do movimento social (BLAY, 1994BLAY, E. A. Mulheres e movimentos sociais. São Paulo em Perspectiva, v. 8, n. 3, p. 45-47, 1994.; HELENE, 2019HELENE, D. Gênero e direito à cidade a partir da luta dos movimentos de moradia. Cadernos Metrópole, v. 21, n. 46, p. 951-974, 2019.).

Foi com mulheres à frente que se deu o movimento de resistência na remoção que pôs fim a três ocupações no Jardim Flor de Maio, Zona Norte de São Paulo. Em julho de 2018, uma ação de reintegração de posse deixou cerca de quatrocentas famílias sem casa, em uma ação que durou dois dias, atravessada por disputas, tensões e ações violentas.15 15 Um relato mais detalhado sobre a ação que resultou na remoção das três ocupações foi publicado em: http://www.labcidade.fau.usp.br/flor-de-maio-reintegracao-de_posse-na-zona-norte-deixa-250-familias-sem-casa/. Acesso em: 3 jun. 2020. Em vários momentos de embate, quer com os oficiais de justiça, quer com os policiais militares, foram as mulheres que assumiram a linha de frente. Vilma e Sônia16 16 Nomes fictícios. Entrevistas realizadas no âmbito de pesquisa do LabCidade (2019). LABCIDADE. Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade. Territórios populares: reestruturação territorial, desigualdades e resistências nas metrópoles. Documentos da Pesquisa Formas de Morar. São Paulo: FAUUSP, 2019. faziam parte desse grupo. Mesmo diante da perda da moradia e da necessidade de buscar alternativas, durante os dois dias elas acompanharam todo o processo, e nele interferiram, ora indo para o confronto direto nas discussões e negociações sobre os termos da remoção, ora organizando boicotes: elas juntaram, por exemplo, montes de madeira podre e entulhos para que fossem carregados como mudança de morador. Uma ação simples, mas que expressou a revolta dessas duas mulheres que, em nenhum momento, deixaram de dar suporte às demais famílias que estavam sendo removidas.

A ação das mulheres, contudo, foi respondida ainda com mais violência. Em vários momentos, as duas mulheres, ambas de pele preta, ouviram injúrias raciais violentas, proferidas por policiais e por funcionários da empresa responsável pelos caminhões de mudança. Houve um momento em que um dos motoristas foi em direção a elas de forma tão agressiva que teve de ser rapidamente afastado pelos policiais.

Ao fim daqueles dois dias, foram as redes mantidas pelas duas mulheres que lhes garantiram uma alternativa, mesmo que provisória: Sônia foi para a casa de parentes, enquanto suas coisas ficaram guardadas na garagem do pastor da igreja que frequentava. Vilma, por sua vez, compôs o grupo que organizou outra ocupação, próxima dali, dando sequência à disputa pela terra, que tem caracterizado essa porção da cidade (UNGARETTI et al., 2020UNGARETTI, D.; MOREIRA, F. A. ; LACERDA, L.; RIBAMAR, T. Conflito, produção e gestão dos territórios populares: repertórios do extremo norte de São Paulo. In: MOREIRA, F. A.; ROLNIK, R.; SANTORO, P. F. (org.) Cartografias da produção, transitoriedade e despossessão dos territórios populares - Observatório de Remoções. Relatório bianual 2019-2020. São Paulo: LabCidade, 2020, p. 327-364.).

De maneira semelhante, no contexto das remoções justificadas pelos megaeventos esportivos sediados pelo Rio de Janeiro,17 17 Outros tantos foram os trabalhos que se debruçaram sobre os impactos dos megaeventos esportivos no Rio de Janeiro. Um deles, o Projeto Prata Preta, com um mapeamento inédito dos cortiços na zona portuária da cidade, expôs as consequências não previstas, ou desconsideradas, advindas da profunda reestruturação urbana levada a cabo tendo em vista tais eventos. O projeto lançou luz sobre uma realidade até então invisibilizada, de uma população majoritariamente masculina, nordestina, com significativa presença de imigrantes, muitos em situação de irregularidade no país, transitando entre os circuitos do trabalho informal na região (LACERDA; WERNECK; RIBEIRO, 2017). LACERDA, L.; WERNECK, M.; RIBEIRO, B. Cortiços de hoje na cidade do amanhã: notas sobre a pesquisa Prata Preta e o levantamento de cortiços na área portuária do Rio de Janeiro. E-metrópolis, ano 8, n. 30, set. 2017. diversos trabalhos apontaram o protagonismo feminino na resistência às remoções (NASCIUTTI, 2016NASCIUTTI, L. Gênero, cidade e luta: narrativas resistentes das mulheres da Vila Autódromo. 2016. Monografia (Graduação) - Instituto de Arte e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016. ; SOBRINHO, 2017SOBRINHO, T. de C. O papel das mulheres na luta pela apropriação da cidade: reflexões a partir da teoria da interseccionalidade. In: SANTOS JÚNIOR, O.A. et al. (org). Caderno Didático Políticas Públicas e Direito à Cidade. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2017. p. 27.). Monteiro, Medeiros e Nasciutti (2017MONTEIRO, P.; MEDEIROS, M.; NASCIUTTI, L. Insurgência feminina: a ética do cuidado e a luta contra a remoção. In: Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, 17., 2017. Anais [...]. São Paulo: Enanpur, 2017. p. 22-26. Tema: Desenvolvimento, crise e resistência: Quais os caminhos do Planejamento Urbano e Regional?) investigaram os sentidos e os impactos na vida de mulheres sob ameaça de remoção e diante das dinâmicas violentas da destruição sobre uma das comunidades afetadas.18 18 Sobre a resistência da Vila Autódromo contra a remoção, ver, por exemplo: https://www.youtube.com/watch?v=s4P8dQJTSBA&t=35s. Acesso em: 30 abr. 2020. Segundo as autoras, as mulheres têm razões a mais para liderar a resistência, uma vez que a perda da casa significa, também, a destruição dos arranjos que viabilizam, entre outros fatores, fontes de renda e a partilha do cuidado de crianças, idosos e doentes, quase sempre considerados de responsabilidade exclusiva de mulheres.

A relação dentro da necessidade é muito o que define a questão da favela porque as soluções que surgem dentro da favela, da comunidade elas são muito geradas pela necessidade, é o problema gerando solução, né? E na vida da mulher que vive em comunidade acontece isso também, é muito diferente, por exemplo, de uma madame que tem dinheiro, né? Ela não tem esse vínculo social porque ela tem dinheiro, então ela paga uma babá, ela paga uma faxineira. O vínculo dela é com o capital. Mas a mulher de comunidade não, ela tem um vínculo com a coletividade, porque ela tem um vínculo com aquelas pessoas; sem aquelas pessoas, como que eu vou fazer agora? Sozinha no mundo? O maior problema da remoção pra mim é a solidão [...] (MONTEIRO; MEDEIROS; NASCIUTTI, 2017MONTEIRO, P.; MEDEIROS, M.; NASCIUTTI, L. Insurgência feminina: a ética do cuidado e a luta contra a remoção. In: Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, 17., 2017. Anais [...]. São Paulo: Enanpur, 2017. p. 22-26. Tema: Desenvolvimento, crise e resistência: Quais os caminhos do Planejamento Urbano e Regional?, p. 15).

O momento da remoção é um evento disruptivo, quando há a materialização da violência na derrubada das casas, nos escombros que ficam pelo caminho, nas pessoas que passam apressadas carregando suas mudanças. Mas a violência também se expressa na quebra das estratégias de reprodução da vida, que precisam ser rearranjadas, e sua reorganização só é possível graças às redes nas quais os indivíduos removidos estão inseridos.

Se tomarmos os termos de Butler (2018BUTLER, J. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, José Olympio, 2018.), podemos entender essas redes e as alianças que as sustentam com base na compreensão do termo precariedade. Para a autora, a precariedade seria o resultado da distribuição desigual da condição precária - essa, sim, compartilhada por todos os seres humanos -, ou seja, fruto de uma situação induzida de variados processos de despossessão, envolvendo a deterioração das redes de apoio social e econômico, que recaem sobre determinados grupos e populações. Entretanto, a precariedade aparece também como um lugar de aliança entre os que vivem essa situação, reunindo pessoas que, de outro modo, não teriam muito em comum. Assim, Butler nos incita a pensar as redes de relações materiais e imateriais que condicionam a vida humana e não humana e aporta essa ideia à discussão no campo dos estudos urbanos, uma vez que as malhas e redes urbanas passam a ser vistas como parte imbricada da vida, lado a lado com as redes sociais e de solidariedade.

Por sua vez, Gago (2020GAGO, V. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Elefante , 2020.) dá ao seu livro o título de Potência feminista, colocando o desejo como força que impulsiona o que é percebido coletivamente. A autora propõe a greve como lente e catalisador para ler o processo político e subjetivo que é movido por esse desejo, como expressão multitudinária. Uma leitura dessas ideias para pensar os processos de remoção traz a imagem da resistência a essa ação como uma “greve”, onde se quer tornar visíveis as precariedades urbanas e da vida, às quais as famílias estão submetidas. Para ela, a greve também permite um deslocamento com relação à posição de vítimas e de excluídas, e sua prática - organização e realização - é a redefinição de uma forma poderosa de luta. Em vários trechos de seu livro, retoma-se o tema da assembleia para descrever que o processo de organização da greve feminista, por meio de assembleias preparatórias, levou à compreensão do que é o trabalho invisível e de como ele pode ser visibilizado na greve, mesmo por parte das mulheres que queriam parar, e não podiam.

Butler (2018BUTLER, J. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, José Olympio, 2018.) usa o termo “assembleia”, entre outros, para dar caráter corpóreo aos questionamentos que tratam das dimensões da política. Ele funcionaria, segundo a autora, de dois modos fundamentais: i) de um lado, pelo fato de se estar presente, reunido, em assembleias, greves, vigílias e ocupações de espaços públicos, literalmente dando corpo a elas; ii) de outro, quando esses corpos são o objeto mesmo, o tema central de manifestações da condição precária e da distribuição desigual da precariedade. Para Butler, existe um corpo que, com outros, em aliança, fornece visibilidade às diversas precariedades a que os indivíduos estão submetidos.

Dessa forma, na concepção da autora, a precariedade é a rubrica que une as mulheres, os queers, as pessoas transgênero, os pobres, aqueles com habilidades diferenciadas, os apátridas, mas também grupos étnico-raciais e religiosos que são alvo de processos de despossessão: é uma condição social e econômica, porém não uma identidade, que, na verdade, atravessa essas categorias e produz alianças potenciais entre aqueles que não reconhecem que pertencem uns aos outros (BUTLER, 2018BUTLER, J. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, José Olympio, 2018.).

Esses corpos, juntos, reivindicam “direitos quando não se tem nenhum”, ou seja, reivindicam o próprio poder que é negado a fim de expor e lutar contra essa negação; “é questão de agir e, na ação, reivindicar o poder de que se necessita”. É assim que ela entende a “performatividade”, como uma maneira de agir “a partir da precariedade e contra ela” (BUTLER, 2018BUTLER, J. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, José Olympio, 2018., p. 65).

Várias dessas autoras parecem reconhecer que os processos de despossessão, inclusive os de remoção, são também processos potentes de transformação - em toda sua contraditoriedade e conflitualidade -, inscritos na reconstrução de relações e redes dos despossuídos, por meio de seu reposicionamento no território, envolvendo processos de reestruturação do espaço e das relações sociais (SCHILLER; ÇAĞLAR, 2018SCHILLER, N. G.; ÇAĞLAR, A. Migrants and city-making: dispossession, displacement, and urban regeneration. Durham: Duke University Press, 2018. ). E são esses processos de reestruturação que são mobilizados pelas lideranças femininas e suas lutas, como podemos perceber na fala das mulheres participantes da oficina do Observatório de Remoções em Mauá:

Tinha que ter mais creche? A gente fez uma creche. Tinha que ter mais acolhimento! A gente fez acolhimento. A gente faz tudo o que a prefeitura deveria fazer e ela não vem nem ligar a água daqui.

A principal política pública que existe para mulheres na cidade não vem do poder público, vem do poder popular.

A gestão não é comprometida com a população pobre e trabalhadora da cidade. A Helenira permite que a gente faça coisas que a prefeitura não permite. A gente estuda, a gente lê, a gente se forma.

A luta coletiva é o que vai salvar a gente. É a única coisa que pode salvar a gente. Nossas mães, nossas irmãs, nossas amigas. Precisamos de mais Heleniras na cidade, no mundo.

A questão da moradia deveria ser guiada de uma forma responsável. Quem manda em Mauá não se sente responsável pelas mulheres. Os gestores não olham para a juventude, para as mulheres.

A construção da alternativa popular é a saída. Principalmente liderado pelas mulheres.

(Falas da oficina realizada na Ocupação Helenira Preta, em 15 de fevereiro de 2020).

As mulheres estão fazendo creche, estudando, criando, partilhando; estão se formando e participando da luta coletiva, que é o que pode nos salvar. Como elas mesmas disseram, precisamos de mais Heleniras na cidade, no mundo!

Referências

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    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0601-1850.htm
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    » https://doi.org/10.22296/2317-1529.rbeur.202138pt.
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  • 1
    O Observatório de Remoções é uma rede de pesquisa-ação que, desde 2012, realiza o mapeamento colaborativo das ameaças e remoções de forma coletiva com parceiros em outras universidades e cidades brasileiras - como Belo Horizonte, Fortaleza, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo -, envolvendo diferentes estratégias, atores e fontes de dados (MARINO, A.; ROLNIK, R., 2019; LINS, R. D.; ROLNIK, R., 2018; ROLNIK, R.; LEITÃO, K.; COMARU, F.; LINS, R. D., 2017). Para saber mais, ver: http://www.labcidade.fau.usp.br/observatorio-de-remocoes/. Acesso em: 15 abr. 2020. MARINO, A.; ROLNIK, R. São Paulo. Observatório de Remoções. In: MARINO et al. Panorama dos conflitos fundiários urbanos no Brasil. Relatório de 2018. São Paulo: Fórum Nacional de Reforma Urbana. GT Conflitos, 2018. Disponível em: http://www.cdes.org.br/wp-content/uploads/2019/11/panorama-dos-conflitos-2018-5.pdf. Acesso em: 29 abr. 2020. LINS, R. D.; ROLNIK, R. (coord.). Observatório de Remoções 2017-2018. Relatório final do projeto. São Paulo: LabCidade FAUUSP; LabHab FAUUSP; LabJuta UFABC; Fundação Ford, 2018. ROLNIK, R.; LEITÃO, K.; COMARU, F.; LINS, R. D. (coord.). Observatório de Remoções 2015-2017. Relatório final do projeto. São Paulo: LabCidade; LabHab; LabJuta; FAUUSP; UFABC, 2017.
  • 2
    Os fragmentos de entrevistas e observações de campo têm origem em pesquisas realizadas pelo Observatório de Remoções e pelo LabCidade: aqueles oriundos da pesquisa “Formas de morar” foram coletados entre maio e novembro de 2019 pela equipe de pesquisadores do LabCidade Os trechos referentes à etnografia efetuada na Zona Norte de São Paulo fazem parte do projeto de pesquisa “Territórios populares”, iniciado em abril de 2018 e ainda em desenvolvimento. Os fragmentos referentes à ocupação Helenira Preta integram o eixo de pesquisa “Observando de perto”, parte do Observatório de Remoções, e foram coletados na oficina conduzida no dia 15 de fevereiro de 2020, por pesquisadoras do LabJuta/UFABC.
  • 3
    Quarto de despejo (1960), diário de Carolina Maria de Jesus, traz o relato e reflexões da autora sobre a vida na Favela do Canindé, localizada às margens do rio Tietê, em São Paulo. Para uma reflexão sobre as potências contidas no trabalho dessa autora, ver Pereira (2019). PEREIRA, G. L. Corpo, discurso e território: a cidade nas dobras da narrativa de Carolina Maria de Jesus. 2015. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.
  • 4
    Becos da memória (2017) narra a história dos moradores de uma favela, alvo de um plano de desfavelamento. Para mais informações sobre a vida e obra da autora, ver OLIVEIRA (2013). OLIVEIRA, M. A. Entre becos e memórias, Conceição Evaristo e o poder da ficção. Estado de Minas. Caderno Pensar. Belo Horizonte, 5 out. 2013. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ficcao/68-conceicao-evaristo-entre-becos-e-memorias-conceicao-evaristo-e-o-poder-da-ficcao. Acesso em: 4 jun. 2020.
  • 5
    Para um debate sobre as diferenças entre correntes teóricas feministas, ver Silvia, Faria e Pimenta (2017)SILVA, N. A.; FARIA, D. de O.; PIMENTA, M. Feminismo e o espaço urbano: apontamentos para o debate. Anais Enanpur, v. 17, n. 1, 2017. e Hollanda (2018). HOLLANDA, H. B. Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
  • 6
    Diferentemente do Observatório de Remoções, que se debruça sobre processos coletivos de deslocamento forçado, Desmond lançou seu olhar para os despejos individuais, que, no caso estudado por ele, assumem contornos massivos, dada sua dimensão: em média, anualmente, dezesseis famílias eram removidas por dia na cidade de Milwaukee, no estado de Wisconsin, Estados Unidos (DESMOND, 2014DESMOND, M. Poor black women are evicted at alarming rates, setting off a chain of hardship. Policy research brief. Chicago: MacArthur Foundation, 2014. https://www.macfound.org/media/files/HHM_Research_Brief_-_Poor_Black_Women_Are_Evicted_at_ Alarming_Rates.pdf. Acesso em: 29 abr. 2020.
    https://www.macfound.org/media/files/HHM...
    ).
  • 7
    Sobre as críticas ao trabalho do autor e do grupo ao qual está vinculado, o Eviction Lab, ver Aiello et al. (2020). AIELLO, D.; BATES, L.; GRAZIANI, T.; HERRING, C.; MAHARAWAL, M.; MCELROY, E.; PHAN, P.; PURSER, G. Eviction Lab misses the mark. Shelterforce: the voice of community development, Aug. 22, 2018. Disponível em: https://shelterforce.org/2018/08/22/eviction-lab-misses-the-mark/. Acesso em: 29 abr. 2020.
  • 8
    Nos trechos citados, retirados da obra de Carolina Maria de Jesus, optamos por manter a grafia original tal como consta na publicação utilizada neste artigo e referenciada ao final do artigo.
  • 9
    A lógica da sobrevivência também é apresentada por Rolnik (2019), que chama de “paisagens para a vida” os territórios organizados com base nesse fundamento, nas necessidades e nos desejos de prosperidade. ROLNIK, R. Paisagens para a vida, paisagens para a renda: disputas contemporâneas pelo território urbano. Revista Indisciplinar, v. 5, n. 1, jul. 2019. Disponível em https://wiki.indisciplinar.com/download/008.pdf. Acesso em: 7 jun. 2020.
  • 10
    Nome fictício. Entrevista realizada no âmbito de pesquisa do LabCidade (2019). LABCIDADE. Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade. Territórios populares: reestruturação territorial, desigualdades e resistências nas metrópoles. Documentos da Pesquisa Formas de Morar. São Paulo: FAUUSP, 2019.
  • 11
    Para mais informações sobre a remoção da ocupação Torrinha, ver: http://www.labcidade.fau.usp.br/acao-de-reintegracao-de-posse-na-zona-norte-deixa-1200-familias-sem-casa/. Acesso em: 30 abr. 2020.
  • 12
    Tradução das autoras para o termo slow violence, adotado por Pain (2019), mas cuja origem está em Nixon (2011 apud PAIN 2019PAIN, R. Chronic urban trauma: the slow violence of housing dispossession. Urban Studies, v. 56, n. 2, p. 385-400, 2019.): “uma violência que acontece gradualmente e fora da vista é uma violência de destruição atrasada dispersada através do tempo e do espaço, uma violência de exaustão, tipicamente não vista como violência” (p. 387, tradução nossa).
  • 13
    Nome fictício. Entrevista realizada no âmbito da pesquisa do LabCidade (2019). LABCIDADE. Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade. Territórios populares: reestruturação territorial, desigualdades e resistências nas metrópoles. Documentos da Pesquisa Formas de Morar. São Paulo: FAUUSP, 2019.
  • 14
    Nome fictício. Entrevista realizada no âmbito da pesquisa do LabCidade (2019). LABCIDADE. Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade. Territórios populares: reestruturação territorial, desigualdades e resistências nas metrópoles. Documentos da Pesquisa Formas de Morar. São Paulo: FAUUSP, 2019.
  • 15
    Um relato mais detalhado sobre a ação que resultou na remoção das três ocupações foi publicado em: http://www.labcidade.fau.usp.br/flor-de-maio-reintegracao-de_posse-na-zona-norte-deixa-250-familias-sem-casa/. Acesso em: 3 jun. 2020.
  • 16
    Nomes fictícios. Entrevistas realizadas no âmbito de pesquisa do LabCidade (2019). LABCIDADE. Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade. Territórios populares: reestruturação territorial, desigualdades e resistências nas metrópoles. Documentos da Pesquisa Formas de Morar. São Paulo: FAUUSP, 2019.
  • 17
    Outros tantos foram os trabalhos que se debruçaram sobre os impactos dos megaeventos esportivos no Rio de Janeiro. Um deles, o Projeto Prata Preta, com um mapeamento inédito dos cortiços na zona portuária da cidade, expôs as consequências não previstas, ou desconsideradas, advindas da profunda reestruturação urbana levada a cabo tendo em vista tais eventos. O projeto lançou luz sobre uma realidade até então invisibilizada, de uma população majoritariamente masculina, nordestina, com significativa presença de imigrantes, muitos em situação de irregularidade no país, transitando entre os circuitos do trabalho informal na região (LACERDA; WERNECK; RIBEIRO, 2017). LACERDA, L.; WERNECK, M.; RIBEIRO, B. Cortiços de hoje na cidade do amanhã: notas sobre a pesquisa Prata Preta e o levantamento de cortiços na área portuária do Rio de Janeiro. E-metrópolis, ano 8, n. 30, set. 2017.
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    Sobre a resistência da Vila Autódromo contra a remoção, ver, por exemplo: https://www.youtube.com/watch?v=s4P8dQJTSBA&t=35s. Acesso em: 30 abr. 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2021
  • Aceito
    11 Fev 2022
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