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Caminhos do capital financeiro no espaço agrário brasileiro: elementos para o debate dos conflitos hídricos no Mato Grosso, Brasil

Resumo

Calcado na leitura de Moore (2015) e nos conceitos de neoextrativismo e land grabbing, este trabalho caracteriza uma forma emblemática de concretização do capitalismo na América Latina, especialmente no estado brasileiro do Mato Grosso. Como manifestações concretas do land grabbing são discutidos os recentemente instituídos Fundos de Investimento do Agronegócio (Fiagro) e apresentadas as empresas listadas em bolsa vinculadas diretamente à especulação de terras e/ou ao monocultivo. Apresentam-se a geolocalização das fazendas administradas pelos Fiagro e sua proximidade dos conflitos por água no estado do Mato Grosso, além do mapa dos compartimentos geoambientais desse estado e o das terras indígenas. O objetivo é encontrar pistas de como - em resposta ao movimento geral de circulação e de valorização do capital em escala global - a construção e a operacionalização desses renovados instrumentos financeiros podem repercutir concretamente na existência de territórios de povos e comunidades que teimam em funcionar com outra lógica.

Palavras-chave:
Neoextrativismo; Financeirização; Land Grabbing; Fiagro; Conflitos Socioambientais

Abstract

Based on the reading of Moore (2015) and the concepts of neo-extractivism and land grabbing, this paper characterizes an emblematic form of the realization of capitalism in Latin America, particularly in the Brazilian state of Mato Grosso. As concrete expressions of land grabbing, the recently established Investment Funds in Agroindustrial Productive Chains (Fiagro) are discussed, and companies listed on the stock exchange directly linked to land speculation and/or monoculture are also presented. The geolocation is also revealed of the farms managed by Fiagro and their proximity to water conflicts in the state of Mato Grosso, together with a map presenting the geoenvironmental compartments of Mato Grosso and the indigenous lands. The objective is to discover clues on how - in response to the general movement of circulation and appreciation of capital on a global scale - the construction and operationalization of these renewed financial instruments may have a concrete impact on the existence of territories of peoples and communities that insist on operating with another logic.

Keywords:
Neoextractivism; Financialization; Land Grabbing; Fiagro; Socio-environmental Conflicts

1. Introdução

Ao desenrolar-se no tempo através do espaço que reorganiza, o capitalismo tanto transforma fluxos naturais de matéria e energia quanto a si mesmo, ou seja, desenvolve-se sistemicamente, de maneira a complexificar-se em suas próprias esferas constitutivas. Longe de ser governado pelo logro do interesse geral entre as partes envolvidas, esse desenrolar se dá a partir da disputa de interesses divergentes, por vezes conflitantes, em relação às formas de territorialização de recortes do espaço geográfico. As relações de poder que daí emergem trazem consequências diversas a comunidades e formas de vida. Afinal, em vez de palco inerte, no qual a humanidade encena seu processo de evolução enquanto espécie, a natureza é uma “trama de vida”.

É disso que trata Moore (2015MOORE, J. Capitalism in The Web of Life. New York: Verso, 2015.), quando se refere à história. Para ele, a história não é a da humanidade na natureza, tampouco da natureza na humanidade, mas daquilo que chama “dupla internalidade”: humanidade-na-natureza/natureza-na-humanidade. Decorre daí sua ideia de que o capitalismo é uma forma social de organizar fluxos naturais, que não são “apenas” de matéria e energia, mas também de poder. Esse duplo movimento reúne a história do capitalismo com a história da natureza e, ademais de vida e tecnologia, envolve conflitos muitas vezes violentos e abruptos, além de crises - que tendem a recrudescer ainda mais os conflitos.

Sentido no qual Jeziorny e Miebach (2023JEZIORNY, D. L.; MIEBACH, A. D. Devir, desenvolvimento, territórios recalcitrantes e horizontes emancipatórios. Revista Universidade e Sociedade, n. 72, p. 148-161, 2023.) afirmam que a polarização social e econômica e os tensionamentos dos conflitos políticos das primeiras décadas do século XXI cristalizam-se na conjuntura recente de guerra e disputa geopolítica, bem como na maturação do processo de degradação das condições ambientais do desenvolvimento capitalista. Nesse cenário, acentuam-se traços de violência aberta em processos de acumulação por despossessão (Harvey, 2005HARVEY, D. El nuevo imperialismo: acumulación por desposesión. In: PANITCH, L.; LEYS, C. Socialist Register. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.), guerras civis contra populações (Lazzarato, 2019LAZZARATO, M. Fascismo ou revolução?: o neoliberalismo em chave estratégica. São Paulo: N-1, 2019.) e a criação fictícia de inimigos (Mbembe, 2017MBEMBE, A. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.). Em muitos países, o sentimento de impotência de grande parcela da população ressentida pelas promessas não cumpridas de um neoliberalismo claudicante é capturado por discursos de ódio. Forja-se, com isso, uma política de cisão social que deságua na eleição de governos de cariz autoritário, a exemplo do que aconteceu recentemente nos EUA com a eleição de Donald Trump, e no Brasil, com Jair Bolsonaro.

No que tange a este último, em meio ao movimento global de concentração e monopolização dos títulos de propriedade pelo capital, associado à concentração e à monopolização da força pelo Estado (Alliez; Lazzarato, 2021ALLIEZ, E.; LAZZARATO, M. Guerras e capital. São Paulo: Ubu Editora, 2021.), impulsionou-se um governo abertamente anti-indígena e antiambientalista. Assim, com o fito de atribuir algum sentido para uma necroeconomia desestruturante do aparelho produtivo nacional e constituinte de devastação ambiental e humana, o governo Bolsonaro jamais deixou de ser contumaz na implementação de uma necropolítica flagrantemente aberta contra muitos grupos sociais e étnicos, a rigor, aqueles mais destoantes da forma-sujeito própria da modernidade.1 1 De acordo com Jappe (2021, p. 63), o que foi apartado do sujeito moderno para tornar possível sua constituição é tudo aquilo que não pode assumir a forma valor. “A parte mais importante desse processo de recalque - ou de ‘dissociação’ - é feita das numerosas atividades que visam assegurar a reprodução cotidiana do sujeito que trabalha e sua perpetuação, mas que não entram diretamente na produção do valor, não se encontram no mercado e não se exprimem em dinheiro.” JAPPE, A. A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Elefante, 2021. 336p. Na esteira, recrudesceram-se ainda mais os conflitos em torno de “recursos naturais”, crescentemente involucrados pela especulação financeira e não menos pelo interesse geopolítico de grandes potências em conflito - conforme aponta, por exemplo, Bruckmann (2015BRUCKMANN, M. Recursos Naturales y la Geopolítica de la Integración Sudamericana. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Luxemburg, 2015.).

Se, do ponto de vista global, o entrelaçamento desses elementos pressiona e é pressionado pelas alterações evidentes no funcionamento do nosso planeta, decorre daí a emergência da crise climática, que marca a quadra histórica que atravessamos. Em muitos países, sobretudo naquelas cujas economias se (des)envolvem na “trama da vida” enquanto fornecedoras de “natureza barata” para a acumulação capitalista, a falta de respostas para antigos problemas, como a persistência de altos níveis de desigualdade material e social, assim como a insuficiência de postos de trabalho e a fome, reforça a ideia de que certas formações sociais têm arcado com custos desproporcionais no processo de desenvolvimento capitalista.

Assim, se na atual etapa de seu desenvolvimento, o capitalismo avança fortemente alavancado pela mola das finanças, justificam-se esforços interpretativos que buscam jogar luz sobre as formas de territorialização capitalista do espaço marcadas pelos imperativos do capital financeiro. A abstração do capital em seu processo de reprodução, obtida a partir da esfera da circulação financeira, permite a investigação de transformações e consequências que se desdobram nos espaços de vivência das mais diversas comunidades. Conforme aponta Harvey (2005HARVEY, D. El nuevo imperialismo: acumulación por desposesión. In: PANITCH, L.; LEYS, C. Socialist Register. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.), o contato entre o capital financeiro e esses espaços ocorre, não raramente, a partir de um reordenamento espaçotemporal no qual a violência do processo de expropriação é intermediada por um Estado aderente aos objetivos de reprodução desse tipo de capital.

Os arranjos que permitem a financeirização dos mais diversos elementos da vida não são espontâneos, uma vez que necessitaram historicamente de suporte e de fomento que envolvessem a dinâmica das relações entre Estado, natureza e mercado (Dardot; Laval, 2016DARDOT P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.). No caso brasileiro, com um passado colonial dependente da exportação de natureza barata na forma de alimentos e matérias-primas, bem como de um presente que não escapa dessa mesma dinâmica repaginada, é cada vez mais visível o estreitamento da relação entre a financeirização da economia e um padrão de reprodução capitalista fundamentalmente neoextrativista. Assim, se, para Gudynas (2009GUDYNAS, E. Diez tesis urgentes sobre el nuevo extractivismo. In: CAAP. CENTRO ANDINO DE ACCIÓN POPULAR; CLAES. CENTRO LATINO AMERICANO DE ECOLOGÍA SOCIAL. Extractivismo, política y sociedad. Quito: CAAP; CLAES, 2009. p.187-225.), o neoextrativismo se consubstancia como um modelo econômico baseado na produção/extração e na comercialização (exportação) de commodities agrícolas e minerais, das quais parte das divisas financia políticas públicas com vistas à compensação da pobreza que daí resulta, para Svampa (2019)SVAMPA, M. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, giro ecoterritorial e novas dependências. São Paulo: Elefante , 2019., as economias que enveredam por essa senda acabam reféns do “consenso de commodities”.

Caso do Brasil, onde recentemente - sob o governo Bolsonaro - foram regulamentados os Fundos de Investimento do Agronegócio (Fiagro). Instituídos pela Lei nº 14.130/21 (Brasil, 2021BRASIL. Lei nº 14.130, de 29 de março de 2021. Altera a Lei nº 8.668, de 25 de junho de 1993, para instituir os Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagro), e a Lei nº 11.033, de 21 de dezembro de 2004; e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 11 jun. 2021.), tais fundos oferecem ao setor do agronegócio benefícios e novas formas de alavancagem. A rigor, trata-se de uma nova forma jurídica de propriedade da terra, que, ao ser transformada num produto financeiro composto de valores mobiliários e imobiliários, não apenas cria mais um instrumento capaz de impulsionar e acelerar a mecânica neoextrativista de apropriação de excedente, mediante renovadas formas de apropriação de renda da terra, como também dificulta a separação entre as funções do capital portador de juros e do capital industrial, constituindo-se, portanto, numa expressão do capital financeiro no reordenamento do espaço agrário brasileiro.

Longe de apontar uma resposta definitiva, o trabalho que ora se apresenta tem por objetivo encontrar pistas de como - em resposta ao movimento geral de circulação e valorização do capital em escala global - a construção e a operacionalização desses renovados instrumentos financeiros podem repercutir concretamente na existência de territórios de povos e comunidades que teimam em funcionar com outra lógica (situação que se evidencia no aumento dos conflitos na espacialidade objeto de análise). Ressaltamos que, primeiro, Mato Grosso se constitui no espaço empírico da análise pela razão de que nele se encontra boa parte dos elementos teóricos utilizados como lente explicativa neste trabalho. Em outras palavras, poderíamos afirmar simplesmente que o que nos levou a selecionar esse recorte geográfico foram os próprios Fiagro, uma vez que a maioria das terras sob essa forma de propriedade jurídica se encontra nesse estado brasileiro. No entanto, e ainda de chofre, tal percepção nos remetera - quase que automaticamente - a recordar alguns traços da formação histórica do Mato Grosso, pujante lócus do neoextrativismo brasileiro, mas também seus mais recentes casos de conflitos socioambientais e eventos de degradação ecossistêmica, dos quais o dia 10 de agosto de 2019, o “dia do fogo”, desponta como emblema.

O estado do Mato Grosso, banhado pelas importantes bacias hidrográficas do Amazonas, Tocantins-Araguaia e Paraguai, aparece, enquanto território demarcado, em 9 de maio de 1748, quando foi criada a capitania do Mato Grosso, hoje unidade específica da federação brasileira que contém, em si, uma série de transformações históricas responsáveis por consolidá-lo como potente exportador de commodities. Entre essas características, desponta a presença secular de conflitos pela terra - entre populações originárias e o Estado, entre o capital e o Estado, mas igualmente entre capitais.2 2 Como aponta Flores (2018, p. 292), ao analisar o caso particular da reserva Kadiwéu, localizada no sul do Mato Grosso, entre 1890 e 1943 a paisagem fundiária do lugar “estava integrada por latifúndios, como a Companhia Mate Laranjeira (ML) que [...] arrendara do Estado quase 2 milhões de hectares de terras devolutas para a exploração dos ervais do extremo sul do estado”. Ainda, o capital internacional já estava presente no território mato-grossense, como, por exemplo, por intermédio da empresa Fomento Argentino Sud Americano, vizinha das terras dos Kadiwéu. No território dessa reserva, há uma série de conflitos de interesses: entre o capital local e o capital estrangeiro; entre a forma de produção capitalista e a não capitalista; entre o Estado, aqui mencionado enquanto ente federado, e os capitais estrangeiros; entre o Estado e os povos originários; e, obviamente, diretamente entre o capital e as populações originárias. Como bem destaca Flores (id., p. 295): “Fazendas pecuaristas foram estabelecidas ao longo de todas as divisas da reserva, não apenas a partir da compra de terras tidas como devolutas”. FLORES, J. M. Transformação agrária e desapropriação de terras indígenas em Mato Grosso (1940-1960): O caso da reserva Kadiwéu. Anuário Antropológico, Brasília, DF, UnB, v. 43, n. 1, p. 285-314, 2018. Seu nascimento “oficial” já ocorre como território agroexportador, com a predominância de atividades como a pecuária extensiva e a mineração. Essa construção inicial, de um território dedicado à produção para fora, se manteve no período republicano, já que no início do século XX os principais produtos do estado eram ainda a pecuária e a produção de erva-mate, de borracha e de açúcar (Martins, 1980MARTINS, D. A poeira da jornada. Memórias. São Paulo: Resenha Tributária, 1980.). De certa maneira, portanto, foi também em face de sua história que o estado do Mato Grosso nos pareceu um bom ponto de partida para o mapeamento das terras sob administração dos Fiagro, os quais buscam acomodar parte do espaço agrário brasileiro à especificidade temporal do capital financeiro.

Do ponto de vista metodológico, partimos de uma concepção materialista e histórica da realidade, com a compreensão de que as ações humanas, tomadas hoje, são mediadas por ações humanas passadas e, mais ainda, de que interferirão decisivamente nas ações humanas futuras. Nem por isso essa perspectiva metodológica nos indica que a materialidade histórica esvazie o ser de sentido, como se tudo estivesse predeterminado. Com base em uma lógica dialética, entendemos que há sempre diferentes possibilidades postas e, em face das decisões alternativas do ser, individual e social, é que a história se constrói.

Essa concepção, em âmbito mais abstrato, nos levou aos níveis mais concretos da análise. Neles, a coleta das primeiras evidências empíricas deste trabalho ocorreu nas páginas oficiais da Bolsa de Valores Mobiliários brasileira (B3), bem como dos fundos imobiliários discutidos e daqueles apenas listados na Tabela 1. Essas primeiras informações permitiram identificar que a maioria das fazendas em propriedade dos fundos estava no território mato-grossense, o que nos levou a ajustar o foco da análise ao espaço agrário do referido estado, do qual buscamos construir uma cartografia. Nesta, o objetivo era contrastar a localização das fazendas de posse dos fundos mencionados (com área total aproximada de 35 mil hectares) com o mapa dos compartimentos geoambientais do Mato Grosso e de suas principais bacias hidrográficas, mas também com as áreas de Terras Indígenas e com locais em que há registros de conflitos por água. Os mapas foram organizados no software QGIZ (versão 3.32.1). Para a compilação dos dados de conflitos, utilizamos os Relatórios da Comissão da Pastoral da Terra (CPT 2013 CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2013. Goiânia: CPT Nacional, 2013.; 2014CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2014. Goiânia: CPT Nacional , 2014. ; 2015CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2015. Goiânia: CPT Nacional , 2015. ; 2016CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2016. Goiânia: CPT Nacional , 2016. ; 2017CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2017. Goiânia: CPT Nacional , 2017.; 2018CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2018. Goiânia: CPT Nacional , 2019. ; 2020CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2020. Goiânia: CPT Nacional , 2021. ; 2022CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2022. Goiânia: CPT Nacional , 2023.).

Tabela 1
Fundos de Investimento no Agronegócio.

Para a análise dos elementos considerados nesta introdução, o artigo está organizado em mais três seções, além das considerações finais e da apresentação das referências e de um apêndice com informações adicionais. Na sequência da apresentação do objeto de estudo, são elencados elementos que permitem identificar a América Latina (e o Brasil) como região de contradições (muitas vezes complementares) aderente a um processo de reprodução mais amplo, valorizando o capital financeiro que territorializa violência e conflitos. A terceira seção trata da “evolução” dos instrumentos financeiros fomentados e desenvolvidos pelo Estado brasileiro para melhorar o fluxo de circulação financeira com desdobramentos territoriais importantes no Mato Grosso. Por fim, analisa-se a evolução dos conflitos no estado em questão com vistas a apontar, de maneira ainda elementar e não definitiva, alguns efeitos da chegada do capital financeiro a seu espaço agrário.

2. América Latina no desenvolvimento capitalista

A partir do momento em que o capital penetra na esfera da produção e reorganiza os fluxos naturais a partir de sua lógica expansiva e acelerante, a forma de reprodução material da humanidade passa a ser pautada decisivamente pelos ganhos de produtividade no trabalho. A economia se expande mundialmente na esteira dessas transformações, e culturas praticamente isoladas são postas em contato, de maneira a constituir-se o “sistema-mundo”, de que trata Wallerstein (2004WALLERSTEIN, I. World-systems Analysis: an Introduction. Durham: Duke University Press, 2004.), e/ou a “economia-mundo”, de que trata Braudel (1987BRAUDEL, F. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. 94 p.): um sistema de produção mercantil - capitalista - que se desenvolve em função dos imperativos da acumulação de capital das economias que conformam o centro sistêmico. É justamente como resultado desse processo que nasce aquilo que conhecemos hoje por América Latina: uma região do planeta cujo espaço geográfico é envolvido no desenvolvimento do capitalismo por uma lógica não apenas expansiva, como acelerante. Isso traz implicações decisivas à dinâmica de funcionamento das economias latino-americanas, na medida em que, desde os seus albores, o capitalismo busca acomodar o espaço geográfico que lhe serve de substrato material e condição inalienável de existência à temporalidade da acumulação de capital, mola-mestra do sistema de reorganização humana da natureza.

Nessa linha, Porto-Gonçalves (2013PORTO-GONÇALVES, C. W. A globalização da natureza e a natureza da globalização. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013., p. 23) afirma que não apenas Wallerstein, como também Quijano, chama “sistema-mundo ao padrão de poder que passou a governar o mundo a partir de 1492, com a descoberta [sic] da América Latina”. Com esse evento, inicia-se o momento em que temos, de fato, uma geografia e uma história verdadeiramente mundiais; nasce assim a noção de “mundo moderno”, cujo acento recai especialmente sobre o segundo termo do binômio porque, no fundo, busca-se atribuir “papel protagônico exclusivo à Europa”, ao obscurecer-se que o “mundo” é partícipe desse processo. Importante não perder de vista, contudo, a ideia de que, “não fosse a colonização da América, a Europa não teria reunido forças para se impor ao mundo como seu verdadeiro centro hegemônico” (id., ibid., p. 24).

Ao contestar a perspectiva eurocêntrica de constituição do capitalismo, Amin (1975AMIN, S. La acumulación em escala mundial. Buenos Aires: Siglo XXI, 1975.) já afirmava que o modo de produção capitalista depende da reprodução daquele tipo particular de evento que marcara seu processo de constituição histórica, estando na base de uma de suas primeiras acelerações. Isto é, o capitalismo depende da reaplicação do princípio da acumulação primitiva - ou da acumulação por despossessão, como afirma Harvey (2005HARVEY, D. El nuevo imperialismo: acumulación por desposesión. In: PANITCH, L.; LEYS, C. Socialist Register. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.), ante o desconforto de qualificar como primitiva ou originária uma lógica que se repete ao longo de todo o processo de complexificação do capitalismo.

Na atualidade, é justamente em ritmo galopante que mecanismos completamente novos de acumulação por despossessão despontam, a exemplo dos direitos de propriedade intelectual que pavimentam os caminhos pelos quais patentes e licenças de materiais genéticos, plasma de sementes ou outras formas de produtos podem ser utilizados (por grandes empresas transnacionais) contra os interesses de populações cujas práticas de gestão ambiental desempenharam - e, a bem da verdade, ainda desempenham - papel decisivo no desenvolvimento desses materiais (Harvey, 2005HARVEY, D. El nuevo imperialismo: acumulación por desposesión. In: PANITCH, L.; LEYS, C. Socialist Register. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.).

Nesse contexto, manifesta-se o que muitos autores têm chamado de land grabbing: a apropriação de terras para acumulação perante a conjunção de distintas contradições - ambiental, energética, alimentar e financeira. Marcantes do neoliberalismo, essas contradições da etapa atual de desenvolvimento capitalista emergem em meio a uma integração sem precedentes entre o capital financeiro e a propriedade da terra, transformada em mero ativo componente dos portfólios de investidores institucionais, muitas vezes à custa da expulsão abrupta e violenta de milhares de pessoas e de povos tradicionais territórios (Sassen, 2016SASSEN, S. Expulsões: brutalidade e complexidade na economia global. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2016.). Se em seu léxico básico, land grabbing significa apropriação de terras, vale notar que esse conceito passou a ser utilizado de modo analítico para distinguir a apropriação de terra nas fases do capitalismo anteriores à financeirização da atual forma em que isso ocorre, em que diversos aspectos da produção agrícola, como a propriedade e o controle da terra, os riscos, as oscilações de preço e as incertezas climáticas, tornam-se ativos financeiros (Borras Jr. et. al., 2016BORRAS Jr., S. M. et al. The rise of flex crops and commodities: implications for research. The Journal of Peasant Studies, 43(1): 93-115, 2016.; Frederico; Almeida, 2019FREDERICO, S.; ALMEIDA, M. C. Capital financeiro, land grabbing e a multiescalaridade na grilagem de terra na região do Matopiba. Rev. NERA, Presidente Prudente, v. 22, n. 47, p. 123-147. Dossiê 2019. ISSN: 1806-6755.).

O debate que decorre desse fenômeno tem suscitado questões a respeito de suas possibilidades de interpretação. A manutenção do termo em língua inglesa resulta do fato de que, embora a ideia de grab envolva um entendimento sobre apropriação, ela abarca conjuntamente a ideia de que esse movimento se dá de forma abrupta e violenta (Kuhn; Waquil; Costa, 2018KUHN, D.; WAQUIL, P.; COSTA, A. Land grabbing e a estrangerirização de terras: elementos para o debate. In: PINTO, D. J. A. et al. (org.). Política Internacional Contemporânea: temas e debates. Rio de Janeiro: Unifap, 2018. p. 32-64.).3 3 É importante mencionar que, no espanhol, a expressão land grabbing é traduzida por acaparamiento de tierras. Essa expressão, além da ideia de apropriação, remete à de uma acumulação exagerada e prejudicial, associada as manipulações do sistema financeiro. Nesse sentido, a expressão em língua inglesa permite identificar as dimensões que envolvem o fenômeno: a expropriação, a financeirização e a violência. O fenômeno contextualiza os conflitos de poder decorrentes da busca pelo controle dos chamados “recursos naturais”.4 4 Poder-se-iam identificar aqui as noções que especificam esses conflitos em categorias analíticas como o water grabbing e o green grabbing. Além disso, vale notar que, nas primeiras décadas do século XXI, a polarização social e econômica, bem como os tensionamentos dos conflitos políticos, consolidam-se na conjuntura recente de guerra e disputa geopolítica, mas igualmente na maturação do processo de degradação das condições ambientais que se expressam na emergência da crise ecológica.

Segundo McMichael (2015)McMICHAEL, P. Historicizing the Agrarian Question. Sociologia Urbana e Rural, n. 102, p. 14-32, Dec. 2013. , a identificação e o interesse pelo fenômeno do land grabbing legitimam-se especialmente pelas discussões promovidas pelo Banco Mundial, em termos da chamada “corrida por terras”, que avança num contexto de crise sistêmica. Vale mencionar, por sinal, que, mesmo sistêmica na essência, trata-se de uma crise marcante da etapa de desenvolvimento capitalista (neoliberal) que hoje se vivencia, uma vez que se manifesta por intermédio de aspectos como as crises energética e alimentar atuais. Nesse sentido, sob o discurso de “alimentar o mundo”, em associação com um aprimoramento tecnológico dos agentes financeiros do setor da indústria alimentícia, o processo de financeirização chega a diversos territórios, comandado por capitais fortemente financeirizados em busca de novas oportunidades de valorização, seja na esfera produtiva, seja na esfera meramente financeira.

Um panorama desse movimento, assim como sua dimensão global, pode ser obtido na base de dados de operações de aquisições e concessões de terra da organização Land MatrixLAND MATRIX INITIATIVE. Disponível em: https://landmatrix.org/. Acesso em: ago. 2023.
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. Eles oferecem um retrato no qual é possível perceber que, das 3.202 operações transnacionais registradas (ou seja, compra de terras por capital que pode ser considerado estrangeiro), 2.258 (cerca de 75%) apresentam status de “implementadas” ou de “em implementação”. Em termos de aquisição de terra com capital nacional (identificadas na base de dados como operações domésticas), registram-se 2.102 delas. Conjuntamente consideradas, as operações transnacionais e domésticas envolvem a comercialização de mais de 98 milhões de hectares de terras, espalhados ao redor de 88 países em todos os continentes do planeta - com 72% dos hectares envolvidos em operações transnacionais.5 5 Os dez países com maior quantidade de hectares vendidos, registrados na base, estão listados na Tabela 3 que integra o Apêndice deste trabalho.

Pode-se dizer que o Brasil tem situação sui generis no debate sobre essas questões de grabbing, uma vez que há demanda externa para “investimentos” (compra/expropriação) em terras brasileiras, mas, também, movimentos de capitais domésticos que “investem” (compram/expropriam) em terras fora do território nacional. Nesses termos, o país recebe “investimentos” de capitais oriundos de 26 países, ao passo que os capitais nacionais se direcionam à aquisição de terras em 12 países.

O Estado tem papel decisivo nesse desenrolar, por se tratar do aparato mediante o qual se busca concertar territorialmente as escalas do fluxo de poder (Harvey, 2005HARVEY, D. El nuevo imperialismo: acumulación por desposesión. In: PANITCH, L.; LEYS, C. Socialist Register. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.); a ele cabe controlar e disponibilizar recortes da biosfera ao capital (Parenti, 2022PARENTI, C. Criação de ambiente no Capitaloceno: a ecologia política do Estado. In: MOORE, J. (org.). Antropoceno ou Capitaloceno: natureza, história e a crise do capitalismo. São Paulo: Elefante , 2022.). Portanto, é engrenagem central na mecânica de reorganização global subordinada dos fluxos de riquezas naturais, ou de matéria, energia e poder, que configura o processo de exploração e expropriação de “natureza barata” - conforme Moore (2015MOORE, J. Capitalism in The Web of Life. New York: Verso, 2015.). Se, nos albores do capitalismo, o extrativismo na América Latina era organizado por um Estado de natureza colonial, na presente fase o neoextrativismo consubstancia-se nas economias dessa região também pela ação decisiva de seus Estados, com base, contudo, no que Osório (2020OSÓRIO, J. Sobre o Estado, o poder político e o Estado dependente. In: BORÓN, A. et al. América Latina na encruzilhada. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. ) chama de “Estado dependente”: instrumento de condensação do poder político e de criação de sentido de comunidade, no qual as classes dominadas, quando ascendem ao poder, apenas o fazem enquanto aquilo que são, isto é, “classes dominadas”.

Daí que, conforme afirma Acosta (2018)ACOSTA, A. Extrativismo e neoextrativismo: duas faces de uma mesma maldição. In: GILGER, D. et al. (org.). Descolonizar o imaginário: debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento. São Paulo: Elefante, 2016. p. 31-99., na América Latina, mesmo em governos ditos progressistas, as políticas desenvolvimentistas - ou neodesenvolvimentistas, se analisadas na recente onda do período compreendido entre 1998 e 2016 - acabam reféns da exploração predatória da natureza, como uma forma de atrair divisas para o financiamento de políticas sociais (transferência de renda) compensatórias que passam ao largo de mudanças estruturais. Para Santos (2018SANTOS, F. L. B. Uma história da onda progressista sul-americana (1998-2016). São Paulo: Elefante , 2018.), sob uma nova roupagem, reforça-se o velho papel dependente do Estado, que, herdado de seu período colonial, reafirma a antiga função do espaço geográfico latino-americano no processo global de acumulação capitalista.

Ao envolver financeirização da economia, expropriação, tecnologia e violência contra povos que teimam em funcionar sob outra lógica, a nova roupagem do processo de acumulação reúne elementos do neoliberalismo para viabilizar o objetivo de reprodução de um capital cada vez mais concentrado e, muito especialmente, comandado pelo capital de natureza monetária. Na seção subsequente, são apresentados traços decisivos de como o Estado brasileiro tem funcionado como artífice de uma forma renovada de land grabbing, ao criar instrumentos para acomodar parte do espaço agrário sob sua jurisdição à temporalidade de quem atualmente dá as cartas na mesa da acumulação em escala global: o capital financeiro.

3. Land grabbing, financeirização do espaço agrário no Brasil e sua territorialização no estado do Mato Grosso

No início de 2021, o Senado Federal aprovou a Lei nº 14.130 (Brasil, 2021BRASIL. Lei nº 14.130, de 29 de março de 2021. Altera a Lei nº 8.668, de 25 de junho de 1993, para instituir os Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagro), e a Lei nº 11.033, de 21 de dezembro de 2004; e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 11 jun. 2021.), que criou no Brasil os Fundos de Investimento do Agronegócio (Fiagro). Em linhas gerais, trata-se da extensão das regras dos Fundos de Investimento Imobiliário (FII) para o espaço rural brasileiro. Os FII são compostos de duas classes de ativos principais: os imóveis propriamente ditos (fixos), que incluem salas comerciais, pavilhões industriais, centros logísticos e afins; e os títulos de dívida privada (fluxos), como as Letras de Crédito Imobiliário (LCI) e os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI), instituídos em 2004, na forma da Lei nº 10.931 (Brasil, 2004bBRASIL. Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004. Dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Bancário, altera o Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969, as Leis nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, nº 4.728, de 14 de julho de 1965, e nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 3 ago. 2004.). Por extensão, a nova lei aprovada pelo Senado, a mais importante para a financeirização do setor após o ocaso das administrações petistas, permite que os Fiagro sejam constituídos de ativos afins àqueles dos FII: no lado imobiliário, poderão contar com terras, estruturas de armazenamento de grãos e centros logísticos vinculados ao agronegócio; na ponta mobiliária, os títulos de dívida que poderão compor os Fiagro são as Letras de Crédito Agrícola (LCA) e os Certificados de Recebíveis Agrícolas (CRA), instituídos pela Lei nº 11.076 (Brasil, 2004cBRASIL. Lei nº 11.076, de 30 de dezembro de 2004. Dispõe sobre o Certificado de Depósito Agropecuário - CDA, o Warrant Agropecuário - WA, o Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio - CDCA, a Letra de Crédito do Agronegócio - LCA e o Certificado de Recebíveis do Agronegócio - CRA, dá nova redação a dispositivos das Leis nºs 9.973, de 29 de maio de 2000, que dispõe sobre o sistema de armazenagem dos produtos agropecuários, 8.427, de 27 de maio de 1992, que dispõe sobre a concessão de subvenção econômica nas operações de crédito rural, 8.929, de 22 de agosto de 1994, que institui a Cédula de Produto Rural - CPR, 9.514, de 20 de novembro de 1997, que dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário e institui a alienação fiduciária de coisa imóvel, e altera a Taxa de Fiscalização de que trata a Lei nº 7.940, de 20 de dezembro de 1989, e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 31 dez. 2004.). É importante destacar que, assim como os FII, os Fiagro não precisam ser, necessariamente, compostos de um ou outro tipo de ativo, visto que, em sua estrutura, é possível combinar fluxos e fixos, ou seja, imóveis e títulos mobiliários.

As letras e certificados vinculados ao agronegócio, criados em 2004, já conferiam ao setor vantagem tributária perante outros setores da economia. Isso porque, na medida em que os proprietários desses títulos não pagam imposto sobre seus rendimentos, as taxas de juros para o financiamento da atividade agrária tendem a ser menores, por exemplo, que aquelas do financiamento da atividade industrial. Essa isenção tributária aos títulos e letras supracitados, regulamentada no primeiro governo Lula, vem se tornando cada vez mais dispendiosa e estima-se que tenha alcançado R$ 11,8 bilhões em 2022. Sobre as LCs e os CRs, talvez seja útil ressaltar que sua negociação ocorre em duas etapas: (i) a oferta primária, quando o banco capta junto a clientes individuais e institucionais os valores necessários ao capital produtivo; e (ii) o mercado secundário, quando esses títulos são comercializados livremente no mercado mobiliário, permitindo que até a data de seu vencimento sejam objeto não apenas de rendimentos isentos de tributação, como também de especulação. Se, por exemplo, uma LCA tem emissão primária a uma taxa de juros prefixada, na medida em que a taxa básica de juros se altera, o preço unitário também varia. Dessa forma, mais que título de rendimentos a uma taxa prefixada, a letra torna-se, em razão da possibilidade de negociação secundária, um ativo mobiliário especulativo. Cabe destacar que, depois da emissão primária, quando os valores levantados junto aos investidores são repassados ao capital produtivo, não há mais qualquer alteração nas condições imediatas de produção baseadas na precificação diária dos títulos. A esfera de negociação torna-se exclusivamente financeira e a valorização ou desvalorização da LCA diz respeito exclusivamente ao seu detentor.

Uma característica marcante dos Fiagro é sua existência na forma de ETFs6 6 É sabido que, nas abordagens da financeirização, sobretudo naquelas efetuadas em língua inglesa, os ETFs são entendidos enquanto fundos passivos, diretamente vinculados a um índice, como é o caso da BOVA11 no Brasil, que replica as oscilações do Índice Bovespa. Apesar de esse não ser o caso dos Fiagro, nem mesmo dos FII, que possuem gestões ativas, eles são listados em bolsa enquanto ETFs, inclusive tendo sempre o número 11 em seus códigos de negociação - BTRA11 no caso do fundo mencionado no corpo do texto. Essa forma, de tradable-fund, pressupõe a existência de um número-limite de cotas, o que implica que cada novo entrante deve adquirir suas cotas de um cotista, ou, mais, que deseje vendê-las. Logo, distinguem-se dos fundos non-tradable, cujas cotas não são negociáveis, mas sim marcadas a mercado com base no comportamento dos ativos que compõem o fundo. Logo, se a partir da literatura eles não poderiam ser vistos como ETFs, já que sua gestão é ativa, eles são listados e negociados na forma de ETFs. (sigla em inglês para Exchange Traded Fund), isto é: o investidor individual, possuidor de cota de determinado fundo que corresponde a uma parcela de terra existente pode, a qualquer momento, se desfazer dessa cota no mercado secundário.7 7 Por mais que exista um mercado secundário de CRs e LCs, sua liquidez é bastante restrita quando comparada à de uma ETF. Isso explica a existência de uma série de FII e Fiagro compostos exclusivamente de títulos mobiliários. Para o investidor individual, torna-se mais adequado a posse de um ETF, já que o mercado de compra e venda desses títulos apresenta maior volume diário de negociações, de modo que desfazer-se de um título se mostra mais simples e, no geral, menos dispendioso. As cotas dos ETFs não refletem imediatamente o preço unitário (PU) dos títulos mobiliários em sua posse, e sim a relação entre a oferta e a demanda de suas cotas no mercado. Essa transferência de propriedade ocorre, em geral, por causa das diferentes expectativas de lucratividade quanto àquele ativo financeiro. A remuneração dos Fiagro, contudo, não é atribuída ao campo unicamente especulativo (que seria a compra de um ativo com o intuito de vendê-lo mais caro no futuro), mas conta também com os recebíveis mensais (yelds), que correspondem aos valores recebidos mediante a renda gerada pela terra repassada, depois de abatidos os custos de gestão e administração, proporcionalmente aos cotistas isentos de imposto de renda.

Apesar da recente regularização dos Fiagro, ocorrida apenas no terceiro ano do governo Bolsonaro, já existe uma quantidade considerável desses fundos vinculados diretamente ao agronegócio: são dezenove fundos de investimento que totalizam um valor patrimonial de R$ 5,3 bilhões. Quinze deles são compostos exclusivamente de valores mobiliários, ou seja, CRs e LCs. Dois fundos são destinados ao investimento direto em terras e dois, à propriedade de aparelhos logísticos. Nesses casos, no geral, os fundos possuem ativos imobiliários, como grandes fazendas, centros de distribuição, silos de armazenamento etc., que são locados a terceiros interessados. É óbvio que se trata de uma expressão concreta de fluxos e fixos reordenados pelo capital financeiro, mas também, a rigor, que o interesse está na renda que a propriedade da terra ou do imóvel pode gerar, e não, necessariamente, nas possibilidades de produção. Por isso, pode ser caracterizado como uma expressão do land grabbing no Brasil.

O conjunto de informações referente aos Fiagro identifica que, se pensarmos na lógica da financeirização, decorrente da propriedade da terra transformada em ativo financeiro, 25% do valor patrimonial está associado ao tipo de investimento relacionado a Terras e Títulos (Tabela 1).

Com foco nos dois Fiagro dedicados à compra e ao arrendamento de terras (RZTR11 e BTRA11), constatamos uma concentração das terras dos fundos proprietários no estado do Mato Grosso (Figura 3), notadamente o mais atingido por queimadas no período 2019-2022.8 8 G1-MT. Queimadas no Pantanal de MT aumentaram 530% em 2020, diz instituto. G1, 23 jul. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2020/07/23/queimadas-no-pantanal-de-mt-aumentaram-530percent-em-2020-diz-instituto.ghtml. Acesso em: 22 ago. 2023. Os proprietários das cotas desses fundos de investimento, além de diversos, não têm necessariamente ligação com os territórios impactados pelos fundos dos quais são sócios. Portanto, a preocupação deles, típica do land grabbing, não recai na preservação do entorno de “suas terras”, mas na proporção do yeld (recebível mensal) pago ao final de cada exercício contábil. Como apontado na introdução deste artigo, a presença de diferentes tipos de capital, e a disputa deles entre si e com os povos originários não é novidade - isso ocorre, pelo menos, desde o século XIX. A novidade é que, agora, as terras do estado aparecem como parte do portfólio mobiliário de fundos de investimento.

A Figura 1 ilustra o mapa dos compartimentos geoambientais do estado do Mato Grosso, onde há fazendas de posse dos fundos mencionados (com área total aproximada de 35 mil hectares). Ademais, estão sobrepostas e assinaladas as áreas de Terras Indígenas, bem como os locais nos quais há registros de conflitos por água. Complementarmente, a Figura 2 mostra a localização das doze fazendas em posse dos referidos fundos, as Terras Indígenas e os locais com registros de conflitos por água que estão justapostos às principais bacias hidrográficas do estado mato-grossense.

Figura 1
Mapa geoambiental do estado do Mato Grosso com a localização das terras em posse dos fundos BTRA11 e RZTR11, das Terras Indígenas e dos conflitos por água (maio de 2023).9 9 O Quadro 1 (Apêndice) apresenta em que compartimento ambiental cada propriedade está localizada. Os dados sobre os conflitos de água foram retirados do Mapa Social do MT, disponível em: Mapa social - Mato Grosso (http://mapasocialmt.org.br). Acesso em: 22 ago. 2023.

Figura 2
Mapa de localização das terras em posse dos fundos BTRA11 e RZTR11, das Terras Indígenas e dos conflitos por água em relação às bacias hidrográficas destacadas (maio de 2023).

Se, por um lado, se evidencia a proximidade geográfica entre as terras que compõem os portifólios dos fundos e os conflitos por água no Mato Grosso, por outro, não se pode inferir, com base na imagem, uma relação imediata de causa e efeito, no limite, nem mesmo de correlação, com risco de ela ser espúria. Não é pertinente apontar que os conflitos pela água sucederam à compra das terras pelos Fiagro, como também não seria correto afirmar que os Fiagro iniciaram os conflitos.

A região referenciada pelo mapa, abundante em água, experimenta há algum tempo a consolidação do agronegócio; é também território Xingu antes dessa consolidação. Isto é, o conflito ali existente entre formas de vida (e principalmente de produção da vida) é anterior à legislação dos Fiagro ou mesmo à sua discussão. Todavia, é preciso ressaltar que, diferentemente de proprietários locais, que poderiam sentir as consequências dos conflitos, ou serem empáticos às pessoas atingidas, os proprietários de cotas dos fundos nem sequer têm interesse em visitar o local, ou nem sabem a localização exata das terras que compõem seu portfólio. Mostram, assim, indiferença em relação às consequências deletérias que a região vem experimentando.

A concentração das terras dos Fiagro mais ao norte do Mato Grosso não parece mero acaso, já que as fazendas Rio Bonito e Bacuri se encontram ao leste do Parque Indígena do Xingu, ao passo que Poranga, São Martinho, Vale do Rio Celeste, Bergamasco e Paranatinga estão a oeste. Há ainda a fazenda Cristalina e a pertencente ao Grupo JR, localizadas ao sul da reserva. Como ilustra o mapa, são fazendas cuidadosamente situadas nos limites da Bacia Hidrográfica do Amazonas, em região banhada, sobretudo, pelas águas dos rios Xingu e Tapajós. Este último é conhecido como o Rio da Vida entre os Munduruku, um dos 34 povos indígenas da região do Tapajós.10 10 Segundo Blaser e Rocha (2022, p. 37): “A bacia do Tapajós não é apenas diversa em termos ambientais; ela conta com uma impressionante e pouco conhecida pluralidade social. O mosaico cultural do Tapajós é representado por povos indígenas, comunidades quilombolas e ribeirinhas, camponeses, varzeiros, seringueiros e beiradeiros”. Cabe enfatizar que os fluxos do rio Xingu, durante o governo de Dilma Rousseff, foram duramente afetados com o início e a conclusão da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, cujo consórcio administrador, Norte Energia, se capitalizou por meio de debêntures incentivadas,11 11 Para mais informações sobre esse produto financeiro, ver Rech e Couto (2022). produto financeiro isento de tributação, criado também na referida administração. Ainda, os entornos da bacia do Xingu foram duramente desmatados e grilados durante os governos Temer e Bolsonaro.12 12 CROWIE, S. Desmatamento na bacia do Rio Xingu dispara sob governo Bolsonaro. Mongabay, 10 jun. 2021. Disponível em: https://brasil.mongabay.com/2021/06/desmatamento-na-bacia-do-rio-xingu-dispara-sob-governo-bolsonaro/. Acesso em: 22 ago. 2023. Imagens do Sistema de Indicação de Radar de Desmatamento (Sirad) permitem estimar que, entre 2018 e 2020, a área desmatada em torno da bacia do Xingu foi de aproximadamente 5 mil km2. É importante mencionar ainda que, no Mato Grosso, de 2019 para 2020, as queimadas aumentaram 530%, ao ponto de esse estado se tornar manchete nacional.13 13 G1-MT. Queimadas no Pantanal de MT aumentaram 530% em 2020, diz instituto. G1, 23 jul. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2020/07/23/queimadas-no-pantanal-de-mt-aumentaram-530percent-em-2020-diz-instituto.ghtml. Acesso em: 22 ago. 2023.

Além da participação nos fundos de investimento, é possível reconhecer processos de land grabbing desdobrados em diferentes setores associados diretamente à produção de commodities ou de proteína animal, amplificando e fortalecendo o desenvolvimentismo neoextrativista. Nesse discurso, a dinâmica apresenta o crescimento econômico pautado na produção agrícola e minerária como base de financiamento para a realização de aclamadas políticas públicas distributivas, apoiadas na exploração dos recursos naturais “disponíveis” (e tensionando toda sorte de vida dos territórios explorados). As empresas e os fundos proprietários/gestores estão associados à manutenção da vocação produtiva primário-exportadora, hoje explorada pelo capital privado (e não mais pelo Estado, como no início da produção colonial, por exemplo).

As transformações atuais envolvendo o setor do agronegócio, conforme apresentado por Clapp (2019CLAPP, J. The rise of financial investment and common ownership in global agrifood firms. Review of International Political Economy, 26(4): 604-629, 2019.), revelam o vínculo entre o monocultivo e a financeirização. Há bastante tempo as monoculturas são reconhecidas como uma estrutura produtiva que contribui destacadamente para o reconhecimento das questões e os problemas ambientais hoje amplamente debatidos (Benbrook, 2006BENBROOK, C. M. Trends in glyphosate herbicide use in the United States and globally. Environmental Sciences Europe, 28(3), p. 1-15, 2016.; Garnet, 2013GARNET, T. Food sustainability: Problems, perspectives and solutions. The Proceedings of the Nutrition Society, 72 (1), p. 29-39, 2013.). Essas grandes empresas atuam em Estados em que a produção neoextrativista não raro pressiona os gestores na busca de arranjos administrativos e fiscais que favoreçam seus ganhos financeiros. Nesse sentido, percebe-se que o esforço pela manutenção dessa lógica de produção causa desonerações com consequências diretas na estrutura de custos (que também é impactada pelas tendências de preços do mercado mundial de insumos). Assim, essas cadeias globais acabam por ajustar sua estrutura de custos explorando recursos naturais e sendo desoneradas, do ponto de vista fiscal, para realizar essas atividades (com consequências territorializadas importantes, envolvendo aumento de violência e piora da qualidade de vida das pessoas atingidas diretamente pelas referidas atividades).

Rech (2022RECH, L. T. A evolução do gasto tributário no Brasil. Publicação preliminar. Brasília, DF: IPEA, 2022.) e Rech e Couto (2022)RECH, L. T; COUTO, L. F. A financeirização subsidiada. In: MARQUES, R.; CARDOSO JR., J. Dominância financeira e privatização das finanças públicas no Brasil. Brasília, DF: Fonacate, 2022. p. 302-319. exploraram a importância do Estado brasileiro na criação e na consolidação dos produtos financeiros que incluem os descritos até aqui neste trabalho e destacaram a evolução das vantagens tributárias concedidas ao agronegócio a partir de 2010. Em valores presentes, amparados na previsão da Receita Federal e na classificação categórica de Rech (2022)RECH, L. T. A evolução do gasto tributário no Brasil. Publicação preliminar. Brasília, DF: IPEA, 2022., estima-se que os subsídios ao setor tenham atingido R$ 24,4 bilhões em 2022. Essa cifra não inclui os subsídios financeiros concedidos aos Fiagro, LCAs e CRAs e exclui os subsídios dados a sementes e agrotóxicos, cujos valores aparecem, na base da Receita, com os subsídios concedidos aos produtos da cesta básica. Ressaltamos: é na lei de isenção tributária relativa aos produtos da cesta básica que são incluídas as isenções a sementes e agrotóxicos,14 14 “Redução a zero das alíquotas do PIS e COFINS sobre importação ou venda no mercado interno de: adubos, fertilizantes e suas matérias-primas; sementes e mudas; corretivo de solo; feijão, arroz, farinha de mandioca e batata-doce; inoculantes agrícolas; vacina veterinária; milho; pintos de 1 (um) dia; leite, bebidas lácteas; queijos; soro de leite; farinha de trigo; trigo; pão; produtos hortículas, frutas e ovos; sementes e embriões; acetona; massas alimentícias; carne bovina, suína, ovina, caprina, ave, peixe; café; açúcar; óleo de soja; manteiga; margarina; sabão; pasta de dente; fio dental; papel higiênico.” Lei nº 10.925/04 (Brasil, 2004a); Decreto nº 5.630/05 (Brasil, 2005); Lei nº 10.865/04 (Brasil, 2004); Lei nº 11.727/08 (Brasil, 2008), art. 25; Lei nº 12.839/13 (Brasil, 2013). ,15 15 Cabe destacar ainda a aceleração na liberação de agrotóxicos no Brasil pós-golpe parlamentar de 2016. Se em 2015 eram 139 agrotóxicos liberados, com Temer esse número chega a 449, em 2018, e com Bolsonaro atinge a marca assustadora de 562 tipos em 2021. SALATI, P. Após novo recorde, Brasil encerra 2021 com 562 agrotóxicos liberados, sendo 33 inéditos. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2022/01/18/apos-novo-recorde-brasil-encerra-2021-com-562-agrotoxicos-liberados-sendo-33-ineditos.ghtml. 18 jan. 2022. Acesso em: 20 abr. 2022. fortalecendo, portanto, o consenso do glifosato.16 16 Sobre o tema, ver o trabalho de Santos e Vasconcelos (2020, p. 292), para quem “o consenso do glifosato foi um marco comum das políticas agrárias dos governos progressistas, que encararam o agronegócio como aliado estratégico na geração de excedentes para financiar sua agenda social, com destaque para programas de transferência de renda condicionada no campo”. SANTOS, F. L. B.; VASCONCELOS, J. S. Consenso do glifosato: políticas agrárias e conflitos rurais na onda progressista da América Latina (1998-2016). Rev. hist. comp., Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 260-300, 2020. A previsão da Receita, para 2022, era de que os subsídios concedidos mediante a Lei nº 10.925/04 (Brasil, 2004a BRASIL. Lei nº 10.925, de 23 de julho de 2004. Reduz as alíquotas do PIS/PASEP e da COFINS incidentes na importação e na comercialização do mercado interno de fertilizantes e defensivos agropecuários e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 26 jul. 2004.) atingissem a marca de R$ 31,9 bilhões, o que, somado aos subsídios classificados por Rech (2022)RECH, L. T. A evolução do gasto tributário no Brasil. Publicação preliminar. Brasília, DF: IPEA, 2022. na categoria agronegócio, resultaria em R$ 56,3 bilhões.

Figura 3
Gastos tributários com o setor do agronegócio (2010-2022).

O alinhamento do país a uma lógica de reprodução social que favorece a reprodução do capital, e que tem no Mato Grosso exemplo concreto, a despeito dos efeitos que ocorrem cotidianamente na vida da população, evidencia dimensões que associam a “modernização” ao processo de piora da qualidade de vida das populações (por exemplo, com o aumento da poluição hídrica evidente com o aumento da utilização de agrotóxicos e a atualização de produtos dessa natureza cada vez mais prejudiciais à vida, tanto de produtores como de consumidores).

A próxima seção busca relacionar a pressão pela valorização do capital ao aumento de conflitos no Mato Grosso, estado situado na região Centro-Oeste do Brasil.

4. Contradições da espacialização do capital financeiro no espaço agrário brasileiro - elementos para a análise dos conflitos no Mato Grosso

No Brasil, com uma antiga e ampla construção no espaço político, a narrativa comumente apresentada, de que as atividades agrícolas respondem por parte significativa da produção brasileira, além de possibilitar a construção de um diagnóstico analítico que permeia o conceito de neoextrativismo, constantemente constrói instrumentos que, do ponto de vista normativo, tendem a favorecer, estimular e impor um processo de expropriação e violência que adere ao processo mais amplo e “moderno” de reprodução do capital. Diante do sequestro do poder político pelo poder econômico crescente de uma elite agrária cada vez mais financeirizada (e concentrada), o agronegócio tem conseguido produzir um conjunto de espaços estatais que removem eventuais barreiras à dinâmica atual de valorização/acumulação em seu atual padrão de reprodução do capital. Emblemática nesse sentido, a região Centro-Oeste brasileira tem um histórico de ocupação repleto de conflitos que abarcam a ocupação e a propriedade de terra (Oderich, 2020ODERICH, E. H. Dinâmicas socioeconômicas da expansão agrícola no Brasil: situações e tendências dos municípios e regiões de soja e de cana-de açúcar. 2020. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Rural). Programa de Pós-graduação da Faculdade de Economia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2020. ).

Além dos conflitos por água, outras importantes situações de violência podem ser identificadas na região. O Projeto Mapa Social Mato GrossoMAPA SOCIAL MATO GROSSO. Mapeamento dos Conflitos Socioambientais de Mato Grosso, [s.d.]. Disponível em: http://mapasocialmt.org.br/. Acesso em: 12 maio 2023.
http://mapasocialmt.org.br...
(s.d.)17 17 As informações sobre o Projeto Mapa Social Mato Grosso, bem como todo o material organizado pela equipe, estão disponíveis em: http://mapasocialmt.org.br. Acesso em: 12 maio 2023. identifica os seguintes conflitos: ameaças de morte, desmatamento, disputa por água, disputa por terra, disputa por extração ilegal de minérios, queimada, trabalho escravo e uso abusivo de agrotóxicos. A visão geral dos conflitos permite identificar o estado mato-grossense, muito especialmente seu espaço rural, como lócus de grande pressão social, ou seja, um espaço em que a confluência espacial do capital está distante de ser considerada um fluxo sem fricções, isento de disputas entre diferentes grupos sociais pela forma de territorialização do espaço.

Além da complexidade, é possível perceber aumento na quantidade de conflitos. De maneira geral, os dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT (2013 CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2013. Goiânia: CPT Nacional, 2013.; 2014CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2014. Goiânia: CPT Nacional , 2014. ; 2015CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2015. Goiânia: CPT Nacional , 2015. ; 2016CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2016. Goiânia: CPT Nacional , 2016. ; 2017CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2017. Goiânia: CPT Nacional , 2017.; 2018CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2018. Goiânia: CPT Nacional , 2019. ; 2020CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2020. Goiânia: CPT Nacional , 2021. ; 2022CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2022. Goiânia: CPT Nacional , 2023.) evidenciam momentos de aumento e queda na quantidade de conflitos para os últimos dez anos de registros de dados. É possível observar que a elasticidade da variação ano a ano é maior para os dados estaduais do que para os nacionais. Entretanto, a informação mais importante aparece quando os dados são organizados em duas médias para períodos selecionados. Observa-se que, para o primeiro período selecionado (2013-2017), a média nacional anual de conflitos no Brasil é de 1.430 ocorrências, enquanto no Mato Grosso ela alcança 59 ocorrências. Para o período seguinte (2018-2022), a média nacional de eventos de conflitos envolvendo a terra sobe 32,57%, com 1.896 eventos. No estado em questão, a média anual para o segundo período (2018-2022) é de 116 ocorrências, representando aumento de 95,61% (aumento muito maior, em termos percentuais, do que o nacional). A Tabela 2 apresenta os dados que permitiram evidenciar essa situação de aumento dos conflitos no campo tanto no Brasil como no Mato Grosso.

Tabela 2
Quantidade de conflitos no campo - Brasil e Mato Grosso (2013-2022).

Considerando a organização dos dados em dois períodos distintos recentes, é possível perceber um aumento significativo da quantidade de conflitos no campo, tanto no Brasil, mas especialmente no estado le 2do Mato Grosso, (não) coincidentemente no período de normatização e consolidação (ou “modernização”) dos instrumentos financeiros que pressionam a circulação financeira em territórios ocupados por comunidades vulneráveis a um processo mais amplo de expropriação violenta. Nesse sentido, a pressão financeira poderia ser considerada um vetor que, no estado, intensifica a ocorrência da violência no campo.

5. Considerações finais

Na presente etapa de desenvolvimento capitalista, o capital financeiro é a principal força a reorganizar os fluxos de matéria, energia e poder nos espaços através dos quais conflui. Por concertar territorialmente as escalas do fluxo de poder e por disponibilizar ao capital recortes da biosfera, o Estado tem papel decisivo nesse desenrolar. Esse papel data desde a instauração das capitanias, e a capitania do Mato Grosso é importante exemplo de como a participação do Estado foi imprescindível para a concretização daquele território enquanto primário-exportador, condição que permanece e se reforça na atualidade. Os recentemente regulamentados Fiagro, localizados em sua maioria em território mato-grossense, são manifestações desse movimento de reorganização capitalista do espaço agrário.

Parece estar claro que a nova forma jurídica de propriedade da terra ensejada pelos Fiagro reflete o caráter dependente do Estado brasileiro, ao reafirmar a função que este desempenha ao longo do processo de desenvolvimento capitalista, enquanto engrenagem central na acomodação do espaço sob sua jurisdição aos imperativos da acumulação em escala global, mas, principalmente, às necessidades de valorização das grandes transnacionais do ramo de commodities agrícolas, cujo pacote tecnológico, com base no qual são produzidas, requer níveis crescentes de água e de aplicação de agrotóxicos. Com isso, aumentam-se os riscos de envenenamento de solos, de pessoas e de reservas de água. Logo, os conflitos por água que proliferam nas bacias hidrográficas onde fincam presença os Fiagro não são mero acaso, já que, mesmo quando distantes das margens dos rios, empreendimentos agropecuários vultosos desviam o curso fluvial para suas propriedades, afetando as populações que veem nele sua principal fonte de vida.

Nessa chave, em que a reorganização da natureza no espaço agrário brasileiro tende a seguir a marcha ditada pelo ritmo frenético das finanças, aprofunda-se ainda mais a mecânica neoextrativista por meio de novas formas de apropriação de renda da terra. Acreditamos que os dados apresentados permitem concluir que a forma de financeirização do espaço, induzida pelo Estado brasileiro, reforça a senda do consenso de commodities. Assim, a geolocalização das terras sob administração desses fundos de investimento do agronegócio acende um sinal de alerta, não apenas por aprofundar um padrão de reprodução do capital contrário à manutenção do bom funcionamento ecossistêmico, mas sobretudo porque as fazendas sob sua administração estão inseridas em áreas de drenagem de importantes bacias hidrográficas e, mais do que isso, em lugares onde os conflitos por água já são uma realidade bastante incrustada, sobejamente na vida de populações que teimam em viver a partir de outra lógica.

Referências

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  • WALLERSTEIN, I. World-systems Analysis: an Introduction. Durham: Duke University Press, 2004.
  • 1
    De acordo com Jappe (2021, p. 63), o que foi apartado do sujeito moderno para tornar possível sua constituição é tudo aquilo que não pode assumir a forma valor. “A parte mais importante desse processo de recalque - ou de ‘dissociação’ - é feita das numerosas atividades que visam assegurar a reprodução cotidiana do sujeito que trabalha e sua perpetuação, mas que não entram diretamente na produção do valor, não se encontram no mercado e não se exprimem em dinheiro.” JAPPE, A. A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Elefante, 2021. 336p.
  • 2
    Como aponta Flores (2018, p. 292), ao analisar o caso particular da reserva Kadiwéu, localizada no sul do Mato Grosso, entre 1890 e 1943 a paisagem fundiária do lugar “estava integrada por latifúndios, como a Companhia Mate Laranjeira (ML) que [...] arrendara do Estado quase 2 milhões de hectares de terras devolutas para a exploração dos ervais do extremo sul do estado”. Ainda, o capital internacional já estava presente no território mato-grossense, como, por exemplo, por intermédio da empresa Fomento Argentino Sud Americano, vizinha das terras dos Kadiwéu. No território dessa reserva, há uma série de conflitos de interesses: entre o capital local e o capital estrangeiro; entre a forma de produção capitalista e a não capitalista; entre o Estado, aqui mencionado enquanto ente federado, e os capitais estrangeiros; entre o Estado e os povos originários; e, obviamente, diretamente entre o capital e as populações originárias. Como bem destaca Flores (id., p. 295): “Fazendas pecuaristas foram estabelecidas ao longo de todas as divisas da reserva, não apenas a partir da compra de terras tidas como devolutas”. FLORES, J. M. Transformação agrária e desapropriação de terras indígenas em Mato Grosso (1940-1960): O caso da reserva Kadiwéu. Anuário Antropológico, Brasília, DF, UnB, v. 43, n. 1, p. 285-314, 2018.
  • 3
    É importante mencionar que, no espanhol, a expressão land grabbing é traduzida por acaparamiento de tierras. Essa expressão, além da ideia de apropriação, remete à de uma acumulação exagerada e prejudicial, associada as manipulações do sistema financeiro.
  • 4
    Poder-se-iam identificar aqui as noções que especificam esses conflitos em categorias analíticas como o water grabbing e o green grabbing. Além disso, vale notar que, nas primeiras décadas do século XXI, a polarização social e econômica, bem como os tensionamentos dos conflitos políticos, consolidam-se na conjuntura recente de guerra e disputa geopolítica, mas igualmente na maturação do processo de degradação das condições ambientais que se expressam na emergência da crise ecológica.
  • 5
    Os dez países com maior quantidade de hectares vendidos, registrados na base, estão listados na Tabela 3 que integra o Apêndice Tabela 3 Operações de venda de terra - países com mais hectares comercializados em operações domésticas e transnacionais (2000-2023) - total de ha. País Total de ha. Total de operações Média de ha. por operação 1º Rússia 30.657.026 381 80.464,64 2º Brasil 7.483.099 237 31.574,26 3º Indonésia 6.723.939 297 22.639,53 4º Camarões 3.695.207 62 59.600,11 5º Ucrânia 3.385.716 285 11.879,71 6º Argentina 3.147.586 214 14.708,35 7º Rep. Dem. do Congo 2.386.208 22 108.464,00 8º Libéria 2.061.467 25 82.458,68 9º Sudão do Sul 1.875.640 9 208.404,44 10º Guiana 1.382.691 6 230.448,50 Fonte: Operações cadastradas na base de dados Land Matrix. Informações disponíveis em https://landmatrix.org/list/deals/. Acesso em: 16 ago. 2023. Elaborada pelos autores. deste trabalho.
  • 6
    É sabido que, nas abordagens da financeirização, sobretudo naquelas efetuadas em língua inglesa, os ETFs são entendidos enquanto fundos passivos, diretamente vinculados a um índice, como é o caso da BOVA11 no Brasil, que replica as oscilações do Índice Bovespa. Apesar de esse não ser o caso dos Fiagro, nem mesmo dos FII, que possuem gestões ativas, eles são listados em bolsa enquanto ETFs, inclusive tendo sempre o número 11 em seus códigos de negociação - BTRA11 no caso do fundo mencionado no corpo do texto. Essa forma, de tradable-fund, pressupõe a existência de um número-limite de cotas, o que implica que cada novo entrante deve adquirir suas cotas de um cotista, ou, mais, que deseje vendê-las. Logo, distinguem-se dos fundos non-tradable, cujas cotas não são negociáveis, mas sim marcadas a mercado com base no comportamento dos ativos que compõem o fundo. Logo, se a partir da literatura eles não poderiam ser vistos como ETFs, já que sua gestão é ativa, eles são listados e negociados na forma de ETFs.
  • 7
    Por mais que exista um mercado secundário de CRs e LCs, sua liquidez é bastante restrita quando comparada à de uma ETF. Isso explica a existência de uma série de FII e Fiagro compostos exclusivamente de títulos mobiliários. Para o investidor individual, torna-se mais adequado a posse de um ETF, já que o mercado de compra e venda desses títulos apresenta maior volume diário de negociações, de modo que desfazer-se de um título se mostra mais simples e, no geral, menos dispendioso. As cotas dos ETFs não refletem imediatamente o preço unitário (PU) dos títulos mobiliários em sua posse, e sim a relação entre a oferta e a demanda de suas cotas no mercado.
  • 8
    G1-MT. Queimadas no Pantanal de MT aumentaram 530% em 2020, diz instituto. G1, 23 jul. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2020/07/23/queimadas-no-pantanal-de-mt-aumentaram-530percent-em-2020-diz-instituto.ghtml. Acesso em: 22 ago. 2023.
  • 9
    O Quadro 1 (Apêndice Quadro 1 Compartimentos geoambientais e propriedades integrantes dos Fundos BTRA11 e RZTR11 - Mato Grosso (maio de 2023). Compartimento geoambiental Propriedade Planalto do Alto Xingu Fazenda Rio Bonito Fazenda Bacuri e Buriti Planalto dos Parecis Milton Cella - Nova Maringá Fazenda Vale do Rio Celeste Fazenda São Martinho Fazenda Poranga Fazenda Paranatinga Grupo Bergamasco - Nova Mutum Grupo Bergamasco - Tapurah Chapada dos Parecis Rui Prado - C. N. dos Parecis Chapada dos Guimarães Fazenda Cristalina Grupo JR - Campo Verde Fonte: Elaborado pelos autores com base em dados do IBGE (2022) e em relatórios dos Fiagro. ) apresenta em que compartimento ambiental cada propriedade está localizada. Os dados sobre os conflitos de água foram retirados do Mapa Social do MT, disponível em: Mapa social - Mato Grosso (http://mapasocialmt.org.br). Acesso em: 22 ago. 2023.
  • 10
    Segundo Blaser e Rocha (2022BLASER, A.; ROCHA, B. Territórios, rios e comunidades: as redes de conexões do rio tapajós. In: ROCHA, B. et al. Tapajós sob o sol: mergulho nas características ecológicas, socioculturais e econômicas da bacia hidrográfica. International Rivers: 2022, p. 37): “A bacia do Tapajós não é apenas diversa em termos ambientais; ela conta com uma impressionante e pouco conhecida pluralidade social. O mosaico cultural do Tapajós é representado por povos indígenas, comunidades quilombolas e ribeirinhas, camponeses, varzeiros, seringueiros e beiradeiros”.
  • 11
    Para mais informações sobre esse produto financeiro, ver Rech e Couto (2022)RECH, L. T; COUTO, L. F. A financeirização subsidiada. In: MARQUES, R.; CARDOSO JR., J. Dominância financeira e privatização das finanças públicas no Brasil. Brasília, DF: Fonacate, 2022. p. 302-319..
  • 12
    CROWIE, S. Desmatamento na bacia do Rio Xingu dispara sob governo Bolsonaro. Mongabay, 10 jun. 2021. Disponível em: https://brasil.mongabay.com/2021/06/desmatamento-na-bacia-do-rio-xingu-dispara-sob-governo-bolsonaro/. Acesso em: 22 ago. 2023.
  • 13
    G1-MT. Queimadas no Pantanal de MT aumentaram 530% em 2020, diz instituto. G1, 23 jul. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2020/07/23/queimadas-no-pantanal-de-mt-aumentaram-530percent-em-2020-diz-instituto.ghtml. Acesso em: 22 ago. 2023.
  • 14
    “Redução a zero das alíquotas do PIS e COFINS sobre importação ou venda no mercado interno de: adubos, fertilizantes e suas matérias-primas; sementes e mudas; corretivo de solo; feijão, arroz, farinha de mandioca e batata-doce; inoculantes agrícolas; vacina veterinária; milho; pintos de 1 (um) dia; leite, bebidas lácteas; queijos; soro de leite; farinha de trigo; trigo; pão; produtos hortículas, frutas e ovos; sementes e embriões; acetona; massas alimentícias; carne bovina, suína, ovina, caprina, ave, peixe; café; açúcar; óleo de soja; manteiga; margarina; sabão; pasta de dente; fio dental; papel higiênico.” Lei nº 10.925/04 (Brasil, 2004a BRASIL. Lei nº 10.925, de 23 de julho de 2004. Reduz as alíquotas do PIS/PASEP e da COFINS incidentes na importação e na comercialização do mercado interno de fertilizantes e defensivos agropecuários e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 26 jul. 2004.); Decreto nº 5.630/05 (Brasil, 2005); Lei nº 10.865/04 (Brasil, 2004); Lei nº 11.727/08 (Brasil, 2008), art. 25; Lei nº 12.839/13 (Brasil, 2013).
  • 15
    Cabe destacar ainda a aceleração na liberação de agrotóxicos no Brasil pós-golpe parlamentar de 2016. Se em 2015 eram 139 agrotóxicos liberados, com Temer esse número chega a 449, em 2018, e com Bolsonaro atinge a marca assustadora de 562 tipos em 2021. SALATI, P. Após novo recorde, Brasil encerra 2021 com 562 agrotóxicos liberados, sendo 33 inéditos. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2022/01/18/apos-novo-recorde-brasil-encerra-2021-com-562-agrotoxicos-liberados-sendo-33-ineditos.ghtml. 18 jan. 2022. Acesso em: 20 abr. 2022.
  • 16
    Sobre o tema, ver o trabalho de Santos e Vasconcelos (2020, p. 292), para quem “o consenso do glifosato foi um marco comum das políticas agrárias dos governos progressistas, que encararam o agronegócio como aliado estratégico na geração de excedentes para financiar sua agenda social, com destaque para programas de transferência de renda condicionada no campo”. SANTOS, F. L. B.; VASCONCELOS, J. S. Consenso do glifosato: políticas agrárias e conflitos rurais na onda progressista da América Latina (1998-2016). Rev. hist. comp., Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 260-300, 2020.
  • 17
    As informações sobre o Projeto Mapa Social Mato Grosso, bem como todo o material organizado pela equipe, estão disponíveis em: http://mapasocialmt.org.br. Acesso em: 12 maio 2023.
  • 18
    Para a organização dos dados, foram utilizadas as informações mais recentes em relação ao ano de análise, constante no conjunto de relatórios disponíveis em https://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes-2/conflitos-no-campo-brasil. Os dados referentes à quantidade de conflitos no Brasil foram retirados do relatório de 2022. Os dados sobre os conflitos de terra no estado do Mato Grosso estão disponibilizados para o Brasil, por estado, em https://www.cptnacional.org.br/downlods/category/36-conflitos-por-terra-ocorrencias.
Tabela 3
Operações de venda de terra - países com mais hectares comercializados em operações domésticas e transnacionais (2000-2023) - total de ha.
Quadro 1
Compartimentos geoambientais e propriedades integrantes dos Fundos BTRA11 e RZTR11 - Mato Grosso (maio de 2023).
Quadro 2
Investimentos recebidos e realizados para a compra de terra pelo Brasil (2000-2023) - países e quantidade de operações cadastradas.

Disponibilidade de dados

Citações de dados

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2023
  • Aceito
    05 Set 2023
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